Resumo
Objetiva-se analisar em que medida as categorais natureza (Natur) e processo de trabalho (Arbeitprozeß) podem ser utilizadas como fundamentos para se pensar a ontologia do ser social nos escritos de Marx. O artigo se divide em duas partes: na primeira, é apresentada a leitura marxiana da questão da natureza nas filosofias de Hegel e Feuerbach; na segunda, é feita a análise acerca da questão da natureza e do processo de trabalho nos textos de Marx.
Palavras-chave: Karl Marx; natureza; trabalho; ontologia
Resumen
Se pretende analizar en qué medida las categorías de naturaleza (Natur) y proceso de trabajo (Arbeitprozeß) pueden ser utilizadas como fundamentos para pensar la ontologia del ser social en los escritos de Marx. El artículo se divide en dos partes: en la primera, se presenta la lectura marxiana de la cuestión de la naturaleza en las filosofías de Hegel y Feuerbach; En la segunda, se hace el análisis acerca de la cuestión de la naturaleza y del proceso de trabajo en los textos de Marx.
Palabras clave: Karl Marx; naturaleza; trabajo; ontología
Abstract
In this paper, our objective is to analyze how categories such as nature (Natur) and labour process (Arbeitprozeß) can be used as foundations to study the ontology of the social being in Marx’s writings. The article is divided into two parts: in the first, the marxian reading of the question of nature in the philosophies of Hegel and Feuerbach is presented; in the second, we analyze the question of nature and the labour process in Marx’s texts.
Palavras-chave: Karl Marx; nature; labour process; ontology
Introdução
O objetivo deste artigo, que se estrutura como um ensaio teórico, é discutir em que medida a natureza e o processo de trabalho podem ser utilizados como fundamentos para se pensar a ontologia do ser social a partir de Marx. Para tanto, parte-se da análise das teorizações marxianas acerca da natureza (Natur) para mostrar como essas embasam a centralidade da objetividade e, por conseguinte, do trabalho (Arbeit) no processo ontológico humano.
A questão da natureza (Natur) não fora trabalhada por Marx de forma isolada. A categoria natureza aparece raramente nos escritos marxianos de forma estruturada e autônoma. Não obstante, Marx versara sobre a questão da natureza em diferentes momentos de sua obra, e essa categoria é fundamental para a compreensão da “relação que existe entre a concepção materialista da história e o materialismo filosófico em geral” (Schmidt, 1962/1986, p. 11). A natureza, enquanto categoria, aparece nominalmente de várias formas nos textos de Marx: como “'matéria', 'natureza', 'substância natural', 'coisa natural', 'terra', 'momentos existenciais objetivos do trabalho', 'condições objetivas' ou 'concretas do trabalho'” (Schmidt, 1962/1986, p. 24). Com efeito, embora não exista, nos postulados de Marx, uma filosofia da natureza estruturada e formalizada, é possível afirmar que a categoria natureza está presente tanto em suas primeiras incursões filosóficas, a saber, sua tese de doutorado, quanto em O Capital. Desde sua tese de doutorado, em que analisa a diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro, até O Capital, em que afirma que a natureza é o fundamento concreto em que o ser humano produz, Marx se interessara por e postulara sobre a natureza. De forma geral, o que diferencia os postulados marxianos sobre a natureza de outras concepções é o caráter ontológico e sócio-histórico que Marx empresta à natureza. Para ele, a natureza é a fonte de todos os meios de trabalho, dos objetos que vão ser trabalhados e a dimensão em que se desenrola o processo de trabalho. Enquanto “a natureza fenomênica e toda consciência da natureza, no curso da história, se reduzem cada vez mais a constituir uma função dos processos objetivos da sociedade, em Marx a sociedade se mostra como um contexto natural” (Schmidt, 1962/1986, p. 12). O processo de trabalho (der Arbeitprozeß), por sua vez, é tratado por Marx de forma incomum, em certo aspecto. Num contexto específico, as categorias analisadas por Marx operam de forma apropriada apenas no modo de produção do capital. Essa característica é transversal à sua obra. O valor é um exemplo. O valor (Wert) não é uma “categoria universal, mas algo exclusivo do capitalismo, um produto da era burguesa” (Harvey, 2010, p. 111). A análise marxiana do processo de trabalho diverge dessa formulação. O trabalho não é apresentado como uma especificidade do modo de produção de capital. Marx empresta à categoria trabalho (Arbeit) uma centralidade ontológica e, por isso, a mesma é discutida como categoria universal. O processo de trabalho (der Arbeitprozeß), enquanto categoria ontológica, ultrapassa os limites de qualquer modo de produção. Esse tratamento dispensado à categoria trabalho (Arbeit) é um dos pontos de inflexão na filosofia marxiana.
Este artigo se fundamenta na estrutura do complexo lógico-categorial marxiano. Ou seja, neste texto se compreende que tanto a categoria natureza quanto o processo de trabalho, em Marx, só adquirem determinação quando remetem à totalidade do ser social. Essa forma de análise e exposição resulta em dois pontos: (a) a natureza como fundamento ontológico não é essência nem substância, mas potência natural da qual o ser humano concreto faz parte; (b) essa relação está incorporada a uma estruturação societal baseada no processo de trabalho enquanto fundamento ontológico e mediador universal.
A crítica de Marx à filosofia da natureza de Hegel
A natureza, para Marx, integra a práxis humana e, ao mesmo tempo, é a totalidade concreta. Marx opõe-se às concepções que postulam que a natureza seja um amontoado natural, inerte, e entregue às determinações gnosiológicas ou à vontade do ser humano. A filosofia da natureza de Hegel é um exemplo desse tipo de discurso. Convém abordar a concepção hegeliana de natureza, o que exige, ainda, uma breve incursão em sua concepção acerca da dialética1.
A dialética, desde a concepção de Heráclito, carrega o sentido de movimento. Mas esse movimento não se limita à dimensão gnosiológica. O movimento dialético não se restringe à sucessão de conceitos que caracterizam a forma como o proceder racional apreende a realidade. Na sua origem, na sua concepção inicial, o movimento dialético está nos objetos antes de emergir na lógica do pensamento. Com efeito, “se partirmos da conhecida relação sujeito - objeto, identificamos o movimento dialético, em primeiro lugar, no próprio objeto” (Trein, 2016, p. 35). Observa-se, então, que a dialética diz respeito tanto à estruturação dos objetos quanto à forma como esses são apreendidos pela racionalidade humana. Isso se dá porque a dialética, entendida enquanto movimento, não é apenas um método, mas também uma forma de estruturação ontológica. A realidade concreta, enquanto objeto, também está circunscrita pelos mesmos princípios. Logo, se a realidade está em constante devir, como pode o ser que nela se encontra circunscrito colocar-se sempre da mesma forma? Em outras palavras: como pode um ser que se encontra inscrito numa realidade dialética se estruturar ontologicamente de forma não dialética? Como é possível emergir um processo ontológico que não tem como base o movimento e a transformação em uma realidade que é marcada pelo movimento? Com efeito, o movimento dialético, antes de ser a própria “lógica da lógica”, “é expressão radical da natureza ontológica do objeto como realidade em permanente movimento” (Trein, 2016, p. 35). Essa configuração também caracteriza a dialética hegeliana.
Em Hegel, a realidade concreta, considerada um objeto, também se fundamenta no movimento dialético e está em “constante vir-a-ser, onde as partes se relacionam dialeticamente” (Trein, 2016, p. 35). Na dialética hegeliana, contudo, aquilo que provoca o movimento, o que impulsiona o constante estado de vir-a-ser dos objetos, não é tão somente o próprio objeto, mas, de forma determinante, as contradições imanentes ao movimento lógico da Ideia lógica em direção à sua efetivação. Para Hegel, o motor do processo dialético são as contradições subjetivas da Ideia lógica, e não as contradições concretas inerentes aos próprios objetos e à sua constituição. Isso significa que os objetos, e pode-se aqui considerar a natureza como um objeto, passam a ser determinados por uma dimensão que lhes é alheia. O momento determinante da natureza, por exemplo, na dialética hegeliana, é a contradição que caracteriza o movimento da Ideia lógica em direção à realização de sua potência, ou seja, o movimento da Ideia lógica em direção a si mesma (Trein, 2016, p. 37). Essa estrutura reverbera no conceito hegeliano de natureza.
A natureza na filosofia hegeliana, considerada a prioridade ontológica da Ideia, é determinada pela teleologia do movimento da Ideia e aparece apenas como um momento do processo de alienação da Ideia lógica. Ela é tão somente o momento em que a Ideia passa por uma determinação sensível no processo que a leva de volta a si mesma como Ideia lógica. A natureza em Hegel é “apenas uma outra forma fenomênica do espírito” (Chagas, 2009, p. 60). Logo, não possui centralidade ontológica e para Hegel, de acordo com Marx, é a “lógica” do processo constituinte da Ideia que determina a natureza e não o contrário. Nessa configuração, a ontologia natural é “concebida de modo essencialmente idealista” (Lukács, 1984/2012, p. 187). O problema desse postulado é que não se explicita como a Ideia lógica,
que como absoluta está já sempre em si, chega a se alienar, a se perder no mundo do ser objetivo-material … e o processo por qual a natureza, uma vez produzida pela Ideia, suprime gradualmente todas as determinações naturais e passa ao Espírito como sua mais elevada verdade”. (Schmidt, 1962/1986, p. 19)
Hegel afirma que há um trajeto que vai da lógica à natureza, mas não explicita quais mediações sustentam essas transições. Ao invés disso, afirma que “a Lógica (Logik) representa o movimento próprio (die Selbstbewegung) da Ideia absoluta (der absoluten Idee), só como o Verbo (Wort) originário, que é a manifestação, mas uma manifestação de natureza tal, que, como extrínseca, imediatamente desaparece de novo ao existir” (Hegel, 1816/2003, p. 550). Portanto, “a Ideia existe só nesta sua própria Autodeterminação (Selbstbestimmung) de entender-se; se acha no pensamento puro, onde a diferença não é todavia um ser-outro, senão que é completamente transparente a si mesma e assim fica” (Hegel, 1816/2003, p. 550). Há uma certa ambiguidade na forma como a filosofia hegeliana trata a questão do trânsito entre lógica e natureza. De um lado, Hegel “parece admitir uma carência da Ideia lógica em manifestar-se concreta e existencialmente; de outro, justamente devido à sua completude e perfeição, parece afirmar a sua indiferença em manifestar-se” (Cossetin, 2011, p. 94). Não obstante, ele afirma que há uma conciliação entre ambas que se fundamenta na determinação da natureza pela lógica. Isso porque o “surgimento” da natureza é impulsionado por uma instância que precede a própria natureza: o movimento lógico dialético da Ideia em direção à sua autodeterminação (Ideia lógica). Esse movimento também impõe à natureza a necessidade de retorno à lógica do movimento da Ideia. Hegel escreve que “o movimento (Bewegung) da Ideia da natureza (der Idee der Natur) é absorver-se em sua imediação (Unmittelbarkeit), elevar-se e tornar-se Espírito” (Hegel, 1810/1968, § 97). Literalmente, o que ele afirma com isso é que
a natureza (Die Natur) é a Ideia absoluta (die absolute Idee) na forma (der Gestalt) do ser-outro em geral, da objetividade externa (äußerlichen Gegenständlichkeit), indiferente (der gleichgültigen), e da concreta e individualizada realização de seus momentos - ou a essência absoluta na determinação da imediatidade em geral perante a sua mediação (Vermittlung). O devir (Werden) da natureza é o devir em direção ao Espírito (Geist). (Hegel, 1810/1968, § 96)
O fato de a natureza só aparecer nesta relação coloca um problema. Embora, na filosofia hegeliana, a natureza apareça como exterioridade, “uma extensão da Ideia Lógica, por causa da imperfeição de sua estrutura, ela não possui as condições para a determinação de seus fins, elas estão fora dela mesma, ou seja, na Razão, no Espírito” (Cossetin, 2011, p. 98). Esse tipo de relação implica que a Ideia Lógica se produz, em grande medida, sem a natureza e que o próprio ser humano também pode produzir sem contato com ela. Disso decorre que existe produção que não possui lastro natural: um tipo de produção gnosiológica que não se sustenta na concretude e que, com efeito, afasta o ser humano da sua naturalidade. E, se o ser humano é capaz de produzir fora do contexto natural, ele também é capaz de produzir a si fora do mesmo contexto. Marx se contrapõe a este tipo de conceituação acerca da natureza e da relação que se estabelece entre essa e a vida humana. A categoria natureza, na concepção marxiana, possui uma determinação “ontológica”. Ela é condição necessária para a objetivação do trabalho e dos seres humanos, ou seja, naturaliza o ser social. Mas, concomitantemente, possui uma determinação histórica, ou seja, é humanizada pelo ser social.
A leitura marxiana da filosofia natural de Feuerbach
Tradicionalmente, as interpretações sobre a relação Feuerbach-Marx se limitam a analisar a forma como a crítica feuerbachiana à religião e à metafísica clássica fundamentou a crítica de Marx a Hegel. Porém, a base naturalista-antropológica que sustenta a crítica feuerbachiana é de maior importância para a compreensão da filosofia marxiana em geral e a concepção de natureza que daí emerge em particular. A influência de “Feuerbach sobre Marx não consiste tanto no seu ateísmo, que era coisa corrente para ele que conhecia o Iluminismo francês e a crítica bíblica da esquerda hegeliana, mas sim em sua concepção da natureza” (Schmidt, 1962/1986. p. 18). Escritos como Teses provisórias sobre a reforma da filosofia (Vorläufige Thesen zur Reform der Philosophie) de 1842 e Princípios da filosofia futura (Grundsätze der Philosophie der Zukunft) de 1843, ambos de Feuerbach, são mais importantes para compreender o conceito de natureza de Marx e a influência que a obra daquele exercera sobre a deste do que o texto de 1841 intitulado A origem do cristianismo (Das Wesen des Christentums). É com a obra de Feuerbach que, para Marx, se inicia a “crítica” humanista e naturalista que ele considera a única verdadeira revolução teórica desde os escritos hegelianos. Para ele, a obra feuerbachiana é importante porque “prova que a filosofia não é outra coisa senão a religião trazida para o pensamento e conduzida pensada[mente]; portanto, uma outra forma e [outro modo] de existência (Daseinweise) do estranhamento (Entfremdung) da essência humana (des menschlichen Wesens)” (Marx, 1932/1968, p. 569). De forma literal, o que Marx afirma é que “Feuerbach é o único que tem para com a dialética hegeliana um comportamento sério, crítico, e [o único] que fez verdadeiras descobertas nesse domínio, [ele é] em geral o verdadeiro triunfador (Überwinder) da velha filosofia” (Marx, 1932/1968, p. 569). Essa configuração afasta Feuerbach das concepções idealistas acerca da subjetividade humana e da natureza. Não obstante, Marx direciona críticas à filosofia da natureza de Feuerbach. O movimento é o mesmo que caracteriza a relação Marx-Hegel. Ao mesmo tempo em que reconhece as virtudes da filosofia feuerbachiana, Marx a critica para, a partir dela, poder estruturar sua própria filosofia. O que ocorre na crítica a Feuerbach é uma inversão vetorial comparada à crítica dirigida a Hegel: para Marx, Feuerbach considera que a natureza é um determinante ontológico que, sem mediação, se impõe ao ser humano. Para entender essa crítica e como ela aparece nos postulados marxianos acerca da natureza, é necessário analisar qual a concepção de Feuerbach sobre a natureza.
A concepção feuerbachiana da natureza limita-se, ao mesmo tempo, à contemplação e à pura sensação. A contemplação (Anschauung) se fundamenta na noção de que a natureza é uma exterioridade sensível imutável que se autodetermina atráves de leis naturais, necessariamente separadas da atividade sensível dos seres humanos. Para Feuerbach, a natureza é a primeira estrutura de existência, “o primeiro, o originário, o que produz tudo de si e não pode ser pensada como produzida, pois ela acha seu sentido tão somente em si mesma” (Chagas, 2009, p. 38). Ela constitui uma dimensão alheia à esfera humana que, não obstante, determina esta última, mas não é influenciada por ela. De forma geral, Feuerbach afirma que os seres humanos são seres naturais apenas determinados pela natureza e não parte constituinte da mesma. A última é um determinante ontológico que, sem mediação, se impõe àqueles. Ou seja, é uma dimensão alheia ao ser humano que, em última medida, determina não apenas o campo concreto em que este atua, mas também a forma como atua e, consequentemente, a estruturação que daí resulta. Na obra feuerbachiana, a natureza é entendida como “unidade orgânica, como harmonia de causas e efeitos, como pressuposto necessário para todos os objetos, fenômenos e criaturas, plantas e animais, inclusive para a natureza humana” (Chagas, 2009, p. 38). A concepção feuerbachiana da natureza se sustenta na contemplação (Anschauung), porque, para ele, a natureza é, antes de tudo, uma dimensão concreta que se mostra aos sentidos. Ela não é um produto da atividade sensível humana, nem um produto dos processos gnosiológicos, ela é a essência natural que precede a atividade humana e também a consciência. Disso resulta que, embora não seja possível afirmar que essa concepção seja estritamente atomística e mecânica, a natureza aparece, em Feuerbach, como uma dimensão puramente sensível, como pura sensação. De forma literal, ele afirma que a natureza “é o cerne ou a essência dos seres e das coisas cujos fenômenos não têm fundamento em pensamentos, intenções ou decisões do querer, mas em forças ou causas astronômicas, cósmicas, químicas, físicas, fisiológicas ou orgânicas” (Feuerbach, 1851/1989, p. 82). A natureza é pura sensação, para Feuerbach, porque é a diversidade de coisas concretas que existem além, e aquém, do ser humano e que se apresenta ao último apenas por meio dos sentidos. Ela é também pura sensação porque existe fora do âmbito das representações e fora dos processos gnosiológicos. Ela é a dimensão concreta que precede o “pensamento”, o “espírito”, e, por isso, é a base orgânica e sensível deste.
A categoria natureza em Marx
A natureza, em Marx, não é apenas um momento fenomênico no processo de transições dialéticas da Ideia lógica como na filosofia de Hegel. E também não é o fundamento concreto imutável que determina a realidade humana sem mediação como na filosofia feuerbachiana.
Para Marx, a natureza se funda em si mesma. Ela é ser a partir de si e mediante si mesma. A natureza, na filosofia marxiana, é causa sui. Ele afirma que o ser humano só produz em contato com a natureza e condiciona a produção humana ao estabelecimento desse metabolismo com a natureza. Ou seja, para Marx, o ser humano não pode produzir sem a natureza. Literalmente, o ser humano “nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível (sinnliche Außenwelt)” (Marx, 1932/1968, p. 512). É no mundo exterior sensível, na natureza, que o trabalho se efetiva. E o ser humano se efetiva no trabalho. Isso significa que o ser humano só se efetiva em relação com a natureza. Em uma relação com o mundo natural que é mediada pelo processo de trabalho. Fora dessa dimensão, fora do contato com a natureza, não há trabalho. Não há ser humano que não seja um ser natural. O trabalho (Arbeit) é um processo (ein Prozeß) que se estabelece entre seres humanos (Mensch) e natureza (Natur). Nesse processo, os primeiros se confrontam com a última. A natureza aparece como uma potência, uma potência natural (Naturmacht). Na concepção marxiana, a natureza não é compreendida como algo que é determinado a priori. A potência da natureza se atualiza quando o ser humano, por meio de sua ação, estabelece uma relação metabólica com o meio natural. É impossível separar o humano do natural em Marx. Não se entrevê, outrossim, redutibilidade de um ao outro. O que ocorre é que nessa relação o ser humano se confronta com a matéria natural como potência natural (Naturmacht) e, a fim de se apropriar dela, age sobre ela. A partir dessa ação, o ser humano modifica a natureza e, ao mesmo tempo, se modifica. Ou seja, esse movimento tanto naturaliza o ser humano quanto humaniza a dimensão natural sem apagar as diferenças existentes entre ambos. É impossível separar o humano do natural em Marx. É nessa relação que o ser humano
se confronta com a matéria natural como com uma potência natural (Naturmacht). A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertecentes a sua corporeidade (Leiblichkeit): seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (Marx, 1867/1962, p. 192)
Nessa formulação fica clara a concepção marxiana acerca da relação entre ser humano e natureza. Na filosofia de Marx, a consideração da natureza está presente em uma formulação dialética. Dialética na medida em que concebe que seres humanos e natureza formam uma unidade. Uma unidade relacional. Uma unidade que não apaga as especificidades das partes que a constituem. Os seres humanos não podem ser confundidos com a natureza. E a natureza não pode ser entendida como uma dimensão totalmente moldada pelos seres humanos. Pode-se levantar uma porção de questões bastante complicadas acerca dessa relação. Será que existe uma dialética da natureza? Será que a dialética opera na natureza? Há uma dialética inerente à natureza? Será que os processos que determinam o desenvolvimento histórico-societal também operam na natureza? Se operam, operam tal e qual na história humana? É possível afirmar que a dialética é o mecanismo o qual fundamenta o processo de desenvolvimento da natureza? Marx não chega a se debruçar sobre essas questões de forma explícita. O que ele afirma é que a unidade que se estabelece entre seres humanos e natureza é caracterizada por uma influência recíproca. O ser humano não pode transformar o que se passa ao redor sem transformar a si. O inverso também é verdadeiro. Não se pode transformar a si sem transformar o entorno. O ser humano transforma o seu entorno ao mesmo tempo em que transforma a si. Em Marx, essa unidade também é universal. É universal porque é condição ontológica. Os seres humanos só se produzem em relação com a natureza. Nessa relação há um processo de humanização da natureza e, ao mesmo tempo, um processo de naturalização do ser humano. Essa relação implica uma dialética. E é essa dialética da transformação “constante de si mesmo mediante a transformação do mundo” (Harvey, 2010, p. 112), e seu vetor contrário, que fundamenta a produção do ser humano enquanto tal. Por isso, Marx considera a natureza o corpo inorgânico do ser humano. A natureza
é o corpo inorgânico (unorganische Leib) do homem, a saber, a natureza enquanto ela mesma não é o corpo humano (menschlicher Körper). O homem vive (lebt) da natureza significa: a natureza é o seu corpo (Leib), com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. (Marx, 1932/1968, p. 516)
A natureza é o conjunto da realidade. Isso não significa um retorno ao empirismo. Afirmar que a realidade é igual à natureza não é o mesmo que afirmar que a natureza determina a realidade. O que Marx pretende, mais uma vez, é se afastar da filosofia especulativa que afirma que o ser humano é uma produção, primordialmente, gnosiológica. Para isso, afirma que a substância natural é a dimensão concreta da vida. A coisa natural é igual “ao conjunto da realidade” (Schmidt, 1962/1986, p. 25). Ela é tanto o ambiente natural que já fora apropriado e modificado pelo ser humano como a dimensão concreta que ainda não fora transformada. É o corpo inorgânico do ser humano. Ela é o mundo sensível no qual o ser humano se objetiva. Ou seja, natureza é o espaço onde o ser humano existe. É nela que ele se efetiva. Ela é a totalidade da qual o ser humano faz parte. Não obstante, não é o ser humano em si. Não é o “corpo humano (menschlicher Körper)” (Marx, 1932/1968, p. 516). É a totalidade concreta com a qual o ser humano se mantém em um processo relacional ininterrupto. As “plantas, animais, pedras, ar, luz etc.” (Marx, 1932/1968, p. 515) são “uma parte da vida humana (des meschlichen Lebens) e da atividade humana (der menschlichen Tätigkeit)” (Marx, 1932/1968, p. 515).
Mas como se dá essa relação? Em Marx, ela se dá por meio do metabolismo (Stoffwechsel) que se estabelece entre seres humanos e natureza. A última independe do ser humano. É a realidade que preexiste a esse. Mas, ao mesmo tempo, é “o objeto universal (allgemeine Gegenstand) do trabalho humano” (Marx, 1867/1962, p. 193). O fato de o ser humano operar sobre a natureza faz com que essa se transforme. E não apenas porque o primeiro modifica a segunda. Mas, e de forma mais essencial, porque o ser humano “é uma parte da natureza” (Marx, 1932/1968, p. 516). Aquele só modifica esta por ser parte dela. O mundo sensível e o ser humano são duas dimensões que se entrelaçam. Nessa relação há produção e consumo. Concomitantemente. É uma relação metabólica. É no ato de produzir que o ser humano consome a natureza. E é no ato de consumir a substância natural que o ser humano produz. Esse metabolismo não cessa. Ele opera de forma perene na existência humana. É impossível eliminá-lo da realidade humana. Esta não existe sem aquele metabolismo. O processo vital de produção humana se dá
em um contexto natural. Em todas as formas de produção, a força humana de trabalho é “somente a exteriorização de uma força natural”. No trabalho o homem “se contrapõe, como força natural, a uma matéria da natureza”. A dialética sujeito-objeto é para Marx uma dialética das partes constitutivas da natureza. (Schmidt, 1962/1986, p. 12)
O lócus primordial dessa relação é o processo de trabalho. É nele que fica evidente como a dialética da vida orgânica é fundamental para a compreensão ontológica do ser humano. O trabalho medeia a relação entre seres humanos e natureza. Essa relação não deve ser entendida de forma dicotômica. Em Marx, não há separação entre seres humanos e natureza. Existe uma condição metabólica e inseparável que se estabelece no processo de trabalho. É nesse contexto relacional que os seres humanos se efetivam, se objetivam. A efetivação (Verwirklichuung) do processo de trabalho, para Marx, “é a sua objetivação (Vergengeständlichunng)” (Marx, 1932/1968, p. 512).
Por efetivação, Marx compreende o processo de produção do sujeito enquanto tal, o processo de subjetivação. Disso decorre que Marx empresta ao metabolismo (Stoffwechsel) que, por meio de sua ação, os seres humanos estabelecem com a natureza o estatuto de processo ontológico primordial. Ou seja, para Marx, o processo de trabalho, que “independe de qualquer forma social determinada” (Marx, 1867/1962, p. 192), é o solo ontológico dos seres humanos.
O processo de trabalho
O processo de trabalho (der Arbeitprozeß), para Marx, é atividade orientada a um fim (Marx, 1867/1962, p. 193), um processo de pôr teleológico (teleologische Setzung). Isso significa que no fim do processo chega-se a um resultado previamente idealizado. É este pôr teleológico que caracteriza o trabalho humano, mas, para entender o pôr teleológico no trabalho e como essa categoria fundamenta o trabalho humano é necessário, primeiro, analisar qual a concepção de Marx acerca da forma como o animal produz.
Marx afirma que “o animal produz” (Marx, 1932/1968, p. 517) porque modifica a natureza. Isso significa que o animal atua no ambiente e estabelece uma relação com a natureza. Nessa relação, os primeiros modificam a última, dela se servem e servem a ela. Essa relação é complexa e “mediada por uma consciência” (Lukács, 1984/2012, p. 65). O animal produz, mas produz “apenas aquilo de que necessita imediatamente para si ou sua cria” (Marx, 1932/1968, p. 517) e só o faz de forma unilateral. Sua atividade não escapa à ordem da necessidade. Ele “é imediatamente um com a sua atividade vital (Lebebenstätigkeit). Não se distingue dela. É ela” (Marx, 1932/1968, p. 516). Nos postulados marxianos, a atividade animal se limita às necessidades biológicas e são essas necessidades que determinam os limites da atividade vital animal. E, para Marx, o modo (Art) da atividade vital fundamenta o caráter genérico de um tipo determinado de ser. É a atividade vital do animal que caracteriza a condição animal. Por isso, é a determinidade (Bestimmtheit) da esfera biológica que dita a qualidade do animal enquanto ser. Com essa afirmação, Marx não nega o desenvolvimento de categorias complexas na esfera “animal”. O importante a se observar é que esse desenvolvimento se eleva sobre aquela determinação. É o domínio da “carência física imediata” (Marx, 1932/1968, p. 517) que determina o que o animal produz. Ele só elabora e modifica a natureza na medida em que esta modificação responde às exigências da species. Essas exigências determinam o que e como o animal produz. Com efeito, essa qualidade implica que é a ancoragem nas especificidades biológicas que determina os limites daquilo que é produzido. Textualmente, Marx afirma que “o animal forma apenas segundo a medida e a carência da species à qual pertence” (Marx, 1932/1968, p. 517). Todos os produtos da produção animal remetem, imediatamente, à dimensão biológica e todas as realizações do animal objetivam a manutenção dessa dimensão.
A produção do ser humano é diferente. O animal produz de forma unilateral. O ser humano produz de forma “universal” (Marx, 1932/1968, p. 517). O animal produz sob a pressão da dimensão biológica. O ser humano produz “primeira e verdadeiramente, na [sua] liberdade [com relação a ela]” (Marx, 1932/1968, p. 517). O animal produz a si mesmo e a sua cria. O ser humano “reproduz a natureza inteira” (Marx, 1932/1968, p. 517). O produto da produção animal se restringe à satisfação de necessidades de ordem biológica. O ser humano “se defronta livre[mente] com o seu produto” (Marx, 1932/1968, p. 517). A produção animal se limita aos contornos impostos pelas determinações específicas da species. O ser humano “sabe produzir segundo a medida de qualquer species” (Marx, 1932/1968, p. 517). O animal produz, em última instância, para sua manutenção e para possibilitar a reprodução. O ser humano produz, também, “segundo as leis da beleza” (Marx, 1932/1968, p. 517).
Isso se deve ao fato de a atividade vital (Lebenstätigkeit) humana ser diferente da atividade vital do animal. A atividade humana não coincide, estritamente, com a satisfação das necessidades biológicas. Ela é “um meio para a satisfação” (Marx, 1932/1968, p. 516) dessas necessidades, mas não se confunde com elas. A atividade humana é um meio para a manutenção da existência, mas não se limita a isso. A atividade vital do animal determina o que é ser animal porque ela está diretamente ligada à dimensão biológica. A atividade vital do ser humano não é determinada pela necessidade. Ela é um processo consciente. E esse processo se dá no pôr teleológico inerente ao processo de trabalho.
É este pôr, no qual há um momento ideal, que caracteriza o processo de trabalho como exclusivamente humano. Essa afirmação é crucial e, ao mesmo tempo, problemática. A partir dela se compreende que a concretização do processo de trabalho é igual à efetivação de uma ideação precedente. Isso significa que a atividade gnosiológica exerce um papel central no processo de trabalho. Essa assertiva pode produzir embaraços. Como Marx, que afirma a supremacia determinante das condições materiais sobre a subjetividade, pode reservar um espaço vital para as ideações no cerne de sua categoria ontológica fundamental? Como pode existir um momento ideal no processo de trabalho se são as circunstâncias materiais que determinam o processo gnosiológico? Será que, a partir do processo de trabalho, há duas concepções da relação entre concretude e ideação? Dois Marx? O Marx “que afirma o livre jogo das ideias e das atividades mentais” (Harvey, 2010, p. 113) e outro que seria o “Marx determinista, que sustenta que nossa consciência, assim como tudo o que pensamos e fazemos, é determinada pelas circunstâncias materiais em que vivemos” (Harvey, 2010, p. 113)?
A concepção marxiana de processo de trabalho implica, necessariamente, que o momento ideal que precede o próprio trabalho não é estritamente gnosiológico. Com efeito “a compreensão dialética do processo de trabalho como um momento metabólico implica que as ideias não podem surgir do nada” (Harvey, 2010, p. 114). O momento ideal se ancora na concretude mediada. Ele é, também, um momento natural e encontra origem na objetividade. Para Marx, as produções gnosiológicas não se produzem em uma esfera apartada da realidade. As ideações não emergem em separado das experiências, mas, ao mesmo tempo, não são meros reflexos de nossas sensações. Não há um empirismo implícito em Marx. O que há, de fato, é uma concepção de relação mediada. As produções ideais e as condições objetivas se relacionam. Não são as primeiras que determinam as últimas e nem as últimas que põem as primeiras de forma apriorística. Nessa configuração, quando se trata de ideação e objetivação no processo de trabalho, a questão central diz respeito ao problema da relação entre teleologia e causalidade. Se a determinação primordial do trabalho humano pode ser definida como “ir além da fixação biológica”, deve haver um momento que, sem jamais dissolver por completo o aspecto natural do ser humano, marca a separação entre a produção humana e a produção animal. Esse momento é essencialmente constituído pela consciência não entendida como um fenômeno determinado pela concretude mediada. Por isso, Marx afirma que o produto do processo de trabalho já existe no momento da ideação e é objetivado no ato da produção. Com efeito, há no trabalho humano uma exteriorização inevitável de uma relação entre as ideações e a objetivação dessas. Essa categorização traz à luz, a partir do trabalho, a importância da totalidade para a compreensão da ontologia marxiana. Ao não submeter a subjetividade à objetividade, nem essa àquela, Marx postula que ambas são momentos de estatuto ontológico.
Mas e o trabalho “propriamente dito”? Qual sua característica principal? Ser uma atividade. Uma atividade orientada que se opera em relação, indissociável, com a natureza. Essa atividade é um processo no qual se opera “uma transformação do objeto do trabalho segundo uma finalidade concebida desde o início” (Marx, 1867/1962, p. 195). O trabalho é uma atividade processual de objetivação. Logo, pode-se afirmar que é um processo de objetivação em que há transformação. Nele, alguma coisa é transformada em outra coisa e, final do processo, o trabalho aparece objetivado. Ou seja, aquilo que era potência se objetifica. Com efeito, “o trabalho se incorporou a seu objeto. Ele está objetivado” (Marx, 1867/1962, p. 195). Aquilo que aparecia como movimento, como processo, se manifesta “como qualidade imóvel, na forma do ser” (Marx, 1867/1962, p. 195). Mas “há uma diferença entre o produto do trabalho e o processo de trabalho. No produto o processo está extinto. Isso não significa que o trabalho tenha desaparecido. Ele se objetivou. No processo de trabalho, por meio da objetivação, o ser humano atua e transforma uma ideação prévia” (Peto & Verissimo, 2016, p. 198). O importante, para Marx, porém, não é o resultado da objetivação per si. O centro do trabalho é o processo de objetivação.
Marx considera que essa estruturação do processo de trabalho caracteriza um salto ontológico. Um salto qualitativo que define o ser humano. A essência desse salto é a ruptura. Isso significa que ele acarreta uma “mudança qualitativa e estrutural do ser, onde a fase inicial certamente contém em si determinadas condições e possibilidades das fases sucessivas, mas estas não podem se desenvolver a partir daquela numa simples e retilínea continuidade” (Lukács, 1984/2013, p. 46). É o processo de trabalho que possibilita entender a relação do ser humano com as formas de ser que o precedem. O trabalho, entendido como salto qualitativo, tem um duplo efeito. Funda o ser social enquanto um ser qualitativamente diferente do ser orgânico e do ser inorgânico e, ao mesmo tempo, instaura uma processualidade metabólica entre as três esferas constitutivas do ser. O ser social só pode se efetivar enquanto tal tendo por base tanto o ser orgânico quanto o ser inorgânico, mas a legalidade deste é ontologicamente, e não apenas nominalmente, diferente daquela. O que marca a complexidade do salto qualitativo representado pelo trabalho humano é o momento predominante (uebergreifendes Moment) nesse processo. Essa conceituação é uma inovação marxiana frente à dialética do trabalho de Hegel. Enquanto as determinações reflexivas hegelianas são impelidas às transições pelas contradições, a questão da dinâmica fundamental do ser social deve ser analisada pela mediação do momento predominante que direciona a transição. Esse momento não cessa a contradição, não é determinante do resultado final do processo, não possui um fim predeterminado e nem é imutável. A inovação está no fato de que esse momento predominante intensifica a tensão da contradição e não permite que a mesma se encaminhe, como acontece em algumas transições hegelianas, para uma nova indeterminação.
A partir dessa consideração, o momento predominante do salto qualitativo que funda o ser social são as categorias pertencentes à esfera social, a saber: produção e reprodução da vida fundamentada na processualidade entre ideação e objetivação, individualidade e generacidade etc. Mas essa caracterização ainda não explica a especificidade do trabalho humano. O que o distingue de forma radical são as mediações imanentes ao desenvolvimento concreto do processo reprodutivo humano.
Em Marx, a processualidade que sempre remete ao ser genérico caracteriza a peculiaridade determinante do processo de trabalho. E essa processualidade que se remete à generacidade humana concatena dois momentos contraditórios: a universalidade do produto do trabalho e a universalidade da pessoa que objetiva o trabalho. Mas como se configura esse processo de se remeter ao ser genérico? O que isso significa? De forma geral, significa que tanto o produto objetivado quanto os seres humanos são cada vez mais mediados e determinados. Essa determinação e mediação se dá por meio da reprodução de processos de trabalhos cada vez mais integrados que se intensificam por meio da, e intensificam a, sociabilidade humana. O que se tem é que o trabalho humano sempre remete à reprodução do ser humano enquanto ser genérico, e não apenas à reprodução individual. Pode-se afirmar que o produto concreto objetivado pelo processo de trabalho, e a pessoa que efetivou essa objetivação, adquirem cada vez mais determinação e aparecem como concretizações mediadas cada vez mais universalizadas e genéricas. Marx afirma, de forma literal,
que o engendrar prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza inorgânica é a prova do homem enquanto um ser genérico consciente, isto é, um ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou [se relaciona] consigo enquanto ser genérico... Precisamente por isso, na elaboração do mundo objetivo [é que] o homem se confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica operativa. Através dela a natureza aparece como a sua obra e a sua efetividade [Wirklichkeit]. O objeto do trabalho é portanto a objetivação da vida genérica do homem: quando o homem se duplica não apenas na consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele. (Marx, 1932/1968, p. 516, grifos no original)
No processo de trabalho tal qual caracterizado por Marx, o momento predominante da processualidade metabólica entre seres humanos e natureza são os seres humanos que se desenvolvem em individualidades cada vez mais intensamente sociais que são crescentemente mediadas por categorias cada vez mais genéricas. Isso resulta em formações sociais de complexidade cada vez mais intensa. Por isso, o ser humano não se limita ao processo de trabalho. Menos ainda ao pôr teleológico inerente ao trabalho. A análise das categorias que constituem a condição humana, “mesmo as mais centrais” (Lukács, 1984/2013, p. 41), como o trabalho, só pode ser empreendida se for considerada a constituição global do ser humano. No estudo da qualidade humana devem-se considerar, por exemplo, a linguagem, a cultura, o processo de desenvolvimento em suas dimensões biológicas, anátomo-fisiológicas, simbólicas, entre outras. Em seu conjunto e detalhes, a condição humana, enquanto uma qualidade de ser diferenciada, é uma “inextricável imbricação” (Lukács, 1984/2013, p. 41). Ela não pode ser analisada a partir de categorias isoladas. Menos ainda de categorias isoladas e que não se relacionam. A partir da análise da totalidade da forma humana se pode compreender as características que fazem do humano um ser qualitativamente diferente. Daí surge uma compreensão da forma como se estruturam, no ser humano, “novas relações da consciência com a realidade e, por isso, consigo mesma” (Lukács, 1984/2013, p. 41).
Há também que se observar que no modo de produção do capital, com a subsunção formal e real do trabalho ao capital, ocorre uma distorção no processo de trabalho. Essa distorção é categorizada por Marx como estranhamento (Entfremdung) e aparece dividida em quatro momentos: (a) na relação dos seres humanos com o objeto do processo de trabalho; (b) na própria atividade do trabalho; (c) na relação dos seres humanos com o gênero humano; e (d) na relação dos seres humanos com outros seres humanos” (Peto & Verissimo, 2016, p. 200)2. Essa configuração destitui do trabalho sua potência positiva e o mesmo aparece para o ser humano apenas como “auto-sacrifício” e “mortificação”. Aqui, “a externalidade do trabalho aparece para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro, como se [o trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro” (Marx, 1932/1968, p. 517). Isso se dá porque a dimensão positiva do trabalho aparece ao ser humano como uma dimensão estranha na medida em que se deixa de experienciar o trabalho como processo de produção de si em relação com o ser genérico por força da distorção resultante da sobreposição da comercialização da força de trabalho (der Arbeitskraft).
Não obstante, Marx não limita o ser humano ao trabalho. Este último dá a medida qualitativa do primeiro enquanto ser. Isso significa que o trabalho (Arbeit) é a categoria que caracteriza a diferença qualitativa entre o ser humano e os outros seres. Ele fundamenta o salto ontológico. Nele “estão contidas in nuce todas as determinações” (Lukács, 1984/2013, p. 44) que constituem a essência do humano enquanto ser. Por isso, o trabalho, como teorizado por Marx, é uma exclusividade do ser humano. E é a especificidade do trabalho humano, o pôr teleológico, que o caracteriza como a atividade vital que possibilita ao humano se estruturar enquanto um ser distinto. É a partir dele, por exemplo, que se pode compreender a diferença, em Marx, entre seres humanos e animais. Com efeito,
o fato de que Marx limite, com exatidão e rigor, a teleologia ao trabalho (à práxis humana), eliminando-a de todos os outros modos do ser, de modo nenhum restringe o seu significado; pelo contrário, ele aumenta, já que é preciso entender que o mais alto grau do ser que conhecemos, o social, se constitui como grau específico, se eleva a partir do grau em que está baseada a sua existência, o da vida orgânica, e se torna um novo tipo autônomo de ser, somente porque há nele esse operar real do ato teleológico. (Lukács, 1984/2013, p. 52)
O trabalho é um processo de pôr teleológico. É “atividade intencional (zweckmäßige Tätigkeit)” (Marx, 1939/1983, p. 231) e “todos os seus estágios são produtos da autoatividade” (Lukács, 1984/2013, p. 43). O processo de trabalho independe de qualquer forma social e é condição fundamental de existência do ser humano. Ele é condição universal, ontológica. É ele que enlaça seres humanos e natureza. O trabalho (Arbeit) é inteiramente natural e, de forma concomitante, inteiramente humano.
Considerações finais
O objetivo deste artigo era discutir em que medida a natureza e o processo de trabalho podem ser utilizados como fundamentos para se pensar a ontologia do ser social a partir de Marx. Para isso, o artigo se dividiu em duas partes. Na primeira, partiu-se de uma apresentação da leitura marxiana da questão da natureza nas filosofias de Hegel e Feuerbach. Na segunda, apresentou-se uma análise acerca da questão da natureza e do processo de trabalho a partir de Marx. Em Marx, para pensar a ontologia do ser social a partir da natureza e do processo de trabalho, é necessário considerar que os enunciados marxianos são, em última análise, “enunciados sobre certo tipo de ser, ou seja, são afirmações puramente ontológicas” (Lukács, 1984/2012, p. 281).
Marx não escrevera uma filosofia da natureza, no sentido tradicional. E suas conceituações sobre o processo do trabalho, tanto em O Capital quanto nos Manuscritos de 1844, estão circunscritas por análises acerca da produção do capital. As categorias marxianas só podem ser estudadas em relações e a partir da noção da totalidade. Por isso, embora ele não formule análises isoladas sobre a categoria natureza ou sobre o processo de trabalho, essas duas categorias fornecem possíveis diretrizes para o estudo da ontologia do ser social e da estruturação do capital. Isso se dá porque, a partir do complexo lógico-categorial marxiano, nenhuma sociedade pode existir fora de uma relação metabólica com a natureza. É a natureza que fornece as condições de produção e manutenção da vida humana. Não obstante, o ser humano só pode produzir suas condições efetivas de existência em uma relação com a natureza que é mediada pelo processo de trabalho. Nesse sentido, o trabalho não é tão somente uma atividade específica dos seres humanos vivendo em sociedade, mas é também o fundamento primordial do processo histórico no qual o ser humano surge como ser social. Com efeito, e para finalizar, pode-se afirmar que, na ontologia do ser social, foi através do trabalho, entendido como metabolismo entre ser humano e natureza (princípio objetivo que possibilita a vida), que aquele pode se constituir enquanto tal por meio da transformação desta. Essa configuração pode ser resumida em dois momentos irredutíveis: (a) a natureza como fundamento ontológico não é essência nem substância, mas potência natural da qual o ser humano faz parte ao mesmo tempo em que a humaniza, (b) essa relação está integrada a uma estruturação societal baseada no processo de trabalho enquanto fundamento ontológico e mediador universal. Essas hipóteses não esgotam as possibilidades analíticas, mas vão em direção de uma compreensão da totalidade do ser social.
Referências
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- Hegel, G. (2003). Wissenchaft der Logik II. In Hegel - Werke, Band 5 (pp. 17-547). Berlin: Suhrkamp. (Original publicado em 1816)
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- Marx, K. (1968). Ökonomisch-philosophische Manuskripte aus dem Jahre 1844. In K. Marx &F. Engels , Werke, Band 40 (Ergänzungsband 1) (pp. 465-568). Berlin: Dietz Verlag Berlin . (Original publicado em 1932)
- Marx, K. (1983). Ökonomische manuskripte 1857-1858. In K. Marx &F. Engels, Werke, Band 42 (pp. 3-771). Berlin: Dietz Verlag Berlin . (Original publicado em 1939)
- Lukács, G. (2012). Para uma ontologia do ser social I São Paulo: Boitempo. (Original publicado em 1984)
- Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social I I. São Paulo: Boitempo . (Original publicado em 1984)
- Peto, L. C. & Verissimo, D. S. (2016). Considerações acerca do problema da corporeidade em Marx. Memorandum, 31, 193-205.
- Schmidt, A. (1986). El concepto de naturaleza en Marx Madrid: Siglo Veintiuno. (Original publicado em 1962)
- Trein, F. (2016). A relação Marx-Hegel: um desafio insuperável. Dialectus, 3(8), 33-59.
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1
É importante deixar claro que as análises apresentadas, tanto de Hegel quanto de Feuerbach, se baseiam nas interpretações legadas por Marx.
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2
Sobre o processo de estranhamento no trabalho (Marx, 1932/1968).
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Agências de fomento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP processo no. 2017/05134-6)
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Dez 2018 -
Data do Fascículo
2018
Histórico
-
Recebido
12 Jun 2017 -
Revisado
13 Ago 2018 -
Aceito
20 Ago 2018