Open-access Formação do Psicólogo para a Realidade Brasileira: Identificando Recursos para Atuação Profissional

Training Psychologists for the Brazilian Reality: Identifying Social Aspects for the Professional Practice

RESUMO

Esta pesquisa objetivou verificar quais recursos foram percebidos pelos alunos do último ano de psicologia, como facilitadores para atuação profissional com o que consideravam ser questões da realidade brasileira. Esse processo se desenvolveu a partir de um questionário composto por perguntas fechadas e abertas, disponibilizado via plataforma online. Os resultados permitiram concluir que há uma preocupação por parte dos estudantes com uma formação voltada para as questões sociais e que também há uma valorização significativa dos espaços já existentes no currículo que caminham nesta direção. Este estudo pretendeu contribuir com os debates sobre a formação em Psicologia, considerando as exigências para uma formação mais crítica e comprometida com as necessidades sociais brasileiras.

Palavras-chave formação; psicologia; realidade brasileira; educação

Abstract

The objective of this research was to identify the features indicated by students of the last year of the Psychology course as facilitators of the new ways of acting professionally in major areas of psychology within the Brazilian reality. An online questionnaire with closed-ended and open-ended questions was made available to the students. The answers showed that there is an awareness regarding the need for training focused on social issues, while great importance was attributed to areas in their curriculum that already go in that direction. These results can contribute to the conversation about training in psychology, considering that there is a demand for a more critical education committed to the demands of the Brazilian society.

Keywords educational psychology; Brazilian reality; psychologist training

Introdução

Ao ser submetida, desde a sua criação, à perspectiva epistemológica de corte positivista, a Psicologia assumiu, de modo hegemônico, um projeto que se pretendeu neutro, e objetivo. Neste contexto, “[...] a tarefa que se espera da Psicologia é psicologizar (no sentido de humanizar) e oferecer resultados, desvelando assim uma determinada, essência ‘do sujeito’” (Bicalho, Cassal, Magalhães, & Geraldini, 2009, p. 21). Ao testar e tratar seu objeto de estudo, a Psicologia garantia a adaptação destes à sociedade, mas psicologizava fenômenos que são, na verdade, consequência de diversos fatores que não necessariamente ou somente psicológicos (Bernardi, 2010). E, ao reduzir sua leitura ao aspecto psicológico, naturalizou o humano, universalizando-o (Bock, 1999). Essa tradição da psicologia a levou a um percurso histórico de compromisso com interesses da elite, na medida em que era este segmento que tinha hegemonia na produção de conhecimentos e em decisões sobre sua utilização social.

No Brasil, a Psicologia se instituiu, como ciência, com forte relação com os interesses dos colonizadores de controle dos indígenas, como mão de obra, das mulheres e das crianças (Antunes, 2014) e, posteriormente, como profissão, relacionada diretamente ao projeto de modernização do país. A tecnologia, apresentada pela Psicologia, que consistia em um conjunto diversificado de testes psicológicos, contribuiu para selecionar e diferenciar as capacidades dos trabalhadores da indústria emergente (Bock, 2010; Oliveira, 2003)

Essas relações e fundamentos que marcavam a Psicologia em sua institucionalização no Brasil, estavam caracterizados por uma relação de exterioridade com o mundo social. Baseada em uma dicotomia objetividade-subjetividade (marca do pensamento científico moderno), a sociedade era vista pela Psicologia como outro elemento, que mantinha com a subjetividade uma relação de influência, mas não de constituição mútua (Gonçalves & Bock, 2007). Coletividade e sujeito não eram pensados como âmbitos de um mesmo processo, portanto, ao pensar a subjetividade, a Psicologia prescindiu dos conhecimentos sobre a sociedade e, hegemonicamente, não a considerou e nem se voltou a ela para pensar subjetividade e objetividade como uma relação dialética de constituição mútua. Assim, historicamente, a sociedade não adquiriu lugar importante nas construções teóricas e na prática da ciência e da profissão.

Assim como o conhecimento e a atuação da psicologia se constituíam de forma hegemônica, a partir de um conhecimento baseado em uma perspectiva individualizante e naturalizadora, a formação também caminhava nesse sentido.

Nos anos 70 e 80, o Brasil, vivendo sob forte regime ditatorial, vai passar por mudanças que, repressoras, que, contraditoriamente, estimularam ou exigiram mudanças sociais importantes que se acumularam como resistência (Bock, 2010). Dessa forma, a partir do final dos anos 80, a sociedade brasileira vê surgir um movimento na direção da sua democratização, do fortalecimento dos movimentos sociais, das suas reivindicações, da ampliação e da liberdade para o debate, bem como da reorganização pública do pensamento da esquerda brasileira, o que nos permite compreender o surgimento de um novo projeto para a Psicologia, aliado ao fortalecimento de um pensamento crítico. Esse novo projeto (Bock, 2010) se posicionava politicamente por uma atuação que não se restringisse às elites e que objetivasse ampliar a ação da psicologia junto às populações historicamente excluídas, para além da prática dos consultórios particulares e da psicologia organizacional, e que respondesse às demandas e necessidades da maioria da população brasileira. Nesse momento, psicólogos já atuavam comprometidos com outra população, como, por exemplo, a Psicologia Comunitária, que tinha contato direto com essas populações e era uma expressão concreta desse novo projeto. O campo de atuação do psicólogo se estendia ao serviço público no âmbito da saúde mental, à atuação em hospitais, ao trabalho junto a sindicatos e movimentos sociais, a uma inserção crítica na educação, a ações junto ao judiciário e à assistência social, enfim a ampliação da intervenção dos psicólogos relacionada ao atendimento de necessidades e interesses de segmentos sociais que, historicamente, haviam ficado distantes das contribuições dos psicólogos.

No ano 2000, os Conselhos de Psicologia realizaram a I Mostra de Práticas em Psicologia: Psicologia e Compromisso Social, reunindo muitas das novas práticas que os psicólogos vinham, ao longo dos anos, inaugurando em seus lugares de atuação. Esse evento permitiu que o novo projeto para a profissão se tornasse reconhecido como tal e recebesse o título informal de projeto do compromisso social da Psicologia1 (Antunes, 2014; Bock, 2010).

Os questionamentos sobre a atuação do psicólogo também chegaram à formação a partir do momento em que “cada vez mais o consultório individual e os postos de trabalho que tradicionalmente absorviam a mão de obra dos psicólogos perdiam espaço para novas demandas e espaços de intervenção (...) que lidavam com problemas sociais complexos” (Machado, 2011, p. 146). Dessa forma, a formação em Psicologia passa a ser entendida como momento crucial de construção de um novo perfil de psicólogo. Sua importância se justifica pela possibilidade de preparação do futuro psicólogo para realizar uma análise da sociedade que permita a compreensão das demandas sociais e o uso de recursos teóricos e técnicos adequados para esta nova e desconhecida realidade.

Considerando essas questões e que o projeto do compromisso social se traduz na atuação do psicólogo para e na realidade brasileira, a presente pesquisa teve como objetivo verificar quais recursos da formação os alunos do último ano do curso de Psicologia identificavam como facilitadores para atuar profissionalmente com o que consideravam questões da realidade brasileira. Além disso, pretendeu-se verificar se as Instituições de Ensino Superior (IES) estão disponibilizando aos alunos recursos profissionais que permitam uma atuação junto às populações mais pobres e historicamente excluídas dos serviços dos psicólogos.

Método

Esta pesquisa foi produzida sob a epistemologia qualitativa (González Rey, 2005), o que nos levou a optar por privilegiar no instrumento questões abertas, sem a oferta de alternativas de respostas, e a perguntar sempre: “como?”, estimulando respostas explicativas que ampliassem nossa compreensão da resposta inicialmente dada. No tratamento dos dados, que se apresentam quantificados, também houve o esforço da análise qualitativa, considerando-se todas as respostas dadas e não apenas as mais frequentes. O objetivo foi levantar o maior número possível de elementos a respeito da visão dos sujeitos sobre os temas abordados.

O questionário foi disponibilizado via plataforma online durante o período de um mês e estava composto por perguntas fechadas, que permitiram traçar um perfil sociodemográfico da amostra estudada, e por perguntas abertas, que tiveram o objetivo de identificar questões da realidade brasileira e os recursos teóricos e técnicos que os participantes consideram que os auxiliaram a manajá-las profissionalmente. O instrumento permitiu abranger instituições de ensino superior de diferentes cidades do Brasil.

O instrumento foi organizado em cinco partes: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE); caracterização da amostra; realidade brasileira; Psicologia e realidade; formação e realidade. Inicialmente, foi apresentado o TCLE para que o participante indicasse se gostaria ou não de participar da pesquisa. As questões 2 a 9 (parte 2) tinham como objetivo traçar o perfil da amostra ao perguntar: data de término do curso, instituição de formação, estado da instituição de formação, sexo, idade, cor/ raça, classe social e área/ local que pretende atuar. A terceira parte do questionário solicitava que o participante citasse três das que considerava grandes questões da realidade brasileira (questão 10) e escrevesse quais iniciativas/ movimentos sociais conhecia que lidam com as questões que apontou (questão 11). Na parte de Psicologia e realidade, foi perguntado sobre quais dessas questões eram foco de atuação da Psicologia (questão 12) e como a Psicologia poderia atuar nessa questão (questão 13). Por fim, as questões 14 a 18 solicitavam que o participante identificasse quais recursos da formação o auxiliaram a lidar com essas questões sociais, de que forma esses recursos os auxiliaram, como avaliariam (de forma quantificada, sendo 1 o menor valor e 5 o maior) o seu preparo para atuar na realidade brasileira, quanto (sendo 1 o menor valor e 5 o maior) eles avaliariam o preparo fornecido pela sua formação para atuar na realidade brasileira e se agregariam elementos para melhorar a formação que o auxiliariam a atuar nessa realidade.

A amostra foi constituída por alunos do último ano dos cursos de psicologia do ano de 2014. Esta escolha se justifica pela proximidade temporal com a formação, o que indica uma maior familiaridade com o tema estudado, e pelo fato do curso de Psicologia ter sido realizado integralmente sob as Diretrizes Curriculares de 2004. Como estratégia de acesso aos possíveis participantes, foi realizado contato por e-mail com os coordenadores de curso de Instituições de Ensino Superior de todas as regiões do Brasil. A lista dos coordenadores foi disponibilizada pela Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP). A partir desse contato, foi solicitada a lista de e-mails dos alunos de Psicologia que estariam se graduando no ano de 2014. Nos casos em que não foi possível se obter, solicitou-se que o coordenador encaminhasse o e-mail da pesquisa para seus alunos. Foram enviados 422 e-mails e obtivemos resposta de 84 coordenadores de curso que nos apoiaram divulgando o questionário entre os alunos do último ano do curso.

O questionário foi respondido por um total de 467 alunos. O critério de exclusão se caracterizou pela aceitação do TCLE, pelo ano de término do curso ser 2014, pela explicitação da instituição de formação do participante e o pelo preenchimento das questões 10 e 14, consideradas centrais ao solicitarem que os participantes identificassem questões da realidade brasileira e quais recursos da formação os auxiliaram a lidar com elas. Ao final, foram selecionados 145 questionários para a pesquisa.

Resultados

Caracterização da Amostra

A amostra foi composta por 145 sujeitos das cinco regiões do Brasil. De forma geral, os participantes compõem uma maioria pertencente ao sul (36,6%) e sudeste (42,1%) do país, seguidos pelo Centro-Oeste (13,8%), Nordeste (6,2%) e Norte (1,4%). Em relação ao tipo de IES, tivemos 49,7% de alunos de IES privadas, 32,4% de comunitária/ filantrópica e 17,9% de públicas. Do total, 79% dos sujeitos eram do sexo feminino e 21% do sexo masculino. Em relação à idade, é-nos apresentada uma amostra jovem, com a grande maioria dos participantes na faixa etária entre 20 e 29 anos (78%). Esses dados demonstram proximidade da amostra composta com a categoria profissional dos psicólogos de acordo com pesquisas como as de Lhullier e Roslindo (2013) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 1988). A questão da cor/ raça é algo emergente e que não aparece com frequência nas pesquisas sobre o profissional da psicologia. Optamos por utilizar a definição de cor ou raça utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde 1940. A grande maioria dos participantes se definiram como brancos, compondo 72,4% da amostra, seguido de 17,4% pardos e 8,3% compostos por negros, indígenas e amarelos. Consideramos que a classe social vai além da questão objetiva econômica, tornando-se aspecto de difícil abordagem e classificação; por isso, nesta pesquisa, optamos por perguntar aos participantes em qual estrato de consumo ele se incluía, sendo “A” o mais rico e “E” o mais pobre. Como resultado, verificamos que a grande maioria (72,4%) se incluiu no estrato “C”, seguido de 14,5% do estrato “D”, 9% do “B”, 2,1% do “A” e apenas 1,4%, do “E”.

Sobre o local ou área de atuação, optamos por apresentar as opções de resposta pelo local de atuação, especificamente pelo tipo de instituição, acreditando evitarmos as diferentes concepções sobre as áreas da Psicologia e possível dificuldade de classificação posterior. Vale ressaltar que construímos uma opção de resposta “clínica/ consultório” independente das instituições de saúde por, historicamente, representar a opção mais escolhida da atuação do psicólogo. Ademais, houve a possibilidade de os participantes indicarem mais de um local de trabalho. A Clínica/Consultório ocupa o primeiro lugar das opções de atuação dos participantes (35,6%), seguida das Instituições de Saúde (21,5%), de Trabalho (14,8%), de Assistência Social (10,7%), de Educação (6,7%), de Justiça (5,4%), da Defesa Nacional (1,3%) e 4% dos participantes não responderam a pergunta.

Realidade Brasileira

Esta pesquisa teve como objetivo identificar quais recursos auxiliam os futuros psicólogos a atuar, considerando a realidade do nosso país. Assim, nosso primeiro passo foi caracterizar que realidade é essa. Para tanto, decidimos dar liberdade para que essa caracterização fosse feita pelos próprios sujeitos e não colocar opções de resposta. Assim, solicitamos que os participantes citassem três das que consideravam grandes questões sociais da realidade brasileira e, a partir das respostas, construímos 20 conjuntos de respostas.

A questão social que teve maior incidência de resposta foi a Educação, que somou 20,4% das respostas. Em segundo e terceiro lugar estavam, respectivamente, a Saúde, com 15,7%, e a Desigualdade Social, com 13,0%.

Dentro do conjunto de respostas Educação, incluímos as respostas que apontavam para a questão educacional no Brasil. De forma mais geral, identificamos duas temáticas principais dentro da Educação: formação do cidadão e aspectos desafiadores da política educacional. O conjunto de respostas Saúde foi composta por respostas que apontavam uma precariedade e baixa qualidade da política pública de saúde e um descaso e negligência com a saúde. Outra preocupação presente nas respostas foi em relação à saúde mental, apontando a necessidade de uma reforma psiquiátrica, a desinstitucionalização do paciente de saúde mental e de maior acesso ao serviço de Psicologia. Nesse mesmo grupo também surgiram respostas que criticavam o modelo biomédico e questões específicas como, por exemplo, o aborto e a gravidez na adolescência. Foram agrupadas na Desigualdade Social as respostas que indicaram as seguintes formas de desigualdade: econômica, social e educacional. Também foram agregados os temas que se referiam à marginalização da população, como pobreza, miséria e fome. Violência foi indicada em 9,6% das respostas; Exclusão em 8,5%. Outros temas apareceram nas respostas com menor frequência, mas compondo um conjunto bastante amplo e diversificado de problemas da realidade brasileira: ética (7%), drogas (4%), políticas públicas (4%) e, com menor frequência, ideologia, economia, cultura, segmento etário, organização social, moradia, religião, ecologia, família e transporte público.

Com o intuito de identificarmos qual é o engajamento social dos participantes, os questionamos sobre quais iniciativas ou movimentos sociais eles conhecem que lidam com as questões que citaram. Identificamos que apenas 12,8% da amostra admitem não conhecer nenhuma ação que lide com as questões sociais apontadas. Entre os que afirmaram conhecer, as Políticas Públicas (27,7%) e Movimentos e Organizações Sociais (22,6%) tiveram maior destaque, seguidos das organizações não governamentais (ONGs; 12,8%), Iniciativas de formação e qualificação (9,7%), Manifestações sociais (7,7%), Ações Individuais (4,6%) e Iniciativa privada (2,1%).

Psicologia e Realidade

Esta parte teve como objetivo identificar qual é a compreensão dos sujeitos sobre a atuação e o compromisso da Psicologia com a realidade brasileira. Foi perguntado aos participantes se as questões sociais consideradas por eles como características da realidade brasileira eram foco da atuação da Psicologia. Como resultado, verificou-se que a grande maioria (89,1%) considerou que as questões eram foco da sua profissão, enquanto apenas 10,9% indicavam que não.

Quando questionados sobre como a Psicologia pode atuar em relação às questões vistas como foco, identificamos respostas que foram aglutinadas em quatro conjuntos principais: Intervenções e técnicas da Psicologia, Visando à transformação social, Políticas públicas e movimentos sociais e Postura crítica/ Base teórica. Verificamos uma amplitude de apenas 8,6%, o que indica uma proximidade nas porcentagens de repostas. O primeiro conjunto de respostas (Intervenções e técnicas da Psicologia) aglutinou 28,5% das respostas que discorriam sobre ações e/ ou formas específicas do psicólogo atuar. Compondo 24,4% do total de respostas, estiveram aquelas que indicavam ações do psicólogo que visavam à transformação social. Em seguida, representando 22,6% do total geral, foram reunidas respostas que mencionavam a atuação do psicólogo a partir de políticas públicas e/ ou movimentos sociais. Por fim, com 19,9%, estavam as respostas que apontavam para a necessidade de um aprofundamento teórico e/ ou postura crítica independentemente da ação do psicólogo (Postura crítica/ Base teórica).

Formação e Realidade

O questionário, da maneira como foi construído, preparava o participante para chegar onde o problema de pesquisa é respondido de forma clara. Os sujeitos, inicialmente, caracterizaram a realidade brasileira e depois demonstraram seu conhecimento e/ou engajamento com ela. Discorreram, também, sobre como a Psicologia pode atuar diante dessa realidade e, nesta etapa, puderam responder sobre como a formação os ajudou a construir essa visão sobre a realidade brasileira, a Psicologia e a atuação do psicólogo.

Nas duas questões que compõem essa parte, cada aluno foi solicitado a responder quais recursos da formação o auxiliaram a lidar com as questões sociais que apontaram no início do questionário e de que forma esse recurso os ajudou.

No grupo de respostas intitulado Disciplinas, foram reunidas respostas que falavam especificamente de disciplinas da graduação (28%). Na análise, aglutinamos as disciplinas por temáticas parecidas apesar de diferentes títulos. Ao final, construímos 16 grupos de respostas: Psicologia Social, Escolar/ Educacional, Concepções de abordagens teóricas, Saúde, Organizacional, Ética, Sociologia, Filosofia e Antropologia, Desenvolvimento humano, Jurídica, Dinâmica de grupo, Psicofarmacologia e Bases neurais, Psicopatologia, História da Psicologia, Trânsito, todas com temas específicos.

Os Estágios representaram 25,1% do total geral de respostas e foram categorizados por área. No grupo de repostas “Educacional” (22,5%), foram agregados os estágios que se referiam à atuação em Escola, Creche, IES, Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), Psicodiagnóstico infantil e Educação especial (Síndrome de Down, autistas). Em “Saúde” (33,8%) estão as práticas realizadas em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad), Hospital, Posto de saúde, Estratégia Saúde da Família (ESF), Hospital psiquiátrico, Comunidade terapêutica e CEDIP. Os estágios na área da “Psicologia Comunitária” (29,6%) se referiam à atuação nas seguintes instituições ou sobre os seguintes temas: ONG, Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Drogas, Idoso, Projeto social, Moradores de rua, Orfanato, Abrigo, Delegacia da mulher, Bolsa-família, Cooperativas e Economia Solidária. A prática realizada em Fórum, Tribunal de Justiça, Ministério Público, Defensoria Pública, Centro Socioeducativo Nossa Senhora Aparecida (CESENSA) (menor infrator) e Presídio foram aglomeradas sob o tema Justiça (6,3%). O tema Clínica (6,3%) se refere à atuação em consultório e Organizacional (2,1%), em empresas.

No tema Conhecimento teórico (22,3%), estão presentes livros, documentos, autores, abordagens teóricas, documentários e conteúdos específicos citados. Em relação às obras citadas, em “Documentos legislativos” surgiram: Resoluções e Manuais do CFP, documentos do Ministério da Saúde, Legislações; cartilhas CFP, cartilhas do CRAS, Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), CREAs, direitos da mulher, Estatuto do Idoso, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Estatuto da Juventude, programas do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Também foi apontada uma grande diversidade de livros escritos por autores citados anteriormente. Ainda, verificamos uma diversidade nas abordagens teóricas apresentadas: Sócio-Histórica, Comportamental, Psicanálise, Fenomenologia, Humanista, Positiva, Transpessoal, Sistêmica e Terapia Cognitivo-Comportamental.

No grupo de respostas seguinte, atividade extracurricular (10%), reunimos respostas que tratavam de eventos, palestras, seminários, workshops, cursos, exposições, encontros de estudantes, movimento estudantil, relação com o conselho, trabalho voluntário, semanas de psicologia das IES. Alguns projetos de extensão (6,3%) surgiram e foram categorizados, assim como referências à iniciação científica, que formaram o conjunto de respostas Pesquisa (4,3%).

Por fim, 2,6% dos participantes citaram professores específicos ou suas características como recurso de formação. As características que apresentaram como positivas foram: possuir uma visão mais próxima das questões sociais, privilegiar formação de um profissional capaz de atender as demandas regionais, ser capacitado, incentivar a crítica, ser envolvido em questões sociais e ser sensível e atento.

Para avançar na concretização do objetivo da pesquisa, foi analisado de que forma os recursos apontados pelos participantes o auxiliaram a lidar com as questões sociais. Diferentemente das outras questões do questionário em que era contado número de respostas, nesta questão, categorizamos cada resposta no nível mais alto que ela assumia. Assim, se uma resposta apresentasse dois níveis, a categorizávamos no mais alto.

Criamos, a partir das respostas, o que chamamos de níveis de compreensão, assim, as respostas que apontavam que os recursos proporcionaram um contato inicial com a realidade social (descobrir que existe aquela realidade, conhecê-la e vivenciá-la) foram categorizadas no nível mais básico “conhecimento e vivência” e representaram 15,2% das respostas; o segundo nível reuniu respostas que consideraram que as experiências possibilitaram um desenvolvimento teórico e prático para a atuação futura e foi denominada base teórica e prática, representando 26,2% das respostas. No terceiro nível, estão as respostas (26,2%) que indicaram o desenvolvimento de uma postura crítica e uma compreensão mais aprofundada da realidade proporcionada pela formação, denominado compreensão crítica. No nível mais alto, estão as respostas que indicavam que os recursos da formação permitiram o desenvolvimento de um compromisso com a sociedade e seus problemas, indicando alguma ação que visasse à transformação social; denominado projeto de transformação social, o que representou 26,9% das respostas. Contudo, 5,5% não responderam. à questão.

Em duas outras questões perguntamos aos participantes sobre como eles avaliavam, de 1 a 5, o seu preparo para atuar profissionalmente com questões sociais da realidade brasileira e como eles avaliavam a preparação dada pela sua formação. Em ambas as perguntas, identificamos uma avaliação em nível elevado do preparo dos participantes, correspondendo a mais de 51,7% de respostas nos níveis 4 e 5 e 44,8%, indicando esses mesmos valores para a preparação proporcionada por sua formação.

Como último espaço do questionário, foi disponibilizada a opção do participante de sugerir elementos a serem agregados à formação que consideravam auxiliar na atuação profissional frente à realidade brasileira. A necessidade de a formação agregar mais experiências práticas representou o maior número de respostas. Em relação à estrutura dos estágios, os participantes sugeriram campos variados de estágio, maior carga horária, maior número de estágios, estágios fora da universidade e possibilidade de ingressar no campo de trabalho antes do término da graduação.

Outro ponto marcante nas respostas foi a necessidade de adicionar ao curso a discussão sobre as temáticas da realidade brasileira. Alguns dos participantes apontaram para a necessidade de o conhecimento teórico despertar a consciência crítica, auxiliar os alunos a pensar de modo crítico, ativo e consciente, sobre nossa realidade e sobre o papel que desempenharemos na sociedade.

Foram também indicadas: Integração teoria e prática, estágios desde o início do curso, temas como gênero, pobreza, racismo, homofobia, violência, desigualdade social como fazer parte do currículo mínimo do curso, questões sociais do Brasil e Ética sejam abordadas em todas as disciplinas, questões sociais desde início do curso, necessidade de maior foco ao atendimento comunitário, saúde pública e educação, mais trabalhos na comunidade foram solicitados como mudanças na estrutura do curso.

Em relação à atividade extracurricular, foram sugeridos cursos sobre temáticas sociais, participação dos alunos em eventos e movimentos sociais, extensão depois da graduação, incentivo aos Centros e Diretórios Acadêmicos e gestão de carreira para os estudantes.

Alguns participantes assinalaram questões relacionadas à didática, atuação do professor e métodos de ensino. Foi apontado que o método de ensino deve ser repensado e atualizado. Especificamente, foram citados os estudos de caso, visitas a projetos sociais, debates e oficinas. Os professores precisam ter maior conhecimento da realidade brasileira, devem ser problematizadores e não normativos, com maior criatividade na execução dos estágios, oferecendo ao estudante a oportunidade de pensar por si sobre sua realidade. Também foi solicitado mais espaços de troca entre os próprios acadêmicos para que possam falar de suas experiências de estágio em diferentes locais.

As respostas que falavam sobre a Psicologia foram aglutinadas sob dois temas: contato com a profissão e visão de psicologia. Em contato com a profissão, foi apontada a necessidade de se pensar sobre o papel do psicólogo na sociedade durante a formação, aparecendo como sugestão a inserção dos estudantes em áreas de trabalho e o compromisso da IES em oferecer mais oportunidades aos acadêmicos de conhecer os espaços diversos em que o psicólogo atua. No primeiro conjunto de respostas, visão da psicologia, foi demandada a descentralização da clínica na formação, a reforma psiquiátrica, maior ênfase na psicologia social, trabalhar durante o curso a função do psicólogo na sociedade brasileira, a sustentabilidade e a formação de cultura de aceitação das diferenças na clínica, nas instituições, na vida, dentro da nossa cultura, além de menos “picuinha” entre linhas teóricas.

Com menor representação de respostas foram citadas sugestões sobre questões financeiras, qualificação individual e pesquisa. Em Pesquisa, verificamos uma resposta que apontava para a necessidade de estudos que se destinem a estudar a realidade/ contexto social; as outras tratavam de pesquisa em geral. Por fim, outros dois sujeitos consideraram suficiente o que tiveram durante a formação para lidar com as questões da realidade brasileira.

Discussão

Pela análise das respostas, podemos considerar que acessamos uma parcela de alunos de último ano de psicologia que inclui em suas reflexões e preocupações o compromisso do psicólogo com a realidade brasileira. O próprio instrumento talvez tenha sido um critério de exclusão de outros alunos que não tomassem esta questão como importante, pois se tratava de um questionário com questões abertas que solicitavam uma reflexão e posicionamento dos participantes. Consideramos assim que temos em nossa pesquisa um conjunto de participantes identificados com o debate do compromisso social.

De forma geral, temos uma amostra composta por uma maioria de mulheres, jovens, brancas, de classe média que estudam em IES privadas e pretendem atuar na clínica. Esse perfil é conhecido pela Psicologia em suas pesquisas (Borges-Andrade, 1988; Lhullier, 2013) e demonstra uma continuidade histórica da caracterização da categoria profissional da psicologia.

Na segunda parte da pesquisa, solicitamos que os participantes citassem três questões sociais da realidade brasileira que consideravam significativas. De maneira geral, foi-nos apresentada uma grande diversidade de respostas que não causaram estranhamento. No entanto, para analisar o quanto essas respostas estão coladas à realidade, utilizamos a publicação Visão da realidade brasileira: A percepção dos conselheiros do CDES, da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Brasil (CDES, 2004) e o Informe de 2013 da Corporación Latinobarómetro.

Dos 11 problemas sociais mais relevantes do Brasil apresentados pelos conselheiros do CDES, três (educação, desigualdade social e violência) foram citados por nossos participantes com alta frequência de respostas. E, dos nove problemas mais importantes do país citados na pesquisa de opinião pública Corporación Latinobarómetro, seis (educação, saúde, violência, drogas, ética e segurança pública) convergem com as questões produzidaspor nós a partir das respostas dos participantes de nossa pesquisa.

A partir dessas comparações, fica claro que os participantes da pesquisa caracterizaram as questões sociais do nosso país, acompanhando visões majoritárias e/ou referenciais. O interessante é como eles as consideraram, em sua maioria, como problemas foco da atuação da Psicologia. Consideramos que este resultado pode nos indicar que houve uma real mudança da concepção do fenômeno psicológico, como apontado por Bastos e Achcar (1994), do plano individual para o contexto sociocultural. Mudança essa que pode estar sendo influenciada pela emergência de novos campos de atuação para os psicólogos, o que possibilita uma ampliação do que pode ser considerado objeto de estudo da psicologia e se reflete na formação.

Além de considerarem as questões como foco de atuação da Psicologia, os participantes também descreveram de que forma o psicólogo pode atuar nesses problemas. Como resultado, tivemos uma diversidade de respostas. Surgiram intervenções tradicionais da psicologia, práticas relacionadas ao projeto de compromisso social, questões relacionadas à postura na e para uma atuação de qualidade e quais instituições ele deve estar inserido.

De forma geral, foi-nos apresentado um quadro amplo de possíveis práticas do psicólogo em relação à realidade brasileira. Assim como o anterior, esse dado nos aponta para uma ampliação de possibilidades das práticas do psicólogo que supera as atividades de maior incidência, afirmadas pelo Grupo de Trabalho Formação (CFP, 2012), desde os anos 80: avaliação psicológica, psicodiagnóstico e aplicação de testes. Não queremos afirmar com isso que essas atividades tradicionais estão tendo menos incidência na atuação dos psicólogos, mas que outras práticas se fazem presentes durante a formação como possibilidade de ação do profissional da Psicologia.

Na última parte do questionário, identificamos quais recursos os alunos participantes da pesquisa consideraram que os auxiliaram a lidar com as questões apontadas como problemas da realidade brasileira. O primeiro ponto que nos chama a atenção é de como foi apresentado um quadro tradicional da formação. Assumimos que isto pode ter sido induzido pela formulação da pergunta que apresentava alguns exemplos, mas é interessante como todos os participantes apontaram de alguma forma o tripé: ensino, pesquisa e extensão. Valle Cruces (2008) afirma que a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão já estava presente nas propostas de formação de psicólogos desde o século passado.

Entre os recursos de formação que foram citados pelos alunos, o conjunto de respostas Disciplinas assumiu a primeira posição, sendo que quase 30% das disciplinas que foram citadas se referem à Psicologia Social ou Comunitária. Esse dado corrobora diversas pesquisas que apontam a importância dessa disciplina na formação do psicólogo (Borges-Andrade, 1988; Nico & Kovac, 2003; Paiva & Yamamoto, 2010; Rechtman & Castelar, 2011), carregando um potencial crítico que pode contribuir significativamente para a adesão a um projeto de compromisso com as demandas sociais.

O Estágio foi o recurso de formação que ocupou o segundo lugar na nossa pesquisa e é um tema muito presente nas pesquisas sobre formação dos psicólogos no Brasil. O estágio possibilita o contato com a realidade e a vivência da teoria estudada em sala de aula, como diversos autores também apontam (Bardagi, Bizarro, Andrade, Audibert, & Lassance, 2008; Bock & Gianfaldoni, 2010; Rechtman & Castelar, 2011). Segundo o CFP, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (2013): “[...] o estágio é a etapa inicial do exercício profissional com supervisão, é a oportunidade do aprendizado na prática, é, portanto, o principal elo do exercício profissional com a formação” (p. 8). O alto índice de respostas que apontavam o estágio como auxiliar na formação para lidar com a realidade brasileira pode se justificar, pois ele “[...] oferece a possibilidade de problematizar a realidade, sendo espaço privilegiado para o exercício profissional supervisionado, para a intervenção em novos campos de atuação” (Conselho Federal de Psicologia, Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, & Associação Brasileira de Ensino de Psicologia, 2013, p. 8). Essa afirmação abrange praticamente todas as respostas dos participantes sobre como o estágio os auxiliou.

Na cartilha do CFP, Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (2013), é apontada a importância do estágio para o levantamento de questões de pesquisa. A afirmação da importância da pesquisa na formação do psicólogo também está presente nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Psicologia (2004), quando coloca entre as competências consideradas necessárias ao psicólogo: “[...] identificar, definir e formular questões de investigação científica no campo da Psicologia... saber buscar e usar o conhecimento científico necessário à atuação profissional, assim como gerar conhecimento a partir da prática profissional” (p. 8).

Consideramos importante também questionar a baixa frequência da pesquisa como recurso de formação que auxilia a atuação com a realidade brasileira. Nesse sentido, duas hipóteses podem ser colocadas: ou esses estudantes não reconhecem a pesquisa como um recurso auxiliar da profissão, indicando que mantêm separada a ciência e a profissão, ou a pesquisa não é difundida na formação, permitindo o acesso mais ampliado. Ambas as hipóteses devem ser motivo de preocupação dos formadores, pois, assim como mostra Valle Cruces (2008), o ensino de qualidade coloca dúvidas, ensina a fazer perguntas e a buscar as respostas, não entregando respostas prontas. A pesquisa é uma atividade que contribui para a problematização do conhecimento, sendo um recurso importante em uma formação crítica.

Cabe aqui, no entanto, reunirmos este conjunto de respostas para afirmarmos que são diversas as experiências que os alunos apontam como espaço de uma formação crítica. Com variações importantes na frequência, podemos dizer que disciplinas, estágios, estudos teóricos e práticos, atividades extracurriculares, projetos de extensão, pesquisas e a relação com professores são fontes diversificadas e importantes de formação crítica. Os alunos, ao indicarem essa gama de possibilidades nos dizem do seu potencial como experiências que são, de alguma forma, tradicionais na formação, e que se tornam espaços de reflexão, questionamento e desenvolvimento de uma postura crítica em relação à Psicologia e sua relação com a sociedade brasileira.

Na parte final do questionário, reservada para serem feitas sugestões e buscando aproveitar as diferentes porcentagens de escolha das experiências, ficou clara a demanda dos participantes por mais atividades práticas na formação. Esse resultado converge com o apontado por Valle Cruces (2008) ao afirmar que: “[...] introduzir atividades práticas e de pesquisa, nas quais os alunos possam desenvolver habilidades necessárias a um bom profissional, vem sendo o desafio que se enfrenta nos cursos de formação, a fim de garantir qualidade e eficiência” (p. 251). Além disso, é importante destacar que dois aspectos importantes das Diretrizes Curriculares Nacionais de 2004 não foram verificados nas respostas: o primeiro é a integração teoria e prática, que aparece nas respostas dos alunos como uma demanda ainda não suprida pela formação e a segunda seria a possibilidade de flexibilização do currículo tradicional e inovação dos cursos de formação. Em relação a isso, o que verificamos é que, apesar de avançar nos conteúdos e práticas, estes não são reconhecidos pelos alunos como devidamente integrados e ainda funcionam no modelo tradicional de disciplinas, estágios, sala de aula etc.

De maneira geral, podemos perceber que as transformações da prática do psicólogo apontadas por Bastos e Achcar (1994) como indícios de transformações na direção de uma formação mais voltada para a sociedade podem ser reconhecidas pelos estudantes em sua formação. Também é possível reconhecer avanços possibilitados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais de 2004, que indica a importância do trabalho multidisciplinar, da promoção do bem estar coletivo, da implementação de mais espaços de estágios (estágios básicos) e da obrigatoriedade de atividades complementares, muito presente nas respostas dos sujeitos a partir das atividades extracurriculares.

Os participantes de nossa pesquisa parecem, assim, apontar para uma Psicologia voltada à sociedade brasileira, uma profissão capaz de interferir nos problemas e urgências sociais a partir de seu conhecimento técnico e teórico. Reconhecem, na formação, vários espaços em que essas possibilidades estão sendo construídas. São teóricos, professores, conhecimentos, experiências, debates e reflexões, atividades diversas que formam um importante campo de formação crítica. O fato de reconhecerem estes espaços e indicarem sugestões para a melhoria da qualidade deve ser tomado como expressão da existência de um projeto para a profissão que busca ampliar sua inserção social, respondendo a um conjunto mais amplo de questões e problemas da sociedade. As dificuldades percebidas nas respostas, como a fragmentação do cenário da formação construído por eles, são, com certeza, reflexos ou expressões de um projeto em construção que carrega suas contradições e enfrenta o estabelecido pela tradição de uma psicologia hegemonicamente elitista.

Conclusões

A formação é o lugar da reprodução, mas também de superação. É um espaço importante de conservar conhecimentos (repassando aos novos profissionais) produzidos pela categoria e também de transformar essas produções para que respondam de forma mais adequada ao momento histórico em que vivemos. O desafio da formação do psicólogo para a realidade brasileira é algo que deve ser tomado na sua complexidade e nas suas contradições. Além disso, é preciso tomar a formação, a ciência e a profissão como indissociáveis; é preciso estudar a formação do psicólogo em todos os seus níveis e em todos os seus aspectos. É a partir da análise do que temos que é possível caminharmos para o que queremos.

Tomando a formação do psicólogo como um processo que se transforma com a realidade social, esta pesquisa nos possibilitou afirmar que há um projeto de uma profissão mais comprometida com as demandas da maioria da população instalado (ou se instalando) e presente nos cursos de formação do psicólogo. Os formandos de último ano do curso sabem do que se trata e têm as suas interpretações ou posições sobre o tema, sendo capazes de olhar seus cursos e avaliá-los a partir deste projeto.

Desde 1994, Bastos e Achcar já apontavam para uma mudança na formação. Estamos frente a mais um momento deste processo de mudança, no qual a diversidade de projetos convive em uma mesma sala de aula, em um mesmo trabalho acadêmico e, às vezes, para um mesmo aluno. Reconhecemos, a partir de nossa investigação, o processo de mudança ocorrendo em dois níveis: o surgimento do novo e a transformação do tradicional. O primeiro nível contempla o que é novo: novos locais de estágio, disciplinas abordando temas jamais estudados, como direitos humanos; experiências extracurriculares que permitem o contato com uma realidade distante e muitas vezes desconhecida; professores com novos discursos e novos projetos. No segundo nível, fica claro, ao verificarmos a enorme quantidade de disciplinas apontadas pela amostra que pertencem ao que poderíamos chamar de currículo tradicional (decorrentes ainda das propostas de currículo mínimo) e tratam dos mais diversos temas da sociedade brasileira, inaugurando a partir do tradicional uma nova leitura da realidade brasileira. Destaque-se a importância dada à Psicologia Social pelos estudantes, que parecem encontrar ali um novo modo de pensar a psicologia na sua relação com a sociedade. Constatamos que autores e disciplinas tradicionais têm servido como recurso que auxilia os alunos a atuar na realidade brasileira, o que nos sugere que o tradicional está sendo lido de forma diferente, possibilitando novas formas de atuar. O tradicional e o novo convivem e disputam um mesmo espaço na formação de cada estudante/ futuro profissional.

Em relação ao “como se preparar para atuar comprometido socialmente”, é apontada pelos sujeitos a necessidade do aprofundamento teórico, da aproximação com outras áreas (sociologia, antropologia, filosofia), do posicionamento político, da atuação para o empoderamento dos sujeitos para uma transformação social significativa, entendida como superação das relações de opressão. São elementos avançados no sentido da superação das visões naturalizadoras e das posições conservadoras. São aspectos progressistas indicados pelos participantes na direção de um profissional que se vê inserido em uma realidade social para a qual deve possuir saberes e técnicas que lhe permitam a intervenção transformadora. Podemos concluir que a Psicologia vai sendo construída nos cursos de Psicologia, de modo a reconhecer a realidade social como seu chão. A Psicologia vai sendo aprendida e exercida de forma a fortalecer a compreensão histórico-social do ser humano.

Antes de finalizarmos, cabe retomarmos aos níveis de compreensão construídos por nós, para dar visibilidade aos resultados que os alunos indicaram dos recursos potentes no curso, pois este trajeto pode indicar o caminho necessário para o desenvolvimento de uma postura comprometida socialmente. As respostas permitiram verificar que os participantes reconhecem que adquiriram conhecimento e vivência e isto, para nós, está posto como aquisição na direção da postura comprometida socialmente; o desenvolvimento de uma base teórica e prática, a compreensão crítica e a construção de um projeto de transformação social indicam o caminho construído pelos alunos em uma ascensão em direção a uma atuação com maior compromisso com as urgências de nossa sociedade.

Podemos arriscar afirmar que a postura crítica exigida pelo novo projeto que envolve um conhecimento experenciado e vivido, de contato com uma realidade que alguns indicam desconhecer. Além disso, envolve a apropriação dos recursos teóricos e práticos que a psicologia tem a oferecer. A indicação, em outra questão, das diversas teorias que consideram potentes, mostra que a qualidade está na leitura crítica delas em oposição a uma absorção quase automática; esta etapa levaria ao que indicaram e ao que foi por nós denominado de compreensão crítica. A teoria é utilizada para um diálogo com a realidade e, desta forma, ajuda a dar visibilidade a muitas das determinações do real, mas também e ao mesmo tempo, permite um contato problematizador com esta realidade; ou seja, que permite à realidade fazer perguntas à teoria, desenvolvendo-a. E, por fim, os alunos que indicam que chegaram nesta experiência de formação, a desenvolver um projeto de transformação social desenham um futuro de envolvimento e de compromisso com a realidade brasileira, onde exercerão a profissão.

A formação crítica deve aliar conhecimento da realidade, teoria, recursos técnicos, experiências, questionamentos, inquietudes, perguntas, relações saudáveis com professores e colegas, contudo parece necessitar, como condição, o desenvolvimento de um projeto de utilização dos recursos da psicologia para a construção de uma sociedade justa. Assim, o projeto da profissão comprometida com a realidade e os problemas da maioria da população poderiam ser traduzidos como formação crítica. Entendemos que aí está o desafio dos cursos de graduação.

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  • 1
    O termo ou título do projeto “psicologia e compromisso social” tem sido utilizado de maneira pouco formalizada. Isto nos levou a substituir o termo por questões da realidade brasileira, permitindo uma compreensão mais ampla que possa abarcar todos os esforços críticos na direção de uma psicologia que contribua, a partir de seu fazer, para a solução de questões sociais de toda a sociedade brasileira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2015
  • Aceito
    13 Jun 2016
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