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O CRISTOCENTRISMO PNEUMATOLÓGICO INERENTE À FORMULAÇÃO “MEDIAÇÕES PARTICIPADAS” REFERENTE ÀS RELIGIÕES: SEU SIGNIFICADO TEOLÓGICO E CONTRIBUTO À TEOLOGIA DAS RELIGIÕES

The Pneumatological Christocentrism Inherent in the Formulation “Participated Mediations” Regarding Religions: its Theological Meaning and Contribution to the Theology of Religions

RESUMO

A perspectiva pneumatológica aplicada à cristologia, que reflete sobre o significado das religiões em uma história da salvação cujo único mediador é Jesus Cristo, favorece o reconhecimento, em teologia e pelo Magistério eclesiástico, de que o Mistério de Cristo se faz presença nas religiões, ocasionando um caminho de superação da definição de religiões como preparação evangélica em termos de meras etapas antecipatórias à promulgação do Evangelho. Tudo isso sintetizado na formulação “mediações participadas”, que define teologicamente as religiões do mundo, o que requer o estudo sobre a abordagem cristocêntrica durante o Concílio Vaticano II sobre as religiões, o incremento pneumatológico da teologia posterior, a relação da pluralidade de religiões com a Igreja Católica e a possibilidade de uma teologia das religiões que pense a alteridade religiosa em perspectiva pneumatológica.

PALAVRAS-CHAVE
Teologia das religiões; Mistério de Cristo; Pneumatologia; Mediações participadas

ABSTRACT

The pneumatological perspective applied to Christology, which reflects on the meaning of religions in a history of salvation whose only mediator is Jesus Christ, favors the recognition, in theology and by the ecclesiastical Magisterium, that the Mystery of Christ is present in religions, causing a path of overcoming the definition of religions as evangelical preparation in terms of mere stages in anticipation of the promulgation of the Gospel. All of this is summarized in the formulation “participated mediations”, which theologically defines the religions of the world, which requires the study of the Christocentric approach during the Second Vatican Council on religions, the pneumatological increment of later theology, the relationship of the plurality of religions with the Catholic Church and the possibility of a theology of religions that thinks about religious alterity in a pneumatological perspective.

KEYWORDS
Theology of religions; Mystery of Christ; Pneumatology; Participated mediations

Introdução

No decorrer deste artigo, demonstra-se que a expressão “mediações participadas”, utilizada na Carta Encíclica Redemptoris Missio (RM) n. 5, em referência ao papel das religiões na economia soteriológico-divina, cujo único mediador é Cristo, representa algo além de uma definição terminológica sobre as tradições religiosas. Tal terminologia carrega uma carga semântica que é expressão da relação dialética entre a maneira como o Magistério eclesial e a teologia cristã entendem a realidade da pluralidade religiosa na história da salvação, atribuindo-lhe significado.

Existe um contexto teológico e do ensinamento do Magistério em torno dessa formulação. Seu início está no cristocentrismo eclesiológico desenvolvido no Concílio Vaticano II e causador do surgimento do tema das religiões relacionado ao Mistério de Cristo e da Igreja. Após o Concílio, a cristologia aplicada às religiões foi desenvolvida pneumatologicamente pelo ensinamento do Magistério e pela teologia.

Primeiramente, K. Rahner foi o baluarte no desenvolvimento da teoria da presença do Mistério de Cristo nas religiões, que iniciou, em teologia, um processo de superação da denominada teoria do cumprimento aplicada às religiões. Posteriormente, João Paulo II, com a RM, em termos de ensinamento do Magistério, afirmou categoricamente a presença do Espírito de Cristo não apenas nos indivíduos, mas também nas próprias tradições religiosas.

Dessa maneira, a teoria teológica da presença do Mistério de Cristo foi somada à abordagem pneumatológica de João Paulo II e passou a embasar a compreensão da RM 5 sobre as religiões relacionadas ao Mistério de Cristo em termos de “mediações participadas”. Isso gerou um segundo movimento na reflexão teológica sobre as religiões, aprofundando, em perspectiva cristocêntrico-pneumatológica, a teoria do Mistério de Cristo nas tradições religiosas, na qual a universalização da única mediação de Cristo ocorre através da ação de Seu Espírito, tornando-a manifesta e concreta nas diversas situações da história do mundo e nas religiões.

Mantendo a unicidade da mediação de Cristo e sua universal presença através do Espírito, uma teologia das religiões que parta do princípio da presença do Mistério de Cristo nas religiões configura-se não somente como uma preparação em termos de fases prévias à promulgação do Evangelho, mas também como uma preparação que já participa a priori do Mistério Pascal de Cristo. Deve-se isso à universal presença do Espírito de Cristo nas religiões, proporcionando-lhes exercer a função de “mediações participadas” aos seus membros, na medida em que, nas próprias religiões, pode-se fazer uma autêntica, ainda que incompleta, experiência real de Jesus Cristo e de sua salvação, porque sua presença é universalizada pelo Espírito de Cristo.

Este artigo foi organizado a partir de uma tríplice problemática, oriunda do próprio significado das religiões como “mediações participadas”: a) cristológica: há um único desígnio salvífico divino, através de um único mediador da salvação, que é Cristo, e há uma pluralidade de religiões; b) eclesiológica: há a necessidade da Igreja para a salvação e não se pode negar que as tradições religiosas exerçam uma função positiva para a salvação de seus membros; c) pneumatológica: a presença do Espírito de Cristo nas religiões torna possível que elas exerçam a função de “mediações participadas” para seus seguidores, na única economia salvífico-divina. No desenvolvimento dessa tríplice problemática está o sentido teológico das religiões e a chave hermenêutica para se pensar uma teologia das religiões em perspectiva cristã, que é o núcleo central da fé cristã: o Mistério Pascal de Cristo.

1 O sentido teológico das religiões em perspectiva cristocêntrica: contributo à teologia das religiões

A assertiva exegética presente no texto de 1Tm 2, 4, que afirma que Deus deseja a salvação de todos através de Cristo, tem sido um importante fundamento utilizado tanto pelos Padres conciliares como pelos teólogos. No anseio de superação da perspectiva unionista, desenvolveram-se o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, nos quais a questão soteriológica não poderia prescindir da necessária reflexão teológica sobre a situação das pessoas que, embora não professem a fé cristã, não estão excluídas da graça divina e compõem a história da salvação.

O núcleo central em torno do qual Lumen Gentium (LG) 16 foi construído é a afirmação dogmático-teológica da universalidade do desejo salvífico de Deus em Cristo (1Tm 2, 4). Esse mesmo núcleo fundamental da doutrina da fé cristã, que é o caráter singular e universal do evento Cristo, foi desenvolvido em perspectiva pneumatológica na RM 5.28. Nessa encíclica, reconhece-se explicitamente a presença e ação do Espírito de Cristo, não apenas individualmente, mas também nas próprias tradições religiosas, conferindo às religiões sentido positivo na história da salvação e tornando-se parâmetro hermenêutico para o desenvolvimento de uma teologia cristã das religiões, o que gerou os resultados que serão apresentados abaixo.

1.1 A concepção cristológica é diretamente proporcional à concepção teológica sobre as religiões

A concepção teológico-cristã sobre as religiões está diretamente relacionada ao Mistério Pascal de Cristo (Rahner, 1969Rahner, K. Il mediatore unico e le molte mediazioni. Rahner, K. (Ed.). Nuovi Saggi 3. Roma: Edizioni Paoline, 1969, p. 255-276., p. 255-276; Bordoni, 2003Bordoni, M. La cristologia nell’orizzonte dello Spirito. 2. ed. Brescia: Queriniana, 2003., p. 181-200). Por isso, a RM 5-6 reafirma a identidade singular e única de Jesus Cristo, confrontando as seguintes hipóteses teológicas: a não identificação exclusiva entre Jesus de Nazaré e Cristo, de R. Panikkar (1981, p. 34-57.163)Panikkar, R. The unknown Christ of Hinduism: Towards an Ecumenical Christophany. Maryknoll: Orbis Book, 1981.; a negação do dogma cristológico da divindade de Jesus Cristo e o decorrente teocentrismo teológico genérico, de J. Hick (1977, p. 167-185)Hick, J. Jesus and the World Religions. Hick, J. (Ed.). The myth of God incarnate, London: SCM, 1977, p. 167-185.; e o reinocentrismo soteriocêntrico práxico, de P.F. Knitter (1987, p. 178-200)Hick, J.; Knitter, P.F. The Myth of Christian Uniqueness: Toward a Pluralistic Theology of Religions. Maryknoll: Orbis Book, 1987.. Ainda que a RM não mencione explicitamente esses teólogos, estudiosos dessa encíclica revelam que se trata de um afrontamento entre o ensinamento do Magistério e essas perspectivas teológicas (TOMKO, 1990Tomko, J. Missionary challenges to the theology of salvation. In: Mojzes, P.; Swidler, L. (Ed.). Christian Mission and interreligious dialogue. Lewiston: Edwin Mellen, 1990, p. 12-32., p. 12-32). Tais pressupostos teológicos pluralistas são consequências de uma teologia das religiões em que Cristo não é o portador absoluto da salvação, possibilitando que haja mediações alternativas, equivalentes ou independentes à de Jesus Cristo, o que é desconforme à doutrina da fé cristã.

Nem o ensinamento do Magistério nem a teologia cristã autorizam o uso de terminologias como “mediações paralelas” ou “mediações complementares”, comumente utilizadas por teólogos pluralistas, por confutarem a unicidade e a universalidade da salvação em Cristo e a plenitude de Sua Revelação (DUPUIS, 2000_________ Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso. Brescia: Queriniana, 2000., p. 200-205). Uma teologia cristã do pluralismo religioso que reflita sobre a função das religiões na economia da salvação, caso queira manter a perspectiva cristã, precisa partir do pressuposto de que é o dado fundamental da fé cristã, expresso em 1Tm 2, 4, no qual a universalidade salvífico-divina alcança toda a humanidade através da mediação de Jesus Cristo.

1.2 A partir do núcleo fundamental da fé cristã, fazer teologia das religiões

M. Bordoni desenvolveu, em perspectiva teológica, o aspecto “difusivo” da expressão “mediações participadas”, ao demonstrar que se por um lado a unicidade da mediação de Cristo impossibilita outros mediadores alternativos ou paralelos, por outro “suscita” outras formas de cooperação múltiplas que participam dessa única mediação (BORDONI, 2003Bordoni, M. L’universalità della salvezza in Cristo e le mediazioni partecipate. Pontificia Academia Theologica, Roma, v. 2, n. 2, p. 375-399, 2003., p. 375-377). Nesse caso, o evento Cristo é estabelecido na RM como um dado fundamental da Revelação para se pensar o significado e valor das religiões como “mediações participadas” (RM 5).

Na teologia cristã sobre as religiões, é justamente o pressuposto da presença ontológica do Mistério de Cristo nas religiões que lhes atribui significado teológico, por reconhecer nas tradições religiosas do mundo o exercício de certa função de mediação para seus membros, na relação salvífica com Deus em Cristo. Os primeiros esforços teológicos na ampliação do paradigma teológico-cristocêntrico inclusive se deram com a teoria da presença do Mistério de Cristo de K. Rahner, que supera a clássica teoria do cumprimento, criando uma tendência que foi desenvolvida por diversos teólogos, tais como C. Geffré, G. Thils, H. Küng e H.R. Schlette. Essa tendência é a afirmação da unicidade e universalidade do Mistério de Cristo para, a partir disso, atribuir significado e valor às várias religiões no único projeto divino de salvação, no qual Cristo é o único Mediador (rahner, 1969, p. 255-276).

Um segundo movimento da teologia cristã das religiões foi o desenvolvimento pneumatológico da cristologia na reflexão sobre as tradições religiosas. Sem desconsiderar a perspectiva fundamental da fé cristã sobre a universalidade da vontade salvífica divina e a necessidade da mediação de Jesus Cristo, estabeleceu-se uma reflexão teológica que demonstra o valor e o significado das tradições religiosas no plano divino da salvação, a partir do aprofundamento da cristologia em perspectiva pneumatológica, nos autores G. D’Costa, J. Dupuis, L.F. Ladaria e M. Bordoni (CROCIATA, 2001Crociata, M. Per un statuto della teologia delle religioni. Crociata, M. (Ed.). Teologia delle religioni. Bilancio e prospettive. Milano: Edizioni Paoline, 2001, p. 325-370., p. 325-370).

Como resultado, este artigo demonstrará que a cristologia desenvolvida em perspectiva teológico-pneumatológica é a que melhor concilia a unicidade e a universalidade de Jesus Cristo relacionadas à sua presença nas tradições religiosas do mundo, conforme Y. Congar (1984, p. 271-296)___________. Les religions non bibliques sont-elles médiations du salut? Congar, Y. (Ed.). Essais Oecuméniques: Le mouvement, les hommes, les problèmes, Paris: Le Centurion, 1984, p. 271-296. e W. Kasper (2004, p. 271-299.353-354)Kasper, W. Gesù il Cristo. Brescia: Queriniana, 2004.. Em suma, o Mistério de Cristo se torna presente nas religiões através da ação universalizante do Seu Espírito em todo tempo e lugar.

2 “Fora da salvação não há Igreja”: questões eclesiológicas relacionadas à pluralidade de religiões

O imbróglio sobre o significado teológico do axioma extra Ecclesiam nulla salus suscitou uma nova abordagem sobre a identidade da Igreja durante o Concílio Vaticano II. A nova concepção eclesiológica de Igreja como sacramento e instrumento de salvação adveio da virada cristológica em eclesiologia, absolutamente necessária, tanto para o surgimento do tema das religiões como para o desenvolvimento de seu significado em Concílio, em termos de praeparatio evangélica e, no pós-Concílio, de “mediações participadas” (RM 5).

A rígida interpretação desse axioma já não estava em consonância com o anseio de grande parte do episcopado e com a teologia moderna pela superação da perspectiva estritamente unionista, partindo para o ecumenismo católico e a questão sobre a graça de Cristo que ultrapassa os confins institucionais da Igreja. Associado a isso, havia o empenho pelo diálogo inter-religioso e a atribuição à universalidade da ação do Espírito Santo como distribuidor da graça divina em toda a humanidade, o que não pode deixar de abarcar as tradições religiosas não cristãs (TOMKO, 1990Tomko, J. Missionary challenges to the theology of salvation. In: Mojzes, P.; Swidler, L. (Ed.). Christian Mission and interreligious dialogue. Lewiston: Edwin Mellen, 1990, p. 12-32., p. 16-32).

A nova eclesiologia cristocêntrica do Concílio Vaticano II rompeu o exclusivismo eclesiológico ao aprofundar a natureza mistérico-sacramental da Igreja a partir de sua relação fundamental com o Mistério de Cristo. Sendo Cristo o único e universal mediador de todo o gênero humano, a eclesiologia não pode deixar de contemplar a vinculação soteriológica de toda a humanidade com a Igreja, o que inclui os seguidores de outras tradições religiosas.

Determinante para uma nova e positiva compreensão sobre as religiões, considerada a partir da virada cristológica em eclesiologia, foi o desenvolvimento da teologia em âmbito bíblico e patrístico. A utilização da terminologia patrística (diretamente em LG 16, AG 3.11.15, e incidindo em NA 1.2) – praeparatio evangelica, semina verbi, paedagogia divina – favoreceu a superação do enrijecimento jurídico da compreensão eclesial e a decorrente concepção demeritória das religiões (MOELLER, 1965Moeller, C. Il fermento delle idee nella elaborazione della Costituzione. In: Baraúna, G. (Ed.). La Chiesa del Vaticano II. Firenze: Vallecchi, 1965, p. 155-189., p. 166-172).

A apropriação das categorias patrísticas, relacionadas às religiões pelos documentos do Concílio, apresentou quatro resultados, conforme os subitens que seguem abaixo.

2.1 A intencionalidade dos Padres da Igreja e dos Padres conciliares no uso das expressões patrísticas em referência às religiões

A apropriação pelos Padres conciliares da categoria patrística praeparatio evangelica envolve a ressignificação e a ampliação do significado dessa formulação. Inicialmente, quando utilizada por Eusébio de Cesareia, referia-se às religiões no período anterior ao evento Cristo. No entanto, à medida que essa terminologia foi, no Concílio, especificamente em LG 16, associada às de semina verbi (Justino) e paedagogia divina (Clemente, Irineu), passou a ser utilizada também em referência às tradições religiosas posteriores ao advento de Cristo na história humana (PHILIPS, 1967Philips, G. L’Église et son mystère au II Concile du Vatican: Histoire, texte et commentaire de la Constitution “Lumen Gentium”. Paris: Desclée, 1967., p. 211-214).

A utilização da terminologia paedagogia divina, de Clemente de Alexandria, em Ad Gentes (AG) 3, somada à categoria já estabelecida pelos Padres conciliares na abordagem sobre as religiões, praeparatio evangelica (LG 16), configurou-se em chave hermenêutica para a ampliação sobre o significado das religiões. Isso não apenas antes e após o evento Cristo, mas também intra e extra tradição judaico-cristã, por situá-las dentro da vasta economia da salvação (o desfecho disso é parte do item final deste artigo, sobre as novas pistas de pesquisa).

Para Clemente, a função pedagógica da filosofia, em relação ao cristianismo, abriu perspectiva para a admissão da mesma relação com as religiões não cristãs contemporâneas, como pedagogia para Cristo, para os Padres conciliares (Saldanha, 1984Saldanha, C. Divine pedagogy: A patristic view of non-christian religions. Roma: Libreria Ateneo Salesiano, 1984., p. 167-169). Em suma, o valor das religiões não foi vinculado imediatamente à sua função na salvação de seus membros, mas relacionou-se ao lugar e à função das religiões na economia da salvação, em termos de preparação pedagógico-divina à promulgação do Evangelho.

2.2 O conteúdo cristológico das expressões patrísticas e suas consequências para o tema das religiões

O conteúdo cristológico das categorias patrísticas semina verbi, paedaogia divina e praeparatio evangelica propiciou o reconhecimento daquilo que é constatável nas religiões, do bom, verdadeiro, justo e santo, proveniente da gratia Christi. Trata-se da atribuição à gratia Christi como causa dos valores sobrenaturais presentes nas religiões e, portanto, como condição de possibilidade para a definição teológica positiva das religiões a partir do Concílio Vaticano II, resultando em:

a) Superação da dicotomia: religiões naturais ou sobrenaturais

A presença das semina verbi nas religiões desvela não haver conhecimento sobre Deus que não seja oriundo do Cristo-Logos. A categoria patrística de paedagogia divina apresenta o caráter processual da Revelação, do conhecimento de Deus, que é acessível a todos e de múltiplas formas, preparando-os para o Evangelho. Após o evento Cristo e o advento do cristianismo, os elementos de bondade, verdade e justiça, como sementes do Verbo nas distintas tradições religiosas, são inseridos na universalidade da redenção operada pela gratia Christi.

Com isso, o Concílio Vaticano II adentra o cerne do problema entre o cristianismo e as religiões não cristãs, encontrando o equilíbrio entre dois polos dialéticos: de um lado, a certa continuidade que há entre as religiões do mundo e o cristianismo, em função da preparação para o Evangelho; de outro, a novidade e a transcendência do cristianismo em relação às religiões não cristãs. Para tal resolução, faz-se preciso ir além do reconhecimento fenomenológico da presença de elementos de bondade, verdade, justiça e santidade nas religiões e endereçar a origem desses valores à gratia Christi (NA 2, AG 7.9, e GS 22). Sucintamente, define-se a gratia Christi como o fundamento ontológico da experiência religiosa humana (DE LUBAC, 2009DE LUBAC, H. Quaderni del Concilio. Milano: Jaca Book, 2009., p. 878-879).

Tal definição é relevante para a superação das religiões como puramente naturais, legitimando sua existência em função da presença nelas da gratia Christi, concluindo que o esforço humano religioso em se relacionar com Deus jamais pode ser considerado como ato puramente natural, uma vez que conta com o a priori da graça divina, que é universalmente presente e responsável por configurar as religiões como preparação para o Evangelho até a sua promulgação completa (RAHNER, 1981Rahner, K. Sul significato salvifico delle religioni non cristiane. Rahner, K. (Ed.). Nuovi Saggi 7. Dio e rivelazione. Roma: Edizioni Paoline, 1981, p. 423-434., p. 429-434).

b) Superação do binômio que distingue a presença da gratia Christi nas pessoas ou em suas religiões

O Concílio Vaticano II, embora tenha ocasionado a superação da dicotomia entre religiões naturais ou sobrenaturais, não chegou a superar distintamente o binômio entre a ação do Espírito Santo, que universaliza a presença da gratia Christi nos indivíduos não cristãos, e a ação dessa mesma graça em suas religiões. O desenvolvimento pneumatológico em cristologia foi o que ocasionou a superação desse binômio tanto no ensinamento do Magistério posterior ao Concílio, com a característica “paracletologia” de João Paulo II (Triacca, 1992Triacca, A. M. Lo Spirito Santo protagonista della missione. In: Dal Covolo, E.; Triacca, A. M. (Ed.). La missione del Redentore: Studi sull’enciclica missionaria di Giovanni Paolo II. Leumann: Elledici, 1992, p. 43-74., p. 56) e a explicitação categórica da ação e da presença do Espírito de Cristo nas próprias tradições religiosas (RM 5.28), como na teologia que desenvolveu e ampliou os fundamentos doutrinais do Concílio Vaticano II a respeito das religiões, partindo do elemento pneumatológico gradualmente relacionado ao conteúdo cristológico (Dupuis, 2001Dupuis, J. Il cristianesimo e le religioni: Dallo scontro all’incontro. Brescia: Queriniana, 2001., p. 131-136.139-148.346-362).

2.3 A índole eclesial da graça

Considerando o que foi apresentado acima, seria incompleto se, após reconhecer a presença da gratia Christi nas religiões, não fosse abordada a índole eclesial da graça, isto é, a graça redentora de Cristo, que, pela sua própria índole, orienta para a Igreja. A partir desse dado de fé, emerge, na gratia Christi, o fundamento para pensar a condição dos não cristãos e dos não crentes, como ordenados ao Povo de Deus, e, em decorrência disso, a condição de possibilidade para que se assevere uma possível forma de participação dos mesmos na unidade católica do Povo de Deus (LG 13-16); (Philips, 1967Philips, G. L’Église et son mystère au II Concile du Vatican: Histoire, texte et commentaire de la Constitution “Lumen Gentium”. Paris: Desclée, 1967., p. 128-129).

A partir da Lumen Gentium (LG), Nostra Aetate (NA), Ad Gentes (AG), Gaudium et Spes (GS), o critério para o estabelecimento do vínculo entre os não cristãos e a Igreja, Povo de Deus, é o Espírito Santo e sua permanente ação na história da salvação. Dado esse que rompe com uma concepção exclusivista e jurídico-formal de pertença eclesial, oriunda de uma interpretação rigorista do axioma extra Ecclesiam nulla salus, ampliando o horizonte eclesiológico para a dimensão dinâmica e processual do Povo de Deus nessa história, rumo à sua consumação escatológica. Situação em que estão os não cristãos que, portanto, gradualmente e em modos diversos, estão relacionados e ordenados à Igreja (CANOBBIO, 1994Canobbio, G. Chiesa perché: Salvezza dell’umanità e mediazione ecclesiale. Milano: Cinisello Balsamo, 1994., p. 142-147).

Essa conclusão apresenta ainda uma novidade, que é o caráter dinâmico do conceito de participação – porque gerado pelo Espírito de Cristo – na unidade católica do Povo de Deus. Aplicado aos não cristãos e às suas religiões, o conceito de participação atribui ao significado das religiões como praeparatio evangelica não um sentido de transitoriedade, um estágio anterior transitório ao Evangelho, mas uma preparação que é, desde já, participação no Mistério Pascal de Cristo, permitindo uma nova visão sobre a função das religiões na economia da salvação (GÄDE, 2002Gäde, G. Sapientia crucis. Conoscenza di Dio, rivelazione cristiana e religioni. In: Coda, P.; Crociata, M. (Ed.). Il crocifisso e le religioni: Compassione di Dio e sofferenza dell’uomo nelle religioni monoteiste. Roma: Città Nuova, 2002, p. 313-334., p. 313-334).

2.4 Qual é a necessidade da Igreja?

Constatada a relevância das religiões na economia divina e seu vínculo com a única mediação de Cristo, o quão necessária é a Igreja para a salvação em uma realidade de pluralidade religiosa? A resposta está em sua condição identitária de mistério, porque, ontologicamente vinculada ao Mistério de Cristo e em função disto, é seu sacramento de salvação.

A necessária função sacramental-soteriológica da Igreja não existe como necessidade de princípio, pois é possível que o Espírito associe qualquer pessoa ao Mistério Pascal de Cristo, sendo a graça divina a causa exclusiva da salvação. Assim, não se pode afirmar uma necessidade funcional, porém certamente se deve crer em uma necessidade de meio, como penhor de uma salvação real que testemunhe não uma salvação abstrata, mas relacionada a Cristo, ao Reino e à Igreja, que é sacramento da salvação e presença mistérica do Reino de Deus, peregrina na história até a consumação escatológica dos tempos (Semmelroth, 1972Semmelroth, O. La chiesa come sacramento di salvezza. In: FEINER, J.; LÖHRER, M. (Ed.). Mysterium Salutis IV/I. Brescia: Queriniana, 1972, p. 377-436., p. 377-436).

Com efeito, propõe-se que se pense em uma formulação axiomática a ser considerada conjuntamente ao axioma extra Ecclesiam nulla salus, que é: fora da salvação, não há Igreja. A hermenêutica conjunta dessas formulações faz emergir seu autêntico significado, que é a imersão na identidade ontológica do mistério da Igreja, sem a qual não haveria um autêntico testemunho da verdadeira salvação, que somente pode vir de Cristo, em meio à pluralidade de religiões e à multifacetada oferta de salvação e vida feliz, cujo valor e verdade somente podem vir à luz quando confrontados com a salvação oferecida por Cristo – essa, acessível contemporaneamente através da missão do Redentor, o qual continua na missão de Sua Igreja como testemunha do Mistério Pascal de Cristo e de suas consequências para a humanidade.

3 Por um cristocentrismo pneumatológico para o significado teológico das religiões

O cristocentrismo em eclesiologia causou a necessidade de pensar, em teologia, a realidade das tradições religiosas não cristãs. O tema da relação entre a missão da Igreja e as religiões não pôde se restringir ao ecumenismo ou ao diálogo inter-religioso com os hebreus, mas precisou abarcar todas as tradições religiosas do mundo. A grande novidade foi a pneumatologia da GS, de sua definição sobre o valor soteriológico universal do Evento Cristo, Encarnação-Ressurreição, e a unidade do projeto salvífico de Deus, desde a criação até a redenção. Nessa única economia soteriológica, age o Espírito Santo, concedendo a todos a possibilidade de participarem do Mistério Pascal de Cristo (TRIACCA, 1992Triacca, A. M. Lo Spirito Santo protagonista della missione. In: Dal Covolo, E.; Triacca, A. M. (Ed.). La missione del Redentore: Studi sull’enciclica missionaria di Giovanni Paolo II. Leumann: Elledici, 1992, p. 43-74., p. 43-52).

Tal desenvolvimento teológico teve influência doutrinal da nova eclesiologia cristocêntrica do esquema conciliar De Ecclesia, de 1964, sobre o tema das tradições religiosas do mundo, em termos de praeparatio evangelica, intimamente relacionadas ao Mistério de Cristo e com função distinta da Igreja, Seu sacramento de salvação. Para tanto, é muito útil resgatar o processo de debates conciliares sobre os documentos LG, NA, AG e GS, porque esclarecem o significado desses textos, expondo que a intencionalidade dos Padres era que o tema das religiões não cristãs fosse tratado teologicamente (Acta Synodalia Sacrosancti Concilii Oecumenici Vaticani IIActa Synodalia Sacrosancti Concilii Oecumenici Vaticani II. Volumen I-V, Typis Polyglottis Vaticanis 1970-1980.), ainda que, em perspectiva católica, o tema das religiões devesse ser tratado considerando os âmbitos cristológico, soteriológico e eclesiológico.

O incremento pneumatológico ao cristocentrismo eclesiológico do Concílio referente às tradições religiosas, que aconteceu em GS 22, foi absolutamente relevante para impulsionar uma nova maneira de concepção da teologia e do ensinamento do Magistério sobre a função das várias religiões na única economia salvífica, cujo único Mediador é Cristo. A efetividade da ação do Espírito Santo, no eterno desígnio salvífico de Deus Pai, salvaguarda o aspecto inclusivo da salvação em Cristo de todos os povos, uma vez que é o Espírito que concede a todas as pessoas a possibilidade de serem associadas ao Mistério Pascal de Cristo, incluindo, portanto, cristãos e não cristãos, partícipes da única história da salvação.

Em suma, a universalização do Mistério de Cristo, através de seu Espírito, é conteúdo essencial para essa nova valoração das religiões em perspectiva cristã (DUPUIS, 2001Dupuis, J. Il cristianesimo e le religioni: Dallo scontro all’incontro. Brescia: Queriniana, 2001., p. 352-353). A processual consciência da presença do Espírito de Cristo nas religiões, no Magistério e na teologia, gerou algumas conclusões, conforme a seguir.

3.1 Da preocupação com a salvação dos indivíduos não cristãos para a função das religiões na economia salvífica divina

a) No ensinamento do Magistério

Conclusão importante para o tema das religiões em teologia foi a “paracletologia” (triacca, 1992, p. 56) nos ensinamentos de João Paulo II, considerando a relevância do significado desse termo, que é o desenvolvimento pneumatológico em cristologia e o quanto isso contribuiu para a reflexão teológica sobre as religiões. Eis o caminho desse desenvolvimento: a Evangelii Nuntiandi (EN), de 1975, estabeleceu uma antropologia teológica integral e de perspectiva cristocêntrica, ao vincular a salvação de todos os homens ao Mistério Pascal de Cristo, o único Salvador. Na Redemptor Hominis (RH), de 1979, surgiu uma novidade no âmbito doutrinal, com o reconhecimento de que a crença dos membros das religiões não cristãs é efeito do Espírito da verdade que opera para além dos confins visíveis do Corpo Místico.

Os cinco Discursos de João Paulo II – Voi siete gli eredi (1981), Ad eos qui conventui (1982), La voce (1986), Ad universae Asiae (1981) e Madrasiae (1986) – explicitaram a universalidade da ação do Espírito Santo nas religiões. A Dominum et Vivificantem (DeV), de 1986, estimulou o desenvolvimento de uma pneumatologia em perspectiva cristológico-trinitária, o que terá consequências para a definição teológica das religiões como “mediações participadas”. Para a RM, o caráter propedêutico do Discurso de João Paulo II à Cúria Romana (1986), no qual foi explicitado o significado da Jornada Mundial de Oração realizada em Assis, com significado de grande relevância para a possibilidade prática de uma relação doxológica entre as religiões, será exposto na última parte deste artigo, em termos de novas luzes para ulteriores pesquisas.

Finalmente, pela primeira vez, o ensinamento do Magistério da Igreja em RM 5.28 explicita categoricamente a presença do Espírito Santo nas tradições religiosas do mundo e, em decorrência disso, define-as como “mediações participadas” (TOMKO, 1990Tomko, J. Missionary challenges to the theology of salvation. In: Mojzes, P.; Swidler, L. (Ed.). Christian Mission and interreligious dialogue. Lewiston: Edwin Mellen, 1990, p. 12-32., p. 12-32). O caráter cristocêntrico-pneumatológico dessa formulação ressalta a presença e a ação universais do Espírito de Deus não apenas na vida religiosa subjetiva daqueles que seguem outras religiões, mas na própria instituição religiosa, e abre perspectiva para o aprofundamento teológico sobre o vínculo relacional entre o papel das religiões na história da salvação e o Mistério de Cristo, capaz de suscitar outras formas de mediação que participam da única mediação de Cristo (BORDONI, 2000Bordoni, M. Verità e dialogo interreligioso. In: Fisichella, R. (Ed.). Il Concilio Vaticano II: Recezione e attualità alla luce del giubileo. Milano: Cinisello Balsamo, 2000, p. 683-689., p. 683-689). Trata-se do aspecto da participação das tradições religiosas na única mediação de Jesus Cristo, na medida em que nelas age o Espírito de Cristo, que as constitui como mediações participadas da graça divina aos seus seguidores (RM 5.28).

b) Na teologia católica pós-conciliar

Surgiram teologias que pensaram as religiões a partir do núcleo fundamental da fé cristã, que é a irrenunciável unicidade e universalidade da mediação de Cristo, somado ao enfoque pneumatológico nas religiões após a RM. Essas foram categorizadas como teologias da “guinada para o Espírito Santo” (Knitter, 2005Knitter, P. F. Introduzione alle Teologie delle Religioni. Brescia: Queriniana, 2005., p. 180), no que se refere ao tema das religiões desenvolvido por G. D’Costa, J. Dupuis, L. F. Ladaria e M. Bordoni.

Esses teólogos, sem desconsiderar a perspectiva fundamental da fé cristã sobre a universalidade da vontade salvífica divina e a necessidade da mediação de Jesus Cristo, estabelecem uma reflexão teológica que demonstra o valor e o significado das tradições religiosas no plano divino da salvação, a partir do aprofundamento da cristologia em perspectiva pneumatológica. Apresentam-se aqui duas importantes conclusões.

A primeira delas é o princípio antropológico-teológico de que o homem é um ser essencialmente relacional e comunitário, que vive em sociedade e cuja vida religiosa exprime-se através de uma tradição doxológico-ritual e litúrgica, sua comunidade doxológica. Finda-se por demonstrar que a vida religiosa pessoal não pode ser desconexa da pertença e da prática crente em uma comunidade religiosa. Essa dimensão antropológica associada à dimensão comunitária e eclesial da gratia Christi, universalizada pelo Espírito, ocasiona a superação da perspectiva completiva das religiões da teologia do cumprimento (Dupuis, 2000_________ Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso. Brescia: Queriniana, 2000., p. 328-331).

A partir desses pressupostos apresentados, seria teologicamente impraticável não considerar a real importância das tradições religiosas no processo interpelativo do Espírito de Cristo, que a todos associa ao Mistério Pascal de Cristo, e, portanto, negar um papel positivo às religiões na economia da salvação, do ponto de vista de uma modalidade de mediação, através da qual o Espírito comunica a oferta da graça da salvação da parte de Deus. Tal conclusão somente é possível mantendo-se o núcleo fundamental da fé, que é a unicidade e a universalidade da mediação de Cristo (Ladaria, 2007Ladaria, L. F. Jesucristo, salvación de todos. Madrid: San Pablo, 2007., p. 121-131.175-180; Bordoni, 2003Bordoni, M. La cristologia nell’orizzonte dello Spirito. 2. ed. Brescia: Queriniana, 2003., p. 181-200).

A segunda conclusão é que três riscos típicos da teologia das religiões são evitados quando se mantém não somente a dimensão normativa, mas também a prolética da mediação de Cristo, isto é, sem abrir mão da única Aliança normativa em Cristo, considera-se que participam dela os diferentes povos do mundo que compõem a mesma história da salvação (D’Costa, 1990D’Costa, G. One Covenant or Many Covenants? Toward a Theology of Christian-Jewish Relations. Journal of ecumenical studies, Philadelphia, v. 27, n. 3, p. 441-452, 1990., p. 441-452). Um dos riscos é a do particularismo cristomonista da teologia das religiões de cunho exclusivista, que nega a salvação aos não cristãos; outro é o universalismo teocêntrico genérico da teologia pluralista das religiões, que, para afirmar a salvação dos não cristãos, nega o que a doutrina da fé cristã católica ensina sobre o Mistério de Cristo; e o terceiro, uma teologia do cumprimento que entende as tradições religiosas do mundo em termos de substituição, negando a unidade orgânica do plano divino da salvação, conduzido pelo Espírito de Cristo que a todos orienta, gradualmente e a seu modo, à unidade católica do Povo de Deus e à plena realização escatológica (LG 13-16; GS 22; RM 28); (D’Costa, 1990D’Costa, G. Christ, the Trinity, and Religious Plurality. D’Costa, G. (Ed.). Christian uniqueness reconsidered: the myth of a pluralistic theology of religions. Maryknoll: Orbis Book, 1990, p. 16-29., p. 16-29).

Se é o Espírito de Cristo o responsável por desvelar as riquezas do mistério divino em outras religiões, em virtude de sua própria natureza intratrinitária, relacionada à Revelação do Verbo em Cristo, não é possível que haja uma Revelação independente nas religiões que não esteja em consonância com o que Deus já revelou em Cristo. Ora, se é verdade que a universalidade da ação do Espírito vai além do cristianismo, também é verdade que não pode ir além do conteúdo da Revelação cristã. Em decorrência disso, deve a Igreja, em razão de sua especial relação com Cristo, estar respeitosamente atenta ao que o influxo do Espírito de Cristo gera nas religiões do mundo. Também elas testemunham a presença e a ação do Espírito em toda a história da salvação (D’COSTA, 1990D’Costa, G. One Covenant or Many Covenants? Toward a Theology of Christian-Jewish Relations. Journal of ecumenical studies, Philadelphia, v. 27, n. 3, p. 441-452, 1990., p. 22-26).

3.2 Não apenas a presença do Espírito de Cristo, mas uma presença interpelante

A GS 22 é um avanço com relação ao que foi estabelecido no capítulo II da Constituição sobre a Igreja, especificamente em LG 13-16. Nesse texto, evidenciou-se dogmaticamente a universalidade da gratia Christi que atinge toda a humanidade. Já na GS, essa graça é tida como interpelante, ou seja, oferece à liberdade humana a possibilidade de responder à Revelação divina. Ora, não pode haver salvação sem o esforço humano de cooperar com o projeto divino. Desse modo, foi enfatizada a ação de Deus que, através do Espírito de Cristo, oferece a todos a possibilidade de serem associados ao Mistério Pascal de Cristo em perspectiva interpelativa (RATZINGER, 1968Ratzinger, J. De Ecclesia et vocatione hominis. Kommentar des ersten Kapitel des erste Teil. In: HÖFER, J.; RAHNER, K. (Ed.). Lexikon für Theologie und Kirche, III, Freiburg: Herder, 1968, p. 313-355., p. 350-354).

Por interpelação, entende-se o primeiro movimento, que é sempre o da inciativa divina de graciosamente vocacionar o homem à salvação, sem impor-lhe qualquer obrigatoriedade, mantendo o livre-arbítrio de cada pessoa. Um segundo movimento envolve justamente a resposta humana a essa apriorística interpelação graciosa e salvífica. Tal dimensão interpelante da graça a todo ser humano está em consonância com o significado da terminologia paedagogia divina, tal como foi apropriada em LG, NA e AG, na qual Deus, gradualmente e de diferentes formas, através do Espírito de Cristo, orienta todas as pessoas e povos à unidade católica do Povo de Deus.

3.3 O Espírito de Cristo habilita o homem à doxologia nas religiões

Toda autêntica oração é inspirada pelo Espírito de Cristo (O’Collins, 2008O’Collins, G. Salvation for All: God’s Other Peoples. Oxford: Oxford University, 2008., p. 228). Se a GS 22 traz a dimensão interpelante da graça como a que capacita o homem a responder livremente à autocomunicação salvífico-divina, não se pode deixar de pensar que a autocomunicação divina, transcendental e sobrenatural, é sempre mediada pela realidade categorial e histórico-existencial da pessoa. O homem, manifestamente, é ser comunitário, estabelece vínculos sociais, culturais e religiosos – índole comunitária impossível de ser abdicada quando se trata da atitude humana de resposta à interpelação divina que não pode prescindir do aspecto social do homem e, portanto, da religião da qual ele participa (Rahner,1965Rahner, K. Il cristianesimo e le religioni non cristiane. Rahner, K. Saggi di antropologia soprannaturale. Roma: Edizioni Paoline, 1965, p. 533-571., p. 559).

Nessa perspectiva, um dado importante é o caráter complementar entre a índole eclesial da graça, que a todos orienta à incorporação na Igreja, e a dimensão interpelante da graça divina com cada homem que, por ter uma irrenunciável índole comunitária, faz-nos pensar não apenas a dimensão individual de sua vida religiosa, mas também a comunitária e doxológica, vivenciada na religião à qual ele pertence. A presença da gratia Christi nas religiões se deve à universalizante ação do Espírito de Cristo, cujo influxo habilita o homem a responder à iniciativa autocomunicativa e interpelante de Deus. Tal resposta, por parte desse homem que é essencialmente um ser comunitário, não pode ser dada somente de forma subjetiva, porque supõe o contexto histórico-cultural e religioso no qual a pessoa se encontra e, em decorrência disso, é inegável a relevância que sua religião possui, seja na abertura desse homem ao transcendente, seja na sua oração em termos de resposta doxológico-comunitária ao Deus que o interpela (GÄDE, 2002Gäde, G. Sapientia crucis. Conoscenza di Dio, rivelazione cristiana e religioni. In: Coda, P.; Crociata, M. (Ed.). Il crocifisso e le religioni: Compassione di Dio e sofferenza dell’uomo nelle religioni monoteiste. Roma: Città Nuova, 2002, p. 313-334., p. 313-334).

Somada a isso, existe a índole eclesial da graça, ou seja, a gratia Christi que a todos orienta para a unidade católica do Povo de Deus e, em última instância, para a incorporação completa na Igreja. Na medida em que as religiões do mundo colaboram para que seus membros vivam sua vocação salvífica, ou seja, relacionem-se com o Espírito de Cristo, que os interpela, ainda que não tenham plena consciência categórica do que significa o Mistério de Cristo para a sua salvação, ainda assim, tais religiões exercem, na perspectiva cristã católica, autêntica função de mediações, porque participam, a seu modo, da processualidade pedagógico-divina que a todos orienta para o Mistério de Cristo. Tal unidade completa é expressa sacramentalmente pela unidade católica do Povo de Deus. Estando imersas nessa gradualidade relacional com o Povo de Deus, as religiões participam de sua sacramentalidade (Menke, 2014Menke, K.-H. Sacramentalidad: Essencia y llaga del catolicismo. Madrid: BAC, 2014., p. 109-113). Com efeito, o caráter sacramental da catolicidade da Igreja lança nova luz para aprofundar o caráter de “sacramentos naturais” para as religiões, o que será, mais adiante, pontuado como uma nova perspectiva de pesquisa levantada por este trabalho.

4 Resultados novos

Os resultados novos desta pesquisa refletem todo o percurso de estudos realizados e, portanto, desenvolvem, em perspectiva pneumatológica, a cristologia e a eclesiologia relacionadas ao tema das religiões, findando por enfatizar que o caráter preparatório das religiões, quando interpretado no âmbito pneumatológico-cristocêntrico da formulação das religiões como “mediações participadas”, não se refere a uma preparação em termos de uma mera fase propedêutica, mas a uma preparação à promulgação completa do Evangelho, que implica prévia participação das religiões na obra redentora de Cristo e, portanto, relevante significado na economia soteriológico-divina.

Destarte, a perspectiva cristocêntrico-pneumatológica aplicada às religiões pode gerar tríplice perspectiva para o seu significado teológico: a) o desenvolvimento pneumatológico do caráter cristocêntrico da mediação de Maria e suas consequências para a significação das religiões como “mediações participadas”; b) a possibilidade teológica de que as tradições religiosas posteriores ao evento Cristo exerçam a função de “sacramentos naturais”; c) o significado de preparação à promulgação do Evangelho, aplicado às religiões, não em sentido transitório, mas participado da única mediação de Cristo na mesma economia da salvação.

4.1 O pneumatocentrismo da mediação de Maria: protótipo ao sentido mediacional das religiões

Conforme a indicação da Dominus Iesus (DI) 14, a dimensão cristológica da mediação de Maria é chave hermenêutica para a compreensão do significado das religiões como “mediações participadas” do Mistério de Cristo em RM 5. Essa referência hermenêutica da mediação de Maria na economia da salvação, em DI 14, remete ao conteúdo cristológico da mediação de Maria em LG 62 e, portanto, ao já utilizado, desde o Período Antepreparatório ao Vaticano II e mesmo durante o Concílio, texto paulino de 1Tm 2, 4-6, para se referir ao desejo salvífico universal divino que, durante os debates conciliares, foi relevante referência para o estabelecimento da relação entre a unicidade salvífica em Cristo e a diversidade de religiões.

O texto paulino não intencionou abordar a possibilidade de que existam mediações paralelas ou equivalentes à de Cristo ou que a salvação divina é reservada a um grupo restrito, mas a ênfase do texto está na extensão universal da Redenção de Cristo e, em decorrência disso, a exegese teológica aborda a possibilidade teórica de que existam outros tipos de mediação, não concorrentes, mas que participam do universal desígnio salvífico de Deus, de a todos salvar em Cristo (Blanco, 1989Blanco, S. Un Dios y un mediador. Nota exegética a 1 Tim 2,5. Ephemerides Mariologicae, Madrid, v. 39, p. 287-292, 1989., p. 290-291).

Nesse ponto, emerge o caráter paradigmático da mediação de Maria (LG 62) para qualquer tipo de outra mediação possível em perspectiva cristã. Como a mediação de Maria, qualquer outra mediação precisa ser entendida como derivada de uma única fonte, que é o Mistério de Cristo, jamais sendo-lhe supletiva, concorrente ou paralela, pois nada podem acrescentar à graça salvífica divina.

A mediação de Maria evidencia o caráter derivado e dependente de qualquer outra mediação para com a mediação de Cristo (Galot, 1997Galot, J. La mediazione di Maria: natura e limiti. La Civiltà Cattolica, Roma, v. 148, n. 4, p. 13-25, 1997., p. 13-25). Tem significado eminentemente cristocêntrico. Desenvolver esse significado em perspectiva pneumatológica permite concluir que a universal ação do Espírito de Cristo é chave hermenêutica da mediação única de Cristo que, por ser estabelecida por Deus, não exclui, mas, antes, é a condição de possibilidade para outros tipos de mediações participadas e “suscita” outras formas de cooperação múltiplas que participam dessa única mediação (Capizzi, 2008Capizzi, N. Cristo unico mediatore e il senso della partecipazione di Maria all’opera salvifica. In: Franzoni, O.; Bacchetti, F. (Ed.). In Cristo unico Mediatore Maria cooperatrice di salvezza: Atti del XIX Colloquio Internazionale di Mariologia. Roma: Associazione Mariologica Interdisciplinare Italiana, 2008, p. 47-58., p. 53-58). O desdobramento pneumatológico da mediação de Maria é o que dá sentido à sua mediação em termos de maternidade universal e solidariedade pascal com toda a humanidade, o que se relaciona à função das religiões para com seus membros, que exercem uma função solidária, porque mediacional, na medida em que propiciam aos seus seguidores uma experiência de Deus, ainda que distinta da experiência cristã.

A mediação de Maria somente pode ser luz para a compreensão sobre a possibilidade de outras mediações, como as religiões, devido à sua natureza pneumatológica. Temos a dimensão teológico-antropológica que envolve a interpelação do Espírito que habilita Maria a participar do Mistério de Cristo através de sua livre assertiva resposta em colaborar com a obra redentora divina. Desse modo, é a ação interpelante do Espírito a condição de possibilidade para a mediação de Maria, que não se restringe a uma participação prévia à Encarnação, mas permanente, na medida em que é mediação solidária para com a missão do Filho e exerce solidariedade para com toda a humanidade salva em Cristo, o que significa um desenvolvimento da dimensão cristológica dessa mediação pela pneumatologia.

A plenificação pneumática em Maria a insere na economia da gratia Chisti com uma função mediadora, ocasionando sua participação no Mistério de Cristo em âmbito solidário com toda a humanidade (DE FIORES, 1997De Fiores, S. Lo Spirito e Maria nella teologia post Conciliare. Marianum, v. 59, p. 393-430, 1997., p. 394-402). Justamente, é esse o dado essencial para se pensar que é a presença do Espírito de Cristo que gera, de modos diversos, seja a mediação de Maria seja o caráter participado da mediação das religiões, haja vista que elas são ambientes para a interpelação do Espírito e para a resposta doxológica do homem, e que o Espírito de Cristo nelas age para orientar a pessoa à salvação e, assim, ocasionar a sua participação no Mistério Pascal de Cristo (Canobbio, 2008Canobbio, G. L’azione di Dio “in tutti e per mezzo di tutti” (Ef 4,6) e la cooperazione di Maria. In: Franzoni, O.; Bacchetti, F. (Ed.). In Cristo unico Mediatore Maria cooperatrice di salvezza: Atti del XIX Colloquio Internazionale di Mariologia. Roma: Associazione Mariologica Interdisciplinare Italiana, 2008, p. 21-33., p. 27-29).

4.2 A presença da graça nas religiões pela ação universalizante do Espírito de Cristo

O cristocentrismo em eclesiologia gerou uma nova definição de Igreja, cuja abrangência não pode desconsiderar as tradições religiosas e cuja cristologia desenvolvida pneumatologicamente é a que melhor explica a presença do Mistério de Cristo nas religiões. A categoria presença, no contexto pneumatológico de RM 28, relacionada às religiões (RM 5), ocasiona uma virada pneumatológica em teologia das religiões, uma vez que, por ser uma categoria imbuída de significado relacional, provoca a consciência de que, se o Espírito de Cristo é presente nas tradições religiosas do mundo, não se pode negar a participação das mesmas no único desígnio divino para a salvação da humanidade, em termos de mediações que são suscitadas pela única e universal mediação de Cristo. Sendo sempre o Espírito de Cristo e não outro qualquer espírito, é Ele que atualiza a presença do Cristo Ressuscitado nas culturas e nas religiões, e que associa a todos ao Mistério Pascal de Cristo, não havendo pessoa ou religião que esteja alheia à presença do Espírito de Cristo (O’Collins, 2008O’Collins, G. Salvation for All: God’s Other Peoples. Oxford: Oxford University, 2008., p. 208-226).

A virada pneumatológica em teologia das religiões ocasionou a concepção da presença do Espírito nas religiões. A decorrente participação delas no Mistério Pascal de Cristo – conforme o ensinamento do Magistério e a teologia católica abordadas inicialmente – não nega que a plenitude dos meios de salvação se encontre na Igreja, mas evidencia que a diversidade gradual de ordenação dos não cristãos à unidade católica do Povo de Deus (LG 11-16 e NA 1-4) tem um significado teológico (Coda, 2003Coda, P. Il logos e il nulla: Trinità, religioni, mistica. Roma: Città Nuova, 2003., p. 77-81).

A Igreja, ainda que não seja a origem da graça, em função de seu vínculo ontológico com o Mistério de Cristo, comunica a gratia Christi, constituindo-se em seu sacramentum. O debate dos Padres conciliares demonstrou que a gratia Christi não pode ser reduzida à dimensão subjetiva da salvação, porém está integrada a uma perspectiva orgânico-relacional mais ampla em que o homem é introduzido em uma dimensão relacional com Deus, caracterizada pela relação entre o Mistério de Cristo e sua Igreja.

Ora, existe um vínculo soteriológico entre aqueles que seguem outras tradições religiosas e a Igreja, uma vez que a gratia Christi, conforme já dito anteriormente, possui caráter eclesial por orientar o homem para a completa incorporação à Igreja, o que requer a concepção teológico-pneumatológica de processualidade, no qual a ação do Espírito de Cristo que a todos orienta causa a incorporação invisível do não cristão, em termos de um tipo de pertença, não plena, à Igreja (Congar, 1965Congar, Y. L’Église, sacrement universel du salut. Église vivante, Louvain, v. 17, p. 339-355, 1965., p. 339-355).

Nessa perspectiva, este artigo apresentou uma contribuição para a releitura do significado do axioma extra Ecclesiam nulla salus, no sentido de que afirmar a necessidade da Igreja, para os que compõem outras tradições religiosas não cristãs, está na ordem da finalidade e não da eficiência (Dupuis, 2000_________ Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso. Brescia: Queriniana, 2000., p. 469-478). A causa eficiente da salvação é sempre a gratia Christi, que é universalizada pelo Espírito de Cristo nas religiões e faz com que todos, por participarem da economia salvífica da única mediação de Cristo, estejam orientados à sua incorporação na unidade católica do Povo de Deus, cuja visibilidade mistérica já se faz ver na Igreja. Isso mantém, portanto, seja a relevância e a necessidade da Igreja para a salvação, seja a função positiva das tradições religiosas do mundo como mediações que participam desse processual agir do Espírito de Cristo na história da salvação.

Tendo sido reconhecido pelo Concílio Vaticano II que tudo o que de bom, verdadeiro, justo e santo que se pode encontrar nas religiões tem seu fundamento ontológico na gratia Christi (LG 16; NA 2; AG 9) e, pelo pós-Concílio, que esses valores sobrenaturais da graça nas religiões são possíveis devido à presença efetiva do Espírito de Cristo nas próprias tradições religiosas, apresentamos, como resultado deste percurso hermenêutico que, sendo o Espírito de Cristo gerador da verdade, constatável também nas tradições religiosas não cristãs, essa verdade possui uma relevância insuperável que não pode ser relativizada, pois, gerada pelo Espírito, tal verdade possui, portanto, algo de definitivamente válido para as pessoas que seguem essas outras tradições religiosas do mundo, contribuindo para a sua relação com Deus e para a salvação oferecida em Cristo (Gäde, 2002Gäde, G. Sapientia crucis. Conoscenza di Dio, rivelazione cristiana e religioni. In: Coda, P.; Crociata, M. (Ed.). Il crocifisso e le religioni: Compassione di Dio e sofferenza dell’uomo nelle religioni monoteiste. Roma: Città Nuova, 2002, p. 313-334., p. 322-333).

Esse resultado conclusivo está em conformidade com uma teologia das religiões que parte do pressuposto hermenêutico do núcleo central da fé Cristã, a unicidade e a universalidade da mediação de Cristo, mas em perspectiva pneumatológica, pois é o Espírito de Cristo que gera o que de insuperavelmente válido se pode encontrar nas religiões. Com efeito, a Revelação em Cristo é o critério para discernimento do que há de definitivamente válido nas religiões, porque advém de Seu Espírito.

4.3 A presença do Espírito de Cristo nas religiões como princípio que possibilita a dimensão dos “sacramentos naturais” nas religiões

Outro importante resultado é que, sendo sempre o mesmo Espírito de Cristo gerador do que de válido e insuperável se pode encontrar nas religiões, não se trata somente de pensar sua ação cronologicamente antes ou após o evento Cristo, enquanto acontecimento constatável historicamente, mas também de pensar se o Espírito é, ainda hoje, presente nas religiões, orientando-as rumo à sua definitividade em Cristo, com a completa promulgação do Evangelho. Logo, deve-se falar de uma ação do Espírito de Cristo tanto antes e depois, quanto intra e extra da tradição judaico-cristã (Stoeckle, 1970Stoeckle, B. L’umanità “extrabiblica” e le religioni del mondo. In: FEINER, J.; LÖHRER, M. (Ed.). Mysterium Salutis II/II. Brescia: Queriniana, 1970, p. 851-884., p. 851-881). Isso, somado à concepção de uma única economia da salvação, permite a analogia entre as verdades constatáveis na religião de Israel e as verdades constatáveis nas tradições religiosas posteriores ao evento Cristo.

A partir disso, dá-se a possibilidade de qualificação teológica dessa verdade sobrenatural nas religiões em termos de “sacramentos naturais” – terminologia comumente utilizada para se referir à ação revelativa de Deus, no interior da religião de Israel, anteriormente ao advento de Cristo na história. Contudo, considerando a permanente ação graciosa divina através do Espírito de Cristo, tanto na humanidade antes da Revelação judaico-cristã, como depois e fora do âmbito judaico-cristão, pode-se conceber a presença do Espírito de Cristo, nas religiões contemporâneas, de forma simbólico-sacramental, ou seja, por meio de elementos que foram gerados pelo próprio Espírito e que possuem a mesma função de “sacramentos naturais” (Vorgrimler, 1992Vorgrimler, H. Teologia dei sacramenti. Brescia: Queriniana, 1992., p. 25-45).

Posto que oriundos do Espírito de Cristo, esses elementos nas religiões são adjetivados como elementos sobrenaturais, constatáveis em tudo o que de bom, verdadeiro, justo e santo pode ser encontrado nelas. Gerados pelo Espírito de Cristo nas religiões, tais elementos não são meramente acessórios ou transitórios, porém se configuram como verdadeiros “sacramentos naturais”. Isso porque possuem pretensão de insuperável validez, constituindo-se em uma dimensão das tradições religiosas, mas não qualquer dimensão: uma dimensão estruturante das religiões, autêntica realidade ontológica gerada nas religiões pela mistérica presença de Cristo, conferindo-lhes a dimensão de participação no mistério salvífico de Cristo e, portanto, atribuindo-lhes a função de “mediações participadas” para seus seguidores no processo histórico de promulgação definitiva do Evangelho.

Uma teologia das religiões que parta do pressuposto do Mistério de Cristo nas religiões precisa considerar seriamente a permanente pedagogia divina que encaminha pessoas e povos à promulgação do Evangelho de um modo não constatável cronologicamente, pois é uma situação particular de cada povo, cultura ou religião; de modo que a certeza da presença do Mistério de Cristo nas religiões de hoje (RM 5.28) ressignifica a utilização usual da expressão “sacramentos naturais”, aplicando-a também às tradições religiosas de nossa época contemporânea (Dupuis, 2001Dupuis, J. Il cristianesimo e le religioni: Dallo scontro all’incontro. Brescia: Queriniana, 2001., p. 340-362).

5 Nova prospectiva de pesquisa: o evento de oração em Assis como protótipo da relação doxológica entre as religiões à luz da virada pneumatológica em teologia

Apresenta-se aqui uma nova perspectiva para ulterior pesquisa sobre o tema: a disposição do cristão a ouvir e a se relacionar com as tradições religiosas do mundo parte de um pressuposto eminentemente pneumatológico, considerando que é o Espírito Santo que permite nos colocarmos em relação com a particularidade do evento Cristo constatável nas religiões. Nesse sentido, de especial relevância é o caráter práxico do evento de oração em Assis, que põe em prática tudo o que foi aqui dito sobre o ensinamento do Magistério e sobre a teologia das religiões.

O evento da Jornada Mundial de Oração em Assis (1986) desvelou-se como paradigmático, pois é a concretização daquilo que o Magistério e a teologia desenvolveram sobre as religiões em perspectiva pneumatológica. As religiões, na medida em que têm seu papel na abertura do homem que responde doxologicamente ao Espírito de Cristo que o interpela, gera no cristão uma atitude possível: “estar junto para rezar” (João Paulo II, 1986, p. 747).

Distante de qualquer sincretismo, essa postura concreta incentivada pelo Papa é gerada pela consciência e pelo respeito à ação do Espírito de Cristo nas tradições religiosas, que as encaminha à unidade católica do Povo de Deus, de modo que já não é possível desconsiderar a relevância mediacional daquela religião para seus membros, seja o encontro pessoal de cada um de seus seguidores com Deus e a salvação em Cristo, seja a função da religião na história da salvação, uma vez que o Espírito de Cristo é presença atuante nela (RM 5.28), não para eliminá-la, mas para habilitar o homem a afrontar a dimensão religiosa e transcendente de sua vida, e suscitar nele a autêntica oração. Em suma, sua religião colabora na economia salvífica, mediando participativamente a ação do Espírito de Cristo. Tal conclusão verifica-se no desenvolvimento de GS 22, nos documentos RM 5.28 e DI 14, tendo a expressão concreta no evento de oração inter-religiosa em Assis.

Conclusão

As religiões foram definidas pelo Concílio Vaticano II como praeparatio evangélica, visto que estão inseridas na paedagogia divina, que prepara a humanidade para a promulgação completa do Evangelho. Essas terminologias não foram forjadas durante os debates conciliares, mas pelos Padres da Igreja (Clemente, Eusébio, Irineu e Justino). O trabalho de compreensão hermenêutica da intencionalidade dos Padres da Igreja, ao aplicar essas terminologias à filosofia grega e às religiões anteriores ao evento Cristo, demonstrou que afirmar a preparação para a vinda do Redentor não implica restrição cronológica à sua vinda terrena, uma vez que a paedagogia divina para os Padres da Igreja se estende até a consumação escatológica do tempo. Em toda a história da salvação – portanto, anterior e posterior ao evento Cristo –, as religiões mantêm-se no exercício da função de praeparatio evangelica, não em termos cronológicos pré-Cristo, mas pró-Cristo, ou seja, até a promulgação de seu Evangelho.

O desvelamento desse significado amplo da praeparatio evangelica soma-se à teologia da presença do Mistério de Cristo nas religiões, resultando na conclusão de que nelas age o Espírito de Cristo, que gera nelas valores sobrenaturais de definitiva validez, elementos que são constitutivos e estruturantes das tradições religiosas. Com efeito, não podem as religiões serem meras realidades propedêuticas e provisórias, porém, posto que inseridas na única economia da salvação, na qual o Espírito de Cristo pedagogicamente conduz a todos à plenitude da Revelação de Deus em Cristo, e orientadas à unidade católica do Povo de Deus, tendo a função de mediar a interação relacional entre a autocomunicação graciosa divina e a liberdade humana, as religiões também colaboram para que seus membros respondam ao Espírito de Cristo que os interpela. Com efeito, as religiões, quando relacionadas teologicamente ao Mistério Pascal de Cristo, exercem uma função colaborativa na economia salvífica em termos de “mediações participadas”.

Conclui-se com tríplice assertiva. Na primeira delas, a carga semântica do conceito de participação, em perspectiva teológica, unido à categoria de mediação, aplicado às religiões, reflete uma antropologia que desponta no Concílio Vaticano II como um dado de enorme relevância: a dignidade de toda pessoa humana como ser livre e responsável, ser histórico e de relação com Deus, vocacionado à salvação em Cristo, ainda que não tenha consciência disso.

Na segunda, o esforço desse homem religioso, inclusive o do não cristão que vive sua religiosidade inserido em uma tradição religiosa, precisa ser valorizado. Homem que, introduzido na única história da salvação e praticante de uma tradição religiosa, é interpelado pelo Espírito de Cristo a responder-lhe de forma pessoal e em sua comunidade doxológica, tendo sua religião uma importante função de mediação na história das relações entre o homem e Deus.

Na terceira, a dimensão pneumática da única história da salvação que ultrapassa o limite cronológico e adentra o sentido ontológico da história, que é toda orientada para sua consumação escatológica em Cristo, de modo que o que se afirmava antes de Seu advento na história, aquilo que se encontrava na tradição judaica como preparação para a promulgação do Evangelho – em termos de sacramentos naturais – mantém-se válido a toda religião que, independentemente do tempo e lugar, é mediação ao Espírito que presentifica o Mistério Pascal de Cristo e, por ter a prerrogativa de a todos associar a esse Mistério de Cristo, torna as pessoas e as religiões partícipes da única economia divina cujo Mediador é Cristo.

Siglas

  • 1 Tm   Primeira Carta de São Paulo a Timóteo
  • AG   Ad gentes
  • DeV   Dominum et vivificantem
  • DI   Dominus Iesus
  • EN   Evangelii nuntiandi
  • GS   Gaudium et spes
  • LG   Lumen Gentium
  • NA   Nostra aetate
  • RH   Redemptor hominis
  • RM   Redemptoris misio

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2022
  • Aceito
    01 Abr 2024
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