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“NÃO SOU MUITO AMIGO DE AUTORIDADES”: O PADRE ANTÓNIO VIEIRA E A TRADIÇÃO

“I am not a Great Friend of the Authorities”: Father António Vieira and Tradition

RESUMO

Não é raro colar ao padre António Vieira a etiqueta do “messianismo” – o que aconteceu até com ilustres vieiristas –, mas isso é claramente um erro. Ao Tribunal do Santo Ofício de Coimbra, o jesuíta confessou ser “milenarista”, simplesmente porque acreditava no advento de um “novo estado” da Igreja, que ele denominava “Reino de Cristo consumado na Terra” e que identificava com o novo éon anunciado pelos profetas veterotestamentários e iniciado em Jesus Cristo (ver A chave dos profetas). O tema aqui abordado – a relação de Vieira com a tradição – permite compreender a sua determinação em dar uma resposta nova a uma nova realidade: a possibilidade de evangelização (e conversão) do mundo inteiro.

PALAVRAS-CHAVE
Escritura; Padres da Igreja; Teologia; Tradição

ABSTRACT

It is not uncommon to stick to Father António Vieira the label of “messianism” – which has even happened to illustrious “vieirists” – but this is clearly a mistake. To the Coimbra’s court of the Holy Office, the Jesuit confessed to being a “millenarian”, simply because he believed in the advent of a “new state” of the Church, which he called “the Kingdom of Christ consummated on Earth” and which he identified with the new eon announced by the Old Testament prophets and initiated in Jesus Christ (see The Key of the Prophets). The theme addressed here – Vieira’s relationship with tradition – allows us to understand his determination to give a new answer to a new reality: the possibility of evangelization (and conversion) of the whole world.

KEYWORDS
Church's Fathers; Theology; Tradition; Scripture

Introdução

O séc. xvii caracteriza-se por ser um período em que o conceito de tradição se tornou problemático, ou até conflitual.1 1 Para a contextualização do tema, servimo-nos sobretudo do estudo de SESBOÜÉ, 2002. Depois que Lutero contestou a reivindicação da Igreja romana a favor da autoridade de muitas das suas tradições, ensinamentos e instituições,2 2 Lutero acusava a Igreja romana de colocar todo o tipo de coisas, muitas das quais qualificadas por ele de “invenções humanas”, ao mesmo nível do Evangelho (SESBOÜÉ, 2002, p. 218). para protestantes e católicos, as “tradições” – ou, paulatinamente, a “Tradição” – foram objeto de uma grande investigação histórica, fundada no “retorno às fontes”. Aliás, esse movimento ad fontes já vinha desde o século anterior: procuravam-se os textos originais, gregos e latinos, submetendo-os depois a uma nova leitura crítica. O desenvolvimento da tipografia e a possibilidade de editar os antigos textos3 3 No início do séc. xvi, Jean Amerbach, livreiro e tipógrafo de Basileia, lançou-se numa empresa de publicação da opera omnia dos quatro grandes doutores da Igreja latina, sendo depois o testemunho retomado por Erasmo. Ao logo dos sécs. xvi e xvii, essa empreitada continuou em várias cidades – Antuérpia, Roma (Vaticano), Augsburg, Paris –, até às grandes edições críticas dos beneditinos da Congregação de Saint-Maur. Ao mesmo tempo, outros procuravam constituir uma “Biblioteca dos Padres”, desde a experiência de Jean Sichart (Antidotum contra diversas omnium fere saeculorum haereses, 1528) até à Sacra Bibliotheca (1575-1579) de Marguerin de la Bigne, que foi crescendo até conter 27 volumes na Maxima Bibliotheca de 1677. trouxe ainda consigo a questão da “autenticidade”, e “manipulação” de antigos manuscritos; foi necessário comparar versões, corrigir uns pelos outros, num esforço incomensurável. Depois, o estudo desses textos antigos e a análise crítica do seu conteúdo levou, nalguns casos, a rever ideias adquiridas acerca da história antiga.4 4 Mais do que uma revisão, o estudo dos textos antigos e a análise crítica dos mesmos deram origem a uma nova historiografia religiosa. Do lado protestante, refira-se a Magdeburgica Centuria (1559-1574), em 13 volumes, dirigida por Matias Fácio Ilírico. Do lado católico, os Annales ecclesiastici (1588-1607), em 12 volumes, iniciados por César Barónio e continuados por outros autores (Bzovius, Rinaldi, De Sponde, etc.).

O novo conceito de “tradição” emergente está na origem de um duplo debate. O primeiro, entre protestantes e católicos, e que teve lugar na literatura controversista de ambos os lados. Todos recorrem aos textos dos antigos Padres da Igreja para provar que os seus testemunhos justificam as doutrinas respetivas. De um modo muito claro, o estudo e análise dos antigos textos são colocados ao serviço dos seus pontos de vista confessionais (SESBOÜÉ, 200215 SESBOÜÉ, B. L’autorité de la tradition. In: LAUX, H., e SALIN, D. (Dir). Dieu au xviie siècle: crises et renouvellements du discours. Une approche interdisciplinaire (p. 213-239). Paris: Eds. Facultés Jésuites de Paris, 2002., p. 215; QUANTIN, 200711 QUANTIN, J.-L. L’Augustin du xviie siècle? Questions de corpus et de canon. In: DEVILLAIRS, L. (Org.). Augustin au xviie siècle. Actes du colloque organisé par Carlo Ossola au Collège de France les 30 septembre et 1er octobre 2004 (p. 3-77). Firenza: Leo S. Olschki Editore, 2007.). Mas, durante o séc. xvii, surgem ainda grandes debates internos ao catolicismo, nos quais é também questão a “tradição”, que envolveram duas correntes: o jansenismo e o galicanismo. Do ponto de vista dogmático, como observou Yves Congar, Seiscentos foi um período marcante de afirmação do magistério pontifício, não apenas como um dos elementos da tradição da fé, mas sobretudo no sentido atual de “magistério vivo”, de “expressão autorizada e autoritária da tradição da fé”, “encarregada de modo permanente pela regulação da fé” (SESBOÜÉ, 200215 SESBOÜÉ, B. L’autorité de la tradition. In: LAUX, H., e SALIN, D. (Dir). Dieu au xviie siècle: crises et renouvellements du discours. Une approche interdisciplinaire (p. 213-239). Paris: Eds. Facultés Jésuites de Paris, 2002., p. 213),5 5 Este tema foi estudado por NEVEU, 1981. a ponto dos concílios se tornarem desnecessários! Nestes debates internos, as teologias jansenista e galicana opõem precisamente a “tradição” ao “magistério”, questionando este último a partir da primeira.

É com este enquadramento que vamos abordar a problemática da tradição, primeiro, em Trento e na teologia contrarreformista, e, depois, no padre António Vieira.

1 Trento e a tradição

Falar de tradição é, antes de mais, referir a tradição apostólica enquanto “ato original da transmissão da fé, que foi realizada de maneira viva pela geração dos apóstolos” (SESBOÜÉ, 200215 SESBOÜÉ, B. L’autorité de la tradition. In: LAUX, H., e SALIN, D. (Dir). Dieu au xviie siècle: crises et renouvellements du discours. Une approche interdisciplinaire (p. 213-239). Paris: Eds. Facultés Jésuites de Paris, 2002., p. 213). Esta é a tradição normativa para todas as gerações dos cristãos, até porque dela brotam as próprias Escrituras. Em seguida, ela é completada pela “tradição pós-apostólica”, que é “a transmissão da mesma fé através dos séculos da Igreja” (SESBOÜÉ, 200215 SESBOÜÉ, B. L’autorité de la tradition. In: LAUX, H., e SALIN, D. (Dir). Dieu au xviie siècle: crises et renouvellements du discours. Une approche interdisciplinaire (p. 213-239). Paris: Eds. Facultés Jésuites de Paris, 2002., p. 214). Esta tradição eclesiástica, fiel à primeira, é a que nos permite estar certos de que a fé atual é a mesma fé recebida dos apóstolos. Para reconhecê-la, é necessário discernir a sua presença entre os “testemunhos da fé” a partir de dois critérios: 1.º, “o critério do compromisso da Igreja através dos seus representantes oficiais”, que envolve o sensus fidelium, as definições dogmáticas conciliares, ou as afirmações doutrinais dos pontífices; 2.º, “o critério da recorrência: se uma doutrina é ensinada de maneira constante através dos séculos por um grande número de testemunhas” (SESBOÜÉ, 200215 SESBOÜÉ, B. L’autorité de la tradition. In: LAUX, H., e SALIN, D. (Dir). Dieu au xviie siècle: crises et renouvellements du discours. Une approche interdisciplinaire (p. 213-239). Paris: Eds. Facultés Jésuites de Paris, 2002., p. 214), nomeadamente os Padres antigos, ou os doutores (teólogos) e canonistas.

Uma vez contestada a autoridade das “tradições” por parte de Lutero e outros reformadores, o concílio de Trento viu-se na obrigação de lhes responder. No entanto, olhando para o texto definitivo do decreto, e para aquilo que foram as discussões ao longo de dois meses,6 6 O concílio de Trento teve a sua sessão inaugural a 13 de dezembro de 1545. As 2.ª (18 de janeiro de 1546) e 3.ª (4 de fevereiro de 1546) sessões foram ainda preparatórias. Mas logo a seguir, a partir de 7 de fevereiro, começaram os trabalhos sobre um futuro documento que trataria da questão da relação entre “tradições” (os padres conciliares usam quase sempre o termo no plural) e Escrituras. Veja-se SELBY, 2003, p. 32-53; e WACKENHEIM, 1981. constatamos que os padres conciliares agiram com prudência, abertura e sem fechar as portas ao diálogo. Embora durante as discussões se tenha falado sempre de “regra”, o documento final descreve o Evangelho7 7 Note-se que o concílio fala de “pureza do Evangelho”, recorrendo portanto a uma linguagem muito próxima à de Lutero (SESBOÜÉ, 2002, p. 219). – promulgado por Jesus e pregado pelos apóstolos – como “fonte de toda a verdade salutar e de toda a ordem moral” (DH, 15017 DENZINGER, H.-HÜNERMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja católica (trad. de J. M. Luz e J. Konings). São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007.). Esta mudança, para “fonte”, impediria de pensar numa dupla fonte de revelação, como depois veio a acontecer na teologia contrarreformista.8 8 Antes de mais, referia-se que o mesmo termo será retomado no concílio Vaticano II, provavelmente por mão de Y. Congar (COFFEY, 1994, p. 51). A razão está no aceso debate acerca das “duas fontes” da Revelação, que ocorreu poucos anos antes do concílio Vaticano II, provocado precisamente pela publicação, no início do séc. xx, das atas do concílio tridentino (para todo esse debate, ver SELBY, 2013). Por essa mesma razão, o texto final evita também a fórmula partim-partim dos debates,9 9 Durante os debates, o cardeal G. Maria del Monte, um dos três legados pontifícios (e futuro papa Júlio III), propusera que a Revelação divina era transmitida, na Igreja, em parte (partim) pelas Escrituras e em parte (partim) pela tradição oral. O geral dos Servitas, Augustin Bonuccio opôs-se a essa conceção, defendendo que as tradições não são um complemento às Escrituras, mas antes uma interpretação autorizada das mesmas (WACKENHEIM, 1981, p. 239). introduzindo a partícula et: “vendo claramente que essa verdade [salutar] e ordem [moral] estão contidas em livros escritos e tradições não escritas que [...] chegaram até nós” (DH, 15017 DENZINGER, H.-HÜNERMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja católica (trad. de J. M. Luz e J. Konings). São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007.). Mais: se em relação aos “livros escritos” os padres conciliares acham por bem mencioná-los, o mesmo não acontece com as “tradições não escritas”: “seguindo o exemplo dos Padres ortodoxos, recebe e venera, com igual sentimento de piedade e igual reverência, todos os livros tanto do Novo como do Antigo Testamento, já que o mesmo Deus é o autor de ambos, e igualmente recebe e venera as tradições concernentes tanto à fé como aos costumes” (DH, 15017 DENZINGER, H.-HÜNERMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja católica (trad. de J. M. Luz e J. Konings). São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007.).10 10 A referência aos Padres ortodoxos é uma alusão à fonte por detrás desta passagem, a saber, S. Basílio (Sobre o Espírito Santo, 27, 66), que refere as tradições “secretas” transmitidas durante o catecumenato. Uma última precisão é de suma importância, porque tem em conta a crítica de Lutero: não são todas as tradições que merecem veneração, mas apenas as que dizem respeito “à fé” e “aos costumes”.

Na mesma data, o concílio aprovou um outro decreto – Insuper – relativo à Vulgata e ao modo de interpretar as Escrituras. Nele, precisamente, os padres conciliares fazem referência aos dois critérios de discernimento das “testemunhas da tradição” pós-apostólica:

[...] para refrear certos talentos petulantes, estabelece que ninguém, confiando no próprio juízo, ouse interpretar a Sagrada Escritura, nas matérias de fé e de moral que pertencem ao edifício da doutrina cristã, distorcendo a Sagrada Escritura segundo seu próprio modo de pensar contrário ao sentido que a santa mãe Igreja, à qual compete julgar do verdadeiro sentido e da interpretação das sagradas Escrituras, sustentou e sustenta; ou ainda, contra o consenso unânime dos Padres, mesmo que tais interpretações não devam vir a ser jamais publicadas (DH, 15077 DENZINGER, H.-HÜNERMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja católica (trad. de J. M. Luz e J. Konings). São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007.; cursiva nossa).11 11 O consenso unânime dos Padres foi defendido na Antiguidade por Vicente de Lérins, no seu Commonitorium; um texto que foi publicado por Jean Sichart, no seu Antidotum (1528).

2 A teologia pós-tridentina

A teologia controversista da Contrarreforma não parece ter tido a prudência revelada pelos padres conciliares. Se Trento, cautelosamente, dava liberdade aos teólogos para pensarem a relação entre “livros escritos” e “tradições não escritas”, os mais influentes dentre estes rapidamente recuperaram a linguagem do partim-partim, o que levou à conceção de duas fontes da revelação. Assim aconteceu com Afonso de Castro (na reedição da sua obra Adversus omnes haereses libri XVI, 1556), Melchior Cano (De locis theologicis, 1562) e, sobretudo, os jesuítas Pedro Canísio (Summa doctrinae christianae, 1554) e Roberto Bellarmino (Disputationes de controversiis christianae fidei, 1581-1593) (MARTINS, 19646 MARTINS, J. S. Escritura e tradição segundo o Concílio de Trento. Divus Thomas, 67, 3/3, 1964, p. 183-277., p. 183-277).

A obra póstuma de Cano, em que pese o concílio de Trento não ter ainda terminado, representa já uma espécie de receção dos decretos da primeira fase do concílio,12 12 Cano cita diretamente o decreto Sacrosancta, sobre os livros sagrados e as tradições, no livro dedicado ao segundo lugar teológico, as “tradições apostólicas” (De locis, iii, 6), e ainda no livro sobre os concílios (De locis, v, 5). Refere-se ainda à mesma sessão conciliar no livro sobre a Igreja, para referir o sensus fidelium (De locis, iv, 4). na qual o teólogo espanhol não participou diretamente (apenas participaria na segunda fase). Nela expõe um decálogo de “lugares teológicos” para usar na argumentação teológica (livros ii a xi): 1.º, a Sagrada Escritura; 2.º as tradições de Cristo e dos apóstolos; 3.º a Igreja católica; 4.º os concílios; 5.º, a Igreja romana; 6.º, os santos [Padres] antigos; 7.º, os teólogos escolásticos e canonistas; 8.º, a razão natural; 9.º os filósofos e juristas; 10.º, a história humana (BELDA PLANS, 20133 BELDA PLANS, J. Melchor Cano. Madrid: Biblioteca Virtual Ignacio Larramendi de Polígrafos, 2013; texto online: http://www.larramendi.es/es/poligrafos/estudios.do [consultado a 3.5.20].
http://www.larramendi.es/es/poligrafos/e...
, p. 51). Quando refere o valor probatório de cada um desses lugares, ele realiza uma hierarquização dos mesmos. Primeiro, distingue entre lugares “próprios” à argumentação teológica (1 a 7) e lugares “estranhos” (8 a 10); depois, entre os lugares “próprios”, distingue ainda os dois primeiros (Escrituras e tradições apostólicas), que contêm ambos a revelação e, por conseguinte, possuem o máximo valor e força argumentativa, e os restantes cinco (Igreja, concílios, papa, santos Padres e teólogos e canonistas), embora com valor desigual na argumentação: se os eclesiais (Igreja [i.e., sensus fidelium], concílios e papa) podem ser infalíveis, os testemunhais (Padres e teólogos e canonistas) são de argumentação provável, a não ser que, em certas doutrinas, haja um consenso unânime de todos. E ao afirmar que “toda a fé está contida na autoridade das Escrituras e da Igreja” (De locis, ix, 1; CANO, 20064 CANO, M. De locis theologicis (ed. preparada por J. Belda Plans). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2006., p. 495), Cano prepara o caminho às reflexões posteriores de Roberto Bellarmino e faz com que alguns refiram uma boa parte dos lugares teológicos que descreve (2 a 7) como “lugares da tradição” (SCHMUTZ, 201613 SCHMUTZ, J. Edmond Ortigues, théologien entre deux conciles. Archives de sciences sociales des religions, 173, 2016, p. 53-54., p. 53-54).

Mas o teólogo mais influente da Contrarreforma seria, sem dúvida, Bellarmino. Ele regressa claramente à linguagem usada nos debates conciliares, como se ela não tivesse sido alterada no documento final! Afirma, então, que “a regra total da fé é a palavra de Deus ou a revelação divina feita à Igreja, que se divide em duas regras parciais, a Escritura e a Tradição” (BELLARMINO, s.d.). As “tradições” tornam-se “a Tradição”, com maiúscula, e Escritura e Tradição passam a ser consideradas como “duas fontes” da revelação divina (ARMOGATHE, 19891 ARMOGATHE, J.-R. (Dir.). Le Grand Siècle et la Bible. Paris: Beauchesne, 1989., p. 19).13 13 O próprio Catecismo Romano, de 1566, favorece também a conceção das duas fontes (MARTINS, 1964, p. 207). A opinião de Bellarmino tornar-se-ia o ensinamento ordinário até ao séc. XX. Fundados na argumentação desenvolvida pelo teólogo jesuíta na obra citada, a maioria dos teólogos católicos valorizavam cada vez mais a Tradição, muitas vezes em detrimento das Escrituras.

3 Vieira, entre a fidelidade e a inovação

Num dos seus primeiros sermões, o “Sermão ao enterro dos ossos dos enforcados”, pregado na Misericórdia da Baía em 1637 – era ele um jovem sacerdote de 29 anos –, Vieira tem um desabafo surpreendente: “Não sou muito amigo das autoridades, porque raramente se podem ajustar com quem disser o que não está dito” (VIEIRA, II, XIV, p. 9816 VIEIRA, A. Obra Completa Padre António Vieira (dir. por J. E. Franco e P. Calafate). 4 t., 30 vols.. Lisboa: Círculo de Leitores, 2013-2014.). Porém, este não é um simples desabafo ocasional, já que encontramos ecos dele noutros escritos posteriores, como aquele toque de ironia no capítulo 5 do livro II da História do futuro – “Vindo às autoridades (como dizem) dos Padres, concedemos facilmente que são poucos os lugares de seus escritos em que se ache expressamente e em próprios termos o Reino temporal de Cristo” (VIEIRA, III, I, p. 480) –, ou a reveladora passagem do “Sermão XVIII” da série Maria Rosa Mística: “E bastam estas autoridades, tão graves [...]? Não bastam; porque nenhum destes autores chega a dizer o que Eu digo” (VIEIRA, II, IX, p. 110).

As mencionadas “autoridades” são os “lugares teológicos” de Melchior Cano, particularmente as chamadas “testemunhas da tradição”, a saber: os Padres antigos e os doutores (i.e., os teólogos escolásticos) e canonistas. Não inclui, claramente, as Escrituras (e as tradições apostólicas): “Baste de autoridades, posto que tais, e tão grandes, que elas só bastavam. Vamos às Escrituras, e à experiência” (VIEIRA, II, IV, p. 361). Parece incluir, embora com um estatuto diferente, os lugares teológicos que Cano julgava infalíveis (o consenso de todos os fiéis, as declarações conciliares e o magistério do pontífice): “Finalmente, para que a tão grandes autoridades [= Padres] ajuntemos, e ponhamos o selo de outra maior [= o concílio de Éfeso]” (VIEIRA, II, IX, p. 130).

A falta de “amizade” pelas autoridades, em Vieira, prende-se com a liberdade de reflexão teológica, que ele muito preza. Por isso, na sua obra, ele move-se entre uma fidelidade ao projeto contrarreformador tridentino (mais claro na parenética) e o desafio de dar respostas novas a realidades novas (na profética e papéis vários). Precisamente por isso, a tradição pode ser um problema, bem como o recurso aos antigos Padres.

3.1 Problemas com a tradição

Na sua obra, Vieira move-se entre a linguagem tridentina e a reflexão bellarminiana, que ele conhece muito bem. Isso mesmo se nota na hesitação terminológica entre “tradições” e “tradição”. No fundo, evidentemente, está a controvérsia contra os protestantes. No “Sermão XI” da série Maria Rosa Mística, um sermão de controvérsia que visa combater a heresia, o pregador jesuíta dá conta da contestação da tradição por parte dos reformadores: “Os hereges modernos negam a Fé das tradições, e dizem que só se há de crer o que se lê nas Escrituras sagradas” (VIEIRA, II, VIII, p. 315; cursiva nossa). Estas “tradições” são tanto as apostólicas, como referido no “Sermão do primeiro domingo do Advento” de 1644 – “Nem todas as sentenças de Cristo estão escritas no Evangelho: algumas ficaram somente impressas na tradição de Seus Discípulos” (VIEIRA, II, I, p. 135)14 14 No “Sermão de Todos os Santos”, de 1643, ele fala por seu turno de “tradições Apostólicas sucessivamente continuadas” (VIEIRA, II, XI, 500). –, como as eclesiásticas em geral, referidas na Apologia (1663) – “As tradições da Igreja, como definem todos os teólogos, são verdades reveladas por Deus não escritas, mas comunicadas e conservadas na mesma Igreja com a mesma certeza e verdade infalível que têm as escrituras” (VIEIRA, III, III, p. 237). No papel sobre a via-sacra, Vieira ecoa o decreto conciliar, falando de uma “fonte” original:

e desta doutrina de Cristo, como de sua primeira fonte, manaram todos os princípios da Fé, que por continuada tradição, passando deles a seus sucessores, como Lei não escrita, mas vocal, posto que muitas coisas dela depois se escrevessem autenticamente nos livros do Novo Testamento

(VIEIRA, II, XV, p. 202).

No entanto, ele adere à doutrina bellarminiana das “duas fontes”, referindo concretamente alguns mistérios que não estão nas Escrituras, mas foram revelados pelas tradições “dos Apóstolos, e da Igreja” (VIEIRA, II, VIII, p. 315), concretamente, os mistérios da Assunção da Virgem e da sua Coroação (Ibid.), ou ainda o mandato de Cristo para celebrar a eucaristia em sua memória (Ibid., p. 437-438).

Vieira testemunha, portanto, uma linguagem que está em vias de se fixar: “a tradição comum” (p. ex., VIEIRA, II, IX, p. 298), “o comum sentir, e como tradição da Igreja em todos os tempos” (VIEIRA, II, XV, p. 180), “tradição da Igreja, recebida, e celebrada por todos os Padres” (Ibid., p. 191), “por tradição e consenso comum da Igreja” (VIEIRA, III, II, p. 127), “[afirmam] por tradição, ou quase tradição, geral quase todos os Padres antigos” (Ibid., p. 164), “é sentença comum dos Padres, à qual muitos doutores chamam tradição” (Ibid., p. 535). Por isso ele afirma no Livro anteprimeiro da História do futuro:

quando os antigos Padres, em matéria de fé e costumes, concordam com unânime consenso na inteligência de alguma Escritura, é sinal e argumento certo que receberam esta doutrina por tradição apostólica, ou o tem determinado e ensinado assim a Igreja Católica, posto que por outra via não conste

(VIEIRA, III, I, p. 226).

No entanto, os escritos proféticos do tempo do seu processo em Coimbra mostram-no em desacordo com os teólogos da Inquisição, acusando-os de fazerem uma grande amálgama relativamente ao tema da tradição.

Há uma passagem da Apologia, provavelmente escrita para incorporar a História do futuro, que parece já refletir os primeiros exames no tribunal de Coimbra, e que os inquisidores marcaram para ser objeto de novos interrogatórios na segunda fase do processo (cf. VIEIRA, III, IV, p. 574, proposição n.º 58):

É comum sentença dos Santos Padres, e tradição antiquíssima da Igreja fundada na Sagrada Escritura, que depois do império romano se há de seguir imediatamente o Anticristo, e depois dele o dia do Juízo. Segue-se logo que não é possível haver 5.º Império, como se diz no título do 1.º papel [i.e., Esperanças de Portugal], e que o dito título é contra a tradição da Igreja e comum consenso dos Padres, na explicação das ditas Escrituras. E porque este argumento tem parecido eficaz a algumas pessoas doutas e a censura que dele se segue afeia muito a probabilidade do dito papel, não me contentarei de mostrar a debilidade do dito argumento com uma só resposta, senão com muitas, porque é a aparência dele tão débil, tão fraca e tão mal fundada, que por qualquer parte que se tome fica desfeita, arruinada e desvanecida

(VIEIRA, III, III, p. 235; cursiva nossa).

E nas páginas que se seguem, Vieira argumenta que a tradição que pretende ver em 2Ts 2, 6-8 a figura do Anticristo não é verdadeira tradição apostólica nem houve sobre ela consenso unânime dos Padres, como se pode constatar nos escritos do próprio S.to Agostinho (Ibid., p. 237-238).15 15 Ele afirmaria o mesmo na Defesa perante o tribunal do Santo Ofício (VIEIRA, III, II, p. 260-261).

Desde o início do seu processo, logo no dia 27 de outubro de 1663, Vieira foi confrontado com a sua fidelidade à tradição e à doutrina dos Padres.16 16 “Perguntado se duvidou ele declarante em algum tempo de nossa Santa Fé Católica e lei Evangélica ou de alguns artigos ou artigo dela, deixando de seguir as tradições da Igreja e doutrina dos Santos Padres, aprovada pela mesma Igreja Romana. Disse que de trinta e sete anos a esta parte estudara sempre pela Sagrada Escritura com particular cuidado de achar nela, o verdadeiro sentido que ditou nela o Espírito Santo, e a este respeito, leu sempre pelos expositores mais qualificados, e particularmente por Santo Agostinho, e Santo Tomás, e conforme a isto, é certo que em nenhum tempo duvidou da fé nem das tradições da Igreja nem das doutrinas dos Santos Padres aprovados por ela, antes defendeu sempre a mesma fé em todas as partes de Europa, em que se achou contra todo o género de hereges expondo muitas vezes a vida a grandes perigos nos anos que residiu na América por 'adiantar' e estender a mesma fé” (VIEIRA, III, IV, 123; cf. 157-158; cursiva nossa). A acusação velada dos inquisidores – embora Vieira não o saiba – está baseada na qualificação romana do escrito Esperanças de Portugal, concernente a dois pontos precisos: primeiro, a conversão universal, que era tida tradicionalmente como prenúncio do dia do juízo e teria lugar depois da vinda do Anticristo, por ação de Elias e Henoc, pelo que o escrito de Vieira seria injurioso aos santos Padres (contra o consenso unânime dos Padres), às Escrituras e à Igreja (contra o sentido universal dos fiéis e a continuada tradição da Igreja) (ver Ibid., p. 524); segundo, o império que se seguiria ao império romano – o 5.º – era o império do Anticristo, segundo “a sentença de todos os escritores eclesiásticos fundamentada nas Sagradas Escrituras”, tradição “antiquíssima, acha-se verosímil ela provir dos Apóstolos” (Ibid., p. 525).

No processo de Vieira, os teólogos da Inquisição defenderam sempre a doutrina proveniente de Roma, contra a qual o teólogo jesuíta se debatia (ver Ibid., p. 222). Como tal, a sentença estava decretada de avanço:

e se deixa bem entender, não só o notável afeto, que ele declarante tem aos mesmos Judeus, e tenção de favorecer o Judaísmo, mas ainda o pouco caso, que faz do verdadeiro, e Católico sentido da Sagrada Escritura, tradições da Igreja, e unânime consenso dos Santos Padres

(Ibid., p. 336; cursiva nossa).

Mas como vimos – num texto que permaneceu inédito (entre os apensos ao processo de Vieira) e que só recentemente, com José van den Besselaar, veio a integrar o Livro anteprimeiro da História do futuro (VIEIRA, III, I, p. 221-227) –, o padre António Vieira, como muitos outros teólogos, tinha uma interpretação diferente dos decretos tridentinos, considerando que as matérias que defendia não eram contrárias ao sentido das Escrituras, às tradições da Igreja e ao consenso unânime dos Padres, mas eram um novo entendimento de coisas sobre as quais não havia um consenso “firme, constante e sem dúvida” (Ibid., p. 227). Pelo que retorna a elas em A chave dos profetas.

Essas matérias “novas” em que Vieira oferece uma interpretação diferente da tradicional, mas fundada num estudo aturado das Escrituras e dos intérpretes modernos, são a proposta de duas conversões universais (cf. VIEIRA, III, VI, p. 315-334) e a defesa de que haverá um “novo estado” da Igreja, que será o Reino de Cristo – o 5.º império – consumado na Terra (cf. Ibid., p. 31-148), em que se cumprirão as promessas divinas anunciadas pelos profetas (cf. Ibid., p. 206-315). A proposta de duas conversões universais, no fundo, é apenas uma concessão à doutrina tradicional acerca do papel futuro de Henoc e Elias, que para o teólogo jesuíta não passa de uma “opinião” com “origem no vulgo” (Ibid., p. 317), e sem verdadeiro fundamento bíblico.17 17 Para ele, efetivamente, apenas a conversão universal resultante da proclamação do Evangelho interessava, uma vez que era o que estabeleceria o Reino de Cristo consumado na Terra. Por outro lado, ao apresentar o Reino de Cristo como o “quinto império” (cf. VIEIRA, III, V, p. 193-206), Vieira ignora os argumentos dos teólogos da Inquisição, que queriam que esse quinto império fosse o império do Anticristo, e reafirma o que testemunhara durante o seu processo, a saber:

somente afirma com o comum sentimento dos expositores que o Quinto Império de que trata é o império do mesmo Cristo, que começou na sua Encarnação e nascimento, e se vai e há de ir continuando até o fim do mundo na Terra, e depois há de durar por toda a eternidade no Céu. E somente distingue no dito Quinto Império os três estados, que já declarou nesta Mesa

(VIEIRA, III, IV, p. 217).

3.2 Razões para não seguir os Padres da Igreja

O decreto tridentino Insuper evocou os dois critérios fundamentais que dão consistência às “testemunhas da fé” na sua utilização no discurso teológico. E logo após o concílio, Cano retomou-os na sua obra, aqui mencionada, um verdadeiro tratado de metodologia teológica (BELDA PLANS, 20133 BELDA PLANS, J. Melchor Cano. Madrid: Biblioteca Virtual Ignacio Larramendi de Polígrafos, 2013; texto online: http://www.larramendi.es/es/poligrafos/estudios.do [consultado a 3.5.20].
http://www.larramendi.es/es/poligrafos/e...
, p. 125). Se o sensus ecclesiae é um critério infalível, o consensum Patrum – como também o consenso unânime dos teólogos e canonistas – é garantia de certeza, pois os Padres, sentindo comummente, não podem errar na interpretação das Escrituras ou na opinião sobre algum ponto da regra da fé (De locis, vii, 3, conclusão 5; CANO, 20064 CANO, M. De locis theologicis (ed. preparada por J. Belda Plans). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2006., p. 428).

Vieira refere o texto conciliar e comenta-o no Livro anteprimeiro da História do futuro:

A segunda conclusão tirada do mesmo Concílio é: que nas coisas que pertencem à fé e costumes, quando os Padres de comum consenso concordam na inteligência de alguma Escritura, também somos obrigados a sentir com eles, de tal maneira que nos não é lícito 'interpretá-la' em sentido contrário. Funda-se 'esta' doutrina na mesma razão da primeira [i.e., a obrigação de sentir com a Igreja]. Porque quando os antigos Padres, em matéria de fé e costumes, concordam com unânime consenso na inteligência de alguma Escritura, é sinal e argumento certo que receberam esta doutrina por tradição apostólica, ou o tem determinado e ensinado assim a Igreja Católica, posto que por outra via não conste. E quem no tal caso contrariasse a inteligência dos Padres encontraria juntamente a da Igreja, e sentiria contra ela. Este é o caso e este o sentido (como resolvem todos os teólogos) em que falam os concílios, os santos e os textos do Direito Canónico, quando com palavras de tanto peso nos mandam, encarregam e encomendam que sigamos as pisadas dos antigos Padres, no entendimento que eles deram às Escrituras Sagradas

(VIEIRA, III, I, p. 226).18 18 Numa outra passagem, o jesuíta mostra a sua fidelidade a este princípio tridentino, segundo o modo de interpretação de Cano: “De tudo o que fica dito ou prometido se colhe facilmente quanta será a verdade desta História, porque as coisas que expressamente e mediatamente se predizem nas profecias canónicas, de cuja inteligência por sua clareza se não pode duvidar, ou por estarem explicadas por expositores também canónicos, por concílios, por tradição, ou pelo consenso comum dos Padres, é certo que têm toda aquela certeza infalível e de fé que as outras verdades sagradas que 'se' contêm nas Escrituras” (VIEIRA, III, I, 143).

Todavia, por várias vezes Vieira alega razões para não recorrer aos Padres da Igreja: primeiro, e de maneira desenvolvida, no capítulo 12 do Livro anteprimeiro da História do futuro (Ibid., p. 169-227); depois, mais duas vezes em A chave dos profetas (VIEIRA, III, VI, p. 344-348 e 382-385).

No Livro anteprimeiro da História do futuro, embora reconheça a grandeza e autoridade dos antigos Padres, Vieira alega três razões para não recorrer a eles em todas as circunstâncias: 1.ª, “porque os [Padres e] doutores antigos não disseram tudo”; 2.ª, “porque não acertaram em tudo”; 3.ª, “porque não concordaram em tudo” (VIEIRA, III, I, p. 169).

Em relação à primeira razão, por “experiência” e pela “lição de seus próprios livros”, rapidamente se verifica que a ciência divina (i.e., a teologia) e a própria interpretação das Escrituras se desenvolveram e há muita coisa que não se encontra nos Padres da Igreja, até porque o arco temporal – p. ex., na Igreja latina, entre Tertuliano (c. 155-c. 240) e Ricardo de Saint-Victor (c. 1110-1173) – é muito grande (Ibid., p. 170). No que concerne à interpretação das Escrituras, em particular, e porque isso está no cerne dos escritos proféticos vieirianos, o jesuíta precisa alguns pontos fundamentais: a) em relação a algumas passagens mais “dificultosas, escuras e mui recônditas” dos profetas, os Padres não podiam entendê-las porque “não estavam assistidos de outras notícias e circunstâncias, que só se descobrem com o tempo e adquirem com a larga experiência” (Ibid., p. 170-171);19 19 Este é um ponto em que Vieira diverge claramente de Cano, na medida em que valoriza muito a história, enquanto lugar “teológico”, e a experiência. No Livro anteprimeiro da História do futuro, ao insistir no princípio hermenêutico que o guia – o tempo como “o mais certo intérprete das profecias” –, o jesuíta refere a “hora” de Deus, ou seja, “a hora precisa do limite que Deus tem posto às coisas humanas” (Ibid., p. 151-152), inspirado em Daniel, mas também um tema muito jesuânico. b) porque estiveram ocupados sobretudo com os “mistérios de Cristo”, para responder à “cegueira dos judeus” e à “ignorância dos gentios”, e nesse esforço seguiam “os sentidos alegóricos e místicos, [...] deixando ou insistindo menos nos literais” (Ibid., p. 171-172); c) porque essa era mesmo a disposição da providência divina, que queria que “a Igreja, nossa mãe, se parecesse com seu Esposo, e conforme os anos e a idade fosse também crescendo em luz e sabedoria” (Ibid., p. 173). Por isso conclui com uma argumentação que faz lembrar Francis Bacon (SANTOS, 200912 SANTOS, L. R. dos. Da verdade e do tempo: António Vieira e a “Controvérsia dos Antigos e dos Modernos”. In: FRANCO, J. E. (coord.). Entre a selva e a corte: novos olhares sobre Vieira (p. 79-89). Lisboa: Esfera do Caos, 2009.):

Donde se deve reparar e advertir (coisa que devera estar já mui notada e advertida) que os autores antigos e mais velhos, própria e rigorosamente falando, não são os passados, senão os presentes; não aqueles que vulgarmente são chamados os Antigos, senão os que hoje e nos tempos mais chegados a nós se chamam Modernos. Porque assim como nos anos de Cristo houve infância, puerícia, adolescência e, depois, idade perfeita, assim nos anos e duração da Igreja há a mesma distinção e sucessão de idades, com que o corpo místico dele vai crescendo e aumentando-se sempre mais até chegar e encher a perfeição ou medida da mesma idade de Cristo, como expressamente disse São Paulo

(VIEIRA, III, I, p. 174).

Quanto à segunda razão, é também evidente que os Padres não acertaram em tudo, e erraram. Nem seria necessário individualizar esses erros, pois bastaria lembrar que os Padres antigos eram humanos e que, por isso mesmo, também falharam (um argumento que já fora evocado por Cano). Aliás, isso mesmo foi reconhecido pelos “dois maiores Doutores” – S.to Agostinho, “da teologia escolástica” (especulativa), e S. Jerónimo, “da positiva” (bíblica) –, tendo até o primeiro escrito um livro das suas Retratações (Ibid., p. 179).20 20 Esta atitude de S.to Agostinho é muito louvada por Vieira e está também no âmago do sermão que o pregador jesuíta lhe dedica (cf. VIEIRA, II, X, p. 35-72). Exemplo claro desta alegação vieiriana é a questão da exata cosmografia terrestre (o globo, as suas várias regiões e continentes, os mares, etc.) e o problema dos antípodas, que levaram os antigos Padres a uma má interpretação das profecias, e que os descobrimentos portugueses vieram mostrar que estavam errados (Ibid., p. 180-185).21 21 Lembremo-nos de que os antigos tinham a “zona tórrida” por inabitável e pensavam que o “mar imenso” era inavegável, pelo que se mostravam céticos acerca da existência de antípodas. Por experiência, e graças às navegações longínquas, os portugueses mostraram ao mundo que eles estavam errados. Na sua obra, Vieira insiste neste ponto (cf. VIEIRA, II, I, 262; VIEIRA, II, X, 241; VIEIRA, III, I, 74; VIEIRA, III, II, 546). Numa trintena de páginas, Vieira evoca então uma série de passagens dos livros proféticos que eram consideradas obscuras e enigmáticas, e que a “exegese nacionalista”22 22 É a expressão usada por MENDES, 1992. moderna veio iluminar (Ibid., p. 186-216).

Na terceira razão, enfim, mostra-se que os Padres da Igreja não concordaram em tudo, tiveram diferentes opiniões em muita coisa e ainda controvérsias entre si. Aliás, em A chave dos profetas, no “Tratado do templo de Ezequiel”, o teólogo jesuíta dá conta largamente da controvérsia entre S. Jerónimo e S.to Agostinho a propósito dos ritos e cerimónias judaicos. Quando os Padres da Igreja têm opiniões diferentes sobre alguma matéria, segundo a valorização de Cano, eles podem ser evocados tão-só como argumento “provável”. Por isso o concílio tridentino apenas obrigava a seguir o “consenso unânime dos Padres” (DH, 1507), e mesmo assim – precisa Vieira, seguindo alguns teólogos seus contemporâneos – sob tríplice condição:

  • 1.ª, ser uma passagem da Escritura relativa à fé e aos costumes: “quando os Padres e Doutores da Igreja concordam todos na exposição e inteligência de algum lugar da Sagrada Escritura que não pertence ad fidem et mores, nem por isso somos obrigados a seguir dita exposição e podemos dar outro sentido no mesmo lugar da Escritura, ainda que seja contrário ao dos Padres” (VIEIRA, III, I, p. 222);

  • 2.ª, a interpretação relativa à fé e aos costumes não ser contrária à dos Padres da Igreja: “ainda naquele mesmo lugar da Escritura em que o comum consenso dos Padres explicar alguma coisa pertencente ad fidem vel mores, podemos dar outro sentido ao mesmo texto, contanto que não seja contrário ao dos Padres” (Ibid., p. 223), precisamente porque um lugar das Escrituras pode ter vários sentidos (alegórico, literal, etc.);

  • 3.ª, haver um consenso “firme, constante e sem dúvida”, porque não sendo firme e sem dúvida, dizem os teólogos, não obriga (Ibid., p. 226-227).

Fundado precisamente nesta última razão, há dois temas recorrentes que o levam a não argumentar com os Padres da Igreja em certas partes da sua obra profética. O primeiro desses temas é a “tradição antiquíssima”, acerca da qual há um grande consenso entre “os mais doutos homens, dos Gentios, dos Hebreus, dos [Padres] Gregos, dos [Padres] Latinos”, sobre a duração do mundo, fundada no número de dias da própria criação (VIEIRA, II, I, p. 173; VIEIRA, III, II, p. 248 passim; VIEIRA, III, III, p. 199). Apesar desse consenso, no Livro anteprimeiro da História do futuro, Vieira defende que nos antigos há “a falta da verdadeira e exata cronologia” (VIEIRA, III, I, p. 217-221), que os leva a interpretar mal as “profecias do futuro” (Ibid., p. 219) e os sucessos relativos aos “tempos do Anticristo” (Ibid., p. 220); e, em A chave dos profetas, Vieira reafirma essas mesmas reservas (VIEIRA, III, VI, p. 344-348). Entende-se a sua razão, uma vez que ele defende a instauração de um “novo estado” da Igreja, que durará “não só muitos anos, senão muitos centos de anos” (VIEIRA, III, II, 540 e 573).

O segundo tema, relacionado com as mencionadas profecias do futuro, tem que ver com a pregação final do Evangelho e a consumação do mundo, que Vieira entende ter sido mal interpretada em alguns Padres da Igreja (Ibid., p. 382-385). O teólogo jesuíta parte de uma constatação: por mais que os “antigos” (e nomeadamente S. Paulo e S.to Agostinho) pensassem que o Evangelho já tinha sido anunciado por todo o lado, por toda a terra, os “modernos”, depois da gesta dos Descobrimentos, sabem que isso não foi assim, pois conhece-se melhor o mundo inteiro e sabe-se que muita gente ainda não ouviu falar do Evangelho! Portanto, o dever de pregar o Evangelho – e o 'Evangelho do Reino'! – a toda a criatura mantém-se intacto:

Para que ninguém desconheça (é esta a única tarefa e escopo da nossa pena) que toda a obra do Evangelho, todas as viagens e vozes dos apóstolos, toda a edificação, corpo e acrescentamento da Igreja crescente, se esforçam e empenham num único desígnio: a saber, o de consumar na Terra o Reino de Cristo. Por esse motivo Ele mesmo não chamou ao seu Evangelho simplesmente “Evangelho”, mas nomeadamente “Evangelho do Reino” [Mt 24,14]

(VIEIRA, III, VI, 398-399).

Todavia, não esqueçamos que, durante o seu processo no Tribunal do Santo Ofício de Coimbra, e a propósito destes temas, Vieira é acusado de defender coisas “contra a tradição da Igreja, e autoridade dos Santos Padres [...] contra a mais [comum] doutrina dos santos Padres” (VIEIRA, III, IV, p. 158).

Considerações finais

Embora tenha exercido muito pouco tempo essa função, o padre António Vieira foi considerado pelos seus contemporâneos como um teólogo de exceção. Por exemplo, nas licenças ao livro Xavier dormindo, e Xavier acordado (1694), Fr. Jerónimo de Santiago, professor substituto de teologia e Sagrada Escritura em Coimbra, refere a “sólida doutrina” do seu autor e acrescenta:

A fecundidade de seu talento é tão admirável, tão sublime, e tão universal, que sendo tantos os filhos da Companhia que ilustraram as Ciências em todos os séculos, como se vê do número sem número de seus escritos; neste nos dá a entender herdou o padre António Vieira felizmente os talentos de todos

(VIEIRA, II, XV, p. 330).

O seu processo em Coimbra, mais político que teológico, revela efetivamente um teólogo arguto, que, obrigado a explicar-se, nos deixou textos que, de outro modo, dificilmente teria escrito. Um desses textos extraordinários encontra-se no Livro anteprimeiro da História do futuro, capítulo xii, onde esclarece o modo como recorre, ou não, aos Padres da Igreja e à “tradição” em geral. Leitor incansável das Escrituras e seus intérpretes, são elas que lhe fornecem o fundamento para as suas reflexões. Quanto aos Padres da Igreja, e seguindo o método exposto por Melchior Cano, a eles recorre quando existe um consenso “firme, constante e sem dúvida”.

Na sua obra, Vieira cita com muita frequência aos Padres da Igreja, dando clara preferência aos “Doutores” – latinos (S. Jerónimo, S.to Ambrósio, S.to Agostinho e S. Gregório Magno) e gregos (S.to Atanásio, S. João Crisóstomo, S. Basílio e S. Gregório Nazianzeno), mas também escolásticos (S. Tomás de Aquino e S. Boaventura)23 23 Na parenética, os mais citados são, claramente, S.to Agostinho e S. João Crisóstomo. Na profética, S.to Agostinho, S. Jerónimo e S. Tomás de Aquino. . No entanto, na maioria das vezes, não são citados isoladamente, mas como “testemunhas” da tradição, repetindo-se – quase como um refrão – expressões como “comummente”, “sentença comum”, “doutrina comum”, “entendimento comum”, “comum opinião”, “comum interpretação”, “consenso comum”, “unanimemente”, “unânime consenso”, “unânime opinião”, “interpretação unânime”, “sentir geral”, “sentir comum” e “todos”.

Enfim, cabe ainda referir que, na linha da tradição espiritual portuguesa, o interesse de Vieira pelos Doutores da Igreja latinos está certamente relacionado com o facto de eles serem, antes de mais, “expositores” (intérpretes) das Escrituras, as “aves canoras” do Horto do Esposo:

S.to Agostinho canta seu cantar mui amoroso, expoendo toda a santa Escritura sobrecelestialmente, fazendo entender as coisas sobrecelestiais pelas coisas da santa doutrina. E S. Jerónimo canta mui gracioso cantar, mostrando-nos historialmente toda a Lei Velha e a Nova. E S. Gregório diz seu cantar glorioso, expoendo moralmente a santa Escritura para bons costumes da alma. E S.to Ambrósio [canta seu] cantar mui prazível, expoendo a santa Escritura por figuras, fazendo entender como a santa Escritura diz uma coisa em figura de outra”

(LEMOS et alii [coord.], 20198 LEMOS et alii (Coord.). Primeiros livros de edificação moral e primeira crónica biográfica. In FRANCO, J. E., e FIOLHAIS, C. (Dir.), Obras pioneiras da cultura portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 2019., 161).

Siglas utilizadas

  • DH  = DENZINGER-HÜNERMANN, Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja católica
  • 1
    Para a contextualização do tema, servimo-nos sobretudo do estudo de SESBOÜÉ, 200215 SESBOÜÉ, B. L’autorité de la tradition. In: LAUX, H., e SALIN, D. (Dir). Dieu au xviie siècle: crises et renouvellements du discours. Une approche interdisciplinaire (p. 213-239). Paris: Eds. Facultés Jésuites de Paris, 2002..
  • 2
    Lutero acusava a Igreja romana de colocar todo o tipo de coisas, muitas das quais qualificadas por ele de “invenções humanas”, ao mesmo nível do Evangelho (SESBOÜÉ, 200215 SESBOÜÉ, B. L’autorité de la tradition. In: LAUX, H., e SALIN, D. (Dir). Dieu au xviie siècle: crises et renouvellements du discours. Une approche interdisciplinaire (p. 213-239). Paris: Eds. Facultés Jésuites de Paris, 2002., p. 218).
  • 3
    No início do séc. xvi, Jean Amerbach, livreiro e tipógrafo de Basileia, lançou-se numa empresa de publicação da opera omnia dos quatro grandes doutores da Igreja latina, sendo depois o testemunho retomado por Erasmo. Ao logo dos sécs. xvi e xvii, essa empreitada continuou em várias cidades – Antuérpia, Roma (Vaticano), Augsburg, Paris –, até às grandes edições críticas dos beneditinos da Congregação de Saint-Maur. Ao mesmo tempo, outros procuravam constituir uma “Biblioteca dos Padres”, desde a experiência de Jean Sichart (Antidotum contra diversas omnium fere saeculorum haereses, 1528) até à Sacra Bibliotheca (1575-1579) de Marguerin de la Bigne, que foi crescendo até conter 27 volumes na Maxima Bibliotheca de 1677.
  • 4
    Mais do que uma revisão, o estudo dos textos antigos e a análise crítica dos mesmos deram origem a uma nova historiografia religiosa. Do lado protestante, refira-se a Magdeburgica Centuria (1559-1574), em 13 volumes, dirigida por Matias Fácio Ilírico. Do lado católico, os Annales ecclesiastici (1588-1607), em 12 volumes, iniciados por César Barónio e continuados por outros autores (Bzovius, Rinaldi, De Sponde, etc.).
  • 5
    Este tema foi estudado por NEVEU, 198110 NEVEU, B. Juge suprême et docteur infaillible: le pontificat romain de la bulle In: eminenti (1643) à la bulle Auctorem fidei (1794). Mélanges de l’École française de Rome. Moyen-Âge, Temps modernes, 93, 1, 1981, p. 215-275..
  • 6
    O concílio de Trento teve a sua sessão inaugural a 13 de dezembro de 1545. As 2.ª (18 de janeiro de 1546) e 3.ª (4 de fevereiro de 1546) sessões foram ainda preparatórias. Mas logo a seguir, a partir de 7 de fevereiro, começaram os trabalhos sobre um futuro documento que trataria da questão da relação entre “tradições” (os padres conciliares usam quase sempre o termo no plural) e Escrituras. Veja-se SELBY, 2003, p. 32-53; e WACKENHEIM, 198117 WACKENHEIM, C. Écriture et Tradition depuis le concile de Trente: histoire d’un faux problème. Revue des Sciences Religieuses, 55, 4, p. 237-252, 1981..
  • 7
    Note-se que o concílio fala de “pureza do Evangelho”, recorrendo portanto a uma linguagem muito próxima à de Lutero (SESBOÜÉ, 200215 SESBOÜÉ, B. L’autorité de la tradition. In: LAUX, H., e SALIN, D. (Dir). Dieu au xviie siècle: crises et renouvellements du discours. Une approche interdisciplinaire (p. 213-239). Paris: Eds. Facultés Jésuites de Paris, 2002., p. 219).
  • 8
    Antes de mais, referia-se que o mesmo termo será retomado no concílio Vaticano II, provavelmente por mão de Y. Congar (COFFEY, 19945 COFFEY, D. Congar’s Tradition and Traditions: Thirty Years On. Prudentia, Supplementary Number: Tradition and Traditions, 1994, p. 51-59., p. 51). A razão está no aceso debate acerca das “duas fontes” da Revelação, que ocorreu poucos anos antes do concílio Vaticano II, provocado precisamente pela publicação, no início do séc. xx, das atas do concílio tridentino (para todo esse debate, ver SELBY, 201314 SELBY, M. L. The Relationship Between Scripture and Tradition According to the Council of Trent (2013). School of Divinity Master’s Theses and Projects. 4; https://ir.stthomas.edu/sod_mat/4 [consultado a 3.5.20].
    https://ir.stthomas.edu/sod_mat/4...
    ).
  • 9
    Durante os debates, o cardeal G. Maria del Monte, um dos três legados pontifícios (e futuro papa Júlio III), propusera que a Revelação divina era transmitida, na Igreja, em parte (partim) pelas Escrituras e em parte (partim) pela tradição oral. O geral dos Servitas, Augustin Bonuccio opôs-se a essa conceção, defendendo que as tradições não são um complemento às Escrituras, mas antes uma interpretação autorizada das mesmas (WACKENHEIM, 198117 WACKENHEIM, C. Écriture et Tradition depuis le concile de Trente: histoire d’un faux problème. Revue des Sciences Religieuses, 55, 4, p. 237-252, 1981., p. 239).
  • 10
    A referência aos Padres ortodoxos é uma alusão à fonte por detrás desta passagem, a saber, S. Basílio (Sobre o Espírito Santo, 27, 66), que refere as tradições “secretas” transmitidas durante o catecumenato.
  • 11
    O consenso unânime dos Padres foi defendido na Antiguidade por Vicente de Lérins, no seu Commonitorium; um texto que foi publicado por Jean Sichart, no seu Antidotum (1528).
  • 12
    Cano cita diretamente o decreto Sacrosancta, sobre os livros sagrados e as tradições, no livro dedicado ao segundo lugar teológico, as “tradições apostólicas” (De locis, iii, 6), e ainda no livro sobre os concílios (De locis, v, 5). Refere-se ainda à mesma sessão conciliar no livro sobre a Igreja, para referir o sensus fidelium (De locis, iv, 4).
  • 13
    O próprio Catecismo Romano, de 1566, favorece também a conceção das duas fontes (MARTINS, 19646 MARTINS, J. S. Escritura e tradição segundo o Concílio de Trento. Divus Thomas, 67, 3/3, 1964, p. 183-277., p. 207).
  • 14
    No “Sermão de Todos os Santos”, de 1643, ele fala por seu turno de “tradições Apostólicas sucessivamente continuadas” (VIEIRA, II, XI, 500).
  • 15
    Ele afirmaria o mesmo na Defesa perante o tribunal do Santo Ofício (VIEIRA, III, II, p. 260-261).
  • 16
    “Perguntado se duvidou ele declarante em algum tempo de nossa Santa Fé Católica e lei Evangélica ou de alguns artigos ou artigo dela, deixando de seguir as tradições da Igreja e doutrina dos Santos Padres, aprovada pela mesma Igreja Romana. Disse que de trinta e sete anos a esta parte estudara sempre pela Sagrada Escritura com particular cuidado de achar nela, o verdadeiro sentido que ditou nela o Espírito Santo, e a este respeito, leu sempre pelos expositores mais qualificados, e particularmente por Santo Agostinho, e Santo Tomás, e conforme a isto, é certo que em nenhum tempo duvidou da fé nem das tradições da Igreja nem das doutrinas dos Santos Padres aprovados por ela, antes defendeu sempre a mesma fé em todas as partes de Europa, em que se achou contra todo o género de hereges expondo muitas vezes a vida a grandes perigos nos anos que residiu na América por 'adiantar' e estender a mesma fé” (VIEIRA, III, IV, 123; cf. 157-158; cursiva nossa).
  • 17
    Para ele, efetivamente, apenas a conversão universal resultante da proclamação do Evangelho interessava, uma vez que era o que estabeleceria o Reino de Cristo consumado na Terra.
  • 18
    Numa outra passagem, o jesuíta mostra a sua fidelidade a este princípio tridentino, segundo o modo de interpretação de Cano: “De tudo o que fica dito ou prometido se colhe facilmente quanta será a verdade desta História, porque as coisas que expressamente e mediatamente se predizem nas profecias canónicas, de cuja inteligência por sua clareza se não pode duvidar, ou por estarem explicadas por expositores também canónicos, por concílios, por tradição, ou pelo consenso comum dos Padres, é certo que têm toda aquela certeza infalível e de fé que as outras verdades sagradas que 'se' contêm nas Escrituras” (VIEIRA, III, I, 143).
  • 19
    Este é um ponto em que Vieira diverge claramente de Cano, na medida em que valoriza muito a história, enquanto lugar “teológico”, e a experiência. No Livro anteprimeiro da História do futuro, ao insistir no princípio hermenêutico que o guia – o tempo como “o mais certo intérprete das profecias” –, o jesuíta refere a “hora” de Deus, ou seja, “a hora precisa do limite que Deus tem posto às coisas humanas” (Ibid., p. 151-152), inspirado em Daniel, mas também um tema muito jesuânico.
  • 20
    Esta atitude de S.to Agostinho é muito louvada por Vieira e está também no âmago do sermão que o pregador jesuíta lhe dedica (cf. VIEIRA, II, X, p. 35-72).
  • 21
    Lembremo-nos de que os antigos tinham a “zona tórrida” por inabitável e pensavam que o “mar imenso” era inavegável, pelo que se mostravam céticos acerca da existência de antípodas. Por experiência, e graças às navegações longínquas, os portugueses mostraram ao mundo que eles estavam errados. Na sua obra, Vieira insiste neste ponto (cf. VIEIRA, II, I, 262; VIEIRA, II, X, 241; VIEIRA, III, I, 74; VIEIRA, III, II, 546).
  • 22
    É a expressão usada por MENDES, 19929 MENDES, M. V. Vieira no cabo de não: os descobrimentos no Livro Anteprimeiro da História do Futuro. Semear, 2, 1992, texto online: http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/semiar_2.html [consultado a 3.5.2020].
    http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nu...
    .
  • 23
    Na parenética, os mais citados são, claramente, S.to Agostinho e S. João Crisóstomo. Na profética, S.to Agostinho, S. Jerónimo e S. Tomás de Aquino.

Referências bibliográficas

  • 1
    ARMOGATHE, J.-R. (Dir.). Le Grand Siècle et la Bible Paris: Beauchesne, 1989.
  • 2
    BELARMINO, R. Les Controverses. 1e Controverses: La parole de Dieu, écrite ou conservée par la Tradition, s.d.; texto online: http://jesusmarie.free.fr/robert_bellarmin.html [consultado a 3.5.20].
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  • 3
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2020
  • Aceito
    25 Mar 2024
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