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A QUESTÃO DA SINODALIDADE NA IGREJA CATÓLICA: ILUMINADOS PELO PASSADO PARA PENSAR UMA ECLESIOLOGIA SONHADA POR FRANCISCO

The Issue of Synodality in the Catholic Church: Enlightened by the Past to Think about the Church Dreamt by Francis

RESUMO

Refletir sobre a sinodalidade constitui uma urgência para os católicos, em vista da percepção do conservadorismo transnacional reinante, cujos malefícios já se manifestam por todos os lados, sob a forma de crises sanitárias, ambientais e humanitárias, em que a cultura do descarte evidencia aquilo que o Papa Francisco chama da vivência de uma Terceira Guerra Mundial em pedaços. Do ponto de vista formal, indagamos: como um olhar para os desafios do passado pode fortalecer o sonho eclesiológico do Papa Francisco para a efetivação de uma Igreja sinodal? A metodologia desta pesquisa é de revisão bibliográfica. Os resultados esperados estão circunscritos à compreensão de que quanto mais refletirmos sobre a sinodalidade e sua riqueza eclesiológica para responder aos desafios de cada tempo, tanto melhor para mostrar a importância e necessidade da constituição de uma vivência da comunhão, da participação e da missão da Igreja como uma realidade a ser abraçada pelos batizados.

PALAVRAS-CHAVE
Eclesiologia; História; Sinodalidade; Urgência; Papa Francisco

ABSTRACT

Reflecting on synodality is an urgency for Catholics, in view of the perception of the reigning transnational conservatism, whose evils are already manifesting itself everywhere, in the form of health, environmental and humanitarian crises, in which the throwaway culture highlights what Pope Francis calls the experience of a Third World War in pieces. From a formal point of view, we ask: how a look at the challenges of the past can strengthen Pope Francis’ ecclesological dream of realizing a synodal Church? The methodology of this research is a bibliographic review. The expected results are limited to the understanding that the more we reflect on synodality and its ecclesiological richness to respond to the challenges of each time, the better to show the importance and need for establishing an experience of communion, participation and the mission of the Church as a reality to be embraced by the baptized.

KEYWORDS
Ecclesiology; History; Synodality; Urgency; Pope Francis

Introdução

Neste artigo temos como objetivo tratar da questão eclesial à luz da sinodalidade e, para tanto, num primeiro momento, olharemos para os primórdios da Igreja, a fim de recordarmos como ela se organizava por meio de sínodos para tratar de temas importantes para o cristianismo que obedecem ao dinamismo da história. Depois, trataremos o tema da autoridade, cujo clericalismo foi se efetivando e se definindo ao longo do tempo, tornando-se um empecilho para o diálogo entre as igrejas, acarretando, muitas vezes, cismas. Por fim, iluminados pelo passado, queremos evidenciar os passos a serem dados em vista de uma sinodalidade verdadeiramente eficaz, que se preocupe não com a manutenção das estruturas já existentes, mas que possa, de fato, responder ao anseio dos fiéis cristãos em vista de uma verdadeira unidade. Alinhados ao que tem sido o caminho feito pelo Magistério da Igreja atual sob a condução do Papa Francisco, sabemos que os desafios da sinodalidade se efetivam mediante a escuta e o diálogo, cujo dinamismo os tempos hodiernos estão a reivindicar.

Diante disso indagamos: como um olhar para os desafios do passado pode fortalecer o sonho eclesiológico do Papa Francisco para a efetivação de uma Igreja sinodal? Com essa questão “alinhavando” a presente pesquisa nos colocaremos a refletir, a fim de que sejamos persuadidos de que uma honesta compreensão do passado poderá contribuir para que tal sonho seja acolhido hoje numa cultura tão difícil e indiferente. Do ponto de vista estrutural, o presente texto está assim estruturado: entre introdução e considerações finais, encontraremos os subitens, a saber: (1) O papel dos sínodos na Igreja Antiga; (2) A autoridade do bispo de Roma e a papalização do catolicismo; (2.1) A questão com Constantinopla; (2.2) A questão da autoridade papal e da autoridade do concílio; (3) O Concílio Vaticano II e a Igreja em perspectiva sinodal do Papa Francisco.

1 O papel dos sínodos na Igreja Antiga

Se formos buscar o significado da palavra sínodo, chegaremos à junção de syn (juntos) com hodós (caminho), trazendo o sentido de caminhar juntos. Indubitavelmente, esse é o termo que melhor define o que entendemos por Igreja (ekklesia), visto que esta é uma comunidade de fé que se reúne para juntos, darem graças ao seu Senhor, que é “caminho, verdade e vida” (Jo 14,6). De tal modo, a sinodalidade, é uma “dimensão constitutiva da Igreja” (Francisco, 2015FRANCISCO, Papa. Comemoração do cinqüentenário da instituição do Sínodo dos Bispos. Discurso do Santo Padre Francisco. Vaticano, 17 de outubro de 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-sinodo.html. Acesso em: 15 de março de 2024.
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) que caminha na unidade de seus membros, que se faz na comunhão.

A Igreja, logo cedo, compreendeu essa sua dimensão constitutiva, que é a sinodalidade, e deu exemplo disso. Na Igreja primitiva, os sínodos convocados serviram para que a comunidade cristã pudesse definir questões que, para ela, eram importantes, como o que era ou não um dado revelado, assim como aquelas relacionadas à moralidade ou mesmo disciplinares. Por isso, “os sínodos constituem uma das mais importantes manifestações da vida eclesial dos primeiros séculos” (Pinheiro, 2023PINHEIRO, Luiz Antônio. A história da sinodalidade. In. DE MORI, Geraldo Luiz; ALBUQUERQUE, Francisco das Chagas de (Orgs). A Sinodalidade no Processo Pastoral da Igreja no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2023., p. 30) e compreendemos ser urgente a retomada sinodal em um mundo carente de comunhão.

A primeira notícia que temos de um sínodo em que a comunidade cristã se reúne para tratar de suas questões importantes se encontra no capítulo 15 dos Atos dos Apóstolos, naquele que se costumou chamar “Sínodo de Jerusalém”. Esse sínodo aconteceu mediante o conflito existente entre os cristãos advindos do judaísmo e os gentios, na questão da necessidade ou não da circuncisão para estes últimos. Paulo e Barnabé são enviados para representá-los diante da comunidade apostólica que se encontrava em Jerusalém, sendo acolhidos, assim, “pela Igreja, pelos apóstolos e anciãos” (At, 15,4). Como sabemos, a circuncisão é uma prática judaica que permaneceu válida para os cristãos nos primeiros tempos, mas que, com a expansão entre os gentios, já não encontrava mais razão de existir. Diante dessa questão, os apóstolos se reúnem junto com os anciãos para examinarem o problema (At 15, 6). Pedro fala primeiro (At 15, 7-11), depois é a vez de Paulo e Barnabé, representando as comunidades cristãs do mundo gentio (At 15, 12) e, por fim, fala também Tiago (At 15, 13-21). Diante do exposto e chegando a um consenso, a comunidade apostólica escreve uma carta para ser lida em todas as comunidades, onde se liberam os gentios convertidos da necessidade da circuncisão, mantendo, todavia, os preceitos de absterem-se das carnes imoladas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas e das uniões ilegítimas (At 15, 22-29).

Embora tenham permanecido algumas práticas judaicas, a não necessidade da circuncisão aprovada pela comunidade apostólica é um grande passo para o cristianismo, visto que o retira da condição de uma espécie de seita judaica, para manifestar-se ao mundo como uma nova religião (Kirchschläger, 1994KIRCHSCHLÄGER, Walter. Le originidella Chiesa: una ricerca bíblica. Roma: Città Nuova, 1994., p. 47). Nesse sentido, “essa ruptura com o judaísmo é o fundamento da sucessiva difusão universal para o cristianismo” (Kirchschläger, 1994KIRCHSCHLÄGER, Walter. Le originidella Chiesa: una ricerca bíblica. Roma: Città Nuova, 1994., p. 48). Esse sínodo se mostra “um momento decisivo” do caminho da Igreja (Comissão Teológica Internacional, 2018, n. 20) ou, como afirma Pinheiro (2023, p. 32)PINHEIRO, Luiz Antônio. A história da sinodalidade. In. DE MORI, Geraldo Luiz; ALBUQUERQUE, Francisco das Chagas de (Orgs). A Sinodalidade no Processo Pastoral da Igreja no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2023. “é um exemplo paradigmático desse caminho em conjunto”.

O sínodo de Jerusalém tornou-se, dessa forma, um modelo para todos os demais sínodos que se seguiriam, de tal modo que todas as grandes decisões que a comunidade cristã viria a tomar – sejam relacionadas à disciplina, à moral ou à doutrina, sejam para tratar da própria hierarquia eclesiástica – ocorreram em assembleias sinodais. Nesse sentido, algo que deve ficar bem claro consiste em entender que, numa eclesiologia sinodal,

Todos são atores no processo, ainda que diversificados sejam o seu papel e a sua contribuição. A questão é apresentada a toda a Igreja de Jerusalém (15,12), que é presente em todo o seu desenvolvimento e é envolvida na decisão final (15,22). Contudo, são interpelados em primeiro lugar os Apóstolos (Pedro e Tiago, que tomam a palavra) e os Anciãos, que exercitam com autoridade o seu específico ministério

(Comissão Teológica Internacional, 2018, n. 21).

Outra característica fundamental da Igreja primitiva em espírito sinodal é que esta não possuía um primado de jurisdição que estivesse reduzido a uma única Igreja, muito menos a um único bispo. Tudo o que havia de importante para ser decidido, decidia-se em colegialidade, isto é, através de sínodos, que podiam ser locais ou provinciais. Embora a Igreja de Roma, por exemplo, gozasse de certa autoridade em questões relacionadas à fé e tida como aquela que preside na caridade (Inácio de Antioquia, 2008INÁCIO DE ANTIOQUIA. Cartas. In. Padres Apostólicos. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 1995., p. 103), ela não possuía a autoridade jurídica sobre as demais. Essa é uma realidade possível de ver em Eusébio de Cesareia, quando se dá a destituição de Paulo de Samósata da sede de Antioquia, por meio de um sínodo:

De comum acordo, portanto, os pastores congregados naquele lugar redigiram uma só carta ao bispo de Roma, Dionísio e a Máximo, bispo de Alexandria, e enviaram-na a todas as províncias; nela manifestam seus esforços e a heterodoxia perversa de Paulo, as refutações e questões a ele dirigidas e contam também a vida e a conduta deste homem

(Eusébio de Cesareia, 2008EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. 2. Ed. Tradução das Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 2008., p. 382).

É interessante notar que de Roma não partiu essa ordem para a destituição de Paulo de Samósata da cátedra de Antioquia, mas que essa decisão foi tomada em um sínodo provincial. Os bispos de Roma e de Alexandria são apenas comunicados, por meio de uma carta, do resultado da assembleia, que coloca Domno no lugar de Paulo de Samósata. Essa questão é importante ainda porque se verifica que até o concílio de Niceia I, em 325, três igrejas possuíam um primado em relação às demais por sua importância diante do império e por todas elas serem sés petrinas: Roma, Alexandria e Antioquia. De tal modo que no próprio concílio se considera que essas três igrejas possuem a mesma autoridade nas regiões em que estão situadas. Dessa forma, o Cânon 6 do Concílio de Niceia I afirma:

Devem ser observadas as praxes em vigor no Egito, na Líbia e na Pentápole, no sentido de o bispo de Alexandria ter autoridade sobre todos estes, considerando-se que também com relação ao bispo de Roma existe tal costume. Igualmente em Antioquia e nas demais províncias as Igrejas devem conservar seus privilégios. Bem claro deve ficar o seguinte: se alguém é nomeado sem o consentimento do Metropolita, o magno Concílio definiu que um tal nem sequer bispo é. Doutro lado, se por animosidade dois ou três são contrários ao parecer comum dos demais, dado com sensatez e de acordo com a norma eclesiástica, deve prevalecer o parecer da maioria

(Documentos dos Primeiros Oito Concílios Ecumênicos, 1999DOCUMENTOS DOS PRIMEIROS OITO CONCÍLIOS ECUMÊNICOS. Tradução de Otto Krzypczak. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999., p. 20).

Como podemos ver, o concílio reconhece a autoridade dos bispos que ocupam essas três sedes, mas a autoridade da sede lhes é superior, ou seja, não é o bispo quem confere autoridade à sede, mas é a sede que confere autoridade ao bispo. Por isso, “a ideia de primado de jurisdição é totalmente alheia nessa época” (Sesboüé, 2014SESBÜÉ, Bernard. La infalibilidad de la Iglesia: história y teologia. Maliaño Sal Terrae, 2014., p. 73). Isso se verifica, ainda, no fato de que não foi o bispo de Roma quem convocou o Concílio de Niceia I, na época Silvestre I, mas o próprio imperador Constantino; e isso aconteceria também com os concílios que se seguiriam até o final do primeiro milênio. Dessa forma, “durante o primeiro milênio, os papas não ‘dirigiram a Igreja’ nem pretenderam fazê-lo, não definiram doutrina alguma, não escreveram encíclicas nem chamaram aos bispos ad limina, não convocaram concílios ecumênicos nem os presidiram” (O’Malley, 2018O’MALLEY, John W. História, Iglesia y teologia: Cómo nuestro pasado ilumina nuestro presente. Maliaño: Sal Terrae, 2018., p. 11). Essa prática é posterior ao primeiro milênio e se dá com aquilo que O’Malley (2018, p. 8) chama de “papalização do catolicismo”, embora já tenha sido ensaiada desde o século IV com a transferência da capital do Império Romano de Roma para Constantinopla, a Nova Roma, e as pretensões de a Igreja de Constantinopla gozar da mesma autoridade da igreja da antiga capital. Tendo dito isso se faz necessário compreender o que se entende por papalização nessa perspectiva da autoridade do bispo de Roma.

2 A autoridade do bispo de Roma e a papalização do catolicismo

Nos três primeiros séculos, como se viu, a autoridade da Igreja era compartilhada principalmente entre as sés de Roma, Alexandria e Antioquia. Estar em comunhão com qualquer uma dessas sedes primaciais era estar em comunhão com toda a Igreja, pois a comunhão entre as três simbolizava a unidade da Igreja de Cristo. Roma ocupa um lugar de destaque não por ser uma igreja maior, ou por ser a capital do império, mas porque em Roma pregaram, testemunharam e foram martirizados os apóstolos Pedro e Paulo (Congar, 1997CONGAR, Yves. Igreja e Papado. Tradução de Marcelo Rouanet. São Paulo: Loyola, 1997., p. 22) e porque, desde muito cedo, a Igreja de Roma ficou distante das primeiras grandes heresias, acolhendo as decisões dos primeiros grandes sínodos que condenaram grande parte delas (Ratzinger, 2016RATZINGER, Joseph. O Novo Povo de Deus. Tradução de Clemente Rafael Mahl. São Paulo: Molokai, 2016., p. 162). Ainda, de Roma, segundo a tradição, não teria surgido nenhum erro relativo à fé, o que já havia acontecido tanto em Alexandria como em Antioquia. Por isso, ela é chamada por Inácio de Antioquia (2008, p. 103): “digna de Deus, digna de honra, digna de ser chamada feliz, digna de louvor, digna de sucesso, digna de pureza, que preside ao amor, que porta a lei de Cristo, que porta o nome do Pai [...] purificados de toda coloração estranha”.

Essa ideia se verifica, ainda, no Decretum Gelasianum, que afirma a pureza da Igreja de Roma, assim como já mostra certa hierarquia com relação às demais:

A primeira sé do Apóstolo Pedro é a Igreja romana, que não tem mancha, nem ruga, nem qualquer coisa do gênero (Ef 5,27). A segunda sé, depois, foi consagrada em nome do bem-aventurado Pedro em Alexandria, por Marcos, seu discípulo e evangelista... Como terceira foi honrada, por sua vez, a sé do beatíssimo apóstolo Pedro em Antioquia, porque ali esteve antes de ir para Roma e ali apareceu pela primeira vez o nome de cristãos para designar o novo povo

(Denzinger, nº 351, grifo nosso).

Em 376 d.C., deparando-se com as insurreições arianas, São Jerônimo escreveu ao Papa Dâmaso, dizendo que “o Oriente despedaça a túnica sem costura do Senhor”, por isso, julgou “que devia consultar à cátedra de Pedro e à fé professada pela boca apostólica [...] somente entre vós se encontra intacta a herança dos padres” (Jerônimo, 2013, p. 73)1 1 Também Teodoreto de Ciro sustenta a ideia de indefectibilidade da Sé de Roma: “Esta santíssima sede tem autoridade sobre todas as Igrejas do mundo por muitos títulos, sem dúvida, mas, sobretudo, porque tem permanecido distante de todo vestígio de heresia, porque não se sentou nela ninguém que tivera opiniões contrárias, mas que tem conservado intacta a fé dos apóstolos” (Teodoreto de Ciro apud Sesboüé, 2014, p. 80). . Roma, nesse sentido, era consultada em questões relativas à fé.

2.1 A questão com Constantinopla

A questão da autoridade da Igreja romana viria a ser ainda mais trabalhada diante da transferência da capital do Império Romano de Roma para Constantinopla, chamada à época de “Nova Roma”. A Igreja de Constantinopla pleiteava gozar da mesma autoridade e dignidade da Igreja romana, mas o que conseguiu, num primeiro momento, no Concílio de Constantinopla, foi ser a segunda em dignidade (Congar, 1997CONGAR, Yves. Igreja e Papado. Tradução de Marcelo Rouanet. São Paulo: Loyola, 1997., p. 17). Com o Concílio de Calcedônia, em 451, buscou-se nivelar a dignidade das igrejas de Roma e de Constantinopla, dando à segunda a mesma autoridade da primeira no Cânon 28, mas o Papa Leão I não aprovou tal cânon, mantendo-se Constantinopla como a segunda em dignidade. Também em Calcedônia se reconheceu a dignidade da Igreja de Jerusalém, assim, já eram cinco as Igrejas tidas como primados, cada uma com seu patriarca, formando, dessa forma, a pentarquia: Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém (nomeadas, aqui, em ordem de dignidade). Com o tempo, essa pentarquia tornou-se fundamental para se compreender a unidade da Igreja, assim como para a convocação de concílios ecumênicos, visto que “a participação dos cinco patriarcados era, para um concílio, uma condição e um critério de ecumenicidade. É que os patriarcas representavam um ponto de intermediação na comunhão entre os bispos, expressão da comunhão das Igrejas” (Congar, 1997CONGAR, Yves. Igreja e Papado. Tradução de Marcelo Rouanet. São Paulo: Loyola, 1997., p. 17). O papel dos patriarcas, nesse sentido, era de serem, em sua jurisdição, símbolos de unidade da Igreja na região em que exerciam a sua exousia, ou seja, sua autoridade; ao mesmo tempo, em comunhão com os demais patriarcas, de mostrarem a unidade da Igreja Universal.

O problema é que a questão da dignidade das igrejas principais ou patriarcados estava longe de ser resolvida. Mais especificamente, o problema estava entre a igreja de Roma e a de Constantinopla, pois Roma desejava manter a sua influência sobre as demais igrejas, conforme já antiga tradição, enquanto Constantinopla visava ser ela a representante máxima da unidade da Igreja. Assim, no Ocidente desenvolve-se a teologia sobre Pedro para fundamentar a autoridade do bispo de Roma sobre toda a Igreja. De acordo com Ratzinger (2016, p. 165)RATZINGER, Joseph. O Novo Povo de Deus. Tradução de Clemente Rafael Mahl. São Paulo: Molokai, 2016., “essa teologia frisava as limitações das três antigas sedes primaciais e fazia ressaltar a importância particular de Roma”, enquanto no Oriente, o patriarca de Constantinopla outorgava para si, já no século VI, o título de patriarca “ecumênico”, ou seja, “universal” (Souza, 2020______________ História da Igreja: notas introdutórias. Petrópolis: Vozes, 2020., p. 107). Ainda, no chamado “Concílio Quinissexto”, que teve como objetivo dar continuidade a temas já trabalhados no V e no VI concílios de Constantinopla, “decretou-se que a sede de Constantinopla tivesse os mesmos privilégios que a de Roma, isso era a reafirmação do Concílio de Calcedônia (451)” (Souza, 2020______________ História da Igreja: notas introdutórias. Petrópolis: Vozes, 2020., p. 298). As atas desse concílio não foram aceitas pelo Papa Sergio I e a questão da autoridade de Constantinopla permaneceu como um ponto que continuaria a ser discutido na frágil relação entre as duas igrejas. Além disso, havia também questões teológicas que começaram a distanciar a Igreja do Ocidente e a do Oriente, como a questão do filioque.

Apresentando-se como a mais proeminente das igrejas, Roma e seu bispo passam a requerer para si o direito de intervir nas demais igrejas, inclusive patriarcados, o que não será bem aceito, principalmente por Constantinopla e seu patriarca. Um exemplo disso está no conflito entre Fócio, patriarca de Constantinopla, e Nicolau I, bispo de Roma.

Em 858, após uma série de manobras do Imperador Miguel III Bardas para depor Inácio, o então patriarca de Constantinopla, Fócio assume o posto de patriarca, desagradando Nicolau I, que escreve ao imperador, exigindo que Inácio seja reconduzido à sua cátedra, e, ao mesmo tempo, excomungando Fócio. O problema é que nem o imperador, nem Fócio aceitam essa reprimenda por parte do bispo de Roma. Os conflitos permanecem e, em 867, Fócio excomunga o papa e ameaça prendê-lo. Temos, assim, uma espécie de ensaio para o que viria a acontecer em 1054. Diante disso, Nicolau I escreve mais uma vez ao imperador, lembrando-lhe que mesmo o imperador, em questões religiosas, estava abaixo da autoridade do bispo de Roma, que seria o juiz supremo (Denzinger, 2013DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. 2. Ed. São Paulo: Paulinas; São Paulo: Loyola, 2013., n. 638-639). Tais cartas não causam efeito imediato e Inácio só será reconduzido à sé de Constantinopla com a morte de Miguel III Bardas e a ascensão de Basílio, o macedônio, que expulsa Fócio de Constantinopla. Todavia os conflitos entre Roma e Constantinopla não se resolvem e, em 1054, sendo Miguel Cerulário o patriarca de Constantinopla e Leão IX o papa de Roma, um grave cisma da história da Igreja acontece.

Vale lembrar que Miguel Cerulário envia uma carta que seria uma espécie de “ultimato” (Souza, 2020______________ História da Igreja: notas introdutórias. Petrópolis: Vozes, 2020., p. 113) aos dignitários eclesiásticos do Ocidente, denunciando as práticas do uso do pão ázimo na missa, bem como o fato de comerem carnes não consideradas sagradas, além do jejum no sábado e da supressão do “aleluia” durante a quaresma. Diante disso, o cardeal Humberto de Moyenmoutier recebe a incumbência de responder a essa carta, “recordando a autoridade e a preeminência da sede apostólica e sua autoridade nas questões relativas à doutrina” (Silva, 2022SILVA, Dayvid da. O Primado do Bispo de Roma, o Sínodo e o Ecumenismo: voltar às origens para pensar a Igreja no Terceiro Milênio. In. SILVA, Dayvid da; NOBRE, José Aguiar. O Projeto de Francisco: Evangelização, Ecologia, Economia, Ecumenismo e Educação. São Paulo: Editora Recriar, 2022., p. 298). Buscando uma forma de resolver tais contendas, Leão IX envia núncios a Constantinopla para negociar com o imperador e com Miguel Cerulário. No entanto, o papa viria a falecer em abril de 1054, não havendo sucessão imediata e, como o patriarca de Constantinopla não aceita as negociações, os representantes pontifícios o excomungam em julho de 1054 na basílica de Santa Sofia. Como réplica, Miguel Cerulário também os excomunga, causando o cisma que permanece até nossos dias entre a Igreja do Ocidente e a do Oriente, sendo a primeira conhecida como “Católica” e a segunda como “Ortodoxa”2 2 De acordo com Ratzinger (2016, p. 107), “o problema do primado e episcopado surge primeiramente como problema do primado e patriarcado, ou mais concretamente ainda, como um problema entre Roma e Constantinopla”. . Tendo observado essa pequena compreensão histórica dos concílios, vejamos a questão da autoridade.

2.2 A questão da autoridade papal e da autoridade do concílio

Embora Roma requeresse para si a autoridade diante das questões religiosas, com a queda do Império Romano do Ocidente, a Igreja de Roma passa a ter influência também no poder temporal, de tal modo que mesmo os reis deveriam acatar as decisões dos sínodos, sob pena de sua excomunhão (Souza, 2020______________ História da Igreja: notas introdutórias. Petrópolis: Vozes, 2020., p. 86). Um grande símbolo desse poder temporal dos papas está na coroação de Carlos Magno, no Natal de 800, pelo papa Leão III3 3 Segundo O’Malley (2018, p. 22), “não havia precedentes para o que ocorreu nessa ocasião. Um papa estava criando um imperador e aparentemente havia decidido por si mesmo quem ia ser esse imperador”. Mas o contrário também era verdadeiro. Havia papas que eram nomeados por imperadores, como Leão IX, que foi nomeado pelo imperador Henrique III (O’Malley, 2018, p. 23). ; de Luís, o piedoso, em 814, pelo papa Estevão IV; e de Oto I, em 962, pelo papa João XII (Souza, 2020______________ História da Igreja: notas introdutórias. Petrópolis: Vozes, 2020., p. 89-95).

Colabora, ainda, para a ideia de uma autoridade do bispo de Roma em relação às dos demais bispos, e mesmo de reis, um documento falso, conhecido por Donatio Constantini, segundo o qual “Constantino teria doado ao papa não apenas terras da Itália, mas de todo o Ocidente. O papa podia considerar-se o suserano supremo sobre essa parte do mundo” (Souza, 2020______________ História da Igreja: notas introdutórias. Petrópolis: Vozes, 2020., p. 94). Com esse documento, o papa podia utilizar as insígnias imperiais e possuía “jurisdição absoluta” sobre Roma, Itália e toda a parte ocidental do Império Romano (O’Malley, 2018O’MALLEY, John W. História, Iglesia y teologia: Cómo nuestro pasado ilumina nuestro presente. Maliaño: Sal Terrae, 2018., p. 21), ou seja, o papa, de bispo de Roma, primus inter paris, em sua relação com os bispos, converteu-se numa espécie de “imperador do Ocidente”. Essa autoridade fora exercida tanto na nomeação de imperadores como na excomunhão de reis, como aconteceu com a deposição do Imperador Henrique IV e a excomunhão de Isabel I da Inglaterra pelo Papa Pio V (O’Malley, 2018O’MALLEY, John W. História, Iglesia y teologia: Cómo nuestro pasado ilumina nuestro presente. Maliaño: Sal Terrae, 2018., p. 21).

Isso influenciou de forma negativa as relações entre as igrejas do Ocidente e do Oriente, visto que no Ocidente a autoridade do Romano Pontífice sobre a Igreja sobrepõe-se à autoridade do colégio episcopal, ou seja, a autoridade papal é lei suprema, enquanto no Oriente a autoridade máxima sobre a igreja não está em nenhum bispo, mas no Concílio Ecumênico. Temos aqui dois modos de compreensão sobre a autoridade eclesial que se chocam: de um lado, com o reconhecimento da autoridade papal; de outro, reconhecendo o concílio como autoridade máxima. De acordo com Ratzinger,

Enquanto para o Oriente o direito eclesiástico só pode ser o direito “canônico”, ou seja, o direito dos cânones, ou seja, ainda, o direito conciliar, o Ocidente reconhece o direito “papal” independente e superior aos demais. O direito conciliar também só existe como dependente do direito “papal”. A reivindicação de presidência apostólica e a competência do patriarca torna-se praticamente uma concorrência entre dois patriarcados, onde ambas as partes parecem desconhecer o verdadeiro problema. O mais trágico de tudo é que Roma não quis desvincular a tarefa apostólica da ideia essencialmente administrativa de patriarcado, arrogando-se, portanto, um direito que não podia e nem devia, necessariamente, ser aceito pelo Oriente

(Ratzinger, 2016RATZINGER, Joseph. O Novo Povo de Deus. Tradução de Clemente Rafael Mahl. São Paulo: Molokai, 2016., p. 168).

Vale lembrar que em concílios posteriores ao Cisma de 1054, buscou-se uma retomada da comunhão com o Oriente4 4 Os mais importantes são o Concílio de Constança (1414-1418) e o Concílio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma (1431-1445). , entretanto, esses concílios foram todos convocados pelo Ocidente com o intuito de que os orientais retornassem à comunhão da Igreja e se submetessem à autoridade do Romano Pontífice, o que não foi aceito pelo Oriente5 5 Ao longo do tempo, algumas igrejas do Oriente firmaram sua fidelidade e comunhão ao bispo de Roma, tanto que hoje a Igreja Católica é reconhecida como uma comunhão de igrejas, sendo a do Ocidente, romana, e outras vinte e três orientais. .

É somente diante do chamado “Cisma do Ocidente”, quando a Igreja no Ocidente chegou a ter três papas, que se ensaiou uma comunhão plena entre a Igreja de Roma e as Igrejas do Oriente, pois se viu no concílio a autoridade máxima, capaz de sanar tais questões. No Concílio de Constança (1414-1418) é que se resolveu a questão do Cisma do Ocidente, com o decreto Haec Sancta Synodus, ao afirmar que mesmo o papa está sob a autoridade do concílio (Sesboüé, 2014SESBÜÉ, Bernard. La infalibilidad de la Iglesia: história y teologia. Maliaño Sal Terrae, 2014., p. 212-213), elegendo, assim, Martinho V6 6 De acordo com Bellitto (2010, p. 118), “felizmente, o encontro de Constança reuniu as melhores cabeças da cristandade em um concílio geral que foi, comprovadamente, o mais impressionante de toda a história. Quase três dúzias de cardeais que deviam obediência a três papados diferentes se juntaram a centenas de arcebispos, bispos e abades, bem como a centenas de teólogos e canonistas. O sentimento geral era de que se esse concílio se revelasse incapaz de acabar com o cisma, nada mais poderia fazê-lo. A Igreja se encontrava em uma das situações mais perigosas de toda a sua existência”. . Essa definição agradou aos orientais, mas logo perdeu força, retomando-se, assim, a teologia sobre o primado de Pedro e de seu sucessor na sé de Roma (Sesboüé, 2014SESBÜÉ, Bernard. La infalibilidad de la Iglesia: história y teologia. Maliaño Sal Terrae, 2014., p. 215).

Constança tinha resolvido a crise que assolava a Igreja no Ocidente, tinha dado esperança aos orientais que sustentavam a autoridade máxima da Igreja no concílio ecumênico, mas tinha aberto uma nova crise na Igreja: a questão do conciliarismo. Martinho V, o papa eleito no Concílio de Constança, e, depois dele, Eugênio IV, buscaram enfraquecer as ideias conciliaristas, mas foi Pio II quem sentiu a necessidade de condenar o conciliarismo, através da Bula Execrabilis em 1460 (Bellitto, 2010BELLITTO, Christopher. História dos 21 Concílios da Igreja: de Niceia ao Vaticano II. São Paulo: Edições Loyola, 2010., p. 130).

Por mais que tenha havido tentativas de reconciliação entre Ocidente e Oriente ao longo dos séculos, mas sempre na perspectiva de retorno dos orientais, com a Constituição Dogmática Pastor Aeternus, do Concílio Vaticano I, o primado de jurisdição do Romano Pontífice foi definido, assim como a infalibilidade papal (Denzinger, 2013DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. 2. Ed. São Paulo: Paulinas; São Paulo: Loyola, 2013., nº 3064-3075), o que minou ainda mais o diálogo entre as igrejas, não apenas entre Igreja Católica e a Ortodoxa, como também com aquelas comunidades cristãs advindas do mundo protestante. Estas foram convocadas ao concílio, admoestando-as a retomar a comunhão com a Igreja Católica e com o bispo de Roma, mas, ao definir o primado de jurisdição e a infalibilidade papal, o que o concílio conseguiu fazer foi reforçar o distanciamento e a repulsa à Igreja Católica, governada pelo papa.

É importante salientar que o Oriente nunca pôs em questão a primazia do bispo de Roma como aquele que preside a Igreja na caridade, nunca se pôs contrário à ideia de que o Romano Pontífice é o primus inter paris (Congar, 1997CONGAR, Yves. Igreja e Papado. Tradução de Marcelo Rouanet. São Paulo: Loyola, 1997., p. 24). No entanto, o primado de jurisdição, ou seja, a autoridade de interferir juridicamente nas igrejas, principalmente nos patriarcados, foi vista como uma interferência de Roma em assuntos que não lhe diziam respeito. Isso porque “os papas não intervinham no Oriente enquanto patriarcas, mas de forma pontual” (Congar, 1997CONGAR, Yves. Igreja e Papado. Tradução de Marcelo Rouanet. São Paulo: Loyola, 1997., p. 18). Dotar o papa de um primado de jurisdição universal significaria, nesse sentido, esvaziar a autoridade do patriarca e sua respectiva igreja, tornando-o como que um “bispo universal”, o que, do ponto de vista da eclesiologia, seria um erro.

Tendo trilhado esse itinerário de compreensão dos concílios em face aos problemas eclesiológicos, passemos ao que o Concílio Vaticano II tem em plena evidência no magistério de Francisco.

3 O Concílio Vaticano II e a Igreja em perspectiva sinodal do Papa Francisco

A questão do primado do bispo de Roma em sua relação com os demais bispos e com todos os fiéis é tema de um dos principais documentos do Concílio Vaticano II, a Constituição Dogmática Lumen Gentium. A importância desse documento para a igreja se dá pelo fato de que, “pela primeira vez, a Igreja deu uma definição de si mesma”, privilegiando “o seu caráter de mistério e uma concepção mais bíblica, com uma raiz litúrgica, atenta a uma visão missionária, ecumênica e histórica, em que a Igreja é descrita como sacramento de salvação” (Souza, 2023SOUZA, Ney de. Aspectos sobre a sinodalidade na história e na Igreja do Brasil. In. DE MORI, Geraldo Luiz; ALBUQUERQUE, Francisco das Chagas de (Orgs). A Sinodalidade no Processo Pastoral da Igreja no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2023., p. 52-53).

Nessa constituição, o ministério do bispo de Roma e dos demais bispos é visto como um serviço à Igreja de Cristo, que é composta por todos os fiéis. Isso se verifica na própria posição do capítulo que trata dos bispos:

A ordem dos seus primeiros capítulos exprime uma importante conquista da autoconsciência da Igreja. A sequência: Mistério da Igreja (cap. 1), Povo de Deus (cap. 2), Constituição hierárquica da Igreja (cap. 3), sublinha que a hierarquia eclesiástica é colocada a serviço do povo de Deus, a fim de que a missão da Igreja se atualize em conformidade com o desígnio da salvação, na lógica da prioridade do todo sobre as partes e do fim sobre os meios

(Comissão Teológica Internacional, 2018, nº 54).

Como é possível observar, a Igreja passa a ser vista não a partir da hierarquia, mas como Povo de Deus, do qual todos os batizados fazem parte e, por isso, são a Igreja de Jesus Cristo. A função da hierarquia, nesse sentido, é de servir a esse povo. Assim, “A eclesiologia do povo de Deus sublinha, de fato, a comum dignidade e missão de todos os batizados no exercício da multiforme e ordenada riqueza dos seus carismas, das suas vocações, dos seus ministérios” (Comissão Teológica Internacional, 2018COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. A Sinodalidade na Vida e na Missão da Igreja. 2018. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20180302_sinodalita_po.html. Acesso em: 15 de março de 2024.
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, n. 6).

A mudança no modo de pensar a Igreja traz consequências importantíssimas, pois o concílio pensa a Igreja na perspectiva dos primeiros tempos: uma Igreja que dá testemunho a partir da comunhão, não da autoridade. Não é à toa que se resgata a imagem da Igreja como ícone da Trindade, pois ela é Povo de Deus (LG, n. 9-17), Corpo de Cristo (LG, n. 7) e Templo do Espírito Santo (LG, n. 4), ou seja, a Igreja é “povo congregado na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (LG, n. 4).

Essa dimensão trinitária da Igreja aponta para uma eclesiologia da comunhão, que, segundo Walter Kasper (2013, p. 80)KASPER, Walter. La Iglesia de Jesucristo. Maliaño: Sal Terrae, 2013., “não deve se resumir em mera teoria abstrata; tem que se fazer visível da Igreja e impregnar a forma concreta da vida eclesial em todos os seus níveis”.

3.1 A colegialidade episcopal e o lugar do Romano Pontífice

Quanto à relação do Romano Pontífice com os demais bispos, o concílio acentuou que o bispo de Roma é um membro do colégio apostólico, inserindo-o, assim, nesse corpo, onde ocupa o lugar de “cabeça”, por ocupar a cátedra de Pedro, sendo o sinal visível da comunhão (LG, n. 22). É reconhecida a autoridade dos bispos como sucessores dos apóstolos, destacando a realidade do serviço a toda a comunidade e afirmando que “quem os ouve, ouve a Cristo; quem os despreza, despreza a Cristo e àquele que o enviou (cf. Lc 10,16)” (LG, n. 20). No entanto, ressalta-se que o colégio dos bispos sempre age em comunhão com o bispo de Roma e com ele, nunca sem ele, detém “poder supremo e pleno sobre a Igreja universal. Mas esse poder não pode ser exercido senão com consentimento do Pontífice Romano” (LG n. 22). Chega mesmo a afirmar que,

[...] embora os bispos individualmente não gozem da prerrogativa da infalibilidade, contudo, mesmo quando dispersos pelo mundo, guardando, porém, a comunhão entre si e com o Sucessor de Pedro e quando ensinam autenticamente sobre assuntos de fé e moral, concordando numa sentença que deve ser mantida de modo definitivo, então enunciam infalivelmente a doutrina de Cristo

(LG, n. 25).

Isso significa que o colégio episcopal pode exercer o magistério supremo de comunhão com o bispo de Roma, sucessor de Pedro. Isso não esvazia a autoridade do Romano Pontífice, ao mesmo tempo em que se reconhece a autoridade dos bispos em comunhão com ele. Essa relação existente no colégio episcopal é fundamento para a instituição do Sínodo dos Bispos por Paulo VI e, também, para a perspectiva de uma Igreja sinodal sonhada pelo Papa Francisco. Com esse entendimento, passemos a refletir sobre os desafios de uma eclesiologia sinodal para o terceiro milênio.

3.2 Uma Igreja sinodal para o terceiro milênio

O Papa Paulo VI, responsável por dar continuidade ao Concílio Vaticano II após a morte de João XXIII, compreendeu bem a sua função no colégio episcopal, assim como a própria missão do colégio, instituindo, desse modo, o Sínodo dos Bispos, através do Motu Proprio Apostolica Sollitudo. A finalidade dessa instituição é a de, nas palavras do próprio Paulo VI, “prestar uma ajuda mais eficaz ao Pastor Supremo da Igreja” (Paulo VI, 1965PAULO VI, Papa. Apostolica Sollicitudo. Disponível em: https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/motu_proprio/documents/hf_p-vi_motu-proprio_19650915_apostolica-sollicitudo.html. Acesso em: 15 de março de 2024.
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). O Sínodo dos Bispos deve ter representação de todo o episcopado católico e outros delegados predefinidos, que devem se encontrar em assembleias ordinárias, extraordinárias ou especiais, sempre convocadas e presididas pelo Romano Pontífice.

Em 17 de outubro de 2015, no discurso em comemoração aos 50 anos da instituição do Sínodo dos Bispos pelo Papa Paulo VI, o Papa Francisco afirmou que “o caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio” (Francisco, 2015FRANCISCO, Papa. Comemoração do cinqüentenário da instituição do Sínodo dos Bispos. Discurso do Santo Padre Francisco. Vaticano, 17 de outubro de 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-sinodo.html. Acesso em: 15 de março de 2024.
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). Na ocasião, o Papa Francisco salientou, ainda, que:

Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta, ciente de que escutar “é mais do que ouvir”. É uma escuta recíproca, onde cada um tem algo a aprender. Povo fiel, Colégio Episcopal, Bispo de Roma: cada um à escuta dos outros; e todos à escuta do Espírito Santo, o “Espírito da verdade” (Jo 14, 17), para conhecer aquilo que Ele “diz às Igrejas” (Ap 2, 7)

(Francisco, 2015FRANCISCO, Papa. Comemoração do cinqüentenário da instituição do Sínodo dos Bispos. Discurso do Santo Padre Francisco. Vaticano, 17 de outubro de 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-sinodo.html. Acesso em: 15 de março de 2024.
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).

Foi em vista dessa compreensão que, em de outubro de 2020, o Papa Francisco convocou a Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, com o tema “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”. Mediante essa convocação, entendemos que o pontífice dá um passo importante em seu projeto eclesial que desde os primeiros tempos de seu pontificado se observa: a Igreja não é a hierarquia, mas todos os fiéis que a ela pertencem, resgatando o sentido de “Povo de Deus” presente no segundo capítulo da Constituição Dogmática Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II. Se a Igreja é o conjunto dos fiéis, todos precisam ser escutados, por isso, desde a convocação do sínodo, nas paróquias e dioceses, todo o povo, leigos e leigas, bispos, presbíteros, religiosos puderam ser ouvidos e contribuir com o sínodo a partir de seu contexto eclesial.

Nesse sentido, vale destacar o grande gesto de Francisco nesse sínodo: dele não participam apenas bispos e seus assessores, mas presbíteros, religiosos e religiosas, leigos e leigas de diversas partes do mundo, com igual direito de voto, tornando-se uma espécie de sínodo universal; com isso, ele confirma o que disse no cinquentenário da instituição do Sínodo dos bispos. De fato, o caminho da sinodalidade é a chave de compreensão e de ação da Igreja nesse milênio em que nos encontramos. Entendemos que a sinodalidade se tornará um grande sinal de grandeza humano-cristã da parte de quem abraça a proposta do Papa Francisco.

Em outubro de 2023, tivemos a primeira sessão do sínodo que reconheceu “a acrescida consciência da nossa identidade de povo fiel de Deus, dentro do qual cada um é portador de uma dignidade que deriva do Batismo e é chamado à corresponsabilidade pela missão comum de evangelização” (XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, 2023, 1a). Nesse sentido, é necessário reconhecer que todos os batizados estão envolvidos diretamente na missão da Igreja. Por isso, para manter-se fiel ao tema do sínodo, que pensa a Igreja sinodal a partir de três palavras-chave – a saber, “comunhão”, “participação” e “missão” –, não poderia este ter representantes apenas do episcopado com seus assessores, uma vez que tal tema diz respeito a todos os membros da Igreja.

Reconheceu-se, ainda, na linha do Concílio Vaticano II, que “os Bispos, enquanto sucessores dos Apóstolos, são postos a serviço da comunhão que se realiza na Igreja local, entre as Igrejas e com a Igreja universal” (XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, 2023XVI ASSEMBLEIA GERAL DO SÍNODO DOS BISPOS. Relatório Síntese: Uma Igreja Sinodal em Missão. São Paulo: Paulus, 2023., 12a), além de que se faz notar que “o ministério episcopal valoriza a participação de “todos” os fieis, graças ao contributo de ‘alguns’ mais diretamente envolvidos em processos de discernimento e de decisão” (XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, 2023XVI ASSEMBLEIA GERAL DO SÍNODO DOS BISPOS. Relatório Síntese: Uma Igreja Sinodal em Missão. São Paulo: Paulus, 2023., 12c). Nesse sentido, argumentamos que, numa eclesialidade sinodal, é preciso entender que o bispo deve ser o primeiro a incentivar, em sua Igreja local, a sinodalidade, que se verifica a partir dos mais variados organismos, visto que nenhum bispo governa sozinho a Igreja que lhe foi confiada, nem mesmo apenas com o auxílio do presbitério, mas com o envolvimento de todos os batizados. Na Evangelii Gaudium, o Papa Francisco já afirmara que “uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da igreja e a sua dinâmica missionária” (EG, n. 32).

Ao evidenciar a necessidade de se pensar a vivência eclesial numa perspectiva sinodal, o que o Papa Francisco faz é acentuar o papel de todos os batizados na vida e missão da igreja, dando ênfase ao sensus fidelium, uma vez que:

A totalidade dos fiéis, que receberam a unção que vem do Espírito Santo (cf. 1 Jo 2.20 e 27), não pode enganar-se na fé, e manifesta essa sua propriedade característica através do sentido sobrenatural da fé do povo inteiro, quando, “desde os bispos até os últimos fiéis leigos”, exprime o seu consenso universal a respeito das verdades da fé e costumes

(LG, n. 12).

Vê-se, pois, no pontificado de Francisco um governo menos centralizado e mais colegiado. Seus atos se dão, muitas vezes, a partir de consultas, seja ao grupo de cardeais instituído por ele para ajudar no governo da Igreja, seja aos dicastérios, aos bispos do mundo inteiro e a todo o povo de Deus. O primado petrino tem sido exercido a partir do diálogo com toda a Igreja, e isso é um resgate dos primeiros tempos do cristianismo, onde as decisões fundamentais para a fé não eram tomadas por um único bispo, mas a partir de uma assembleia sinodal. Com essa consciência, Francisco afirma: “compete-me, como bispo de Roma, permanecer aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao significado que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades atuais da evangelização” (EG, n. 32).

Os atos de Francisco, assim, traduzem o que o Vaticano II já propunha ao resgatar a categoria “Povo de Deus”, reconhecendo que a comunhão é o verdadeiro sentido de todo ministério, seja esse exercido de forma comum ou ordinário, mantendo-se fiel à doutrina e abrindo a Igreja a uma benignidade pastoral sonhada por João XXIII. Assim, “ele aprimora e atualiza o espírito evangelizador da Igreja e não descarta ou não dá por superado aquilo que a Igreja propôs em sua trajetória, especialmente nas conclusões do Concílio Vaticano II” (Nobre; Conceição, 2023NOBRE, José Aguiar; CONCEIÇÃO, Elizeu da. Dez anos de Pontificado do Papa Francisco: performidade e resistências. ATeo, Rio de Janeiro, v. 27, n. 71, p. 21-29, jan./jun.2023., p. 22).

É verdade que Francisco tem recebido críticas e até reações opostas da parte de grupos ultraconservadores, que intentam medievalizar o terceiro milênio, buscando resgatar um modelo de Igreja que não mais responde às necessidades de nossos tempos, e contradizendo-se, inclusive, ao propor um modelo de Igreja centrado no papalismo, para usar a expressão de O’Malley, opondo-se exatamente ao ministério pontifício de Francisco. Essas reações contrárias partem de uma minoria de leigos, presbíteros e bispos, dentre estes até cardeais, que veem nesse magistério de Francisco uma ameaça a questões já definidas por papas anteriores.

Desde o início de seu ministério, Francisco mostrou-se mais pastor do que um burocrata da fé. Ele sente que o ministério petrino tem por objetivo ser um instrumento de unidade, de comunhão e tem buscado viver autenticamente esse ministério. É a partir da autoridade que lhe compete como bispo de Roma e, portanto, como papa, que Francisco propõe o exercício do primado petrino de modo colegiado e universal, sendo o “primus inter paris” da antiguidade cristã, em sua relação com os demais bispos, e pastor universal, em sua relação com todo o povo, que busca estar perto de todos, ouvindo a todos e garantindo que, na Igreja, há lugar para todos. Não se trata, dessa forma, de esvaziar o sentido do primado petrino, mas de dar-lhe pleno sentido. João Paulo II, em sua encíclica Ut unum sint, já faz perceber os apelos de se “encontrar uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova” (UUS, n. 95). O que Francisco tem feito é buscar essa nova forma de o primado petrino ser essa referência de unidade e comunhão; e isso se dá a partir de uma autêntica consciência de seu ministério.

Assim, o Papa Francisco tem buscado estreitar os laços com todos os organismos da sociedade, sendo uma presença ativa nela. Sua eclesiologia é aberta ao diálogo e propõe uma Igreja que, de fato, se ocupe com “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias” de todo ser humano (GS, n. 1), sendo “uma Igreja de portas abertas” (EG, n. 46), a “casa aberta do Pai” (EG, n. 47), que acolhe a todos que a ela acorrem, principalmente os mais pobres (EG, n. 187). As resistências internas e externas evidenciam uma grande necessidade de volta ao grande cabedal da tradição histórica da Igreja, que nos legou uma rica caminhada para atender aos desafios de cada tempo.

3.3 Passos a serem dados rumo a uma igreja sinodal

Olhar o passado nos faz pensar o presente e o futuro da Igreja. Nossa proposta não é simplesmente de retorno, visto que a história está aberta para o futuro, mas de encontrar, na prática da Igreja primitiva, um modelo que ilumine a prática da Igreja neste terceiro milênio.

A forma como Francisco tem compreendido a sinodalidade nos indica a necessidade de uma renovação nas estruturas da Igreja que nasce de uma renovação do processo de evangelização. Para Francisco, a Igreja deve ser compreendida sempre na perspectiva de uma “Igreja em saída”, uma Igreja que vai ao encontro, sendo essa uma responsabilidade não apenas dos pastores, mas de todo o Povo de Deus. Nesse sentido,

A Igreja, em característica sinodal, não pode ser definida apenas por uma parte de si mesma, por uma elite eclesial/pastoral ou por alguns ministérios, sendo vista do alto, mas pela totalidade de um povo que faz a experiência do mistério e que sai em missão, na abertura e disposição para um caminho novo, para o qual o Espírito nos convida e abre espaço

(Kuzma, 2022KUZMA, Cesar. Igreja Sinodal. In. JUNIOR, Francisco de Aquino; MORI, Geraldo Luiz (Orgs). Igreja em saída sinodal para as periferias: reflexões sobre a I Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2022. p. 148-164., p. 151).

O Papa Francisco compreende que a Igreja, sujeito da evangelização, deve ser compreendida em um sentido mais amplo, recordando aquela imagem tão bem trabalhada na Lumen Gentium da Igreja como “Povo de Deus”. Por isso mesmo, ele tem um jeito especial de forjar uma eclesiologia, uma vez que ele nos possibilita entender que a Igreja

[...] é mais do que uma instituição orgânica e hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para Deus. Trata-se certamente de um mistério que mergulha as raízes da Trindade, mas tem a sua concretização histórica num povo peregrino e evangelizador, que sempre transcende toda a necessária expressão institucional

(LG, n. 111).

Aqui, podemos já perceber um primeiro passo a ser dado rumo a uma Igreja sinodal: compreender a Igreja a partir da totalidade, não da parte. Ao longo do tempo, a Igreja foi perdendo aquela característica fundamental que fez com que fosse reconhecida como “um só coração e uma só alma” (At 2,32). A parte se sobrepôs ao todo, as lideranças da Igreja deixaram de se colocar a serviço, para agirem acima dos demais fiéis. Por isso, é preciso que se dê um novo passo: voltar às Escrituras, principalmente ao Novo Testamento, buscando, na pessoa de Jesus, a referência primeira de autoridade e de uso desta. Ao longo do tempo, o cristianismo parece ter se distanciado de Cristo e dos apóstolos. O modelo de liderança mudou, deixando aquela característica carismática e ministerial para um modelo hierárquico, nos moldes das religiões pagãs.

Do ponto de vista institucional, exige-se um terceiro passo: buscar na Igreja primitiva as bases para uma Igreja sinodal. A autoridade exercida pelos apóstolos era uma autoridade compartilhada, que, embora tendo um dos apóstolos como referência de unidade, este não suprimia a autoridade dos demais. Em Mt 18, 18, Jesus diz as mesmas palavras aos discípulos que disse a Pedro em Mt 16, 19: “tudo quanto ligardes na terra será ligado no céu e tudo quanto desligardes na terra, será desligado no céu”. Interessante que essas palavras de Jesus, no segundo momento, são ditas exatamente em um discurso motivado pela pergunta dos discípulos: “Quem é o maior no Reino de Deus?” (Mt 18,1). Da mesma forma, em Jo 20, 23, Jesus dá aos discípulos a autoridade de perdoar os pecados. Isso não retira de Pedro sua autoridade diante dos demais discípulos e de todo o rebanho do Senhor (Jo 21, 15-17), ao contrário, lhe dá sentido, visto que a autoridade de Pedro está no apascentar, ou seja, no servir aos irmãos. Como visto na primeira seção, um grande exemplo de autoridade compartilhada se encontra no sínodo de Jerusalém e em outros sínodos da Igreja primitiva. É preciso que a Igreja no terceiro milênio retome essa prática e a adote como característica natural, sem a qual não se pode compreender o que chamamos “Igreja”, visto que o próprio termo indica eclesialidade, comunidade, comunhão e, portanto, sinodalidade.

O quarto passo diz respeito às relações entre a Igreja católica e as demais igrejas: repensar a missão do Romano Pontífice e da hierarquia da Igreja em face de um maior diálogo entre os membros da Igreja católica, demais igrejas cristãs, outras religiões e com o próprio mundo. Como visto, João Paulo II já havia convocado os teólogos de todas as vertentes do cristianismo para, sem mudar a essência, pensar a melhor forma de fazer com que o ministério petrino pudesse, de fato, contribuir para a unidade da Igreja, não para sua divisão. Vimos que na história da Igreja a questão do primado petrino foi tratada mais em uma perspectiva política do que propriamente teológica, principalmente no conflito entre as Igrejas de Roma e de Constantinopla, passando depois para conflitos internos na própria Igreja católica, que promoveram cismas e reformas – como a reforma protestante. No século 21 não há mais espaço para esse tipo de contenda. É preciso que isso seja superado. Na Evangelii Gaudium, o Papa Francisco já afirma:

Penso, aliás, que não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo. Não convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Nesse sentido, sinto a necessidade de preceder a uma salutar “descentralização”

(EG, n. 16).

A descentralização do poder é o melhor caminho para a Igreja sinodal. Mesmo após o Concílio Vaticano II, que primou por uma Igreja que dialoga e que acolhe, temos que nos deparar com autoritarismos e com discursos que geram divisões ou que os aumentam. A isso, deu-se o nome de clericalismo, tão combatido por Francisco nesses últimos tempos, visto que essa realidade “tira do povo de Deus a liberdade em servir e em viver a fé. O clericalismo infantiliza e desvirtua o Evangelho” (Kuzma, 2022KUZMA, Cesar. Igreja Sinodal. In. JUNIOR, Francisco de Aquino; MORI, Geraldo Luiz (Orgs). Igreja em saída sinodal para as periferias: reflexões sobre a I Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2022. p. 148-164., p. 159). Esse tipo de atitude impede os avanços rumo a uma Igreja sinodal, anulando qualquer possibilidade de diálogo, seja interno, seja com as demais igrejas, comunidades eclesiais, demais religiões e o mundo. Vemos, hoje, por parte de uma minoria barulhenta, a tentativa de se boicotarem os avanços propostos e promovidos pelo Papa Francisco, desde leigos a cardeais. No entanto, vemos também um sentimento de acolhida a essa forma de pensar a Igreja por parte do pontífice argentino. Diversas são as comunidades que acolhem, estudam e buscam multiplicar os temas que para Francisco são chaves para se compreender a Igreja, como “Comunhão”, “Participação” e “Missão”.

Mas, ainda, alguns desses temas não conseguiram sair do papel ou não passam de discursos vazios. É preciso dar um passo seguinte: aplicar na prática essa estrutura “sinodalizante, pois somente dessa forma a Igreja de Jesus Cristo se manterá fiel àquelas características apresentadas no credo niceno-constantinopolitano: uma Igreja Una, Santa, Católica (Universal e Ecumênica) e Apostólica. Sabemos das dificuldades, pois, como afirma Kuzma, “uma Igreja sinodal não é uma realidade pronta, mas uma condição que deve ser construída, fazendo isso em meio a um caminho sinodal que nos pede uma conversão” (Kuzma, 2022KUZMA, Cesar. Igreja Sinodal. In. JUNIOR, Francisco de Aquino; MORI, Geraldo Luiz (Orgs). Igreja em saída sinodal para as periferias: reflexões sobre a I Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2022. p. 148-164., p. 159). No entanto, é preciso dar esses passos para que o sonho de uma Igreja sinodal se torne realidade neste terceiro milênio.

Considerações finais

A presente pesquisa buscou compreender a questão da sinodalidade na vida da Igreja, a partir de suas origens, reconhecendo que nos primórdios do cristianismo a realidade sinodal era marca da comunidade dos discípulos de Jesus. Com o passar do tempo, mediante conflitos motivados principalmente por questões de política interna, a sinodalidade ficou em segundo plano, sendo substituída pela discussão sobre qual Igreja deve ter consigo o primado em relação às demais. Tal discussão acarretou cismas, ferindo assim a unidade do Corpo de Cristo.

Nossa proposta, iluminados pela eclesiologia de Francisco, foi evidenciar o valor e o sentido da sinodalidade como chave para compreendermos o próprio sentido de Igreja neste terceiro milênio. Ao nos debruçarmos sobre a questão da sinodalidade na Igreja Católica à luz do magistério do Papa Francisco, nos vemos, pois, diante de um grande desafio: traduzir o espírito da missão eclesial para um mundo ensurdecido pelo ruído dos tempos hodiernos. Compreendemos, entretanto, que, não obstante tal entendimento da necessidade, concomitantemente, há ciência de que quanto mais falarmos, tanto maiores as chances de contribuirmos com a árdua missão de Francisco. Assim, precisamos trazer a questão da sinodalidade para a pauta eclesiológica, a fim de que sejamos capazes de forjar uma eclesiologia apta a traduzir a essência da mensagem da Boa Nova vivida e ensinada por Jesus de Nazaré para as gerações hoje.

Ao construirmos este texto, pudemos ver que se faz necessário um olhar no “retrovisor” da história para continuarmos alimentando-nos da motivação da Igreja primitiva, de modo a lançarmos luzes nos desafios do presente, tendo em vista a grandeza de uma Igreja milenar – que se sabe encarregada da sua missão evangelizadora ao longo dos tempos. Vale dizer que a sensibilidade das gerações passadas nos legou um olhar sobre os desafios bem como sobre as conquistas e avanços de cada tempo. Sendo assim, refletir na atualidade sobre a questão da sinodalidade, evidenciando seus desafios e importância para que a eclesiologia do terceiro milênio seja forjada, cada vez mais em sintonia com o Evangelho de Cristo, torna-se uma vocação feliz dos fiéis. Para tanto, reafirmar a riqueza de um exercício que traz, na linha do tempo, um marco basilar na celebração do Concílio Ecumênico Vaticano II – tão bem colocado em prática nos esforços e iniciativas do Papa Francisco –, constitui uma responsabilidade moral e uma coerência de fé dos batizados. A estes cabe, então, o dever ministerial de irem se colocando em comunhão e sintonia com as corajosas iniciativas desencadeadas pelo pontífice atual.

Em vista disto, e em sincera compreensão com a sublime vocação missionária da Igreja, vale dizer que se colocar contra a proposta sinodal tão sonhada e desenvolvida pelo Papa Francisco consiste em uma desvelada quebra de comunhão proposital. Não é preciso entrar em questões sociológicas para dizer que os grupos de linhagem ultraconservadora, de caráter transnacional, que também trazem as marcas dos nossos tempos, são, na verdade – mesmo que não admitam –, vítimas capturadas pelas garras da famigerada ganância, cuja cultura do descarte é tão criticada pelo Papa Francisco. Nesse sentido, se faz mister ressaltar a importância de um apoio às iniciativas de Francisco, a fim de que se tenha consciência da necessidade de uma eclesiologia de comunhão em detrimento de um clericalismo estéril, vítima do poder pelo poder, que busca centrar tudo em si, esquecendo-se de que a Igreja só pode ser compreendida a partir da categoria “Povo de Deus”. Nesse sentido, ponderamos que todas as demais categorias apontam para essa primeira. É preciso que a Igreja, neste terceiro milênio, deixe-se contagiar pelos sonhos de Francisco para que uma Igreja sinodal seja uma realidade e possa gestar, cada vez mais, uma eclesiologia em profunda sintonia com os ensinamentos de Jesus Cristo, cujo testemunho recebemos da Igreja primitiva: “o que vimos e ouvimos isso vos transmitimos” (1Cor 11, 23).

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    Também Teodoreto de Ciro sustenta a ideia de indefectibilidade da Sé de Roma: “Esta santíssima sede tem autoridade sobre todas as Igrejas do mundo por muitos títulos, sem dúvida, mas, sobretudo, porque tem permanecido distante de todo vestígio de heresia, porque não se sentou nela ninguém que tivera opiniões contrárias, mas que tem conservado intacta a fé dos apóstolos” (Teodoreto de Ciro apud Sesboüé, 2014, p. 80).
  • 2
    De acordo com Ratzinger (2016, p. 107)RATZINGER, Joseph. O Novo Povo de Deus. Tradução de Clemente Rafael Mahl. São Paulo: Molokai, 2016., “o problema do primado e episcopado surge primeiramente como problema do primado e patriarcado, ou mais concretamente ainda, como um problema entre Roma e Constantinopla”.
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    Segundo O’Malley (2018, p. 22)O’MALLEY, John W. História, Iglesia y teologia: Cómo nuestro pasado ilumina nuestro presente. Maliaño: Sal Terrae, 2018., “não havia precedentes para o que ocorreu nessa ocasião. Um papa estava criando um imperador e aparentemente havia decidido por si mesmo quem ia ser esse imperador”. Mas o contrário também era verdadeiro. Havia papas que eram nomeados por imperadores, como Leão IX, que foi nomeado pelo imperador Henrique III (O’Malley, 2018O’MALLEY, John W. História, Iglesia y teologia: Cómo nuestro pasado ilumina nuestro presente. Maliaño: Sal Terrae, 2018., p. 23).
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    Os mais importantes são o Concílio de Constança (1414-1418) e o Concílio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma (1431-1445).
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    Ao longo do tempo, algumas igrejas do Oriente firmaram sua fidelidade e comunhão ao bispo de Roma, tanto que hoje a Igreja Católica é reconhecida como uma comunhão de igrejas, sendo a do Ocidente, romana, e outras vinte e três orientais.
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    De acordo com Bellitto (2010, p. 118)BELLITTO, Christopher. História dos 21 Concílios da Igreja: de Niceia ao Vaticano II. São Paulo: Edições Loyola, 2010., “felizmente, o encontro de Constança reuniu as melhores cabeças da cristandade em um concílio geral que foi, comprovadamente, o mais impressionante de toda a história. Quase três dúzias de cardeais que deviam obediência a três papados diferentes se juntaram a centenas de arcebispos, bispos e abades, bem como a centenas de teólogos e canonistas. O sentimento geral era de que se esse concílio se revelasse incapaz de acabar com o cisma, nada mais poderia fazê-lo. A Igreja se encontrava em uma das situações mais perigosas de toda a sua existência”.

Referências

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  • ________________ Evangelli Gaudium: A alegria do Evangelho sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual São Paulo: Paulus; São Paulo: Edições Loyola, 2013.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2024
  • Aceito
    24 Maio 2024
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