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Filhos entre Laços Familiares Judicializados: Uma Leitura Psicanalítica sobre a Alienação Parental

Resumo

Este artigo analisa dinâmicas e processos psíquicos subjacentes aos conflitos judicializados sob a nomeação de alienação parental, através de três estudos de caso, à luz da psicanálise. O litígio vivenciado pela criança reflete seus embaraços com o Outro na busca por respostas aos seus enigmas e afetos, em meio à guerrilha daqueles que se ocupam das funções parentais. O estudo localiza travessias necessárias à compreensão da alienação parental: das formas sócio-históricas de se conceber e recriar os laços familiares; dos lutos no percurso da recomposição familiar; da releitura do fenômeno visando à singularidade do sintoma. Espera-se contribuir para uma práxis mais crítica e qualificada dos que atuam no Judiciário.

Palavras-chave:
judicialização; alienação parental; psicanálise; famílias contemporâneas

Abstract

This article analyses the dynamics and psychological processes underlying judicialized conflicts that are known as parental alienation, examining three case studies in the light of psychoanalysis. The litigation experienced by the child reflects their embarrassments with the Other in their search for answers to their enigmas and affections, amid guerrilla warfare between those who occupy parental roles. The study pinpoints the pathways required to understand parental alienation: in a socio-historical journey through how parental and marital ties are conceived and recreated; in a passage through the grief that the subjects suffer during family reconstitution; and through a rereading of the phenomenon focused on the uniqueness of the symptom. We are hopeful that it will support a more critical and skilled praxis for those who work in the judiciary.

Keywords:
judicialization; parental alienation; psychoanalysis; contemporary families

A expressão “alienação parental”, fonte de debates e revisões sobre o reconhecimento como doença pela Organização Mundial da Saúde (2020Organização Mundial de Saúde. (2020). Alienação Parental. Retirado de: https://www.who.int/standards/classifications/frequently-asked-questions/parental-alienation
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) e excluída da CID-11, provém do conceito de síndrome de alienação parental (SAP), definida por Gardner (1985Gardner, R. (1985). Recent trends in divorce and custody litigation. The Academy Forum, 29(2): 3-7. ), no contexto norte-americano marcado pelo surgimento de diversas síndromes relacionadas ao litígio conjugal, como um distúrbio da infância que emerge num ambiente de disputa de guarda em função de uma campanha de desqualificação contra um dos genitores, vítima de instruções de um outro genitor alienador e de contribuições da própria criança alienada. A propagação desse diagnóstico, em detrimento de outras formas de leitura da situação, parece convergir com a tendência de classificar como patológica a complexa diversidade do comportamento e do sofrimento humano (Sousa & Bolognini, 2017Sousa, A. & Bolognini, A. (2017). Pedidos de avaliação de alienação parental no contexto das disputas de guarda de filhos. In M Therense, C. Oliveira, A. Neves & M. Levi (Orgs.), Psicologia Jurídica e Direito de Família: Para além da perícia psicológica. (pp. 229-246). UEA Edições.).

No esteio desse movimento, podemos localizar trabalhos que anunciam os riscos psicológicos ao desenvolvimento infantil que se empenham na construção de instrumentos diagnósticos psicométricos para identificar a SAP e elaborar propostas de tratamento (Carvalho et al., 2017Carvalho, T. A., Medeiros, E. D., Coutinho, M. P. L., Brasileiro, T. C., & Fonsêca, P. N. (2017). Alienação Parental: Elaboração de uma medida para mães. Estudos de Psicologia, 34(3), 367-378. https://doi.org/10.1590/1982-02752017000300005
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; Brandão & Baptista, 2016Brandão, E. P. (2016). Psicanálise e as questões da perícia em meio às disputas familiares. In E. P. Brandão(Org.), Atualidades em psicologia jurídica (pp. 140-151). ; Gomide et al., 2016Gomide, P. I. C., Camargo, E. B. & Fernandes, M. G. (2016). Analysis of the Psychometric Properties of a Parental Alienation Scale. Paidéia, 26(65), 291-298. https://doi.org/10.1590/1982-43272665201602
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). De outro modo, algumas abordagens problematizam a classificação dessas manifestações comportamentais sob a etiqueta de SAP ou AP e suas repercussões, tentando fornecer outras chaves de leitura para o fenômeno (Ramires, 2020Ramires, V. R. R. (2020). Avaliação psicológica de crianças que resistem ao contato parental. In C. S. Hutz et al. (Org.), Avaliação Psicológica em Contexto Forense (pp. 229-246). Artmed.; Sousa & Bolognini, 2017Sousa, A. & Bolognini, A. (2017). Pedidos de avaliação de alienação parental no contexto das disputas de guarda de filhos. In M Therense, C. Oliveira, A. Neves & M. Levi (Orgs.), Psicologia Jurídica e Direito de Família: Para além da perícia psicológica. (pp. 229-246). UEA Edições.; Brandão, 2016Brandão, E. P. (2016). Psicanálise e as questões da perícia em meio às disputas familiares. In E. P. Brandão(Org.), Atualidades em psicologia jurídica (pp. 140-151). ).

No Brasil, desde a promulgação da Lei nº 12.318/2010, que trata da Alienação Parental, alegações dessa ordem avolumam ações judiciais de disputa de guarda. De acordo com a legislação nacional, havendo indícios de sua ocorrência, o juiz pode determinar perícia psicológica ou biopsicossocial, também conhecida como estudo psicológico ou psicossocial. E, dentre as medidas previstas, pode-se até mesmo, em última instância, ser declarada a suspensão da autoridade parental (Lei n. 12.318, 2010Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. (2010, 26 agosto). Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília, DF.).

Em contrapartida, em 2022, o Conselho Nacional de Saúde e o Conselho Nacional de Direitos Humanos indicaram “a adoção de medidas de proibição do uso de termos sem reconhecimento científico, como síndrome de alienação parental” (Recomendação Nº 03, 2022Conselho Nacional de Saúde. (2022). Recomendação Nº 003, de 11 de fevereiro de 2022. ; Recomendação Nº 06, 2022Conselho Nacional dos Direitos Humanos. (2022). Recomendação Nº 06, de 18 de março de 2022. ). Nesse esteio, o Conselho Federal da Psicologia, ressaltou os impactos técnicos da lei na atuação dos profissionais da categoria e a necessidade de um exame crítico às demandas avaliativas, que envolvam alegação de alienação parental, considerando a realidade familiar, social, assim como os desdobramentos na vida dos sujeitos a partir da lógica adversarial e punitivista presentes nas instituições judiciárias (Recomendação Nº 04, 2022Conselho Federal de Psicologia. (2022). Nota Técnica Nº 04, de 01 de setembro de 2022.).

No contexto do litígio conjugal, assegurar o direito de convivência com os filhos e netos muitas vezes perpassa pela reivindicação de posse da guarda unilateral e atestar a própria competência parece, e assim está previsto, necessitar da prova de inaptidão do outro, que, não raro, aparece “justificada” sob a insígnia de patologias, hipóteses e diagnósticos psiquiátricos. Nessa perspectiva, a forma como o conceito de parentalidade é adotado nos discursos psiquiátrico e psicológico pelos “especialistas da família” reverbera no modo como os demais discursos, sociojurídico e público, se apropriam dele a fim de estabelecer as políticas de apoio à parentalidade (Teperman, 2014Teperman, D. (2014). Família, parentalidade e época: um estudo psicanalítico. Escuta.).

A frequência dos discursos normativos observados no Sistema Judiciário está alicerçada sobretudo no discurso psiquiátrico sobre “transtornos” e “distúrbios”, que, por sua vez, pode desqualificar o sujeito em suas potencialidades parentais. Tal viés patologizante, calcado em diagnósticos sindrômicos, pode acarretar consequências importantes nas decisões judiciais, como reversão de guarda, restrição de contato e suspensão da autoridade parental. Por conseguinte, é crescente o número de ações judiciais nas Varas de Família, sobre as quais se requer da psicologia um saber especializado na presença e nos impactos de “desordens psíquicas” no exercício da parentalidade.

Este artigo está inserido no contexto de mudanças nas táticas de regulação da vida individual e social através da judicialização e da medicalização, historicamente associadas (Foucault, 1973/2013Foucault, M. (2013). A verdade e as formas jurídicas. Nau. (Trabalho original publicado em 1973)), e suas ressonâncias nos processos de subjetivação, de constituição do laço social e nas dinâmicas familiares. Ao recolocar o discurso da criança sobre sua experiência em destaque, tem-se por objetivo analisar as dinâmicas e os processos psíquicos subjacentes às manifestações dos conflitos parentais enunciados na cena judicial como alienação parental, bem como os impasses e os recursos utilizados no seu manejo.

Considerações Metodológicas e Éticas

Trata-se de uma pesquisa documental, retrospectiva, desenvolvida através de estudo de casos atendidos nas Varas de Família, que utilizou como método de tratamento de dados a análise de discurso apoiada na perspectiva freudo-lacaniana. A coleta de dados foi realizada através dos registros institucionais que integram o protocolo de assistência do serviço: laudo psicológico e anotações derivadas dos atendimentos. Após triagem, foram selecionados três casos que conjugavam alegações de incompetência nos cuidados e denúncias de alienação parental.

Os sujeitos desta pesquisa (a criança e aqueles que nela exercem as funções parentais) participaram previamente de estudos psicológicos realizados pela pesquisadora em processos de alienação parental. Tais estudos consistem em uma prática de escuta interventiva à família, que visa dar voz aos sujeitos e ao mesmo tempo convocá-los ao protagonismo da resolução de seus conflitos. O laudo psicológico é, nesse sentido, apenas um dos produtos da intervenção, que visa a iluminar a leitura da situação familiar aos demandantes e produzir encaminhamentos necessários.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (CEP- IPS/UFBA) através do Parecer nº 2.837.750.

Alienação (parental) e Separação: A Escuta da Outra Cena Infantil

As formulações psicanalíticas demonstram que a constituição do sujeito aparece sempre referida a um Outro primordial familiar que imprime marcas à sua história. Os efeitos dessas marcas darão notícias de como o sujeito se posiciona no laço social e sobre seus modos de gozo. Pelo olhar da psicanálise, a posição da criança é, portanto, sempre uma posição singular do sujeito do inconsciente e do seu mito individual (Lacan, 1952/2008Lacan, J. (2008). O Mito Individual do Neurótico. Assírio & Alvim. (Trabalho original publicado em 1952), 1957-58/1999Lacan, J. (1999). O seminário - livro 5: as formações do inconsciente. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58), 1969/2003Lacan, J. (2003). Nota sobre a criança. In J. Lacan, Outros escritos. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1969)).

Importa, portanto, tomar o infantil do sintoma, ultrapassando o código comportamental, abordando-o no nível da linguagem e do gozo, destacando da cena judicial a Outra cena, do inconsciente, a partir da qual os conflitos podem ser redimensionados para além dos enunciados sustentados pelo discurso jurídico (Brandão, 2016Brandão, E. P. (2016). Psicanálise e as questões da perícia em meio às disputas familiares. In E. P. Brandão(Org.), Atualidades em psicologia jurídica (pp. 140-151). ). Esse percurso permite delinear as transmissões, repetições e invenções dos sujeitos, as quais atravessam as montagens e as dinâmicas prévias e ulteriores ao processo de separação, fabricando aquilo que se nomeia, na cena judicial, como “alienação parental”. Possibilita, ainda, pensar o lugar ocupado pela criança no discurso dos pais e aquilo que ela produz a partir daí: o seu sintoma enquanto singularidade.

Ana e o Mar, Mar e Ana.

Mariana, uma menina de seis anos, tem contatos supervisionados com seu genitor, que se separou de sua mãe no seu primeiro ano de vida. Na cena judicial, trata-se de uma Ação de Guarda, cujo contexto antecedente é a alegação de um episódio de maus-tratos. Até a separação, o pai ocupava-se dos cuidados parentais, em função do trabalho da companheira, principal provedora do lar. Não obstante, revela o sentimento de inadequação que, desde cedo, experimentava neste papel, pois, diante das orientações da genitora, amparadas no saber médico e pedagógico que sua condição materna lhe outorgava, sentia que tudo o que fazia era equivocado.

Após a separação, a mãe recorreu ao Judiciário para regulamentar a guarda e a convivência paterna que, após episódio não esclarecido, passou a ser supervisionada. Depois de alguns anos, o pai de Mariana comparece ao Judiciário com a queixa de que a ex-companheira pratica alienação parental. Esta, por sua vez, defende-se afirmando que o genitor possuía dificuldades em assumir a paternidade, recuando sempre que precisava cumprir com compromissos, o que, de certo modo, deixava-a mais confortável e segura, já que certa vez a filha retornou com um machucado após passeio com o pai, que, segundo sua percepção, nunca lhe deu uma justificativa convincente para o episódio.

Por sua vez, nada convincente também foi contado a Mariana sobre o motivo das restrições do seu convívio com o pai, apenas explicações que soavam para ela como “histórias pra boi dormir”! O genitor, preocupado com as repercussões da judicialização em sua vida, relevou ter feito um acordo com a filha: diante de algo que ela não pudesse lembrar, nunca inventaria histórias; responderia, de forma mais honesta, “não sei”. E essa era a “resposta coringa” da qual ela lançava mão diante de várias questões e que se desdobrava, ainda, numa dificuldade de aprendizagem vivenciada no seu processo de alfabetização.

Com ela munida, Mariana chegou ao primeiro atendimento afirmando à psicóloga “não saber” o porquê de estar ali. Ao ser informada de que ali era um espaço onde famílias são atendidas, descreve: “sou filha de pais separados”. Ao ser convocada a falar como é ser filha de pais separados, Mariana explicou: “é quando a filha é separada do pai”.

Ademais, contou ter ganhado uma irmãzinha, fruto do novo relacionamento de sua genitora. Ao contar mais sobre seu romance familiar, ilustrou uma criança, um sol e um casal, identificou-se à infante e silenciou. Estimulada a narrar o desenho, não conseguia falar sobre esse casal, senão pelo faz de conta encenado com bonecos disponíveis no setting. A partir disso, historiou um enredo em que ela, a mãe e o padrasto iam à praia. Os dois voltavam para casa para ver a irmãzinha e vigiar seu pai, deixando-a “esquecida na beira do mar, perto das ondas grandes.... Hesitante, acrescentou e silenciou: “e eu quase...”.

A vacilação que antecede o perigo não nomeado na narrativa lúdica de Mariana alude à angústia - pode o outro me perder? -, aponta à emergência do sujeito desejante. Na dependência de um Outro capaz de emprestar significantes e transpor suas necessidades ao campo da demanda, pelo afeto d’a língua, o sujeito chega ao mundo em desamparo. Assujeitado e alienado pelo olhar e pelo dizer desse outro familiar: é assim que o ser se encontra na ocasião do seu nascimento (Freud, 1895/1996aFreud, S. (1996a). Projeto para uma psicologia científica. In S. Freud, Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago. (Trabalho original publicado em 1895); Lacan, 1949/1998Lacan, J. (1998). O estádio do espelho como formador da função do eu. In J. Lacan, Escritos. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1949), 1957-58/1999Lacan, J. (1999). O seminário - livro 5: as formações do inconsciente. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58), 1972-73/2008Lacan, J. (2008). O Mito Individual do Neurótico. Assírio & Alvim. (Trabalho original publicado em 1952)).

Ao tentar dar contornos a esse estado de desamparo em que a travessia da alienação à separação lhe precipita, Mariana se depara com a divisão do desejo materno, que se volta aos novos integrantes da família. As presenças e ausências do outro parental, que se dirige a outros objetos, situam à criança que o outro não é completo e que ela também não o é, já que não o satisfaz plenamente (Lacan, 1957-58/1999Lacan, J. (1999). O seminário - livro 5: as formações do inconsciente. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58), 1969/2003Lacan, J. (2003). O seminário -livro 9: a identificação. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1961-62)).

As hiâncias da linguagem, atualizadas no romance familiar, impõem que saídas sejam construídas por cada sujeito, que tem, nessa rachadura, no intervalo significante, a possibilidade de simbolizar a falta. Mariana, nesse sentido, deixa-se esquecer como objeto na praia, sem afogar-se, preserva sua condição desejante e tenta encontrar sua própria saída, voltando “sozinha, para casa”.

Mariana também contou sobre os planos que possuía quando finalmente pudesse sair para passear com o pai e tudo que fariam juntos, demonstrando, ludicamente, os caminhos que precisava inventar diante das barreiras com as quais se deparava. Ao voltar sozinha para casa, ela “quase” precisou subir no telhado para poder vê-lo; depois, ficaram no jardim “olhando a lua e as estrelas no céu. Mas, ao anoitecer, o padrasto e a mãe chamaram-na para dentro de casa.

Concluiu, respondendo sobre o casal ilustrado:é que nem esse desenho aqui, são esses outros que eu desenhei”. A opacidade da figura paterna no seu desenho é transmutada no padrasto, quando, por fim, Mariana nomeou: “esses outros são minha mãe e meu tio, mas primeiro era meu pai.

Na sessão conjunta com o genitor, o romance familiar e a diferença entre os sexos dos bonecos foram os temas eleitos pela criança, que novamente o substituiu pelo padrasto na montagem de sua configuração familiar. Empenhado na tentativa de sustentar o laço, o pai a convida para passear, o que parecia ir ao encontro dos planos até então alimentados por Mariana que, no entanto, diante do aceno paterno, silencia e, depois de um tempo, responde: “não sei”.

Mostra-se dividida em seu desejo de estar com o pai frente a uma interdição não nomeada, porém transmitida pelo discurso parental. Surpreso, a partir daí, o pai produz reflexões sobre a fragilidade de seus esforços e de sua presença, pois até então apostara na força do vínculo estabelecido com a filha em suas pontuais visitas supervisionadas, a despeito das restrições maternas, as quais cumpria para além das determinações judiciais.

Em meio a esse processo, Mariana demonstrava tentar produzir solitariamente, não sem dificuldade, a sua novela familiar, a partir da descoberta da diferença dos sexos, das ausências, das faltas e das falhas parentais - que refletiam a inconsistência e incompletude do Outro da linguagem para dar conta dos grandes enigmas da vida e das separações. Tentava dar seus próprios contornos àquilo que não lhe foi contado muito bem, nem poderia sê-lo, pois a verdade, do ponto de vista psicanalítico, nunca pode ser plenamente acessada, “materialmente: faltam palavras” (Lacan, 1974/1993Lacan, J. (1993). Televisão. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1974), p. 11).

A escuta analítica revela que a separação, neste caso, comporta dimensões distintas que dialogam ao emergir na cena judicial à luz da psicanálise: aquela objetivada do discurso jurídico sob o nome de alienação parental, que reflete a conjunção entre a hipervigilância materna e a passividade paterna, embaraçando a convivência parental; e a simbólica, da subjetividade do romance familiar de Mariana, que aponta a experiência de desamparo que atravessa a emergência do sujeito do desejo, na travessia da alienação à separação.

Pepe: Bate-se Numa Criança?

Pedro Pepe era um menino de quase doze anos, vivendo o processo do adolescer, em meio aos conflitos familiares e à separação dos pais, e que chegou à instituição judiciária emaranhado nestes laços: entre a avó e os pais em litígio; entre o “irmão mais velho” que o precede e o irmãozinho caçula. Na cena judicial, tratava-se de um pedido paterno de modificação da guarda materna, antecedida por alegação de maus-tratos maternos. Frente à solicitação do genitor Pepe, a mãe contesta, alegando alienação parental.

Nas entrevistas iniciais, percebeu-se a significativa presença da avó paterna na vida do neto, a quem se reportou como “filho” em alguns momentos. Embora existisse um conflito que atravessava a dissolução conjugal, de início se pôde perceber que o impasse em torno da parentalidade não se situava entre os pais de Pedro Pepe, mas entre a avó e a mãe.

Na costura das dissonantes narrativas familiares, localiza-se o lugar de Pedro Pepe no desejo do Outro que o antecede. Na cena do nascimento, há sinais de uma “depressão pós-parto” experimentada pela genitora e traduzida pela avó como uma “rejeição” à criança. E antes do nascimento de Pedro Pepe, há um luto perinatal vivenciado pela avó que, conforme interpretado pela genitora, “colocou o neto no lugar deste filho”.

Na trama familiar há, portanto, um encontro de duas mulheres embaraçadas com as vicissitudes da maternidade. De um lado, a genitora com uma inibição marcada por suas determinações inconscientes que, somadas às delicadas condições puerperais, dificultaram tomar o filho como objeto de seu investimento libidinal naquele momento; de outro, a avó paterna, presa ao luto da ruptura de um laço investido libidinalmente e carregado de promessas. Desse modo, Pedro Pepe aparece, na novela familiar, como o desmentido da perda perinatal de um bebê que o antecedeu - luto frequentemente silenciado, não reconhecido - e como filho rejeitado pela mãe (Freud, 1908/1996bFreud, S. (1996b). Sobre as teorias sexuais da criança. In S. Freud, Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago. (Trabalho original publicado em 1908)).

À medida que cresce, conflitos relacionados à sua educação começaram a emergir entre mãe e avó, enquanto o pai aparece numa posição periférica. Na fala da genitora, são predominantes os esforços para demarcar limites ao filho, sinalizando que estes, no entanto, esbarravam numa permissividade da avó paterna que, com o apoio do genitor, desautorizava-a constantemente enquanto mãe. Esses impasses ressoam no discurso da criança, para quem a família materna parece constituir-se subjetivamente como vetor do limite através do castigo e a família paterna, por sua vez, como vetor de afeto, lugar de realização de suas vontades e caprichos.

Embora a mãe tenha exercido o papel materno, ofertando ao filho os cuidados relativos à saúde e à educação, a avó paterna aparece com mais proeminência no exercício da função materna para Pedro Pepe, adotando-o simbolicamente como “filho”, imprimindo-lhe marcas afetivas que competiam com a opacidade dos cuidados da genitora. A função paterna, por sua vez, claudica assim como a autoridade parental de ambos os pais. Nesse caso, a função tropeça não no desejo da genitora, mas no desejo da avó paterna que, ao se ocupar da função materna, recobre não apenas as suas, como também as faltas de Pedro Pepe, que passa a colecionar pequenas transgressões e, quando minimamente frustrado, ameaça machucar a si próprio diante da avó, que recua sem saber o que fazer.

Destaca-se assim, da narrativa de Pedro Pepe, a afirmativa de que sua mãe lhe bate costumeiramente: “ela me bate desde que eu era bebê”. “Desde bebê?” - diante da questão que lhe foi posta, fala dos desentendimentos presentes na relação com a mãe, exemplificando apenas a última vez, da qual saiu machucado, culminando na abertura do processo. O conflito que precipitou a abertura da ação judicial foi narrado pela genitora como um acidente após tentativas diversas de conter e dar limites ao filho, que, por fim, numa “brincadeira descuidada”, expôs o irmão, de tenra idade, a riscos.

A versão narrada por Pedro Pepe, por sua vez, omitia da cena o irmãozinho, cuja importância aparecia apequenada, deslocada a outro momento de seu discurso como alguém que “não fala muito”. Ao mesmo tempo, de modo oposto ao que foi por ele enunciado, como uma denegação, esse meio-irmão é alguém cujo nascimento, como se pôde notar, ecoava, incomodava. No caso em tela, o irmão caçula apareceu dividindo o afeto e a atenção materna, destituindo-o de um trono já frágil. Não por acaso, sem mediação, Pedro Pepe devolve-lhe o “golpe” numa brincadeira, empurrando-o deste “trono” ladeira abaixo, momento no qual o castigo da mãe emergiu, desdobrando-se em judicialização. As pequenas e cotidianas contestações e transgressões de Pedro Pepe pareciam avolumar-se no desenrolar do processo, aparecendo na fala da família, da instituição escolar e dos profissionais de saúde que o acompanhavam. Era uma criança que, com a eclosão do litígio, diante do próprio sofrimento e do sofrimento alheio, não conseguia falar ou chorar. Ludibriava e caçoava daquilo que, por ser diferente, parecia-lhe precário, torto, risível.

Sobre este aspecto transgressor, índice identitário de Pedro Pepe, destacam-se, além dos conflitos familiares que o envolvem, os processos de identificação que permeiam seu adolescer. O nome próprio, por si, não porta nenhum significado, embora traga uma significação para aquele que o recebeu, sublinha Lacan (1961-62/2003Lacan, J. (2003). O seminário -livro 9: a identificação. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1961-62)). No caso em questão, “Pepe” alude ao reinado de um personagem despótico, de uma história que lhe fora contada pela família paterna sobre a escolha do seu nome próprio que, por sua vez, é também o nome de seu pai.

Pedro Pepe parece encarnar esse personagem, acolhido pela avó e exaltado pela família do pai, cujas características o aproximam tanto do rigor materno quanto dos caprichos paternos. Aqui, a queixa materna de uma alienação parental paterna pode ser reescrita pela leitura psicanalítica em uma identificação alienante que atravessa Pedro Pepe, desde o seu nascimento, a escolha de seu nome e o lugar que ele assume no seu romance familiar.

Do Pavor ao Pai-Avô?

Augusto é um garoto de oito anos que, após a separação dos pais, permaneceu residindo com a mãe e possuía quase nenhum contato com a família paterna. Na cena judicial, os integrantes da família paterna solicitaram a regulamentação de visitas, alegando alienação parental da mãe, que os impedia de ver a criança.

Membros da família paterna apontavam certo isolamento e introspecção da genitora e sugeriam existência de alguma desordem psíquica por parte dela, que colocava barreiras ao convívio familiar. Ressaltavam, ainda, uma ligação simbiótica entre ela e Augusto, estranhando o fato de que “desde o nascimento não deixava ninguém se aproximar”. A mãe de Augusto, por sua vez, manifestava ressentimentos pelo fato de nunca ter se sentido plenamente acolhida pela família do ex-marido, o qual, em sua narrativa, depreciava a sua condição de mulher. A ruptura do laço conjugal, permeada por muitos conflitos, concretizou-se com a saída de casa do pai, que mudou de cidade. Com a partilha, a genitora precisou sair da residência onde moravam; à separação somaram-se as divergências financeiras, e os “muros” em torno da criança ficaram maiores.

As palavras iniciais da mãe, no começo do estudo, portavam a denegação do desejo de revelar algo da própria infância à psicóloga, que é enunciado em seguida: sua mãe, ao separar-se, foi embora de casa, deixando-a, junto aos seus irmãos, aos cuidados negligentes do pai que os maltratava. Recentemente, havia iniciado acompanhamento psiquiátrico e psicológico, pois, por um momento, acreditou que o ex-marido atentaria contra sua vida e levaria o seu filho embora.

Naquele momento, entretanto, olhava para aquela sensação inicial de pavor com distanciamento, embora “medo” ainda lhe restasse. Justificava, portanto, não conseguir cumprir o acordo judicial, do qual se arrependera, pois não confiava em ninguém além de si mesma. A escuta à genitora evidenciava uma apreensão imaginária em torno do significante “pai”, que, em qualquer contexto, aparecia sempre como uma figura ameaçadora.

A avó materna destacou que sua filha era muito apegada a Augusto, o qual era “tudo para ela”, sublinhando que este foi o modo como ela própria criou os filhos: com muito cuidado, “sempre de olho neles. Recordou-se que Augusto sofreu durante a separação dos genitores, chorava, gritava chamando pelo pai. Grito que, em ato, alude ao sofrimento experimentado pela ruptura do convívio paterno e ao endereçamento de um apelo a um terceiro capaz de mediar o gozo da relação materno-filial e o desincumbir da função de ser “tudo” para a genitora.

Augusto, durante os atendimentos, apresentava-se inibido, pouco comunicativo e não demonstrava interesse nos recursos lúdicos. Afirmava não se recordar da convivência com o pai e expressava o mesmo pavor presente no discurso da mãe, de que o genitor o levasse embora; portanto, só aceitava estar com ele se a mãe estivesse junta. Verbalizava pouco, repetindo alguns significantes, como “mauemedo”, e portando queixas similares às maternas.

Ilustrou a si mesmo e à genitora com características semelhantes e aos demais membros familiares com traços pouco sofisticados, dentre os quais, por último, estava o pai. Noutro desenho, escreveu abaixo da mãe uma série de atributos que a caracterizavam; e, abaixo do pai, os significantes “olhar preto, cor negra”. Quando estimulado a falar mais, perguntado sobre o que o pai fazia, Augusto responde não saber. “Não sabe?!”, interjeição de surpresa seguida da questão posta pela psicóloga: “Não tem curiosidade de saber?”, ao que ele respondeu que nunca lhe haviam feito essa pergunta.

A partir dos significantes da criança, a intervenção, cujos efeitos poderiam advir a posteriori, operava na abertura de um campo em que um terceiro pudesse ser incluído na relação estabelecida entre Augusto e a mãe. Por que não o avô, representante do pai na cena judicial, presente e desejoso em encarnar tal função? A criança aceitou participar de sessões conjuntas com o avô paterno, porém a mãe comparecia sempre sozinha nas datas agendadas, justificando que o filho não quis ir. E talvez, para a mãe, Augusto não soubesse dizer algo diferente.

Em sessão conjunta entre genitora e avô paterno, tiveram a possibilidade de falar dos conflitos que ocorreram durante a separação conjugal e foram estimulados a construir uma solução para que os vínculos familiares com a criança fossem preservados. Ao final ficou combinado que experimentariam a realização da visita assistida por um mediador conhecido por ambos, restituindo aquilo que inicialmente já havia sido homologado em acordo judicial. No encerramento, ambos relataram que o encontro entre Augusto e o avô havia acontecido e que a criança havia gostado, embora a mãe ainda não confiasse no pai. O caso foi encerrado nesse ponto, diante do qual foram realizadas recomendações de acompanhamento psicológico à família. O avô, por sua vez, sinalizou que, caso as visitas pudessem ser regulares, pretendia desistir da ação judicial.

Nesse caso, a partir da observação de que a criança parecia estar enredada no sintoma materno, constatou-se a importância de diferenciar aquilo que era nomeado na cena judicial como alienação parental da necessidade de separação diante da alienação significante a ser trabalhada num espaço analítico, embora a intervenção da lei também pudesse ser terapêutica, ao funcionar como um terceiro interditor, mediador do gozo materno-filial.

Conjugalidade e Parentalidade sob Judicialização

A experiência e a prática da parentalidade, as mudanças que incidem na dinâmica durante a separação e a recomposição familiar, o processo de judicialização e o lugar dos filhos entre laços familiares judicializados são capítulos que compõem o romance familiar roteirizado nos autos processuais e formulado nos discursos dos sujeitos sob a nomeação de alienação parental.

Na cena judicial, tal fenômeno é caracterizado como algo que se delineia no contexto de uma separação litigiosa, na qual sujeitos frequentemente afirmam desconhecer a nova roupagem com a qual o(a) ex-parceiro(a) se apresenta, enfatizando a surpresa oriunda de uma dupla traição: conjugal e parental. Outros verbalizam dar-se conta de que, no penoso processo de separação, o outro sempre foi assim e o que viveram não passou de um engodo momentâneo do qual agora tentam se libertar.

Afinal, o que está em cena nos discursos, em ambos os casos, já não é mais a potência de suplência do amor (Lacan, 1972-73/2008Lacan, J. (2008). O seminário 20: Mais, ainda. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73)) ao Real da relação sexual, mas a enganação do outro, em suas dimensões conjugal e parental, quase sempre superpostas. Os pais pouco se interrogam ou se põem em pauta na cena judicial. Entretanto, observa-se, ao dar voz aos litigantes, que há uma montagem e uma dinâmica familiar, às vezes mais, às vezes menos, explícitas e prévias à separação, nas quais cada um contribui com sua cota de gozo e alienação. É o que vem a se desenrolar no processo de judicialização que, por sua vez, ajuda a dar corpo àquilo que é posto em pauta nos discursos médico e jurídico como alienação parental.

O que Existe Antes da Separação?

A filiação diz respeito a todos e esta condição interroga o lugar do sujeito no mundo. Por sua complexidade, as respostas que se constroem no percurso da vida às vezes chegam apenas com a experiência da parentalidade, que comporta paradoxos e muitos desafios. A forma como cada família vivencia o nascimento de cada bebê, a assunção de funções e de papéis parentais que se somam aos conjugais, o lugar que a criança e o cônjuge ocupam no desejo do Outro demonstram como os conflitos que permeiam uma disputa de guarda vão sendo aos poucos gestados, às vezes por gerações, até o nascimento do fenômeno que se batiza, na cena judicial, como “alienação parental”. Nesse sentido, Dunker (2017Dunker, C. (2017). Reinvenção da Intimidade. Ubu Editora.) afirma ser “raro que uma criança enfrente dificuldades realmente novas durante o curso de uma separação”; trata-se, comumente, “de uma ampliação das disposições e de conflitos já antes presentes” (p. 136).

Assim, a parentalidade parece repetir algo do mito familiar de cada um, um pouco daquilo que se transmite nas gerações. O que ela inscreve simbolicamente perpassa tanto a transmissão de uma gestão social dos cuidados parentais, no plano imaginário, quanto a transmissão de uma falta, no registro real. Em resumo, resta sempre uma referência, a ser seguida ou declinada, dos pais que os antecederam, e da qual não se escapa completamente. Repetir, no entanto, não significa repetir o mesmo; há algo da ordem de uma invenção a partir desse “quase nada” que se sabe.

No caso Pedro Pepe, os genitores vivenciam a experiência da parentalidade no tumulto dos conflitos amorosos da juventude. Quando nasce o bebê, toda a família é convocada a assumir novas posições, entretanto, a passagem que transforma genitores em pais não está dada pelo nascimento da criança. E, desse modo, observa-se que Pedro Pepe nasceu quando seus pais ainda necessitavam, em grande medida, do suporte da avoenga para sustentar o exercício da parentalidade. Esse arranjo, no qual aos avós é atribuída a confusa tarefa de cuidar dos netos sem destituir os pais, por vezes favorece uma certa troca e rivalidade de papéis e funções que, não raro, desdobra-se em judicialização sob a nomeação da alienação parental (Cardoso & Brito, 2014Cardoso, A. R. & Brito, L. M. T. (2014). Ser avó na família contemporânea: que jeito é esse? Psico-USF, 19(3), 433-441. https://doi.org/10.1590/1413-82712014019003006
https://doi.org/10.1590/1413-82712014019...
).

Neste caso, há uma avó que, emaranhada em seu luto materno, é quem investe libidinalmente neste bebê e que interroga a nora: que mãe é essa que parece rejeitar o próprio filho? Há uma genitora, marcada em sua infância por um discurso parental rigoroso, embaraçada ao ser convocada em seu desejo materno, e que questiona a sogra: que mulher é essa que insiste em me destituir publicamente enquanto mãe? Há um genitor, marcado por uma criação compassiva e que, após a paternidade, parece comparecer como homem e como irmão do próprio filho, cedendo-o ao desejo e aos cuidados de sua própria mãe, e que interpela a companheira: que mulher é essa que não me deseja mais?

No caso Augusto, antes do seu nascimento, há a perda de uma gravidez desejada pela genitora, mas indesejada pelo genitor. Há uma mãe que se dedica amplamente ao seu bebê, para a qual ele é tudo. No seu conflito psíquico, aparece como filha abandonada pela própria mãe aos cuidados de um pai negligente. Há uma avó materna que, não obstante apareça no discurso da genitora como alguém que a abandona, afirma que a filha repete o seu próprio modo de criação, superprotetor. Há um genitor descrito a partir de conflitos marcados por agressividade, alguém que dá consistência ao fantasma paterno da genitora, que, por sua vez, encontra dificuldade de instituí-lo simbolicamente como pai de seu filho. Há, portanto, uma mulher que se apresenta reduzida e depreciada nesta condição, amedrontada pelo fantasma do pai e do cônjuge, que em sua narrativa comparecem como violadores.

Neste caso, do lado materno, os questionamentos eram: que homem é esse que não desejou de mim um fruto do nosso amor; que pai é esse que agora diz amar o filho, mas que abandona a família e deixa de ajudar no sustento do lar? Do lado paterno, as questões eram: que mulher é essa que toma o filho como único objeto do seu desejo; que mãe é essa que dispensa o pai; por que ao pai só competiria o dever de sustento; onde ficam os direitos de convivência? Após suspender o pagamento da pensão, eximindo-se do sustento da criança com a justificativa de repreender a genitora, a tréplica materna aparece como uma profecia que se realiza: vejam como, desde o início, eu tinha razão - que pai é esse que deixa o filho desamparado?

No caso Mariana, há um pai que se sente inadequado neste lugar, pois não dispõe do saber médico e pedagógico reservado ao discurso materno: que pai sou eu, que não consegue cuidar da filha e que não sustenta um lar? Há uma mãe que, por sua vez, ao se ausentar de casa, cultiva um sentimento de culpa que questiona a sua própria competência: que mãe sou eu que se ausenta dos cuidados maternos? Neste caso, as questões lançadas ao outro eram enunciadas de outro modo: que homem é esse que não me faz desejar, que não provê o lar e me força a sair de casa, deixando meu bebê? E do outro lado: que mulher é essa que não me deseja, que se ausenta do lar e que me dita a melhor forma de cuidar dele?

Os três casos esquadrinham os embaraços conjugais e parentais dos próprios sujeitos, postos nas entrelinhas de uma narrativa que, ao ser enunciada, se volta à depreciação do lugar do outro como aquele que não permite a realização do sonho da família conjugal e parental idealizada. No esteio do modo contemporâneo de lidar com o sofrimento, as falhas que a maternidade e a paternidade possíveis comportam são pouco toleradas: a desqualificação da parentalidade aparece no núcleo do conflito, acumulando o peso de um modo secular de subjetivação sustentado na família nuclear patriarcal e na divisão sexual do trabalho, mas também o peso da fratura do amor e do deslizamento metonímico do desejo, que ganham maior incidência nos laços sociais na contemporaneidade.

Que Mudanças a Separação Produz?

A nova família que se configura após o divórcio produz, ao mesmo tempo, segregação e incorporação de membros ao grupo que se recompõe, além do redimensionamento e surgimento de novos papéis. A chamada família recomposta é, portanto, aquela que mescla laços biológicos e socioafetivos, e isso, via de regra, comporta efeitos. Um primeiro aspecto a ser considerado é que ser pai e ser mãe dentro de um casamento, convivendo no mesmo lar, não é o mesmo que ser pai e ser mãe fora dele. Quando se vive sob um mesmo teto, a organização da rotina de cuidados dos filhos geralmente se estabelece tacitamente numa divisão de tarefas, frequentemente não igualitária, mas, ainda assim, tolerada. É necessário um tempo para a reacomodação dos papéis outrora desempenhados, o que passa a exigir maior disponibilidade e paciência de ambas as partes com esse tempo de ajustes.

O sofrimento faz parte da experiência cotidiana da parentalidade, na qual os recursos para se comunicar e a corresponsabilidade são peças fundamentais. O que se revela, no entanto, no curso de uma judicialização, é que as inabilidades e as falhas que sempre existiram ganham um relevo que antes não possuíam, num processo paulatino de destituição do lugar do outro parental, que não tolera as dificuldades do percurso.

Um segundo ponto, que se articula ao primeiro, é aquilo que a chegada de novos parceiros e de novos filhos introduz: novas dinâmicas de parentalidade que passam a coexistir, agregar novos pontos de vista sobre a criação de filhos, o que não raro conflita com os hábitos antes cultivados, alimentando a rivalidade entre pais e padrastos, mães e madrastas. Há, ainda, bebês dessas novas uniões que passam a requisitar atenção parental, destronando os filhos da relação preexistente. Na escuta às famílias em litígio, estes outros são terceiros que corroboram a castração, atualizam as perdas da separação, minguando a possibilidade de reconciliação que muitas vezes se conservava.

A escuta às famílias revela que a aceitação da criança perpassa pela forma como esses novos companheiros são introduzidos pelos genitores, sendo consentida ou não pelo outro par parental. Muitas vezes, ainda enlutados pelo fim de uma relação, não admitem que o(a) ex-companheiro(a) tenha seguido com a sua vida e enlaçado seu desejo ao de um outro alguém. O sofrimento daí proveniente, silencioso ou barulhento, mas quase sempre ruidoso para as crianças, é assimilado e, na pior das hipóteses, imposto aos filhos, que somam ao próprio ciúme parental o ciúme de uma conjugalidade desfeita, porém não encerrada. Isso demonstra que muitas vezes não é apenas a parentalidade, como também a conjugalidade frustrada o que está em jogo nos processos designados como alienação parental.

Se, por um lado, há pais que se empenham em preservar a especificação dos lugares e funções, por outro lado, há pais embaraçados no próprio sofrimento que não autorizam a presença de um terceiro na vida do(a) ex-companheiro(a) e dos filhos, por mais cuidadosa e inofensiva que ela seja, bem como há aqueles que endossam uma confusão de papéis, apresentando o novo companheiro(a) como substituto parental. Nenhuma dessas posições e intenções, entretanto, garante que a criança corresponderá às expectativas parentais, pois o laço sustentado no desejo e na afetividade é, antes de mais nada, contingente e arbitrário. Por isso há crianças que, identificadas ao genitor, ou no lugar de objeto deste, se colam ao discurso parental; e outras que, no lugar de sujeito, a despeito daquilo que os pais sentem, já conseguem afirmar seu próprio desejo e afeto, também ambivalentes.

Um terceiro aspecto é o fato de a castração também ser reeditada pelos meios-irmãos, frutos dessas novas uniões. Nesse sentido, o nascimento de um irmãozinho que divide as atenções do outro parental é frequentemente o vetor da separação, enuncia o enigma do desejo do Outro, precipitando interrogações sobre as quais se construirá a ficção familiar. Abre, portanto, uma brecha no desejo materno e anuncia à criança que há outros além dela, que ela não é tudo para sua mãe.

Essa nova configuração, em que os papéis não estão ainda muito claros, não raro se desdobra em rejeições infantis e numa disputa narcísica entre os adultos que se sentem perturbados ou expropriados do seu lugar parental e conjugal, buscando o Judiciário munidos da queixa de alienação parental.

O que a Judicialização Introduz?

O romance familiar é sempre uma montagem ficcional, singular, de cada sujeito (Freud, 1909/1996cFreud, S. (1996c). Romances Familiares. In S. Freud, Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago. (Trabalho original publicado em 1909) ; Lacan, 1952/2008Lacan, J. (2008). O Mito Individual do Neurótico. Assírio & Alvim. (Trabalho original publicado em 1952)). A sua narrativa, portanto, pertence a uma Outra cena, do inconsciente, que tem características peculiares que a distinguem de uma narrativa histórica: não obedece a um tempo cronológico, mas lógico; não se especifica pela realidade dos fatos, senão pela realidade psíquica, que interpreta, reorganiza, recompõe, metafórica e metonimicamente, os acontecimentos em uma estrutura de linguagem única.

A cena judicial, por sua vez, comporta uma pretensão de objetividade que visa à cronologia e à descrição dos fatos na dinâmica familiar. Não obstante, a judicialização não foge ao ficcional, na medida em que instaura um novo discurso: o roteiro dos autos produz uma nova cena com várias versões sobre a novela familiar, nas quais os sujeitos, enquanto espectadores, muitas vezes não se reconhecem na versão contada pelo outro, para eles fictícia.

Além da dessubjetivação do conflito, a judicialização produz um novo modo de se relacionar, no qual as palavras são substituídas pela prova de verdade. A palavra desgastada pelas incontáveis tentativas de tratamento do conflito familiar torna-se rarefeita, até se fazer ausente. O diálogo passa, então, a ser realizado pelas notificações, intimações e pelos demais ritos da comunicação processual.

Na dinâmica instaurada por um processo litigioso, no qual a prova tem primazia sobre a palavra, alguns pontos merecem atenção: a criação de novos conflitos como meio de prova; e a terceirização da palavra às instituições e aos familiares, dentre os quais as crianças merecem destaque, no papel de mensageiros e agentes produtores de prova. Nessa lógica, quando timidamente a palavra volta à cena, com o objetivo de gerenciar as questões do cotidiano da criança, é sempre uma palavra registrada que, se não servir à finalidade inicial, deverá servir como prova a ser anexada aos autos. O outro é, de modo frequente, testado e provocado a dar mostras de sua incompetência, do seu desequilíbrio.

Para que adquira maior legitimidade na cena judicial, é recomendável, ainda, que a prova seja reconhecida e validada pelas instituições e especialistas que dela fazem parte: os conselheiros tutelares, delegados, médicos, psicólogos, assistentes sociais etc. O boletim de ocorrência, a medida protetiva, o relatório médico são elementos que, em muitos casos, reportam-se exclusivamente ao conflito dos adultos, mas são utilizados para endossar a justificativa de afastamento entre a criança e o genitor, pois o filho passa a ser extensão do desentendimento dos pais.

Assim, a alienação parental, enquanto fenômeno, vai ganhando corpo e proporção a cada novo conflito que se instaura, na tentativa de, juntamente com ela, provar as falhas do outro. Nesse sentido, o fenômeno da alienação parental alimenta-se, em alguns casos, através dos próprios dispositivos sociais de acolhimento e proteção à infância, que muitas vezes reproduzem um discurso protetor moralizante e interditante.

A ideia de uma criança alienada faz supor que seu discurso é a mera reprodução da palavra de um outro influenciador. Sua fala seria, portanto, expressão de uma versão enganosa que lhe foi sugerida. A palavra da criança alienada é a princípio uma palavra sem valia, pois seu sintoma seria portador de uma mentira, uma distorção na percepção da realidade. Os profissionais convocados a assistir à criança teriam, pois, a função de examinar sua palavra, a fim de identificar inverdades em seu discurso, atestando ou não a alienação parental. Sua passagem por diversas instituições, como nos casos de Pedro Pepe e Augusto, a fim de dar testemunho aos fatos, coloca-nos em posição de repetir uma narrativa conflituosa que não é propriamente sua, e que os provoca a depor contra um ente familiar que aos poucos vai se tornando, em seu romance, um antagonista.

Ademais, o declínio do diálogo entre os adultos naturalmente convida um terceiro capaz de mediar questões práticas, escolares, médicas etc., que não se resolverão sozinhas, nem indefinidamente através dos advogados, que assumem essa função de modo circunstancial. A palavra ausente convoca, então, a palavra terceirizada, que pode tanto aplacar quanto exacerbar o conflito. Durante a realização do estudo psicossocial, é usual, por exemplo, que os litigantes tentem instituir o profissional nessa posição de suplente, de mensageiro, solicitando que combine com o outro familiar como a criança será levada à sessão, ou que comunique ao outro sobre o planejamento dos finais de semana, férias etc. Diante de tais solicitações, cabe não responder a essa demanda que o insere como mais um na lógica do conflito familiar. É necessário que o desconforto apareça, que o problema vivenciado cotidianamente emirja, a fim de que a família demonstre quais recursos possui ou pode construir, a fim de dar conta do que há de mais íntimo em suas relações.

Além das instituições e de seus agentes, as crianças assumem frequentemente o papel de mensageiros dos pais, o que inicialmente costuma acontecer por uma demanda dos adultos que as colocam nessa posição, até que incorporam a função e, de modo independente, adicionam suas próprias contribuições, sob a forma de intenções, interpretações, defesas e acusações. Assim, há crianças como Pedro Pepe, que passam a negociar questões de sua própria rotina e advogar em defesa de um dos pais, a partir de suas frágeis referências sobre o que é certo/errado, justo/injusto em uma relação conjugal e familiar. Essa posição se manifesta através de uma pseudossofisticação do vocabulário infantil, que passa a incorporar expressões e asserções próprias à cena judicial.

A apropriação do conflito pela criança como reflexo de uma comunicação parental claudicante é em muitos casos interpretada como alienação parental. O envolvimento dos filhos que assumem a missão impossível de suturar os equívocos da linguagem, pacificar as palavras litigantes e contornar o encontro malsucedido dos pais produz frequentemente manifestações sintomáticas. É comum que as crianças sejam expostas pelos ditos e não ditos parentais, no trabalho de interpretação das razões da separação, sofrendo nesse campo de batalha em que emergem angústias relacionadas ao medo da dissolução do laço afetivo. Assim, tentam encontrar-se em meio à contradição dos próprios sentimentos e à disputa dos pais (Dunker, 2017Dunker, C. (2017). Reinvenção da Intimidade. Ubu Editora.).

Nesse campo de batalha, as crianças produzem sintomas que não se limitam à cena judicial na qual estão circunstancialmente inseridas, mas que dizem respeito àquilo que essa cena reedita de um encontro com um Outro faltoso, do qual o mal-estar é consequência. A releitura da alienação parental convida, então, a ultrapassar o fenômeno e voltar a atenção ao processo de constituição subjetiva da criança que se desenha na Outra cena, em meio aos laços familiares judicializados. Essa é uma aposta na potência da escuta ao que há de singular na expressão do mal-estar, que pode favorecer a compreensão e a despatologização daquilo que muitas vezes se designa de modo generalizado e insuficiente como alienação parental.

Quem São os Litigantes, afinal?

Para responder a essa pergunta, é necessário transpor a cena judicial e voltar-se novamente à Outra cena. Nos três casos, o núcleo do conflito judicializado remete a um outro lugar, em que aquele com quem se litiga na cena judicial não coincide, necessariamente, com o Outro com quem o sujeito se encontra em conflito. Para além de um simples embaraço no exercício dos papéis parentais na gestão dos cuidados, os casos de Mariana, de Pedro Pepe e de Augusto revelam o fio singular do desejo de cada sujeito que borda a trama familiar na ocasião da união conjugal e da chegada desses filhos ao mundo, com todos os sonhos e promessas que esses eventos carregam.

O casamento e o contrato amoroso são uma maneira de tentar contornar o real do laço amoroso e fazer existir a relação sexual, de conciliar demandas, de proporcionalizar os sexos e fazê-los falar a mesma língua, ainda que pertençam a continentes diferentes (Dunker, 2017Dunker, C. (2017). Reinvenção da Intimidade. Ubu Editora.). O filho advindo desse (des)encontro, por sua vez, também carrega a promessa de driblar o real do laço, de dar conta das demandas de amor de cada parceiro, como promessa de fazer o Um existir. Contudo, o advento gestacional, ainda que planejado, não representa a concordância do desejo nem concilia as dissonantes demandas do casal conjugal.

Num imaginário fraturado, mas ainda vigente, para o homem, comumente o filho se apresenta como um significante de uma potência fálica que o liga à mulher; para a mulher, ele é um significante que ela pode produzir para o homem. Um filho carrega em nossa sociedade toda a carga da união do casal. Ele é signo da tentativa de fazer existir a relação sexual, quer dizer, de produzir a suposta possível complementariedade entre os sexos: fruto de dois que teriam se tornado UM (Miranda, 2010Miranda, H. (2010). Um psicólogo no Tribunal de Família: a prática na interface Direito e Psicanálise. Artesã.). Assim, no caso Mariana, nos autos processuais são os genitores que litigam; na Outra Cena, cada um litiga com o fracasso do amor na tentativa de fazer o Um existir através da relação sexual. Na cena judicial do caso Augusto, a família paterna litiga com a genitora, mas na Outra Cena, a genitora litiga com a tentativa de, através do amor parental, fazer o Um existir; enquanto o avô tenta advogar uma r(s)eparação, fazendo resistência ao gozo materno. No caso Pedro Pepe, na cena judicial, são os genitores que litigam; na Outra Cena, a genitora e a avó paterna litigam entre si e consigo mesmas com as vicissitudes da feminilidade, com a divisão do desejo de ser mãe e de ser mulher; e o genitor, com o fracasso do amor e com a inexistência da relação sexual prometida pela união conjugal. O litígio vivenciado pelas crianças, por sua vez, demonstra que os conflitos por elas experimentados refletem seus embaraços com o Outro, encarnado em sua família, na busca por respostas aos seus próprios enigmas e afetos, em meio à guerrilha daqueles que se ocupam das funções parentais.

Todos os destinos marcados pelo encontro com a linguagem, com o núcleo faltoso do laço e, por conseguinte, com a desilusão do ideal de família outrora sonhado, que esbarra na condição final de só existir Um sozinho. Os efeitos desta, embora lamentada, desejável castração se dá a ver nas funções parentais. Cada sujeito lida com e dá conta da falta de um modo próprio, tentando recuperar aquilo que se perde em cada (des)encontro com o outro, através de um modo singular de gozo.

Assim, o que se vê repetir na cena de um litígio amoroso repete também o sintoma, a posição de gozo, de cada sujeito diante da vida. A disputa pela guarda dos filhos nos tribunais não deixa, pois, de revelar a face narcísica do amor, na qual os filhos são, muitas vezes, concebidos e tomados enquanto objeto de gozo que, na fantasia de completude de um dos pais, revelaria que a falta está apenas do lado, incompetente, do outro parental.

Muitas vezes, as dificuldades da guarda compartilhada refletem a própria dificuldade de compartilhamento dos erros. Consentir as falhas e as imperfeições do outro, tolerando-as e compartilhando-as, esgarça uma ferida, às vezes já aberta pelo fim da relação, no próprio narcisismo, na medida em que esse ato exige que eu me reconheça também faltoso. A experiência e a prática da parentalidade, portanto, sempre caducam frente aos ideais e se relacionam com aquilo que cada sujeito pode construir a partir de suas heranças familiares afetivas.

Qual o Lugar da Criança entre Laços Judicializados?

A criança é falada antes do nascimento, significantizada e significada por aqueles que exercem as funções parentais; ela é, por fim, representada social e juridicamente por aqueles que exercem o poder familiar. A criança tem um lugar que se alicerça no discurso parental, isso já está claro. Esse lugar, no caso de Mariana, por exemplo, é marcado por muitos significantes maternos e paternos que a qualificam afetuosamente no desejo dissonante dos genitores, mas é também atravessado por muitos não ditos. O lugar de Pedro é esquadrinhado pelos enunciados familiares, como filho rejeitado que, ao mesmo tempo, tampona o vazio de um filho morto. Já Augusto emerge no lugar daquele que foi indesejado pelo pai, mas que é tudo para sua mãe.

Nada impõe, contudo, que o lugar a partir do qual a nomeiam e a desejam não possa ser ressignificado. Em verdade, há sempre um luto necessário entre o que foi idealizado e aquilo que a presença do bebê concretiza, de modo que a criança, geralmente, assume um outro lugar na família após o nascimento (Iaconelli, 2019Iaconelli, V. (2019). Criar filhos no século XXI. Contexto.). Além disso, o modo como o desejo é transmitido, mas sobretudo capturado, deixa suas marcas. O sintoma da criança, nesse sentido, é uma resposta singular àquilo que a antecede, que se repete e que se transmite na família, e àquilo que sua presença agrega como invenção, já que ela participa ativamente dessa construção (Lacan, 1957-58/1999Lacan, J. (1999). O seminário - livro 5: as formações do inconsciente. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58)). De que forma, então, a criança toma posse, usufrui, goza, conquista aquilo que é transmitido como herança por sua família?

Há uma travessia solitária que o sujeito criança percorre com sua pulsão de saber, na constatação de que há um Outro faltoso e na produção de uma forma de lidar com a angústia que isso provoca. Nesse sentido, a teoria freudo-lacaniana sublinha o mal-estar estrutural de todo sujeito frente ao saber, fruto do embaraço com a debilidade da linguagem, sua insuficiência para dar conta daquilo que não pode ser simbolizável. Assim, o modo como a falta é transmitida, capturada e elaborada nas teorias que a criança se põe a construir exerce influência sobre suas formações sintomáticas, as quais são uma tentativa de tratar o Real, de modular o gozo (Freud, 1908/1996bFreud, S. (1996b). Sobre as teorias sexuais da criança. In S. Freud, Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago. (Trabalho original publicado em 1908); Lacan, 1969/2003Lacan, J. (2003). Nota sobre a criança. In J. Lacan, Outros escritos. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1969)).

O que incide sobre a constituição subjetiva da criança tem a ver com a ordem do desejo e da linguagem mais do que com a presença ou ausência das figuras parentais ou dos desentendimentos existentes entre eles. No entanto, esses aspectos que a circundam não são sem efeitos, pois, nos laços familiares judicializados, os filhos tendem a ser tratados sobretudo como objetos. No decorrer da vida, mas principalmente na infância e na adolescência, o sujeito é convocado ao árduo trabalho de separar-se, de acessar seu desejo, de construir seu dizer em meio aos desejos e ditos parentais. Se a cena judicial solicita a explicação do medo infantil, a sua indeterminação demanda, antes, uma intervenção capaz de auxiliar na travessia da alienação à separação. A intervenção judicial, decerto, pode produzir efeitos estruturantes na regulação de gozos para os quais a mediação simbólica parece pouco eficiente; no entanto, podem também segregar, silenciar e deteriorar. Deve-se ter em perspectiva, portanto, que, enquanto os sintomas da criança são polimorfos e transitórios, os discursos agenciados pela judicialização, por vezes, favorecem fixações e cristalizações que dificultam a ressignificação dos conflitos subjetivos (Brandão, 2016Brandão, E. P. (2016). Psicanálise e as questões da perícia em meio às disputas familiares. In E. P. Brandão(Org.), Atualidades em psicologia jurídica (pp. 140-151). ).

Apesar de toda a cola imaginária que a aprisiona ao campo do Outro, a intervenção do analista que põe a criança a brincar e a falar abre um espaço para que a novela familiar se construa como mito, fantasia, a partir de seus enigmas e pesquisas infantis, pois o discurso que a aliena ao Outro não deve lhe bastar. Da posição que ocupa no desejo e no discurso dos genitores, que a ata à verdade do casal parental, a criança precisa se destacar, a fim de poder encontrar-se, construir sua própria ficção. A partir daí recompõe psiquicamente suas famílias, inventam pais mais ou menos prestigiados, diferentes dos seus, e é capaz de lidar com mais brandura com as fraturas do que os próprios adultos (Cottet, 2007Cottet, S. (2007). O avesso das famílias: o romance familiar parental. Revista eletrônica do Núcleo Sephora, 2(4), 12-17.).

Na cena judicial, muito se fala em nome, em defesa dos interesses da criança interpretada pelo outro parental. Situá-la na posição de intérprete, no entanto, parece ser fundamental para compreender os embaraços e as saídas singularmente constituídas por ela para lidar com os laços familiares judicializados, além de permitir aos agentes parentais a possibilidade de recondução dos conflitos, não se guiando pela bússola dos desentendimentos conjugais, mas recentrando a decisão efetivamente na (e com a) criança. Nesse sentido, nos casos analisados, as narrativas de Mariana, Pepe e Augusto demonstram que seus sintomas são respostas que, em certa medida, repetem as heranças e os sintomas da família, mas que também podem produzir o novo, nos (des)enlaces que são convocados a fazer em meio ao conflito familiar.

Considerações finais

A proposta de releitura do conflito familiar judicializado apresentada neste artigo localiza a dimensão de “travessias necessárias” que redimensionam a compreensão da alienação parental: de um atravessamento sócio-histórico das formas de se conceber e recriar os laços conjugais e parentais; de uma passagem pelos lutos que os sujeitos realizam no percurso de uma recomposição familiar; da universalidade do fenômeno à singularidade do sintoma de cada sujeito; da reinvenção das práticas de atuação das equipes psicossociais das Varas de Família, das quais os(as) psicólogos(as) fazem parte.

References

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    O autor não autoriza adivulgação de dados da pesquisa

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Editor responsável:

Mônica Medeiros Kother Macedo

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2022
  • Aceito
    24 Maio 2023
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