Open-access LINHAS, ALINHAVOS E DESCOSTURAS NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DE UMA PERFORMANCE/EXPOSIÇÃO

LÍNEAS, HILVANADOS Y COSTURAS EN EL PROCESO DE CREACIÓN DE UNA ACTUACIÓN/EXPOSICIÓN

LINES, BASTINGS AND SEAMS IN THE PROCESS OF CREATING A PERFORMANCE/EXHIBITION

Resumo

É objetivo deste artigo analisar o processo de criação de Fernanda Yamamoto e sua equipe, tendo como foco a criação da performance/exposição para a primeira edição presencial pós-pandemia do evento de moda São Paulo Fashion Week, ocorrida em novembro de 2021. Apoiadas nas contribuições de Lev Vigotski, Mikhail Bakhtin, Cecília Salles e Suely Rolnik, entre outros/as, as discussões propõem compreender a prática artística e as manualidades como possibilidade de instaurar caminhos de reinvenção dos elementos da vida, de si mesmo e do mundo. Conclui-se que os modos de criar instituídos pela artista e sua equipe constituem o ateliê como espaço em que é possível visibilizar as tensões próprias do sistema capitalista ao mesmo tempo em que forjam desvios potencializadores, expressando modos outros de produção da realidade e da subjetividade na contemporaneidade.

Palavras-chave: Processo de criação; Moda; Arte; Fernanda Yamamoto

Resumen

El objetivo de este artículo es analizar el proceso de creación de Fernanda Yamamoto y su equipo, centrándose en la creación de la actuación/exposición para la primera edición presencial pospandemia del evento de moda São Paulo Fashion Week, que tuvo lugar en noviembre de 2021. Con aportes de Lev Vigotski, Mikhail Bakhtin, Cecília Salles y Suely Rolnik, entre otros, los debates proponen entender la práctica artística y la artesanía como una posibilidad para establecer formas de reinventar los elementos de la vida, de uno mismo y del mundo. Se concluye que las formas de creación establecidas por la artista y su equipo constituyen el estudio como un espacio en el que es posible visibilizar las tensiones del sistema capitalista al mismo tiempo que forjan desviaciones potenciadoras, expresando otros modos de producción de realidad y subjetividad en la contemporaneidad.

Palabras clave: Proceso de creación; Moda; Arte; Fernanda Yamamoto

Abstract

The aim of this article is to analyze the creation process of Fernanda Yamamoto and her team, focusing on the creation of the performance/exhibition for the first post-pandemic in-person edition of the fashion event São Paulo Fashion Week, which took place in November 2021. Supported by the contributions from Lev Vigotski, Mikhail Bakhtin, Cecília Salles and Suely Rolnik, among others, the discussions propose to understand the artistic practice and handicrafts as a possibility to establish ways of reinventing the elements of life, the self and the world. It is concluded that the ways of creating established by the artist and her team constitute the studio as a space in which it is possible to make visible the tensions of the capitalist system at the same time that they forge potentiating deviations, expressing other modes of production of reality and subjectivity in contemporaneity.

Keywords: Creation process; Fashion; Art; Fernanda Yamamoto

Quanto cabe num bolso? O bolso deslocado de Fernando A moda deslocada de Fernanda A história deslocada dos bolsos que (não) vestimos O deslocamento das costuras

Figura 1

Em um casaco, artigo de vestuário comum e utilitário a qualquer pessoa que queira se aquecer, um espaço para o bolso. Este, no entanto, como se recusasse ocupar a parte a que lhe aparentava destinada, vem quase de viés, deslocado do pressuposto lugar que lhe é historicamente atribuído. Em seu desalinho alinhado, o bolso atrai nossa atenção, provocando sensibilidades ao complexificar a percepção de elementos componentes de um artefato apresentado corriqueiramente sob certa padronização. Tensionamentos ao automatismo de nosso olhar; tensionamentos aos modos de produção de existência que condicionam modos de ver, ouvir, pensar, sentir, vestir; que instituem os corpos e os modos como se apresentam a outros e a nós mesmos/as.

Trata-se, o bolso em questão, de detalhe de uma peça produzida sob assinatura de Fernando Jeon, estilista criador da linha masculina da marca Fernanda Yamamoto. Há mais de uma década, o processo de criação em moda de Fernanda Yamamoto e sua equipe resulta em peças de vestuário que são lançadas ao público e comercializadas, como o casaco fotografado, bem como em criações artísticas apresentadas em exposições, performances, desfiles. A produção do ateliê vem conquistando relevância no cenário da moda por meio de processos singulares de criação, articulados à intensa pesquisa e experimentação, cuja ênfase coletiva dos movimentos construtivos das peças é constantemente reafirmada pela artista em entrevistas, redes sociais, projetos de visitas abertas ao ateliê e pelo próprio modo como apresenta suas produções publicamente.

É objetivo deste artigo analisar esse processo de criação de Fernanda Yamamoto e sua equipe, tendo como foco a criação da performance/exposição para a primeira edição presencial, pós-pandemia, do São Paulo Fashion Week (SPFW), ocorrida em novembro de 2021. Inquietações e questionamentos emergiram na medida em que fui acolhida no ateliê e lançada às atividades de costura. Entre linhas, agulhas e tecidos, fui sendo provocada pela intensidade do vivido.

Moacir dos Anjos (2014, p. 19), ao ensaiar pensamentos de Jacques Rancière acerca das relações entre arte e política, diz que a arte desassossega: “A arte passa a ser aquilo para o que se olha, ou se escuta, ou se cheira, ou se lê, ou se toca, e faz perguntar: Afinal, o que é isso? Para que serve?”. Entreteço as palavras do autor com as minhas, com as afecções que emergiram de minha presença e de minha participação ativa naquele processo de criação da performance/exposição. Não foi um processo produtivo de roupas que acompanhei: foi um processo artístico que me embalou e tensionou entendimentos convencionais sobre moda1 e sobre a configuração hegemônica das relações de trabalho no mundo capitalista. Naqueles dias de intensa atividade, olhei, escutei, comi, cheirei, chorei, costurei, cortei, bordei, ri, li, vivi o ateliê. E, porque interpelada pela arte, me deixei capturar por aquelas perguntas-desassossegos e mobilizar para a produção desta escrita.

Para visibilizar o vivido e responder ao objetivo da pesquisa, trago algumas cenas, dentre várias, registradas em diário de campo. Tais passagens são avivadas no diálogo com Lev S. Vigotski (1998, 2018, 2019), Mikhail Bakhtin (2011, 2018), Cecília Almeida Salles (2011, 2016) e Suely Rolnik (2018), entre outros/as autores/as cujas contribuições teórico-metodológicas são fundamentais para compreendermos como a arte se entrelaça à vida.

A partir de diferentes campos de conhecimento, esses autores entendem a complexa e dinâmica condição histórica e social do ser humano, constituído nas tensas e intensas relações com outros e com o contexto do qual é parte/participa. E é dessas relações que os/as artistas recolhem o material para suas produções, as quais entretecem, inexoravelmente, a partir de experiências que lhes são significativas, o campo do vivido com a arte. Nesse processo, artistas lançam ao mundo ingredientes que contribuem para a sua transformação, ao mesmo tempo em que se veem enredados em um movimento de virem a ser outros. Seguindo essas vias, enredo a dinâmica do ateliê de Fernanda Yamamoto à compreensão de arte, e do próprio processo de criação artística, como “método de construção da vida” (Vigotski, 1998, p. 328); arte embrenhada em seu processo de devir, como possibilidade de instaurar novos modos de relação consigo e com o outro, de interferir na produção objetiva da realidade e da subjetividade no mundo contemporâneo.

Olhar, ouvir, fazeres metodológicos

Fernanda Yamamoto é artista do campo da moda, com ascendência japonesa. Ela possui uma loja e um ateliê homônimos que funcionam no mesmo local, em São Paulo, capital. As atividades nesse local iniciaram em 2009 e, no ano seguinte, a estilista estreou no SPFW e vem apresentando coleções nesse evento desde então. Para analisar o processo de criação da estilista e sua equipe, participei cotidianamente das atividades do ateliê entre 09 e 19 de novembro de 2021, período em que estavam todos/as mobilizados com a criação da performance/exposição para a primeira edição presencial, pós-pandemia, do SPFW. A inserção naquele momento de movimentação geral para a preparação das peças da apresentação aconteceu compassando-me ao ritmo do próprio ateliê e suas necessidades: por meio das atividades manuais características do processo de costurar, as quais aprendi durante a formação em moda, pude somar ao trabalho coletivo; agregaram-me à equipe e, assim como embaralham as formas convencionais da roupa, embaralharam meu lugar de pesquisadora com o de colaboradora. Ao final de cada dia, tentava desembaralhar esses lugares registrando, em diário de campo, conversas, percepções e sensações que a intensidade do vivido provocavam. Esse procedimento resultou em diversas cenas, das quais elegi algumas para análise; são elas que organizam a estrutura do artigo, cada uma compondo e disparando as reflexões tecidas nas seções que seguem.

Misturada ao grupo e às costuras das peças, pude aproximar-me da maior parte das pessoas que trabalham no ateliê e conversar com elas. Ao todo, além de Fernanda Yamamoto, conheci doze funcionários/as: um coordenador de estilo e modelagem, duas modelistas, um estilista, duas costureiras, um cortador, uma auxiliar geral, uma coordenadora de produção, uma assistente de produção e dois vendedores. Naqueles dias, bordadeiras, modelista e costureira extras também circularam pelo espaço. As pessoas que participam das cenas apresentadas concordaram com a utilização e divulgação das informações e imagens colhidas ao longo da pesquisa, bem como optaram pela identificação de seus nomes nas produções escritas decorrentes. Isso foi devidamente registrado via assinatura de Termos de Consentimento Livre e Esclarecido2 (TCLE).

Ser investigadora em ciências humanas, reflete Solange Jobim e Souza (2017), é uma entrada para pensar sobre o encontro entre pessoas, e os modos de fazer essas conexões, entre pesquisadora e seu(s) outro(s), acrescentam Nogueira, Hissa e Silva (2015), correspondem ao caminhar da pesquisa, sua metodologia. Esta última consiste no próprio processo do pesquisar, indica uma maneira de atravessar o mundo refratada pelo problema que nos aventuramos a vasculhar, a conhecer. “O caminho se faz caminhando”, ouvi de Valeria (Val), modelista no ateliê. Quando disse isso, ela aludia ao processo artístico e à vida e, aqui, por que não, estendo essas palavras ao processo de pesquisar. Compartilhávamos, assim, um ateliê-laboratório de invenção de técnicas de criação de roupas e de criação de pesquisa; coincidíamos no entendimento de que é “preciso infringir o modo de funcionamento aparente do mundo para compreendê-lo” (Nogueira et al., 2015, p. 354).

Inevitavelmente, diz Roberto Cardoso de Oliveira (2000), nossa disposição para inventar o caminho condiciona-se aos nossos modos de olhar e de ouvir o mundo, pois é por meio deles que podemos percebê-lo. Considero importante ampliar esse entendimento para a possibilidade de olhar e ouvir não apenas com os olhos e os ouvidos: expando-os à capacidade de percepção integral do corpo (Buck-Morss, 2012), a qual, na prática de uma pesquisadora, afina-se ao esquema conceitual próprio de seu campo formativo teórico.

Dessa maneira, o modo de perceber a vida e o mundo e ir criando caminhos para a pesquisa adquirem contornos particulares ao sintonizarem-se às compreensões da teoria bakhtiniana: esses modos configuraram os encontros com cada pessoa do ateliê com quem tive oportunidade de trabalhar lado a lado, predispondo-me a tomar as conversas informais, as trocas, na dimensão de sua particularidade, na unicidade das produções de sentido de que cada encontro é gerador. Olho para esse traço “-” que separa, e ao mesmo tempo une, pesquisador-outro como o entre, o meio, a fronteira-território da percepção do todo sensório corporal, da expressão, da negociação de sentidos, da produção de conhecimentos, da constituição de subjetividades (Jobim e Souza, 2017; Nogueira et al, 2015).

(Des)costurando

Costura e descostura constituem-se mutuamente no processo de fazer roupa. Ajuste, erro na costura, na modelagem ou na montagem da peça, caimento, incontáveis razões levam quem aprende a costurar a também descosturar. Construção e desconstrução da roupa: metáfora do próprio processo da vida. Uma e outra não se fazem só pelo avanço repetitivo da agulha da máquina pelo tecido ou por hábitos cotidianos. Sabemos que, apoiados na memória, conservamos e reproduzimos nossas experiências anteriores, formamos hábitos que configuram nossas relações no mundo (Vigotski, 2018, 2019). Mas não é a vida interferência constante? Não os exige respostas que extrapolam o modo mecânico da máquina de costura e de nossos comportamentos?

Desejos, necessidades, desafios, surpresas impelem-nos a embaralhar, recortar, costurar, descosturar e recosturar materiais recolhidos da vida, devolvendo-os ao mundo sob nova organização e novas possibilidades de sentido, criando a realidade ao mesmo tempo em que criamos a nós mesmos/as. Essa atividade criadora, como ensina Vigotski (2019, pp. 17-18), estende-se “por toda parte em que o [ser humano] imagina, combina, modifica e cria algo novo, […] é condição necessária da existência”.

Assim é que os processos de fazer roupa e de fazer vida encontram-se: as atividades repetitivas e as atividades criativas contraem-se, interpenetram-se, fundem-se para propor à roupa um caminho de materialização e à vida o movimento de sua humanização. Assim é que os processos de fazer do ateliê de Fernanda Yamamoto e do fazer desta pesquisa enredam-se também: às vezes, é preciso deter a ação da costura sucessiva dos tecidos (de fibras, de pensamentos, de gestos) e demorar-se descosturando, uma entrega a possibilidades de recosturá-los em outras configurações, inaugurando novas imagens, ações, sensibilidades, ligações (Rizzo & Fonseca, 2010). É assim que dialogo estas ideias com a atividade da descostura de um quimono que “não deu certo” e que me ocupou por quase dois dias, no ateliê.

As peças em preparação para o desfile/exposição consistiam em um conjunto de dez quimonos, vestimenta típica do Japão que, naquele contexto, presentificava a ancestralidade de Fernanda Yamamoto3. Diferenciados entre si pela técnica de construção e pela cor, conectavam essas peças diferentes tempos e espaços, por meio da forma tradicional do quimono, dos materiais (tela de algodão cru e seda, basicamente) e do projeto que os encarnava: inspiravam-se em quimonos elaborados, na década de 1960, por moradores da Comunidade Yuba4, uma comunidade rural, autogerida, localizada no interior de São Paulo e inaugurada há mais de cem anos por imigrantes japoneses, a qual produz, ainda hoje, grande parte dos alimentos e artefatos dos quais necessitam. Três dos quimonos, é importante destacar, pertenciam à própria comunidade e foram retrabalhados pela equipe, os demais foram criados e produzidos no ateliê.

Cada peça constituía uma obra por si só, ao mesmo tempo em que completava (e repetia, negava, tensionava) as demais. Reunidas, e em seus processos singulares de construção, as peças iam revelando o projeto artístico maior que as direcionava ética e esteticamente. “Não há uma teoria fechada e pronta anterior ao fazer”, diz Cecilia Almeida Salles (2011, p. 47), o que foi possível ver em ato: no movimento das mãos, cada quimono ia se definindo, através do que era selecionado, descartado e combinado, edificando o caráter geral norteador da proposta artística.

O processo de criação artística acontece no espaço da experimentação, é movimento de permanentes modificações em busca de reduzir a distância entre o que se quer e o que se tem. Esse era o caso do quimono que Jeon me convidou à descostura, assim que cheguei no ateliê: a forma atingida até aquele momento não materializava o que suas/seus criadoras/es queriam, o tecido seria reaproveitado com a modelagem refeita. “Construir é destruir” (Salles, 2011, p. 151) e, naquele caso, costurar era descosturar, abrir o tecido ao convívio com muitas possibilidades de moldes por um tempo, até que novas escolhas fossem feitas.

Disponível para qualquer tarefa, aceitei o exercício. Tratava-se de um quimono rosa pink feito de organza de seda, tecido estruturado, porém muito fino e translúcido, composto por fibra de seda natural; a peça possuía muitos recortes em sua modelagem, então, apresentava muitas costuras - e, por conseguinte, descosturas. Esta pode ser realizada com um descosturador, pequeno objeto semelhante à metade de uma caneta, com um metal afiado na ponta em forma de U, ou com um “pique”, uma tesourinha sem alças para os dedos, a qual a mão precisa abraçar por inteiro. Preferi o descosturador, possuo mais habilidade com ele.

Sutil é o tecido, firme é a linha, delicado e preciso é o movimento para não perfurar o primeiro, mas romper a segunda; acurada é a vista que deve distinguir monocromaticamente entre a linha e a trama. Minúsculo gesto que dura, na repetição, e se perde a cada atualização: caracteriza tanto o romper da linha quanto seu enlace entre dois pontos, tanto a costura manual quanto a descostura. É a linha que as anima e nos aproxima da palavra-costura, de Edith Derdyk (2010, s/p):

A linha é contorno, é carne, é ossatura. Qual é o corpo da linha? A linha empresta o contorno ao mundo, caminha pela superfície das coisas. Sismógrafo neuro motor, remarcando os territórios. A linha sugere proximidade e afastamento, tônus afetivo. Unidade dupla: portadora do sensível e do mental. A linha positiviza a ausência, é sempre afirmativa.

Estendo, com Derdyk (2010), a linha desse miúdo trabalho artesanal à infinitude de nosso encontro com o mundo: extensão que desvenda a superfície do mundo e a superfície do corpo; linha que a nenhum dos dois pertence, mas que preenche a incerteza do entre. É na superfície corporal que se localizam os terminais de nossos sentidos (tato, visão, olfato, paladar e audição), sismógrafo neuro motor que detecta, amplifica e registra o que nos cerca, avança pela medula espinhal e chega ao cérebro. Estamos falando do circuito do sistema nervoso que, observa Susan Buck-Morss (2012, p. 164), não se encerra pelas linhas do corpo, funciona entre fronteiras: “Como fonte dos estímulos e arena das respostas motoras, o mundo externo deve ser incluído para completar o circuito sensorial”.

A autora chama a atenção para a dimensão da experiência como ativadora do circuito sensorial e denomina essa completude de sistema sinestésico, um arranjo complexo constituidor da consciência sensorial e no qual as percepções externas vinculam-se à imagens da memória e do desejo. A partir das considerações de Walter Benjamin acerca da alienação como condição sensorial da modernidade, Buck-Morss (2012) documenta a transformação da percepção, e suas implicações, alavancada pelo modo de vida moderno.

Diante da estimulação excessiva como norma da experiência contemporânea, afirma a autora, o sistema sinestésico sofre uma inversão de função e transforma-se em anestésico: adormecida a capacidade sensorial do organismo, insensibiliza-o, extorque-o de sua própria energia vital. Nessas condições de tecnologização crescente da vida cotidiana, em que nos tornamos espectadores de imagens em fluxo ininterrupto, ficamos entorpecidos, não registramos nada, ausentamo-nos da realidade, ainda que imersos nela, e, nesse processo, degenera-se nossa capacidade de reagir (politicamente), de configurar respostas efetivamente conectadas à realidade.

Retorno à cena da descostura. A atividade havia me ocupado até o fim do dia; espreguiço, movo o pescoço. A Val olha e diz:

- Tem que sentir no corpo também!

Parece que se trata disso. Entre os dedos cabem as linhas do corpo, inclusive. As manualidades ativam outros cérebros, despertam outros tipos de comunicação corporal, avivam um saber-corpo, corriqueiramente adormecido. José Saramago (2000, pp. 82-83) é indispensavelmente melhor para nos contar a esse respeito:

são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e a falangeta. … o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. … O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar o barro, a dilaceração aguda do cinzel, a mordedura do ácido na chapa, a vibração subtil de uma folha de papel estendida, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo.

Eles, os dedos, é que se encarregam de tornar palpável o vago rumo da criação. Na corpulência do trabalho manual que avolumava as atividades do ateliê, parece que as linhas eram essenciais, as linhas dos dedos, as linhas do corpo, as linhas de seda, as linhas de algodão e, por que não, as de poliéster; sem elas, não se transportariam as ideias à matéria. Parece que por aí ronda a resposta revolucionária de Walter Benjamin à alienação e ao fascismo, reconhece Buck-Morss (2012): é preciso devolver o discurso ao corpo, à realidade, ao sensório corporal como fonte cognitiva, ao sistema sinestésico.

À diligência de Fernanda Yamamoto e equipe nas manualidades, para a elaboração das peças para a performance/exposição, convêm o ânimo coletivo de um trabalho que se desenvolve entre linhas, mesmo quando a moda está a apressar o passo, mesmo quando a constância do mundo em que vivemos corrige o labor a um modo que “não se pode mais trabalhar a olho nem a palmo, por apalpação ou farejando, … todo entregue ao sentido interrogador do tacto”, já o sabia bem José Saramago (2000, p. 148).

Desmanchando alinhavos

Alinhavar, na manualidade da costura, se faz com pontos largos; une os pedaços em pontos provisórios, geralmente para facilitar a costura à máquina, os quais serão desmanchados depois. Fazer e desfazer alinhavos é relativamente simples, não pede força, os pontos rapidamente se vão. No caso das peças que estavam sendo preparadas no ateliê, a costura à mão do alinhavo auxiliava a costura à mão de pontos invisíveis.

Um dia, Jeon e eu nos sentamos à mesa para desmanchar alinhavos do quimono verde, um dos quimonos originais de Yuba. A organza de seda já havia sido imperceptivelmente costurada a ele, revestindo o tecido grosso de algodão5. Desse modo, os alinhavos já podiam ser dispensados e, enquanto o fazíamos, conversávamos:

- Como se relacionam os momentos de fazer as coleções (comerciais) e fazer o desfile? (Pesquisadora)

- Ah, nas lembranças que ficam durante o ano, dos perrengues juntos, das coisas engraçadas. (Jeon)

- E na parte do trabalho, eles se relacionam? (Pesquisadora)

- A gente sempre adapta algo que foi usado no desfile para a coleção comercial, de forma mais simples. Mas as técnicas que usamos no desfile, a costura à mão, é só pro desfile. (Jeon)

Em época de preparação de desfile, a produção comercial fica em segundo plano e o ateliê envolve-se em um grande projeto artístico coletivo. As peças que precisam de bordado vão circulando de mão em mão, conforme a disponibilidade de cada um; a loja fecha e Sueli, vendedora na loja, sobe para bordar; sobram máquinas, faltam mãos; as tarefas rotineiras pausam e todos “fazem de tudo”; vi o Oséias, contratado para a função de cortador, bordar, costurar à mão, construir textura xadrez com fios de seda; a Marina, modelista, cortava, fazia dobradura em tecido, tingia seda. As relações habituais do ateliê se embaralhavam, as pessoas transitavam entre atividades e lugares a ocupar.

O movimento construtivo próprio à arte é também uma forma de nos aproximarmos dela, para além do lugar da recepção estética de uma obra entregue ao público (Salles, 2011). Ao estar com o pessoal do ateliê em momento de criação latente, pude ser interpelada pela potência artística que morava entre suas mãos e seus gestos, entre o que diziam e o que faziam, entre o que olhavam e o que transformavam. Frestas estas impalpáveis e inomináveis, às quais só as linhas podem resolver, mas capazes de descrever o que a arte pode disponibilizar, essa capacidade de “interromper ou de problematizar as coordenadas sensoriais que qualquer um emprega para se relacionar com o mundo em que vive. Coordenadas relacionadas a noções de espaço, de tempo, mas também a relações de hierarquias de toda ordem” (Anjos, 2014, p. 18).

A arte bagunça as referências que habitualmente nos situam. O ateliê, movido pela intensidade do processo de criação artística, transformava os lugares a ocupar, as tarefas a fazer, os materiais a pegar, os conteúdos a pensar, as palavras a dizer, os movimentos a completar, os sentidos a inventar. Perturbando nossas percepções limítrofes com o mundo, o fazer artístico coletivo inerva-se pelas relações e pelo espaço, integra-os organicamente ao seu devir; é processo que “valoriza a alteridade do convívio”, como diz Irene Machado (2020, p. 59).

Todos/as juntos/as trabalhando na mesma grande sala do ateliê; mesmo as funções administrativas embolavam-se em uma das cinco mesas do espaço. Alguns revezavam lugar com uma outra sala, no andar de baixo. Oséias ensinava à Fernanda como estava fazendo o bordado dourado no quimono rosa; eram dois bordadeiros trabalhando lado a lado. Netto (modelista freelancer), Oséias, Jeon e Marina armavam dobradura em tecido; eram quatro escultores de uma peça de dois metros de comprimento. Fui aprender com a Silvia (Sil, costureira há nove anos no ateliê) como ela colocava elástico no cós das calças; era uma costureira ensinando outra costureira. Nesse momento, sentei-me próximo a ela, onde ficavam as máquinas de costura, olhei para o lado: uma festa de rolos de linhas que pulavam pelas mesas e pelos cantos, no chão, como se tivessem se revoltado de seus lugares rotineiramente enfileirados nas prateleiras diante delas. O levante das linhas era por causa da movimentação do desfile, me contou.

Os tecidos de organza utilizados na montagem das peças foram tingidos manualmente. Os fios de seda, igualmente. Marina tingia tudo no quintal que havia nos fundos da loja. Tecidos no varal, baldes pelo quintal, sensação familiar. Algo de doméstico em um contexto de trabalho, é perspicaz essa subversão da arte. O movimento de criação ia agregando elementos novos ao ambiente, fazia emergir outros usos dos espaços, solicitava o uso não usual dos objetos. Às vezes, era preciso alcançar um instrumento escondido, arrastar mesas, congestionar passagens, liberar outras; peças que eram dadas por finalizadas, saíam de cena, não ocupavam mais o espaço nem as vistas. A tarefa de criação da performance/exposição, um trabalho de arte, exigia de todas/os uma postura investigativa a vasculhar potenciais criativos: no espaço, nos dedos, nas coisas, nos seus modos de interação; nos entres, na intensidade dos encontros, alinhavos, costuras e descosturas, abriam-se caminhos de subjetivação.

Os modos de criar instituídos no ateliê de Fernanda Yamamoto tensionam a ideologia romântica do artista gênio solitário - uma das engrenagens que mantém o sistema capitalista de moda globalmente operante sob o signo das assinaturas estilísticas de criadores-celebridade. Em um processo de criação coletivo, a figura do/a estilista é redefinida a partir da inserção da prática artística em uma rede de criação. Com Salles (2016), podemos pensar essa rede como processo no qual coexistem flexibilidade, mobilidade, inacabamento, influência mútua e ação transformadora. Ainda que a autora aproxime tais conceitos à rede de pensamento do/a artista, eles servem em perfeito juízo às condições criativas propiciadas no ateliê, que dizem não de um, mas das ações e relações de todos/as. Naquele contexto, vi a arte emergir de um comportamento coletivo cooperativo: a intensa rede de interações de seus membros pressupunha ações recíprocas, isto é, a ação de uma pessoa reverberava nas das demais, porque, densamente conectadas, cada ação expandia-se por todos os lados. Esse funcionamento em rede ficou especialmente destacado, para mim, conforme as peças iam circulando entre as pessoas, cada um empenhando-se numa tarefa diferente na mesma peça, mas que era, ao mesmo tempo, dependente e condicionada pelo que foi feito anteriormente por outra pessoa. “Fez tudo errado, mas tudo bem, a gente vai usar assim mesmo. Não se preocupe!”, brincou em determinado momento Jeon, ao se referir ao que Oséias tinha feito.

São as relações que vão se tecendo nesse processo de produção do objeto artístico. A criação pertence ao campo relacional e acompanhá-la exige um olhar relacional: com pequenos gestos, múltiplas e simultâneas tarefas, não lineares, e variadas funções, não hierárquicas, o processo artístico tece relações e opera sentidos, que vão se amalgamando aos elementos envolvidos no percurso, transfigurando-os em uma forma, uma obra específica.

Ao percebermos as peças em criação como parte intrincada de uma complexa e indefinida rede, tramada pela proliferação de inferências e no modo singular em que esse arranjamento vai se unindo, desmoronamos o conceito de que o criador é o “maestro da orquestra de faculdades manuais e mentais concentradas em torno de um princípio único, seu estilo” (Bourriaud, 2009, p. 132). Em seu lugar, podemos armar a rede na qual Fernanda Yamamoto ocupava lugar de maestrina, regendo o grande grupo que se dividia entre atividades comerciais e artísticas, enquanto Jeon, contrariando o lugar clássico do coordenador “supervisor”, exercitava seu papel com o trabalho lado a lado; ensinar é a palavra que descreve melhor o caso, em vez de delegar, esta geralmente atada à imagem da função coordenadora.

A essa altura, podemos dizer que o modo de criar no ateliê fazia jus ao verdadeiro estilo defendido por Nicolas Bourriaud (2009), aquele que não se forja no fazer homogeneizado e unificado na figura pessoal do artista, mas impõe-se pelo movimento pensante e circulante. Se Fernanda e Jeon orquestravam um concerto, este só acontecia porque todos/as participavam, pensavam ativamente. Processo de criação compartilhado, convívio de alinhavo, feito e desfeito organicamente.

Pontos invisíveis

A costureira larga a máquina. Pega agulha e linha.

- A máquina da Sil é a mão hoje. (Netto referindo-se a Silvia)

- É a mão, a cabeça… (Val)

Ao costurar, esta escrita em diálogo com Bourriaud (2009) e Anjos (2014), sabemos que a vontade da arte se acerca da desengrenagem de funcionamentos mecânicos, da redução de automatismos perceptivos. A arte desmaquiniza-nos ao mesmo tempo em que é possibilidade de resgatar às mãos uma instrumentalização artística, expandindo-as ao poder inventivo (Benjamin, 2016). A transposição do movimento da criação pela máquina para o movimento de criação do corpo promove um encontro do corpo com a matéria, da matéria com a memória. Largar a máquina, pegar agulha, linha, lamber o dedo a afiar a ponta da linha até que atravesse a cabeça da agulha, deixá-la escorrer um tanto, cortar, dar o nó, segurar o tecido com uma mão, linha e agulha com a outra, levá-las e trazê-las, dando voltas no ar, a furar o tecido de modo quase imperceptível, seria invisível se não deixasse seu rastro entre os tecidos que prende, o de algodão e o de seda, e o de corpo e de memória.

O hábito é um tipo de memória, afirma Vigotski (2018), e é através da repetição que eles se exercitam. O ir e vir da agulha opera um hábito, habilita uma técnica. Na mesmice do gesto circular mora a espessura do tempo, diz Derdyk (2010): o movimento contínuo e repetitivo arrasta o tempo pela eternidade e, sincronicamente, atualiza-se em novo impulso justamente quando perdeu-se do que o antecedeu, inauguração de cada instante. Na duração da ação, perpetuam o tempo e a ação da memória. Aí cabe o esforço de reter o que estimulou o passado e a esperança de atenuar a incerteza do futuro. Cada reinício, por sua vez, interrompe a repetição, a torna outra, soma-se às anteriores, acumula os elementos que a elas podem se conectar. Eis a possibilidade de criação.

A costura manual é conhecimento ancestral desvelado na repetição do gesto e, ao mesmo tempo, chance “de combinar o velho de novas maneiras” (Vigotski, 2019, p. 19), pois mesmo na pequenez monótona do ato, dois pontos nunca se ligam da mesma maneira; mesmo quando se recostura depois da descostura, a agulha não fura o tecido nos mesmos lugares. A costura é promessa do novo gestada no mesmo, presente. Paradoxo dialético inexorável do movimento da vida e da criação dos quimonos. Aí cabe a profundidade da experiência.

Na linha do visível ao invisível, costurar, descosturar, recortar, riscar, tramar, plissar, esticar, bordar, reparar, fragmentar, unir compunham o curso das movimentações artísticas nas quais as várias mãos se empenhavam no ateliê e, simultaneamente, apresentavam procedimentos capazes de associar complexas esferas da ação perceptiva a processos construtivos da arte (Machado, 2020). Entre gestos artesanais e artísticos, punham a funcionar aqueles nossos pequeninos cérebros, ligando dimensões de nossa percepção sensorial usualmente desativadas. Faz, afasta-se, olha, faz mais um pouco, olha de novo, desfaz, segue: os sentidos eram reunidos para conversar com a matéria artística, sua unificação era requerida a despeito do fracionamento do tempo, do trabalho e dos sentidos que persistiam em dispersar-nos.

Duplo desafio. Se é verdade que o fazer artístico concentrado em técnicas manuais pode tocar territórios vibráteis de nosso ser geralmente pouco acessados na atualidade, em virtude da propalada facilidade com que acessamos bens e serviços a um simples click que contribui para mover a produção industrial em massa, não é menos verdade que continua a produzir seus efeitos no corpo e reverberar em condições existenciais atuais.

Vivi isso intensamente no tempo em que estive imersa no ateliê. Corpo doendo, vista cansada, assim terminavam meus dias. O trabalho manual nos impõe uma disposição corporal não habitual aos nossos tempos inquietos, ultrarrápidos. Sua densidade não passa despercebida à concretude do corpo: nem ao meu, desabituado ao exercício artesanal prolongado, nem ao das pessoas que trabalhavam no ateliê, mesmo acostumados e mais tecnicamente preparados à repetição variável da linha com a agulha.

Concentrar-se por horas, literalmente, a fio é um desafio ao modo de nosso pensar cafetinado6, ao bombardeio de imagens e informações em ritmo acelerado, que compassam nossa capacidade de atenção, e à própria existência à mesma velocidade. Mais ainda, é a combinação do exercício manual com o ritmo do labor e da vida sob a égide da lógica de produção capitalista: as manualidades ocupavam-nos por oito, dez, doze horas diárias, diferentemente do ritmo que se impunha à vida quando eram as artesanias que a produziam materialmente (Carvalho & Bendassolli, 2019). Premido pela necessidade de um compromisso assumido - preparar uma coleção para um desfile - o tempo lento artesanal demandava exceder-se nas horas e, de certo ângulo, vir conjugado com a pressa da costura à máquina.

Tal era a condição para o trabalho manual persistir na prática artística que se realizava no ateliê, tal é a condição da preservação de fazeres tradicionais conciliada ao sistema de moda regido por estratégias financeiras e objetivos comerciais. São planos ideológicos cuja possibilidade de coexistência manifesta “a expressão mais pura e mais autêntica do espírito do capitalismo”, afirma Bakhtin (2018, p. 20). Está o autor referindo-se à construção do romance polifônico de Dostoiévski e, aqui, serve-nos a aventar condições de possibilidade do trabalho à mão interagir, conviver, tensionar, contradizer e visibilizar a coexistência de forças e a simultaneidade de vozes plurais e, irremediavelmente, contraditórias, constitutivas de nosso estado social atual. Convida-nos também a questionar: seria o trabalho manual coagido ao tempo, se a lógica sob a qual a criação estivesse submetida divergisse dessa que nos designa o capitalismo neoliberal e financeirizado?

O modo como a costura manual coexiste, confronta e se organiza pela lógica capitalista operante no sistema de moda encontra uma formação singular no trabalho desenvolvido por Fernanda Yamamoto e equipe. As três bordadeiras “extras” que vieram somar ao grupo foram essenciais, pois os bordados pareciam não ter fim; o tempo, no entanto, urgia. Na agilidade das mãos dessas mulheres, flagrava-se a ação costumeira: depois que “pegavam o jeito” da proposta, rapidamente, enlaçavam a linha ao tecido e os motivos iam se fazendo enquanto conversavam entre si.

Vigotski (2018) diz que criar um hábito, como o bordado, implica esforço, continuidade e atenção, até que se torne um modo automático de comportamento no qual já perdemos a noção precisa do movimento executado. Contudo, para que o corpo não se repita infinitamente, Vigotski (2018) explica que, à repetição de movimentos, associa-se o efeito da exaustão do organismo, impedindo que a mesma ação reflexa predomine ante as demais e que outras reações possam surgir. A exaustão funciona, assim, como uma “destruidora de hábitos” e colabora para a diversificação de nossas respostas diante da diversidade dos fenômenos da vida. Do hábito à exaustão, há um ínfimo ou um infinito da potência criadora humana. Aí encontramos também a dinâmica em que se tramava o ateliê no processo de materialização do projeto dos quimonos. É sobre uma expertise técnica que podem criar obras e a si mesmos; justamente porque muitas habilidades técnicas foram automatizadas é que o corpo pode levar suas energias a objetivos mais amplos.

Entrelinhas

Se o grande projeto coletivo de criação da performance/exposição reorganizava provisoriamente a dinâmica do ateliê, a produção comercial, mesmo secundária, não parava. Como se sustentaria, afinal, aquela produção artística? Ossos, ou melhor, veias artísticas em tempos capitalísticos; não há descanso, é preciso continuar produzindo e alimentando a economia de mercado, pois o retorno financeiro advindo é o que sustenta o próprio ateliê. Fernanda Yamamoto é uma marca, uma empresa que vende roupas.

Há diálogos entre esses dois processos, da produção voltada ao mercado e da criação para o SPFW, mas também diferenças importantes. As coleções comerciais representam o momento em que o modo de fazer do ateliê aproxima-se ao modo de fazer roupas estabelecido no mundo da moda: a criação é pré-determinada pelo perfil da clientela e a produção das roupas, em quantidade, é terceirizada às oficinas. Apenas as peças-piloto são feitas no ateliê. O processo de trabalho diverge da situação de criação artística, em que pensar e fazer estão amalgamados; neste momento, criar e produzir podem se dissociar, fragmentam-se e regulam-se de acordo com a lógica da divisão do trabalho, as funções de cada pessoa estão previamente delimitadas.

Mas há espaços para brechas, para resistências, e a produção comercial emprestava momentaneamente seu papel protagonista, sua gente e seu espaço ao projeto artístico7 de construção da performance/exposição. Ainda que as exigências do mercado permanecessem marcando o ateliê, eles e elas pausavam as máquinas, em determinados momentos, ou subvertiam seus funcionamentos “normais”: paravam de pensar nos gostos das clientes, no que ia vender, para fazer arte.

A arte é uma força organizadora do organismo, diz Vigotski (1998, 2018), dela, não decorrem ações imediatas, reações concretas, sua função é muito mais sutil e nem por isso deixa de exigir respostas. A arte age sorrateiramente por meandros subterrâneos da nossa subjetividade, das nossas ações, do nosso corpo; dá acesso às profundezas sensoriais e orienta-nos para o futuro. Ela prepara o corpo como prepara-se o ateliê para o ano todo, estimulando e revelando-se em potencialidades que, sem sua mobilização, permaneceriam esquecidas. O que conta Marina nos dá pistas desses modos clandestinamente sensibilizadores da arte operar:

- Quando passa o desfile, todos voltam a trabalhar quietos, a gente passa uma semana num luto coletivo… (Marina)

A adrenalina dos prazos, a conexão que se produz durante o processo de criação coletiva, a expectativa com o resultado da performance/exposição e sua aceitação pelo público, tudo contribui para o envolvimento de todos/as/es e o dispêndio de energia no entretecer de panos, linhas e formas. Passado o furacão, o retorno à calmaria produz um sentimento, como diz Marina, de luto, de perda de algo que não sabe precisar. A resposta que a arte movimenta no ateliê escapa à precisão, mas imprime seus rastros na experimentação, no adensamento das relações, na produção de experiências compartilháveis, opera na concretude dos corpos. Ao pararem para fazer arte, abrem respiro ao hábito que marca o cotidiano da produção comercial. Na exaustão de um momento, criam possibilidades de vida ao outro, potencialização recíproca. Uma noite, no ateliê, em que restou somente Val, Jeon e Netto, perguntei:

- Como vocês acham que seria o trabalho aqui se não houvesse essa parada para o desfile?

- Eu não estaria aqui. (Val)

- Acho que não seria a Fê, não existiria a marca. (Jeon)

Fernanda Yamamoto produz arte e vende roupas. Criação artística e comercial se mesclam no ateliê, não termina uma e começa outra, ambas vão se fazendo infinitamente. Os resultados que alcançam frutificam do trabalho criativo e produtivo que empregam ao longo do tempo, das aprendizagens resultantes da experimentação, do exercício técnico, das formulações novas, da flexibilidade nas atividades que desempenham, das esferas perceptuais que mobilizam continuamente, do reconhecimento externo, dos vínculos relacionais, da valorização do trabalho coletivo e do senso de comunidade que daí emerge.

Coexistência de produção de arte e produção de roupas comerciais circundando o mesmo espaço e a mesma gente, cujos efeitos reverberam ao longo do tempo de maneiras inesperadas. Se podemos dizer algo a esse respeito, é que a possibilidade de Fernando Jeon criar um bolso deslocado e a possibilidade de Fernanda Yamamoto inventar uma moda deslocada rondam a sutileza prolongada das linhas tramadas pelo fio continuum do tempo. Entre um deslocamento e outro, germinam oportunidades de deslocamentos das costuras: para além das roupas, das costuras subjetivas.

Ao desafiarem práticas dominantes de fazer roupa e fazer moda, buscando vias que acessem o fazer artístico coletivo e resguardem o fazer manual, desdobrados em trabalhos de experimentação constante, tanto firmam resistências aos modos de subjetivação cafetinados pelo capital, quanto instauram desvios propícios à reconexão da força de criação vital ao saber do corpo (Rolnik, 2019; Urnau, 2021). Enquanto experimentam modos de fazer, de sentir e de vestir, experimentam a si mesmos: podem explorar caminhos de pensamento, de religação de seus micro cérebros, de escuta dos afetos, desejos e seus efeitos no corpo, dando passagem a eles na materialização de suas criações. No acontecimento desses devires é que se pratica a reapropriação da potência de criação individual e coletiva, um exercício que “se torna possível por breves e fugazes momentos e cuja consistência, frequência e duração aos poucos se ampliam, à medida que o trabalho avança” (Rolnik, 2019, p. 37). Por esse ângulo, flagramos também a criação de modos dissidentes de subjetivação no sentido, conforme sinaliza Salles (2016), acerca do processo criador artístico: as (re)invenções de roupas, de si e do coletivo qualificam-se na persistente continuidade do processo.

Nessa direção, aprendemos com Rolnik (2019) que mover políticas de produção de subjetividade e de desejo em territórios divergentes ao regime vigente configura-se na arena do embate, produz-se em tensão constante às formas multiplicantes que o capital engendra à expropriação da nossa potência de criação conectada à vida, a fim de manter seu motor em funcionamento.

Ao refletirem sobre esse choque de forças, os escritos de Bakhtin (2018) contribuem para uma articulação imprescindível: podemos pensar o funcionamento do ateliê, imerso no sistema de moda, como a colisão de mundos, um entrelaçamento contraditório de múltiplos campos sociais objetivados naquela realidade específica. Quer dizer, interpretar sua dinâmica implica vislumbrar que a interação simultânea desses planos ecoa as forças e vozes coexistentes e contraditórias de nossa época e, sendo inconciliáveis, dispõem-se eternamente ao diálogo, ao movimento da respondibilidade que não cessa, não vê fim, nem vencedor. Dito pelas palavras do próprio Bakhtin (2018, p. 20): “em cada átomo da vida vibra essa unidade contraditória do mundo capitalista e da consciência capitalista, sem permitir que nada se aquiete em seu isolamento, mas, simultaneamente, sem nada resolver”.

Linhas finais de um tramado inacabável

Ao analisar o processo de criação, por Fernanda Yamamoto e equipe, de uma performance/exposição, para a primeira edição presencial pós-pandemia do SPFW, encontrei pessoas, materiais, uma loja, uma grande sala de ateliê, um quintal. Bakhtin (2011) nos ensina que não acessamos diretamente o processo criador, dele só podemos ver o que está sendo criado; sendo, no gerúndio, corrobora Salles (2016). Assim, participar desse processo, lançar o próprio corpo ao movimento de criação naquele espaço-tempo, foi o modo como a investigação aconteceu. A proximidade pregressa com a moda, que já tinha me levado a familiarizar-me com técnicas básicas da construção da roupa - costura, descostura, corte, modelagem, dentre outras -, foi essencial para a convergência de nossos modos de criar e fazer arte vestível e pesquisa, para a profundidade de aventurar a inteireza do corpo no processo e poder enlaçar seus vestígios aos diálogos que se entreteceram nesta escrita.

O encontro dessas nossas habilidades só pode acontecer porque abraçaram-me com seus modos de fazer coletivos. Não me refiro apenas à feitura das peças, mas ao abraço na dimensão do convívio: estreitaram-me aos seus laços já apertados e, em pouco tempo, permitiram-me pertencer a um coletivo. Em tempos nos quais processos individualizadores esvaem nossos sensos comunitários e humanitários, esses pequenos atos tornam-se imensos.

Há, ainda, uma consideração a respeito dessa trama que ficou latente e pede passagem. A arte produzida por Fernanda Yamamoto e equipe pode driblar os cânones da moda e se estender ao público em geral, está ao alcance de quem pode acessar os meios virtuais das redes sociais, ou a arte no contexto brasileiro, se podemos colocar assim. As roupas produzidas e vendidas em sua loja, seguramente, não. A estas, apenas acessam quem pode desembolsar uma quantia considerável para adquirir uma peça de roupa. No entanto, considerando as discussões apresentadas sobre as relações entre arte, criação artística, criação comercial e os valores e dinâmicas que se firmam no contexto de produção de Fernanda Yamamoto, o que nos salta às vistas é uma problematização que ronda os modos de criação e de produção estruturados pelo sistema capitalista hiperfinanceirizado, a amortecer o potencial criativo, entusiasmar o consumo desenfreado, a produção hiperexplorada e a descartabilidade inconsequente. Parece que essa é a questão mais urgente, a necessária desigualdade social e econômica que este mesmo sistema engendra em seus modos de produção de existência para manter-se operante.

Investigar o ateliê de Fernanda Yamamoto possibilitou perceber contradição e nexo de reciprocidade entre o ateliê e o sistema de moda: trabalham artisticamente com a moda ao mesmo tempo em que produzem comercialmente peças de vestuário. Não há conciliação. As brechas que encontram a subverter o vício subjetivo que alimenta as respostas prontas diante da vida traduzem-se no modo singular de produzirem arte e moda em momentos que se retroalimentam, tensionam, respondem um ao outro e ao mundo simultaneamente.

Quanto cabe num bolso, simples ou complexo que seja, afinal? Falha qualquer tentativa de mensuração, de precisão, de sistematização; melhor seria se demorar nas qualidades contínuas das linhas que sutilmente o preenchem de tato, de escuta, de olhares, de paladares, de sensações e afecções, e gestam o deslocar ínfimo ou infinito, mas consistente, de modos de (re)criar roupas, modas, vidas, convívios, subjetividades.

Referências

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Notas

  • 1
    Neste trabalho, compreendo a moda como fenômeno social cujas raízes remontam ao advento da modernidade, com a qual compartilha valores cruciais, como a abolição da tradição, a valorização do novo e o culto ao indivíduo. Antes reduzida à esfera do vestuário, atualiza-se, no século XXI, ao regime hipercapitalista, como lógica operante em escala global, maquinando outros domínios da vida, como a arte, o mobiliário, o comportamento, a arquitetura, e a ordem de produção, comunicação, distribuição e consumo no ritmo acelerado da renovação perpétua dos modelos, estilos e programas. Para aprofundamento da discussão, ver Lipovetsky (2009) e Lipovetsky & Serroy, (2015).
  • 2
    O presente artigo apresenta resultados de pesquisa de mestrado realizada junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da mesma universidade.
  • 3
    Para aprofundamento da discussão do quimono como construção vestimentar e expressão cultural nipônica, ver Luu & Mckinney (2021) e Ribeiro & Santos (2017).
  • 4
    A coleção em análise neste artigo consiste no segundo projeto de Fernanda Yamamoto desenvolvido em parceria com a comunidade Yuba. Compartilham, a estilista e essa comunidade, práticas que remetem à ascendência japonesa: suas formas de trabalhar se aproximam: na valorização do tempo desacelerado; na coletividade e na manualidade; na não produção de lixo e no desenvolvimento da coleção sem resíduos (conhecido como zero waste no mundo da moda); no culto aos ancestrais e na atualização de suas memórias em práticas do presente (Barbosa, 2020).
  • 5
    Os três quimonos originais de Yuba escolhidos para serem retrabalhados na coleção foram feitos com reaproveitamento de saco de ração de galinha, tecido grosso de fibra de algodão.
  • 6
    Suely Rolnik (2019) denomina de cafetinagem o modo como o regime colonial-capitalístico se apropria do modo de produção de nossa subjetividade. A força motora da atual fase do capital é a própria potência de criação individual e coletiva de novas formas de realidade; da exploração cultural e subjetiva, e não só econômica, é que a nova dobra capitalista extrai sua força.
  • 7
    Importante se faz pontuar que, mesmo que o ateliê se caracterizasse como coletivo dedicado exclusivamente a criações artísticas, não estaria apartado da lógica mercantil, ainda que sob a égide de produtos reconhecidos como obras de arte. Afinal, arte e mercado não são realidades excludentes a idade romântica sucumbiu à atual versão capitalista, mundializada, financeirizada, estetizada, foi integrada ao seu funcionamento (ver Lipovetsky & Serroy, 2015).
  • Financiamento
    A pesquisa de mestrado da qual foi originado o artigo em submissão foi financiada com bolsa de pós-graduação do programa de demanda social CAPES, nº. Processo 88887.498834/2020-00.
  • Autorização de uso de imagem
    Não se aplica.
  • Aprovação, ética e consentimento
    O projeto de pesquisa, a partir do qual o texto foi produzido, foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sob o parecer número 5.478.883.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2022
  • Revisado
    26 Jul 2022
  • Aceito
    19 Dez 2022
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