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As prisões da loucura, a loucura das prisões

The prisons of madness, the madness of prisons

Resumos

Os sujeitos infratores à lei, considerados portadores de doença mental e declarados legalmente inimputáveis, são objeto das denominadas medidas de segurança. Estas sanções legais dispõem, em alguns casos, a reclusão desta população em instituições específicas. Para definir essa condição de inimputável é necessária a realização de um laudo psiquiátrico que define também sua patologia e grau de periculosidade. Essa associação do discurso psiquiátrico com o jurídico e as práticas institucionais relacionadas leva à deterioração individual e social desta população e, com freqüência, à sua cronificação institucional. O propósito desta pesquisa é analisar as características destes discursos e sua funcionalidade institucional e social. Os laudos pertencentes aos sujeitos que cumprem medida de segurança na Ala de Tratamento Psiquiátrico do Presídio da Colméia de Brasília constituem a informação principal sobre a qual se baseia a análise. A Análise de Discurso e a Análise Institucional são as ferramentas metodológicas utilizadas para esse fim.

Discurso psiquiátrico; periculosidade; análise de discurso


Individuals who break the law, considered mentally ill and declared legally exempt from punishment are object to what is called security measures. These legal sanctions, in some cases, dispose of the incarceration of this population in specific institutions. To define the condition of exemption from punishment, it's necessary to carry out a psychiatric assessment that defines the pathology and level of danger to others. The association of psychiatric and judiciary discourse, and related institutional practices, conveys to individual e social deterioration and, frequently, to a chronic institutionalization. Analysis was based on the data taken from the medical records of subjects who are under security measures in the Psychiatric Treatment ward of the Presídio da Colméia in Brasília. Discourse analysis and Institutional analysis are methodological tools used for these objectives.

Psychiatric discourse; danger to others; discourse analysis


As prisões da loucura, a loucura das prisões

The prisons of madness, the madness of prisons

Omar Alejandro Bravo

Psicólogo, Municipalidad de Rosario, Argentina

RESUMO

Os sujeitos infratores à lei, considerados portadores de doença mental e declarados legalmente inimputáveis, são objeto das denominadas medidas de segurança. Estas sanções legais dispõem, em alguns casos, a reclusão desta população em instituições específicas. Para definir essa condição de inimputável é necessária a realização de um laudo psiquiátrico que define também sua patologia e grau de periculosidade. Essa associação do discurso psiquiátrico com o jurídico e as práticas institucionais relacionadas leva à deterioração individual e social desta população e, com freqüência, à sua cronificação institucional. O propósito desta pesquisa é analisar as características destes discursos e sua funcionalidade institucional e social. Os laudos pertencentes aos sujeitos que cumprem medida de segurança na Ala de Tratamento Psiquiátrico do Presídio da Colméia de Brasília constituem a informação principal sobre a qual se baseia a análise. A Análise de Discurso e a Análise Institucional são as ferramentas metodológicas utilizadas para esse fim.

Palavras-chave: Discurso psiquiátrico; periculosidade; análise de discurso.

ABSTRACT

Individuals who break the law, considered mentally ill and declared legally exempt from punishment are object to what is called security measures. These legal sanctions, in some cases, dispose of the incarceration of this population in specific institutions. To define the condition of exemption from punishment, it's necessary to carry out a psychiatric assessment that defines the pathology and level of danger to others. The association of psychiatric and judiciary discourse, and related institutional practices, conveys to individual e social deterioration and, frequently, to a chronic institutionalization. Analysis was based on the data taken from the medical records of subjects who are under security measures in the Psychiatric Treatment ward of the Presídio da Colméia in Brasília. Discourse analysis and Institutional analysis are methodological tools used for these objectives.

Keywords: Psychiatric discourse; danger to others; discourse analysis.

Cada período histórico produziu processos de marginalização e segregação de determinados setores sociais. Esses processos relacionaram-se com a estrutura econômica de cada sociedade e com as formas culturais e políticas que adotaram e que tentaram de uma forma ou outra legitimar esses mecanismos de exclusão.

Para o funcionamento desses mecanismos, cada sociedade organiza também modelos judiciários e repressivos que qualificam, rotulam e punem determinadas condutas ou personalidades. Longe de ser um resíduo acidental de cada modo de produção e forma histórica, esses dispositivos servem ao propósito de reproduzir modelos sociais que, quanto mais injustos em termos de distribuição de poder e riqueza, mais precisam do seu funcionamento.

Para Zaffaroni e Pierangeli (1999), uma sociedade é mais autoritária ou democrática segundo a extensão, complexidade e direção dos seus mecanismos de controle social. Esse controle social excede ao sistema penal, abrangendo também a educação, a família e todas as instituições que compõem o tecido social e opera diretamente por meio da institucionalização de determinados sujeitos (em manicômios, asilos, orfanatos, prisões, etc.).

A partir desta realidade, geram-se discursos e práticas que justificam esses aparelhos e ocultam seu sentido. Determinadas ciências e suas práticas têm nesse motivo não só a explicação do seu funcionamento, senão a própria razão da sua existência, apesar de que muitas vezes excedem o propósito inicial. Foucault (1999) descreve as dimensões dessa articulação ao mostrar como "... as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento" (p. 9).

O artigo 26 do Código Penal (1940), que permite anular a pena dos sujeitos considerados legalmente inimputáveis e substituí-la legalmente pelas denominadas medidas de segurança, com indicação de reclusão e/ou tratamento e acompanhamento especializados, reflete a confluência histórica de dois saberes e práticas institucionais, a psiquiatria e o direito penal.

Segundo esse artigo:

É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do ato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (Código Penal, 1940, art. 26).

O termo doença mental abrange psicoses, demências, neuroses e personalidades psicopáticas; dentro do desenvolvimento mental incompleto incluem-se os menores de 18 anos e os silvícolas inadaptados; a categoria de desenvolvimento mental retardado se refere aos oligofrênicos, nos seus três tipos possíveis: idiotas, imbecis e débeis mentais e, eventualmente, aos surdos-mudos quando o sujeito, em conseqüência dessa condição, tem prejudicada a capacidade intelectiva, de compreensão ou de autodeterminação, sempre segundo o artigo 26.

O artigo 96 diz que as medidas de segurança podem ser:

1. Internação em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico ou, à sua falta, em outro estabelecimento adequado;

2. Sujeição a tratamento ambulatorial.

Parágrafo único – extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança, nem subsiste a que tenha sido imposta. (Código Penal, 1940, art. 96).

Essas medidas constituem, segundo Carrara (1998), "... a superposição complexa de dois modelos de intervenção social: o modelo jurídico-punitivo e o modelo psiquiátrico-terapêutico" (p. 46).

A determinação de inimputabilidade penal é feita por um perito, que avalia a atenção, a memória, a orientação, a consciência, as possíveis alterações desta, o curso e conteúdo do pensamento, os estados de humor e a capacidade de abstração, principalmente.

No final dos laudos devem estar relacionadas as conclusões e as respostas aos quesitos, que incluem em geral a avaliação da periculosidade do examinado. Para Bonnet (1967/2002), o conceito de estado perigoso "... surgiu gradativamente e suas raízes são mais de ordem jurídica que médica, embora seu diagnóstico seja mais de índole médica que jurídica" (p. 185).

Os sujeitos enquadrados sob o regime de medida de segurança no Distrito Federal ocupam uma ala particular do Presídio da Colméia denominada Ala de Tratamento Psiquiátrico (doravante ATP), localizado na cidade do Gama. Segundo dados do Ministério da Justiça, até o ano 2003 existiam 67 detentos nessa situação, sendo 66 homens e uma mulher, esta última na ala feminina junto ao restante das detentas. Consideram-se aqui os detentos em situação de internação, de reclusão efetiva; aproximadamente 20 sujeitos sob medida de segurança cumpriam essa pena em tratamento ambulatorial e 21 estavam em desinternação condicional (não existem dados precisos sobre a quantidade de apenados enquadrados nessas categorias). Alguns dos segurados em situação de desinternação condicional já passaram por esse regime, voltando posteriormente à reclusão por falta de condições (familiares e/ou institucionais) que permitissem a sua re-inserção social.

Como objetos desta pesquisa colocaram-se as instituições e os discursos que intervêm no estabelecimento da inimputabilidade penal de determinados sujeitos infratores à lei, considerando, em particular, a forma como esses mecanismos operam no âmbito particular do Distrito Federal e em relação aos segurados que cumprem sua medida na Ala de Tratamento Psiquiátrico da prisão da Colméia.

A desconstrução do funcionamento desses mecanismos, a análise do seu caráter ideológico e sua funcionalidade institucional colocam também em questão a ética do profissional da saúde mental, que deve assumir, perante os mesmos, uma definição política das características do seu trabalho e um compromisso com o esclarecimento das reais causas da existência dos mesmos.

Método

A metodologia utilizada para a análise da informação coletada foi de caráter qualitativo. Aqui, o fato empírico "... cobra seu sentido no marco das construções dedutivas e/ou configurativas dentro da teoria" (González Rey, 1997, p. 15).

As ferramentas metodológicas utilizadas foram a análise de discurso e a análise institucional. A análise institucional propõe analisar e intervir nos conjuntos sociais, com a intenção de melhorar a qualidade de vida das pessoas, contando para tal fim com a colaboração ativa destas. Guattari e Deleuze (1976) afirmam que essa direção de análise não é só de um indivíduo ou grupo senão de um conjunto de processos sociais. Mantém-se, dessa maneira, uma direção clínica de intervenção dirigida à promoção de ações de saúde mental em determinados grupos e conjuntos humanos. Essa direção de intervenção requer um pressuposto necessário: o de colocar as causas do mal-estar psíquico no campo mais amplo das relações sociais e institucionais que o permitem, configuram e possibilitam.

Guilhon de Albuquerque (1980) distingue três planos de análise sucessivos: o das práticas, que se articulam em aparelhos (entendidos como conjunto de práticas estruturadas), que, por sua vez, constituem determinadas formações. Cada um desses planos pode ser considerado em relação aos seus aspectos econômicos, ideológicos e políticos. Existiria ainda um quarto plano, o das totalidades concretas ou formas sociais, que estaria relacionado ao efeito de unidade produzido pela análise dos três planos anteriores.

A Análise de Discurso permite entender as dimensões sociais, ideológicas e políticas presentes num discurso, que por sua vez integra formações discursivas mais amplas unidas pelo pertencimento a um espaço ideológico ou a um fim comum (Foucault, 1973). O discurso é considerado aqui como uma instituição produto e produtora da realidade social a qual pertence. Assim, uma análise de discurso deve estar inserida numa leitura institucional mais ampla que contemple fundamentalmente as relações sociais que o produzem e o tornam hegemônico.

Esta metodologia reúne diferentes regiões de conhecimento: o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e suas transformações, principalmente tomando a obra de Althusser (1974) como referência; a lingüística de Saussure (1967), como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação e a noção de discurso, baseada fundamentalmente na produção de Foucault (1973) como teoria da determinação histórica dos processos semânticos (Bravo, 2000; Pêcheux & Fuchs, 1975). Essa articulação é feita a partir de três operadores teóricos principais: a formação social, a língua e o discurso, atravessados por uma referência à subjetividade de natureza psicanalítica, produto do caráter originalmente estruturalista da teoria. Com Fairclough (2001), incorpora-se a dimensão da subjetividade na produção dos discursos, contra a herança do determinismo sociológico que caracterizava a teoria inicialmente.

Nesta pesquisa foram consideradas somente as duas últimas etapas de análise previstas na Análise de Discurso: a segunda etapa, análise da intertextualidade, determina o tipo de texto e sua relação com outros discursos, o que permite entender a trama discursiva geral que o constitui; a terceira, ligada à explicação, trabalha sobre as determinações de poder que o discurso, como prática social, estabelece nas instituições. A primeira, que se baseia principalmente na estrutura sintática dos textos, foi excluída por ser mais adequada à análise de diálogos e entrevistas, em que operadores verbais e modos discursivos tomam determinados sentidos ideológicos e inter-relacionais específicos.

Os discursos considerados significam e se referem às práticas e jogos institucionais de poder dentro das organizações analisadas e das instituições em geral. A análise institucional tenta descobrir como esses mecanismos atuam, qual é a sua funcionalidade social e as possibilidades de que uma dimensão instituinte e transformadora possa ocupar esse lugar do instituído.

Foram considerados como corpus da análise os laudos presentes nos 48 processos penais correspondentes aos internos que cumpriam medida de segurança na ATP, num total de 61. Os outros processos não se encontravam disponíveis por diversos motivos (tramitação em outras Varas, situação processual, etc.).

O foco da análise foi colocado sobre os laudos psiquiátricos, por serem os instrumentos institucionais que definem a inimputabilidade dos sujeitos infratores e que relacionam, de forma mais definida, a periculosidade dos sujeitos com a sua patologia psíquica e o tipo de crime cometido, assim como determinam as suas possibilidades e condições de retorno à vida social.

Na análise do material coletado, foram considerados relevantes:

1. O diagnóstico de periculosidade presente nos laudos psiquiátricos, atendendo a consideração dessa condição de perigoso como atual, latente ou potencial.

2. As categorias nosográficas utilizadas e a coerência entre elas.

3. O diagnóstico de dependência de drogas, os motivos e as formas periciais utilizadas.

4. As indicações terapêuticas, quando existentes, e sua adequação ao contexto.

5. A relação entre tipo de crime, categoria nosográfica utilizada e diagnóstico de periculosidade.

A partir desses critérios, foram selecionados cinco casos, que constituíram a base da análise realizada. Esses casos selecionados apresentaram ainda uma grande quantidade de laudos em cada um dos processos e corresponderam a sujeitos de idades diversas.

Análise dos casos

Perigoso por falta de família

B., de sessenta e quatro anos, e sua família chegaram, fazia muito tempo, do Nordeste do país a Sobradinho, cidade onde moravam na época do crime. No ano 1966, B. esfaqueou uma pessoa, vizinha do bairro, sem motivo aparente, causando-lhe graves feridas. Ele já apresentava, segundo os laudos, antecedentes de internações psiquiátricas nos anos 1964 e 1966.

Ingressado no Núcleo Básico de Custódia de Brasília nesse mesmo ano, é encaminhado para a realização de um laudo psiquiátrico, dado o comportamento bizarro que mostrava na prisão.

Este primeiro laudo considerou o apenado perigoso para a comunidade carcerária, sendo diagnosticado como débil mental. No final do mesmo texto, aparece outro diagnóstico diferente ao primeiro: o de esquizofrenia.

O laudo seguinte é bem posterior, do ano 1979, e foi realizado no Manicômio Judiciário Heitor Carrilho de Rio de Janeiro, sem que conste no processo a causa ou a época da transferência. B. é considerado aqui como portador de esquizofrenia paranóide e perigoso.

Do Heitor Carrilho, o segurado passou ao Hospital Psiquiátrico de Anápolis e deste para o de Paranoá, onde morava seu irmão, registrando também um período de internação na Clínica São Miguel.

Em 1994, B. recebe uma autorização para uma saída temporária, indo morar com o pai em Piauí. Com este, começou a trabalhar como pescador, sem apresentar problemas de condutas ou de saúde.

Não obstante isto, e pelo fato de ter violado essa saída condicional, B. é requerido novamente pela justiça, devendo voltar a Brasília e a Ala de Tratamento Psiquiátrico.

O laudo seguinte, do ano 1995, diagnostica esquizofrenia terminal, sem cessação de periculosidade.

O laudo do ano 1996 mantém este diagnóstico, aclarando que ainda é considerado perigoso "... por falta de família disposta a recebê-lo". Dois anos depois, num outro laudo, a conduta do segurado é considerada excelente, assim como o relacionamento dele com as autoridades e os companheiros, sendo ratificada, no entanto, a sua condição de esquizofrênico.

Paradoxalmente, B. tinha passado um tempo com um familiar, mostrando ter condições para a reintegração a uma vida social plena. A justiça, absurdamente, o reclamou novamente, para depois exigir essa mesma condição de que tinha tirado do sujeito pouco antes.

O perigoso latente

D., de 43 anos de idade, morava numa cidade satélite de Brasília na época do crime.

Não conseguiu completar o ensino fundamental devido a que ficava muito nervoso e tinha crises freqüentes, segundo o seu processo.

Trabalhou por pouco tempo no Serviço de Limpeza Urbana, depois de forma independente, em "bicos" ocasionais.

No ano 1985, bêbado, D. assassinou seu filho de três anos com uma barra de ferro. Antes de cometer esse ato, tinha ido à delegacia denunciando ter feito o que finalmente fez. Porém, não foi dado interesse a denúncia. Originalmente destinado à prisão comum, agrediu sem motivo a um agente penitenciário, segundo os laudos. Na época do crime, o segurado tinha dificuldades para dormir e manifestava a vontade de cometer suicídio.

Os irmãos, que moravam no Distrito Federal, não o visitavam nem estavam dispostos a recebê-lo, assim como a sua ex-esposa.

O primeiro laudo, do ano 1985, considera a D. epiléptico, citando crises que começaram aos oito anos de idade. Este laudo destaca também a história familiar: o casamento posterior à morte do pai, as brigas freqüentes com a mulher e a proibição dos sogros de que a filha o acompanhasse a trabalhar num outro Estado, o que desencadeou a crise que o levou ao crime.

Considerou-se neste exame que o crime foi cometido em situação de estado crepuscular, definida por Ey (1978), momento no qual se perde a consciência dos atos. O diagnóstico foi o de personalidade epileptóide com instabilidade emocional, sem autocontrole e violento nas relações interpessoais, com pouco grau de recuperação. Por tudo isto, D. é considerado perigoso em alto grau.

O próximo laudo é do ano 1992. O estado do segurado parece ter piorado, sofrendo agora de delírios persecutórios e convulsões freqüentes. Considerado ainda perigoso, este texto termina com uma conclusão surpreendente: a de que ainda não existem sistemas penitenciários que possam abranger casos como este.

O laudo do ano 1993 muda a caracterização clínica do segurado, que sofreria agora de esquizofrenia residual, sociopatia e oligofrenia, diagnósticos estes incompatíveis entre si.

Os dois laudos seguintes, realizados, nos anos 1993 e 1994, apenas ratificam a necessidade da continuidade de D. na ATP. O do ano 1996 destaca o seu progresso, encontrando-se o segurado trabalhando normalmente no sistema penal e mantendo um bom relacionamento com as autoridades e os outros segurados. Não obstante, considerou-se que mantinha a sua periculosidade latente, estando a mesma inibida pela rotina carcerária, segundo o texto.

No ano 1997, é novamente considerado perigoso, associada essa condição ao diagnóstico de epilepsia esquizóide.

Apenas no exame do ano 1998, e perante a iminente abertura de um Lar Abrigo, recomenda-se tratamento. D. tinha acumulado, na época desta recomendação, 13 anos de reclusão na ATP.

Sofrendo já de uma notável deterioração física e psíquica, considera-se no laudo do ano 1998 que o sujeito teria a sua periculosidade cessada desde que tivesse acompanhamento clínico e familiar. Os laudos posteriores autorizaram saídas temporárias, que se cumpriram com freqüência irregular.

O caso de D. reúne quase todas as formas possíveis de diagnóstico de periculosidade: perigoso em alto grau, periculosidade em estado latente, perigoso (sem outras considerações) e periculosidade cessada. Estas caracterizações se sucedem sem uma ordem lógica aparente, sendo que mudam de um laudo para outro sem um motivo ou uma associação definida com outros indicadores. Os diagnósticos clínicos são diferentes e até contraditórios. Epiléptico, num primeiro momento, D. passa a ser esquizofrênico posteriormente (provavelmente, por manifestar delírios), sendo também, e num mesmo laudo, considerado sociopata e oligofrênico.

Perigoso por rebelde

F. tem 40 anos de idade. Nascido no nordeste foi morar no Distrito Federal quando criança com a família. Começou a trabalhar aos 12 anos de idade como balconista. Depois disso, só trabalhou em empregos informais, não tendo completado o ensino fundamental.

O segurado era solteiro e tinha um filho que não conhecia. Seu pai, alcoólatra, tinha falecido muito tempo atrás, sua mãe e irmãs ainda moravam em Ceilândia, à época da pesquisa.

F. foi condenado por roubo seguido de morte em 1986, ano em que invadiu o apartamento onde trabalhava sua namorada e junto com ela amordaçaram a empregada, que morreu asfixiada. Em 1991, recebeu liberdade condicional que descumpriu, o que o levou de volta à prisão.

Em 1997, já em regime ambulatorial, voltou a consumir drogas, o que provocou mais problemas com a família. Ainda em semiliberdade, integrou uma quadrilha de roubo de carros chefiada pelo seu advogado, fato pelo qual foi novamente preso. Já na prisão, começou, segundo o laudo, a mostrar "alguns comportamentos bizarros", agredindo a um agente penitenciário. Por esse motivo, foi encaminhado à ATP.

F. passou por muitos laudos na sua extensa trajetória psiquiátrico-penal. No primeiro, feito no ano 1986, o segurado relatou ouvir vozes. O psiquiatra considerou que esta manifestação clínica foi inventada pelo periciado, mesmo assim, o considerou portador de distúrbios psiquiátricos graves, dependente de maconha e perigoso.

O laudo seguinte, do ano 1989, o considerou egocêntrico e inseguro e o diagnosticou como obsessivo compulsivo, recomendando saídas temporárias.

No ano 1994, num novo laudo, F. foi considerado portador de esquizofrenia hebefrênica e perigoso, destacando o uso prolongado de drogas entre os antecedentes do sujeito. No laudo de 1996 o diagnóstico muda, passando a ser o de transtorno de personalidade com predomínio de manifestações psicopáticas.

O laudo de 1997 refere a um exame toxicológico obrigatório, que deu resultado negativo. Apesar de manter o diagnóstico de sociopatia, este exame considerou cessada a periculosidade, desde que o segurado tivesse apoio familiar.

O laudo de 1998 considerou a F. novamente perigoso e impulsivo, não recomendando saídas temporárias. A explicação para esta mudança apareceu destacada no texto: o segurado se negou a tomar a medicação indicada pela psiquiatra por achar que também era droga, evidenciando assim, segundo o perito, sua dificuldade de lidar com a realidade de forma satisfatória.

No ano 2000 é ratificada a sua periculosidade, sendo declarado portador de transtorno de personalidade. O diagnóstico de periculosidade é feito novamente no laudo do ano 2002, aclarando que este caráter se deve a sua falta de empenho escolar e laborativa.

O discurso psiquiátrico considerou aqui como fator revelador da periculosidade de F. sua recusa a tomar medicação, associada pelo perito a sua falta de adequação a realidade e, mais tarde, a falta de empenho escolar e laborativa.

Esta recusa, de uma lucidez notável, é respondida pelo discurso psiquiátrico com uma dupla condenação: a da reclusão e a da medicação. Algumas contradições podem ser aqui destacadas: considerado dependente de drogas e tendo sido objeto até de exames toxicológicos obrigatórios por esse motivo, F. mostra um certo progresso clínico nesse sentido ao negar-se a consumir as drogas que mais o prejudicavam nesse momento: as administradas na ATP.

F., quiçá culpável do pecado de acreditar que os pássaros podem atirar nas escopetas, tomava, na época do último exame e segundo os laudos, haldol, fenergan, pro-metazina, larbamazepina e amitriptilina. O segurado é também portador do vírus HIV, não recebendo a medicação necessária nem cuidados especiais.

O perigoso pecador

G., de 25 anos de idade, morava em Taguatinga na época em que cometeu o fato que o levou à ATP, sendo natural do nordeste. No Distrito Federal, só tinha como familiar uma tia, sendo solteiro e sem filhos. Nos laudos, manifestou ter sido criado por uma família adotiva, com a qual não teria contato atualmente.

Não completou o ensino fundamental devido a problemas de aprendizagem, segundo o processo. Trabalhou a partir dos 14 anos em empregos informais, principalmente como lavador de carros.

G. roubou um relógio no ano 2000. Anteriormente, tinha cometido dois roubos, um deles armado com uma faca, fatos que o levaram a ATP pela primeira vez no ano 1996. Na época do último roubo, estava ainda em situação de des-internação condicional. Quando foi pego no último roubo, portava maconha.

O primeiro laudo que consta nos processos é do ano 1996. Nele, G. é considerado drogadependente, sem maiores precisões clínicas. No ano 1997, ao diagnóstico de dependência de drogas, soma-se o de epilepsia, sendo por tudo isto considerado perigoso.

No mesmo ano, considerou-se cessada a periculosidade do segurado. No laudo do ano 1998, indicou-se, como condição para conseguir a desinternação provisória, o seu acompanhamento médico e religioso.

No seu segundo ingresso na ATP, o laudo do ano 2000 define G. como "agitado e com o conteúdo ideico empobrecido". No mesmo ano, a delegada da Policia Civil responsável pela prisão da Colméia sugere seu traslado, devido a sua má conduta. Um novo laudo diagnostica deficiência leve ou moderada e epilepsia, ratificando a condição de perigoso do sujeito. O exame seguinte muda essa caracterização clínica pela de sociopatia, descrevendo a G. como primitivo, imaturo e, mais uma vez, perigoso.

O processo diagnóstico-legal de G. parece reconhecer dois momentos diferenciados, relacionados a suas duas internações na ATP. No primeiro, o diagnóstico de droga-depência ocupa um lugar central nos textos, eventualmente associado a outras patologias. Neste primeiro momento, o segurado tem decretada a cessação de periculosidade de um ano para outro sem motivos claros, coincidindo aproximadamente essa cessação com os prazos legais correspondentes ao delito cometido.

A recomendação do perito que indica a desinternação condicional surpreende ao sugerir acompanhamento médico e religioso para G. Esta suposta necessidade de acompanhamento religioso pode estar relacionada ao diagnóstico de drogadependência e a possibilidade de internação numa comunidade terapêutica com esse perfil ou a simples e direta demanda de um tratamento moral, que imponha outras pautas de ação e convívio social ao sujeito.

Na segunda internação de G. na ATP, a reincidência penal, junto com os informes da sua má conduta na Ala, parece determinar diagnósticos mais categóricos e a afirmação do seu caráter de perigoso.

Dessa forma, o operador discursivo da periculosidade atua neste caso sancionando uma reincidência penal, associado para esse fim a determinados diagnósticos clínicos.

Tutelado por perigoso

I. tem 43 anos de idade. Morava na cidade do Gama desde que chegou ao Distrito Federal alguns anos atrás, proveniente de um Estado da região Norte do país.

O segurado era analfabeto e trabalhava ocasionalmente como lavrador. Não tinha contato com sua família nem outros vínculos afetivos.

A história criminal de I. começou em 1985. No total, já foi condenado por tráfico de drogas (seis vezes), roubo e furto (quatro vezes). Registra também uma passagem anterior pela Ala Psiquiátrica no ano 1994 (não foi possível encontrar os laudos relacionados a esse período). No ano 1998 foi beneficiado por um indulto.

No ano 1999 ingressou novamente na ATP. O primeiro laudo que constava no seu processo era anterior, do ano 1996, e tinha como objetivo avaliar um possível benefício de saídas temporárias para o detento. O perito desaconselha a saída de I. por achar que a falta de família, ofício e a sua "pouca inteligência" (segundo os próprios termos utilizados pelo técnico) dificultariam a sua reinserção social.

No ano 1998 é feito um novo laudo. Mais uma vez, e sem maiores considerações clínicas, ratifica-se que I. está despreparado para a vida social por motivos familiares, psíquicos e econômicos, negando-se novamente o direito a saídas.

O laudo do ano 1999, feito depois do traslado do sujeito à ATP, inclui um diagnóstico, o de esquizofrenia associada a déficit mental, sugere tratamento e afirma a sua falta de periculosidade. Destaca também que o segurado é usuário de maconha e sofre de alucinações.

O último laudo disponível no processo, feito no ano 2000, nega também a possibilidade de mudança de regime, dado que deixá-lo livre seria, citando novamente a expressão do perito, "como abandonar uma criança a própria sorte".

Resultados

Considerando os laudos dos segurados da ATP selecionados é possível estabelecer que o discurso psiquiátrico prevalece sobre o jurídico, desde o momento em que a justiça cede seu lugar à psiquiatria na determinação da responsabilidade penal e imputabilidade dos sujeitos. Porém, o discurso da psiquiatria não mantém uma lógica clínica baseada no diagnóstico e no prognóstico clínico, senão que assume um lugar jurídico de julgamento e sanção.

O operador discursivo que permite à psiquiatria ocupar esse espaço é o da periculosidade. Esse conceito de periculosidade é utilizado de forma maleável, sujeito a outras considerações secundárias, como as de forma, grau e/ou motivos do crime, que acrescentam ou perpetuam essa condição.

A sanção de periculosidade, em todas as suas formas, está vinculada, em primeiro lugar, à relação estabelecida entre o tipo de crime cometido e a suposta condição de doente mental do infrator, tendo as outras questões um caráter secundário. Os diagnósticos não mantêm uma lógica clínica de associação com o fato cometido e outras características pessoais dos sujeitos analisados, mas sim operam apenas como justificador dessa sanção de periculosidade.

Devido a esse caráter secundário que ocupam na trama discursiva dos laudos, os diagnósticos podem mudar de um exame para outro ou serem contraditórios entre si. Seu propósito não é clínico senão jurídico: o de permitir sancionar a loucura e o mal-estar psíquico quando associado a uma infração da lei.

A suposta assepsia dos discursos jurídico-diagnósticos desses laudos lhes permite tomar distância das conseqüências institucionais e subjetivas da sua aplicação. Dessa forma, a cronificação de muitos dos segurados, conseqüência direta da falta de tratamento adequado e das péssimas condições institucionais em geral, é considerada nos laudos como derivada exclusivamente dessa condição patológica íntima dos sujeitos.

O conteúdo ideológico desse discurso psiquiátrico-legal aparece de forma mais evidente nas considerações presentes em muitos dos laudos sobre a relação entre a origem social dos sujeitos, seu nível de inteligência, sua disposição para o trabalho e/ou o estudo e a manutenção do diagnóstico de periculosidade. Aparecem aqui traços discursivos do discurso fundante da psiquiatria e do direito penal no começo da época moderna, que era o de conter e disciplinar o sub-proletariado e ajustá-lo para integrar-se às relações sociais de produção que o capitalismo demandava.

Considerando os passos metodológicos definidos por Guilhon de Albuquerque (1980) para a análise institucional, o das práticas, os aparelhos, as formações e as totalidades concretas e formas sociais, relacionados, cada um, com instâncias econômicas, ideológicas e políticas, cabe analisar a lógica institucional e social à qual esses discursos, entanto práticas, respondem e contribuem a perpetuar, o que conforma em definitivo o espaço do instituído.

Dentro da distinção feita por esse autor entre aparelhos de reprodução material que respondem a efeitos econômicos, aparelhos de reprodução social com efeitos predominantes de tipo político e aparelhos de reprodução imaginária com efeitos ideológicos, os mecanismos psiquiátrico-legais que se articulam através de laudos e práticas de reclusão do doente mental infrator se enquadram em um tipo de aparelho de reprodução imaginária, que funciona reproduzindo a suposta associação entre loucura, pobreza e periculosidade.

Como todo efeito ideológico, tais mecanismos têm o propósito de ocultar o verdadeiro motivo da sua existência e função amparados, nesse caso, por um discurso supostamente técnico e neutro de caráter terapêutico-diagnóstico e associados a um discurso jurídico que cede o seu lugar de sanção e convalida o funcionamento dessa prática.

Esse aparelho ideológico compreende ainda algumas práticas secundárias associadas de caráter político, como as representadas pela burocracia carcerária. Essas práticas, no caso da ATP, complementam-se com o discurso psiquiátrico operando através da reclusão e da submissão dos internos à rotina carcerária. Arendt (1965) se refere às práticas burocratizadas de certos aparatos e instituições repressivas, as quais permitem que os agentes executores de ditas práticas ignorem ou desconsiderem as conseqüências de suas ações. Os aparelhos econômicos têm aqui um caráter extraterritorial; o vínculo entre esses aparelhos e as relações sociais de produção que os permitem aparece na consideração mais ampla da forma social.

Dessa maneira, produz-se uma dupla identidade do segurado, como preso e como louco, que contribui para a sua cronificação. Os próprios segurados parecem introjetar esse discurso, entendendo a sensação do mal-estar psíquico como uma manifestação desse caráter perigoso. Presos a esse duplo discurso, os sujeitos não têm condições de elaborar o fato criminoso cometido, elaboração esta que contribuiria para um processo clínico.

O aparelho representado pelo discurso e a prática psiquiátrica articulada com a prática política da rotina carcerária constituem uma formação social que, sempre segundo Guilhon de Albuquerque (1980), tem também um caráter ideológico-político e está representada pelo sistema penal em geral. Este funciona afastando do convívio social aqueles setores da população socialmente mais castigados que ousam infringir um sistema tido como formalmente igualitário e democrático, afirmação esta na qual reside o seu verdadeiro caráter ideológico.

Discussão

A prevalência dos discursos repressivos que demandam aumentar sistemas de penas e controles para esta população, permite alertar para a possibilidade de que a noção de periculosidade, hoje aplicada aos criminosos declarados inimputáveis, possa se estender a outras áreas do sistema penal. De fato, o número de sujeitos cumprindo medidas de segurança não tem aumentado nos últimos anos, mas o mesmo discurso jurídico-terapêutico que respalda esse espaço institucional aparece hoje em outros âmbitos da justiça penal.

Como exemplo, cabe citar os modelos de Justiça Terapêutica que vêm sendo implementados em alguns Estados brasileiros e que indicam a obrigatoriedade do tratamento para os usuários de drogas consideradas ilegais. Caso o sujeito se negue a ser tratado, pode ser objeto de sanções penais. Essa dupla sanção de doente e criminoso reitera o imaginário presente nas medidas de segurança (Bravo, 2002).

Por outro lado, alguns projetos a serem apresentados na Câmara de Deputados prevêem a diminuição da idade penal para 14 anos em caso de crimes considerados hediondos. Aos dezoito anos, esses adolescentes infratores passariam por uma avaliação, feita por um perito psiquiatra, destinada a constatar o seu caráter perigoso e que determinaria a necessidade de aplicação de penas prolongadas.

A crítica aos supostos discursivos e institucionais atuais que permitem a aplicação das medidas de segurança implica também a discussão de um modelo de justiça penal e de sociedade, a qual deve ter um caráter solidário e inclusivo que lhe permita resolver seus conflitos por meio de outros caminhos que não os da punição e da violência institucional.

Os sujeitos que cumprem medidas de segurança nos manicômios judiciários, hospitais de custódia e tratamento e alas especiais dentro dos presídios representam o setor mais castigado do sistema penal, punidos em forma dupla: pela sua condição de loucos e criminosos e por dois discursos e aparelhos de poder que se articulam: o da psiquiatria e o do direito penal.

Esta população psiquiátrico-penal pode se enquadrar na mesma descrição geral feita por Foucault (1982) sobre a classe social que Pierre Riviêre, que assassinou alguns integrantes da sua família no ano 1836 na França, integrava, já que "... o horizonte fechado do cerrado foi sempre o celeiro destas vidas privadas de qualquer futuro, privadas de qualquer oportunidade" (p. 187).

Recebido: 11/09/2006

1ª revisão: 21/02/2007

Aceite final: 10/04/2007

Omar Alejandro Bravo é Psicólogo, Doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Endereço para correspondência: Iriondo, 1877, Rosario (2000), Argentina. Telefone: 00-54-341-4325896. omarlakd@yahoo.com

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2006
  • Revisado
    21 Fev 2007
  • Aceito
    10 Abr 2007
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