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O que pode uma câmera em sessões psicanalíticas com crianças com traços autistas? 1 1 Este trabalho contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), processo 17/26995-0

What can do a camera do in psychoanalytic sessions with children with autistic traits?

Que peut apporter une caméra dans la prise en charge psychanalytiques des enfants autistes ?

¿Qué puede hacer una cámara en sesiones psicoanalíticas con niños con rasgos autistas?

Resumo:

A questão central que norteia este trabalho é se uma câmera de registro filmográfico, que é um objeto utilizado inicialmente com fins metodológicos, poderia ter uma função terapêutica. Objetiva-se apresentar e discutir as repercussões e possibilidades referentes à presença de uma câmera em atendimentos de casos de fechamento autístico no Programa de Intervenção Precoce, em uma perspectiva psicanalítica. É uma pesquisa clínico-qualitativa, com análise de conteúdo, a partir de vinhetas clínicas de três casos de crianças entre 2 e 3 anos. São discutidas três abordagens sobre os usos e os tipos de objetos pertencentes ao universo de um bebê, a fim de interrogar se elas poderiam auxiliar na clínica do autismo: objeto transicional, objeto tutor e objeto de mediação. Considerou-se que a câmera promoveu e sustentou encontros intersubjetivos importantes e o despertar da atenção de crianças, antes pouco interessadas por aquilo que lhes era ofertado, inaugurando um espaço de coconstrução e interludicidade.

Palavras-chave:
autismo; psicanálise; objeto de mediação; objeto tutor; objeto autístico

Abstract:

The central question that guides this work is about whether a film recording camera, which is an object initially used for methodological purposes, could have a therapeutic function. The aim is to present and discuss the repercussions and possibilities related to the presence of a camera in cases of autistic shutdown in the Early Intervention Program, from a psychoanalytic perspective. This is clinical-qualitative research, with content analysis, based on clinical vignettes of three cases of children, between 2 and 3 years old. Three approaches are discussed regarding the uses and types of objects belonging to a baby’s universe, to ask if they could assist in the autism clinic: the transitional object, the tutor object, and the mediation object. It is considered that the camera promoted and sustained important intersubjective meetings and the awakening of children’s attention, previously less interested in what was offered to them, initiating a space for co-construction and interludicity.

Keywords:
autism; psychoanalysis; mediation object; tutor object; autistic object

Résumé :

La question centrale guidant ce travail porte sur l’éventuelle fonction thérapeutique d’une caméra, qui est un objet initialement utilisée à des fins méthodologiques. L’objectif est de présenter et de discuter, dans une perspective psychanalytique, les répercussions et les possibilités d’une caméra dans la prise en charge d’enfants présentant un repli autistique suivis au sein du Programme d’Intervention Précoce. C’est une recherche clinique-qualitative, avec analyse de contenu, à partir de vignettes cliniques de trois enfants, âgés de 2 à 3 ans. Trois approches concernant les usages et les types d’objets appartenant à l’univers d’un bébé seront repris, afin d’interroger s’ils pourraient aider à la clinique de l’autisme : l’objet transitionnel, l’objet tuteur et l’objet de médiation. Nous considérons que la caméra a favorisé et soutenu des rencontres intersubjectives importantes et a éveillé l’attention des enfants, auparavant peu intéressés par ce qui leur était offert, en créant un espace de co-construction et d’interludicité.

Mots-clés :
autisme; psychanalyse; objet de médiation; objet tuteur; objet autistique

Resumen:

La pregunta central que guía este trabajo gira en torno de la posibilidad de una cámara cinematográfica, un objeto inicialmente utilizado con fines metodológicos, para ser utilizada en sesiones terapéuticas. El objetivo es presentar y discutir las repercusiones y posibilidades relacionadas con la presencia de una cámara en la atención a casos de cierre autista en un Programa de Intervención Temprana, desde una perspectiva psicoanalítica. Se trata de una investigación clínico cualitativa, con análisis de contenido, a partir de viñetas clínicas de tres casos de niños, con edades de entre 2 y 3 años. Se discuten tres enfoques sobre los usos y tipos de objetos pertenecientes al universo de un bebé para observar si esto podría ayudar en la clínica del autismo: el objeto transicional, el objeto tutor y el objeto mediador. Se considera que la cámara promovió y sostuvo importantes encuentros intersubjetivos y el despertar de la atención de niños previamente poco interesados en lo que se les ofrecía, inaugurando un espacio de coconstrucción e interjuego.

Palabras clave:
autismo; psicoanálisis; objeto de mediación; objeto tutor; objeto autista

Introdução

O uso da câmera e da videografia em sessões terapêuticas não é recente. Desde sua criação na era da modernidade, os filmes passaram a ocupar um lugar especial em pesquisas e estudos qualitativos. Na clínica psicológica, a filmografia é utilizada como fornecedora de dados insondáveis, permitindo “capturar aspectos difíceis de serem captados com outros recursos” (Garcez, Duarte, & Eisenberg, 2011Garcez, A., Duarte, R., & Eisenberg, Z. (2011). Produção e análise de vídeogravações em pesquisas qualitativas. Educação e Pesquisa, 37(2), 249-261. doi: 10.1590/S1517-97022011000200003
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, p. 251). De acordo com Bauer e Gaskell ( 2003Bauer, M. W, & Gaskell, G. (Eds.). (2003). Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e Som: Um manual prático. (2a. ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. ), as gravações permitem a microanálise de contingências e variáveis que podem passar despercebidas na experiência presencial.

Outros trabalhos também têm evidenciado a importância da filmagem de sessões terapêuticas como um recurso metodológico de estudo e pesquisa (Asnis, & Elias, 2019Asnis, V.P., & Elias, N. C. (2019). Aprendizado musical e diminuição de estereotipias em crianças com autismo – estudo de caso. In D. H. A. Machado, & J. Cazini (Orgs.), Inclusão e Educação 3 (pp. 60-68). Ponta Grossa, PR: Atena. ; Carvalho, & Melo, 2018Carvalho, G. M. M., & Melo, M. F. V. (2018). Ecolalia e música: a linguagem no autismo. Revista do GEL, 15(1), 63-84. doi: 10.21165/gel.v15i1.1813
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; Freire, & Parizzi, 2015Freire, M. H, & Parizzi, M. B. P. (2015). As relações dos efeitos terapêuticos da Musicoterapia Improvisacional e o desenvolvimento musical de crianças com autismo. Revista Nupeart, 14(2), 46-55. doi: 10.5965/2358092514142015046
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; Klinger, & Souza, 2015 Klinger, E. F., & Souza, A. P. R. (2015). Análise clínica do brincar de crianças do espectro autista. Distúrbios da comunicação, 27(1), 15-25. Recuperado de https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/psi-63576
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; Martins, & Góes, 2013Martins, A. D. F., & Góes, M. C. R. (2013). Um estudo sobre o brincar de crianças autistas na perspectiva histórico-cultural. Psicologia Escolar e Educacional, 17(1), 25-34. doi: 10.1590/S1413-85572013000100003
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), visto que a capacidade de registro da câmera amplia horizontes e abre leques de análise, enriquecendo a compreensão acerca de uma mesma situação. Segundo Sadalla e Larocca ( 2004Sadalla, A. M. F. A., & Larocca, P. (2004). Autoscopia: um procedimento de pesquisa e de formação. Educação e Pesquisa, 30(3), 419-433. doi: 10.1590/S1517-97022004000300003
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), as videogravações permitem a captura e a análise de momentos fugazes e insipientes.

Especificamente em relação à clínica psicanalítica de intervenção precoce em casos com impasses graves à constituição psíquica, esses momentos são muito privilegiados. Muratori e Maestro ( 2007Muratori, F., & Maestro, S. (2007). Early signs of autism in the first year of life. In S. Acquarone (Ed.), Signs of autism in infants: Recognition and early intervention (pp. 46-62). London: Routledge. ), a partir de estudos de vídeos caseiros, encontraram menos respostas às tentativas das mães em estabelecerem interações com os bebês que, mais tarde, receberiam o diagnóstico de autismo e inspirariam o trabalho de muitos psicanalistas em suas pesquisas acerca dos impasses precoces da subjetividade (Saint-Georges et al , 2010Saint-Georges, C., Cassel, R. S., Cohen, D., Chetouani, M., Laznik, M.-C., Maestro, S., & Muratori, F. (2010). What studies of family home movies can teach us about autistic infants: A literature review. Research in Autism Spectrum Disorders, 4(3), 355-366. doi: 10.1016/j.rasd.2009.10.017
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).

A questão central que norteia este trabalho é se uma câmera de registro filmográfico, que é um objeto utilizado, inicialmente, apenas com fins metodológicos, poderia ocupar um espaço para além do inanimado atribuído à sua condição. Nosso interesse não se restringe unicamente ao registro audiovisual produzido por ela, mas sim pela presença desse objeto no atendimento clínico. Trata-se, com efeito, de rever o lugar da filmagem como instrumento que coleta os dados de pesquisa para interrogar as contribuições que a câmera pode ter no tratamento daquele sujeito que, para a psicanálise, não pode ser reduzido a um objeto da ciência.

Objetiva-se apresentar e discutir as repercussões e possibilidades terapêuticas da presença de uma câmera em atendimentos clínicos em quadros de fechamento autístico em um Programa de Intervenção Precoce, a partir de uma perspectiva psicanalítica. Apesar de, como citado, pesquisas anteriores revelarem a importância de filmagem na investigação dos sinais precoces de fechamento autístico, este trabalho se justifica devido à mudança de perspectiva, ao apontar a função terapêutica que esse objeto pode ter nas sessões de atendimento clínico.

Os objetos e sua relação com os primórdios do psiquismo

No conhecido jogo do fort-da, Freud ( 1920/2010Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. In História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) – Obras Completas (Vol. 10, pp. 161-240). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920) ) narra a brincadeira de seu neto Ernest, que aplacava a angústia derivada das ausências de sua mãe por meio da sua relação com um pequeno e simples carretel. A partir desse discreto fragmento de uma vivência infantil, o autor esboçaria teoricamente um elemento fundamental para a constituição do psiquismo: a relação com o objeto. Foi em sua relação dialética com o objeto carretel que Ernest pôde construir uma representação simbólica, tornando suportável a ausência materna.

Ancorados nas proposições freudianas, Winnicott ( 1975Winnicott, D. W. (1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago. ) e Guerra ( 2017 Guerra, V. (2017). Simbolização e objetos na vida psíquica: os objetos tutores. Jornal de psicanálise, 50(92), 267-287. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v50n92/v50n92a21.pdf
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) discutiram a sustentação constitutiva que os objetos, oferecidos no laço mãe-bebê, proporcionam nos primórdios do psiquismo. É a partir dos cuidados e investimentos dos cuidadores (traduzidos discursivamente numa ordem afetiva por sua voz, seu olhar, seu toque e seus gestos) que são fornecidos elementos subjetivos ao infans 2 2 Aquele que ainda não fala .

Para Laznik ( 2004Laznik, M. C. (2004). A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito. Salvador, BA: Ágalma. ), desde muito cedo os bebês já dão indícios de seu enlace na relação com o adulto-cuidador, com tentativas ativas de interação que estabelecem o que a autora denominou de circuito pulsional. Em meio a essa trama, o bebê tomará seu cuidador como objeto alvo de suas investidas, buscando se fazer, reciprocamente, objeto de seu prazer. A disposição lúdica do cuidador, por sua vez, lhe permitirá introduzir terceiros na relação com o bebê. Nesse tempo, ainda muito remoto, os objetos passam a se constituir como mediadores da presença e do contato humano (Winnicott, 1975Winnicott, D. W. (1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago. ; Rodulfo, 1990Rodulfo, R. (1990). O brincar e o Significante: Um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. ; Guerra, 2017 Guerra, V. (2017). Simbolização e objetos na vida psíquica: os objetos tutores. Jornal de psicanálise, 50(92), 267-287. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v50n92/v50n92a21.pdf
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).

O “paninho” deixado para simular o aconchego materno, a chupeta que apazigua a tensão e o estresse do pequeno bebê, entre outros, são recursos encontrados pelo cuidador na tentativa de estender sua presença em sua ausência. A partir da criação progressiva de enredos e narrativas dos cuidadores, surgem jogos intitulados por Jerusalinsky ( 2014Jerusalinsky, J. (2014). A criação da criança: Brincar, gozo e fala entre a mãe e o bebê (2a. ed.). Salvador, BA: Ágalma. ) como “jogos constituintes do sujeito”, os quais “têm a peculiaridade de não serem nem só do bebê nem só da mãe, mas criações produzidas no laço mãe-bebê” e possibilitam “a passagem do gozo ao saber, do objeto ao sujeito, na medida em que a mãe e o bebê, em tais jogos, transitam sem se fixar de uma a outra dessas posições” (p. 232).

Diversos são os usos e tipos de objetos pertencentes ao universo de um bebê, conceituados no campo da Psicanálise. Por ora, analisaremos três abordagens a fim de interrogar se elas poderiam nos auxiliar na clínica do autismo: o objeto transicional, o objeto tutor e o objeto de mediação.

O primeiro, descrito por Winnicott ( 1975Winnicott, D. W. (1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago. ), é nomeado de objeto transicional, pois evidencia as primeiras possessões não-eu feitas pelo bebê. Segundo o autor, os processos de continuidade e descontinuidade experimentados anteriormente no corpo que amamentava o bebê agora são experimentados naqueles objetos – chocalhos, ursinhos, paninhos –, oferecidos pelos cuidadores e eleitos pela criança.

Ganham o nome de transicional por designarem uma “[. . .] área intermediária entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que já foi introjetado” (Winnicott, 1975Winnicott, D. W. (1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago. , p. 10). De acordo com Maleval ( 2009a Maleval, J. C. (2009a). Os objetos autísticos complexos são nocivos?. Psicologia em Revista, 15(2), 223-254. Recuperado de http://periodicos.pucminas.br/index.php/psicologiaemrevista/article/view/897
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), essa oferta substitutiva “constrói-se em relação à falta” (p. 226) realizada pela mãe, possibilitando ao bebê suportar sua breve ausência e atuando como um meio pelo qual o bebê é satisfeito. “Esse objeto, por ser substitutivo, introduz uma presença sobre o fundo da ausência” (Jerusalinsky, 2014Jerusalinsky, J. (2014). A criação da criança: Brincar, gozo e fala entre a mãe e o bebê (2a. ed.). Salvador, BA: Ágalma. , p. 248). É relevante assinalar que um objeto só pode ser eleito pelo bebê como transicional caso ele, primeiramente, lhe seja oferecido. Winnicott ( 1975Winnicott, D. W. (1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago. ) bem destaca isso, reafirmando que esses são objetos “adotados, não criados” (p. 161).

O segundo tipo de objeto, apresentado por Guerra ( 2017 Guerra, V. (2017). Simbolização e objetos na vida psíquica: os objetos tutores. Jornal de psicanálise, 50(92), 267-287. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v50n92/v50n92a21.pdf
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), é denominado objeto tutor. Diferente da formulação winnicottiana, esses seriam apresentados e inseridos na relação pelo adulto-cuidador, e não eleitos pelo bebê. São acompanhados por uma narração ativa do cuidador que dá vida ao inanimado. Caracterizam-se, também, por ajudar o bebê no processo de separação de sua mãe, possibilitando-o investir e se interessar por outros “[. . .] objetos em um espaço que seja diferente do corpo dela” (Guerra, 2017 Guerra, V. (2017). Simbolização e objetos na vida psíquica: os objetos tutores. Jornal de psicanálise, 50(92), 267-287. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v50n92/v50n92a21.pdf
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, p. 274).

Além disso, o referido autor destaca que, diferentemente do objeto transicional, os objetos tutores são modificáveis, plurais e fazem parte da apresentação do espaço feita pela mãe, desdobrando aquilo que fora vivenciado pela criança em sua exploração espacial. Como bem salienta Guerra ( 2017 Guerra, V. (2017). Simbolização e objetos na vida psíquica: os objetos tutores. Jornal de psicanálise, 50(92), 267-287. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v50n92/v50n92a21.pdf
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), “[. . .] pelo momento estrutural em que emergem, seriam parte da passagem do bebê de um funcionamento bidimensional para um tridimensional e de abertura para a experiência de interludicidade (a capacidade de coconstruir com o outro uma experiência lúdica com suas regras implícitas)” (p. 274-275, grifo nosso).

No interjogo criado entre a díade, o bebê assimila e introjeta as relações, assim como cria representações mentais, em que os objetos têm papel fundamental nessa equação. Mesmo sendo inanimados, fornecem elementos de contenção psíquica ao bebê ao serem acompanhados de uma narrativa. Além disso, os objetos teriam uma outra função muito privilegiada: a de testemunhar encontros interlúdicos, narrando consigo histórias e significações (Guerra, 2017 Guerra, V. (2017). Simbolização e objetos na vida psíquica: os objetos tutores. Jornal de psicanálise, 50(92), 267-287. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v50n92/v50n92a21.pdf
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). E como bem destaca Dolto ( 2007Dolto, F. (2007). As etapas decisivas da infância. São Paulo, SP: Martins Fontes. , pp. 109-118), todo jogo é mediador de desejo, ofertando satisfação e permitindo que o desejo seja expresso aos outros, de forma compartilhada.

Os objetos se fazem presentes durante todo o desenvolvimento infantil e terão diferentes funções dependendo do uso e da maneira como cada criança vai se apropriar deles. No estudo de caso de uma criança psicótica, Orrado e Vivès ( 2016Orrado, I, & Vives J.-M. (2016). L’objet de médiation: Du transi au transit. Évolution psychiatrique, 81(4), 919-926. doi: 10.1016/j.evopsy.2015.12.009
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) propuseram o termo “objeto de mediação” para designar um tipo que não é nem o objeto autístico nem o objeto transicional. Tal objeto, recolhido na experiência clínica com a criança e muitas vezes oferecido no contexto institucional, permitiria uma possível abertura ao Outro e um relançamento da expressão pulsional a partir de uma postura do terapeuta, que consistiria em apagar sua presença por trás do objeto numa operação de escamoteamento, utilizando-o como um intermediário na relação com o sujeito.

Vejamos, então, o que nos dizem os psicanalistas sobre a função do objeto na clínica do autismo.

Os objetos e a clínica do autismo

A relação com os objetos se mostra muito peculiar na clínica do autismo. O objeto não é utilizado como intermediador de uma relação. De acordo com Laurent ( 2014Laurent, E. (2014). A batalha do autismo: Da clínica à política. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), “o corpo do sujeito está numa relação de colagem incessante a estes objetos fora do corpo” (p. 52).

Esse uso dos objetos, intitulados autísticos, foi primeiramente descrito pela psicanalista Francis Tustin. Ela narra que os objetos eleitos pelas crianças autistas teriam como características privilegiadas as superfícies sólidas e resistentes, tendo como função primordial negar a realidade de uma vida de incertezas e imprevistos (Lucero; Vorcaro, 2015Lucero, A., & Vorcaro, A. (2015). Os objetos e o tratamento da criança autista. Fractal: Revista de Psicologia, 27(3), 310-317. doi: 10.1590/1984-0292/931
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), bem como evitar uma aniquilação de si mesmo (Pimenta, 2012 Pimenta, P. R. (2012). O objeto autístico e sua função no tratamento psicanalítico do autismo (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Recuperado de https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-9V5PRZ
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).

Para além do proposto por Tustin, Maleval ( 2009a Maleval, J. C. (2009a). Os objetos autísticos complexos são nocivos?. Psicologia em Revista, 15(2), 223-254. Recuperado de http://periodicos.pucminas.br/index.php/psicologiaemrevista/article/view/897
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) destaca uma outra característica dos objetos autísticos: a sua dimensão dinâmica e subjetiva de apoio para o sujeito autista na vivência de uma realidade minimamente suportável. Os objetos autísticos simples seriam aqueles em que predominam características estáticas, com função apaziguadora. São reconhecidos como extensões do próprio corpo, proporcionando, primeiro, um gozo autossensual, o qual faz barragem ao mundo externo, mas sendo, “[. . .] também, um ‘duplo’ vivo, portador de retorno de gozo sobre a borda” (Maleval, 2009a Maleval, J. C. (2009a). Os objetos autísticos complexos são nocivos?. Psicologia em Revista, 15(2), 223-254. Recuperado de http://periodicos.pucminas.br/index.php/psicologiaemrevista/article/view/897
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, p. 234-235). Os objetos autísticos complexos, de acordo com o autor, caracterizam-se por apresentar traços dinâmicos e têm, como principal função, afastar um gozo em excesso do corpo do sujeito para uma borda, que, por sua vez, pode conectá-lo à realidade social.

A partir de seu estudo sobre as autobiografias de autistas adultos, Maleval ( 2009bMaleval, J. C. (2009b). Qual o tratamento para o sujeito autista?. Revista Inter-Ação, 34(2), 405-452. doi: 10.5216/ia.v34i2.8504
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) indica outro recurso encontrado pelo autista em sua relação com o mundo, derivado de suas idiossincrasias. Esse é o duplo , um mecanismo utilizado pelo sujeito autista para sustentar uma posição subjetiva de enunciação que lhe é penosa, possibilitando-o transitar com menos sofrimento. É incorporado, por vezes, ao objeto autístico, uma modalidade mais arcaica que assegura ao autista sua exclusão do mundo.

Em Freud ( 1920/2011Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. In História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) – Obras Completas (Vol. 10, pp. 161-240). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920) ), o duplo surge a partir da criação da criança, com o objetivo de articular aquilo que é difícil de ela própria manejar no mundo externo e que, mais tarde, não será mais necessário. Para o autista, o duplo é a única maneira pela qual ele poderá entrar em ação (Maleval, 2009bMaleval, J. C. (2009b). Qual o tratamento para o sujeito autista?. Revista Inter-Ação, 34(2), 405-452. doi: 10.5216/ia.v34i2.8504
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), ancorando a construção de processos identificatórios pela via do imaginário (Bialer, 2015Bialer, M. (2015). O apoio no duplo autístico na construção do imaginário no autismo. Estilos da Clínica, 20(1), 92-105. doi: 10.11606/issn.1981-1624.v20i1p92-105
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). “O duplo autístico é, muitas vezes, imprescindível como apoio para uma alienação que pode alicerçar a construção da imagem do outro e de si próprio” (Bialer, 2015Bialer, M. (2015). O apoio no duplo autístico na construção do imaginário no autismo. Estilos da Clínica, 20(1), 92-105. doi: 10.11606/issn.1981-1624.v20i1p92-105
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, p. 93).

Método

Este estudo é exploratório, descritivo e caracterizado como clínico-qualitativo, derivado de uma amostra da pesquisa “Sinais de risco e sofrimento psíquico na primeira infância: identificação e estratégicas de intervenção”, a qual contou com Auxílio à Pesquisa Fapesp - Processo: 2016/21630-0, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/UNICAMP), com o parecer 1.846.495.

De acordo com Turato ( 2000 Turato, E. R. (2000). Introdução à Metodologia da Pesquisa Clínico-Qualitativa: Definição e Principais Características. Revista Portuguesa de Psicossomática, 2(1), 93-108. Recuperado de https://www.redalyc.org/pdf/287/28720111.pdf
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), o método clínico-qualitativo objetiva descrever e interpretar os fenômenos complexos da clínica em diversos settings de saúde, adotando a psicanálise como referencial teórico. A atitude psicanalítica do pesquisador implica na utilização de conceitos psicanalíticos como ferramentas para intervenção, compreensão do fenômeno investigado, coleta de dados, análise e discussão dos resultados.

O relato de caso foi utilizado como recurso metodológico de investigação. Como salienta Silva ( 2013 Silva, D. Q. da (2013). A pesquisa em psicanálise: o método de construção do caso psicanalítico. Estudos de Psicanálise, (39), 37-45. Recuperado em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372013000100004
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), a construção do caso é uma produção narrativa do analista-pesquisador. Não sendo possível narrar “A” história e nem “toda a história”, o pesquisador escolhe privilegiar certos aspectos e fragmentos do caso para focar seu estudo a partir do seu objetivo, o qual adquire sentido na relação com a fundamentação teórica.

Participantes

São participantes desse estudo três pacientes do Programa de Treinamento em Serviço para Profissionais da Saúde, intitulado “Intervenção Precoce com Crianças de 0 a 4 anos” e realizado no XXX4, que oferece atendimento psicológico, em uma perspectiva psicanalítica, para crianças com impasses graves na constituição psíquica e na aquisição da linguagem, com sinais de fechamento autístico.

Raí, Lucas e Dimitri, nomes fictícios, são do sexo masculino, moradores da região de Campinas (SP) e com famílias de nível socioeconômico baixo. Raí é negro. Lucas e Dimitri são brancos. Todos frequentam a creche, têm diagnóstico psiquiátrico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) e já eram atendidos no Programa de Intervenção Precoce há seis meses, individualmente e com periodicidade semanal, antes do início das filmagens que são objeto de estudo deste trabalho. Em alguns momentos, ocorriam propostas de atendimento em grupo, o que será descrito e analisado posteriormente.

Raí, com 2 anos e 5 meses, morava somente com a mãe, sendo que o pai morava no mesmo bairro e via o filho com pouca frequência. Lucas, com 2 anos e 2 meses, morava com a mãe e os avós maternos, e não tinha contato com o pai. Dimitri, com 3 anos e 2 meses, morava com os pais e o irmão mais novo. Em todos os casos, a mãe era a responsável que levava as crianças para os atendimentos.

Procedimentos

O material que será apresentado e discutido se refere a três fontes de coleta de dados, que são: (1) prontuários dos pacientes; (2) filmagens transcritas das sessões psicoterapêuticas de Raí, Lucas e Dimitri, no Programa de Treinamento em Serviço, no período de Agosto de 2017 a Junho de 2019; e (3) anotações das discussões realizadas durante as supervisões, que ocorriam semanalmente, com a presença de uma supervisora e coordenadora do referido Programa de Treinamento em Serviço, duas psicólogas, que eram responsáveis pelos atendimentos, e um graduando de Psicologia, responsável pelas filmagens.

As vídeo-gravações tinham como finalidade inicial o registro das sessões, com o uso de uma câmera semiprofissional. Dessa forma, a atuação do graduando-pesquisador objetivava favorecer a livre interação entre o paciente e a psicóloga, sem que ela tivesse a preocupação em manusear a câmera. Entretanto, durante as supervisões no decorrer do acompanhamento, tanto a presença da câmera quanto do graduando-pesquisador, essa atuação foi entendida como extremamente relevante. A partir da compreensão da função terapêutica da câmera, o graduando-pesquisador começou a ter um papel mais ativo nas sessões, passando a se tornar um coterapeuta.

Destaca-se a importância da transcrição das filmagens e discussão desse material durante as supervisões coletivas semanais. Nesse espaço, foi possível acompanhar longitudinalmente os efeitos psíquicos da introdução da câmera nos participantes da pesquisa.

Forma de análise dos dados

Os dados coletados a partir das informações constantes nos prontuários dos pacientes, na transcrição das filmagens e nas anotações referentes às discussões em supervisão foram sistematizados, categorizados e analisados qualitativamente, a partir da técnica de Análise de Conteúdo (Bardin, 1977Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70. ), com base no arcabouço teórico da Psicanálise, privilegiando-se a discussão sobre os entraves na constituição psíquica.

Resultados e discussão

Apresentando Raí, Lucas e Dimitri

Raí inicia os atendimentos com 2 anos e 5 meses de idade, sendo acompanhado nas primeiras sessões por sua mãe. As sessões eram marcadas por sua deambulação e esbarrões no corpo da mãe e da psicóloga, bem como nos objetos do consultório. Pouco se interessava por aquilo que lhe era ofertado, recusando algumas vezes, durante as entrevistas iniciais, o contato direto com a psicóloga. Aos poucos, seus movimentos, antes desconexos, passam a considerar a presença do outro e a possibilidade de interação.

Lucas começa a ser atendido aos 2 anos e 2 meses, apresentando amplas e estruturadas defesas para evitar o contato com o outro. As brincadeiras, inicialmente, articulavam-se única e exclusivamente com os objetos. No decorrer dos atendimentos, o brincar passou a incluir o outro, em um espaço compartilhado.

Dimitri chega aos atendimentos com 3 anos e 2 meses de idade, diagnosticado com um quadro de autismo clássico, de acordo com um relatório psiquiátrico. As sessões eram marcadas pelo vazio, como se ele mesmo ali não estivesse presente. A presença da psicóloga e da mãe pareciam ser indiferentes a ele. A partir das intervenções, a indiferença inicial cede espaço à possibilidade de contato com o outro, propiciando ao garoto demonstrar recusas e preferências.

Os encontros de Lucas e Raí com a câmera

A câmera, a princípio, cumpria seu papel esperado e se restringia a ser um objeto imóvel, com a finalidade de registrar as sessões. Inicialmente, nos casos de Lucas e Raí, a câmera ficava instalada em cima de uma mesa, dentro da sala, e as breves intervenções feitas pela psicóloga a seu respeito com os pacientes eram limitadas, já que diante de si havia sujeitos que precisavam ser ouvidos e não filmados. Por isso, o segundo plano desse objeto era evidente.

A partir da entrada do pesquisador 3 3 Um dos autores deste trabalho. como responsável pelas gravações na cena terapêutica, a câmera passou a ter um lugar privilegiado. Nas primeiras sessões, um tripé era utilizado para sustentar a filmadora. Facilmente se notavam os olhares curiosos das crianças dirigidos a ela, em sua posição estanque. Interrogamos aqui se a câmera passou a atrair a atenção das crianças simplesmente por ser mudada de lugar ou se algo da presença do pesquisador já se fez sentir. Assim, por sugestão da psicóloga, o pesquisador retira a câmera do tripé e passa a manipulá-la, a fim de registrar de forma mais ativa os momentos de interação. O pesquisador, percebendo os recorrentes olhares que eram dirigidos ao artefato, passa a girar o visor flexível na frente das crianças.

Um jogo com a câmera se desenvolve. O objeto deixa uma posição, que nomearemos de passiva, para um lugar de destaque e estima. Ambas as crianças se mostram interessadas, ora se aproximando do pesquisador e do objeto, ora tocando-o. Lucas, em seu primeiro contato, lança olhares despretensiosos à câmera sobre o tripé que a sustentava, enquanto ocorre uma brincadeira na sessão. A partir da observação da psicóloga e do pesquisador, é feito um convite para que ele conheça o objeto. Colocando-se atrás da câmera, junto ao pesquisador, o garoto inicia um pequeno diálogo com a psicóloga que aparece no visor, utilizando, assim, a câmera como intermediária. Após esse momento, a psicóloga convida Lucas para brincar, e esse, instigado pelo pesquisador que diz que a filmadora queria vê-lo brincar, salta exultante em direção à psicóloga e passa a brincar com ela e com uma bola disposta na sala de atendimento, olhando, por vezes, de volta para a câmera.

Em diversas sessões, Lucas manuseava de forma eufórica a filmadora, pegando-a e aproximando-a de seu rosto, virando e desvirando o seu visor, além de se sentar no colo do pesquisador e apertar todos os botões do objeto.

Raí, com um olhar tímido, achegava-se à câmera, aproximava-se e, repetidas vezes, saía da frente da lente e também se sentava no colo do pesquisador. Em um desses momentos, Raí, ao olhar o visor, vê a psicóloga e passa a dar tchau. O garoto, ainda no colo, sorri e fixa o olhar no visor, como se estivesse ocupando o mesmo lugar do pesquisador.

Em uma sessão, enquanto deambulava pela sala de atendimento, direciona-se ao canto em que o pesquisador realizava a filmagem do atendimento e se senta em seu colo, como costumeiramente. Sustentando o brincar desenvolvido com o visor da câmera, o pesquisador o gira na frente de Raí, enquanto a psicóloga, do outro lado, lhe pergunta o que estava fazendo ali. Posicionando-se como interlocutor de Raí, o pesquisador passa a responder pelo garoto, que permanece sentado em seu colo, com o olhar fixo no visor. Raí começa, então, a emitir sequencialmente diversas vocalizações, marcadas por ritmos e pausas. Observando o seu engajamento, pesquisador e psicóloga continuam esse jogo, o que provoca mais vocalizações da criança.

O interesse pelo objeto é demonstrado com interações singulares nos dois casos, mas com uma questão em comum: a câmera parece ter auxiliado na criação de um jogo entre o pesquisador, a psicóloga e os pacientes. Jogo este que permitia não apenas se ver, mas ver e falar com o outro a partir de uma posição diferente daquela na qual a criança é situada na demanda de um adulto. Para se esconder, agora Raí ocupa o espaço do pesquisador, que fala por ele. Já Lucas responde ao apelo da câmera, que quer vê-lo, e também brinca com seus botões.

Com Lucas, a câmera parece ter ganhado um papel singular, característico de suas defesas intensas de contato à alteridade. Nos primeiros meses de participação nos atendimentos, uma acentuada contratransferência 4 4 Conjunto das manifestações dos afetos inconscientes do analista em relação aos de seu paciente (Roudinesco, & Plon, 1998 ). do pesquisador foi percebida. A indiferença da criança, despertava, por vezes, sentimentos de raiva no pesquisador. O garoto parecia pouco receptivo à sua presença e às suas ofertas. A partir das intervenções junto à câmera, Lucas passou a se interessar mais pelo contato com o pesquisador, talvez até porque o pesquisador já não se interessava única e exclusivamente por ele. A filmadora parece ter intermediado um encontro nesse sentido. Pelo fato do pesquisador ser portador do objeto de fascínio, dinâmico por natureza, e dar a ele a animação que não lhe é característica, foi possível a construção de uma borda de gozo à nova alteridade.

Característico dos casos ditos autísticos, a baixa tolerância à mudança se fazia muito presente. Com Lucas, o seu brincar se restringia, por longos períodos, à manipulação dos objetos. A partir de um árduo trabalho da psicóloga, ele pôde se deslocar, permitindo também o encontro com o outro. A entrada do pesquisador na cena terapêutica remonta, não só nesse caso, um novo cenário e uma nova configuração clínica. Como via de elaboração e receptividade da alteridade, a câmera testemunhou e tutoreou, nas palavras de Guerra ( 2017 Guerra, V. (2017). Simbolização e objetos na vida psíquica: os objetos tutores. Jornal de psicanálise, 50(92), 267-287. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v50n92/v50n92a21.pdf
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), um encontro interlúdico, o qual permitiu a abertura do garoto à experiência de interludicidade, que consiste na “[. . .] capacidade de coconstruir com o outro uma experiência lúdica com suas regras implícitas” (p. 275). O encontro de ambos, a partir do objeto de interesse em comum, ganhou novas significações. O garoto, pouco a pouco, passou a se dirigir diretamente ao pesquisador nas sessões e a inseri-lo nas brincadeiras que compunha, assim como criar novos jogos com ele.

“Tchau câmera; oi câmera”

Aos poucos, Lucas estabelece um novo vínculo com um garoto que já havia atraído sua atenção anteriormente, chutando uma bola. Passa a aguardar o mais novo colega nos corredores do ambulatório, nos atendimentos seguintes. A partir do engajamento de ambos, um brincar compartilhado surgiu: uma banda musical. Cada um escolhia um instrumento e, com isso, faziam um show. A atividade que se perpetuaria semana após semana passou a incluir, em algumas sessões, além das psicólogas e do pesquisador, os funcionários do ambulatório e as próprias mães dos garotos, convocadas por eles.

É importante destacar que apesar de serem atendidas individualmente, as crianças do Programa de Intervenção Precoce, sempre que possível, eram incentivadas a partilhar os espaços comuns do centro de atendimento para encontrar outros pacientes e, a partir disso, criar jogos coletivos.

Às vésperas das férias, Lucas estava em um impasse que muito lhe angustiava. Seu mais novo companheiro de brincadeira havia faltado ao atendimento. Sua espera ansiosa na porta da sala, aos poucos, foi cedendo lugar à angústia diante da certeza de que, naquele dia, não haveria o show de sua banda. Andando desolado pelo centro de atendimento à procura de seu colega, Lucas, ao avistar outra criança pelos corredores, também integrante do mesmo programa, insistiu em brincar com ele. Essa criança sustentou brevemente sua demanda de encontrar um parceiro de brincadeira, mas logo se incomodou com a insistência.

Lucas, ao ser avisado pela psicóloga que precisaria se afastar desse garoto, passou a ter uma crise, há muito tempo não presenciada nos atendimentos. O garoto se jogava no chão do corredor e gritava. Continente devido à sua angústia, a terapeuta passou a dizer o quanto aquele momento tinha sido doloroso para ele e, aos poucos, o garoto foi cessando seu choro, deitado no colo da psicóloga.

O pesquisador, munido de sua câmera, acompanhava também o momento. Solicitando a câmera, Lucas pega-a em suas mãos, abrindo seu visor e, com o furor que costumava ter no início de sua exploração do objeto, girava-o e fechava. A psicóloga, acompanhada do pesquisador, passou a narrar o movimento de Lucas, com os significantes: “ Tchau, Câmera !”, quando ele fechava o visor, e “ Oi, Câmera! ” quando o abria. Por alguns minutos, esse jogo permaneceu e o garoto já não mais chorava, esboçando sorrisos e acompanhando a psicóloga na brincadeira de receber e se despedir do objeto. Em um momento, o garoto, fechando o visor, diz “ Tchau”, levanta-se e caminha em direção à saída do centro de atendimento.

Esse relato evidencia que outras crianças podiam funcionar como duplos para Lucas, oferecendo a animação libidinal necessária para o engajamento em uma atividade ou brincadeira. Na ausência de colegas, Lucas precisa da mediação do objeto para ouvir a intervenção da psicóloga. Olhando para sua imagem, conseguia elaborar minimamente a matriz simbólica de presença e ausência, abrindo e fechando o visor da câmera e ouvindo de um terceiro os significantes “Oi” e “Tchau”, que tão bem representavam a situação de partida e chegada de seus companheiros. Lucas parece ter compreendido o significado da palavra “Tchau” e, a seguir, com Raí, veremos que essa transmissão simbólica operada pela câmera pode ter um alcance ainda maior.

Em busca de tradução

Com Raí, a câmera parece ter assumido uma outra função para além de objeto tutor devido às peculiaridades de seu caso, que nomearemos por tradução significante. A filmadora, na qualidade de objeto de registro, possibilitou que os comportamentos e os movimentos desconexos de Raí pudessem ser revistos e compreendidos como uma forma, encontrada pelo garoto, de comunicação. Isso auxiliou na compreensão de significantes difíceis.

Durante seu atendimento no Programa, o garoto passou por uma cirurgia de Polidactilia 5 5 Deformação congênita caracterizada pela alteração quantitativa anormal dos dedos, podendo ser subdivida em dois grupos: dedos bem desenvolvidos e pediculados. . A extração de seu dedo pediculado, tanto antes da cirurgia quanto depois, causou muita angústia em Raí. Mostrava-se mais agitado nas sessões e, em algumas pausas, permanecia por um maior tempo em silêncio. Devido a seus impasses estruturais, o ato de significar a perda de parte do seu corpo era difícil. Tanto as manifestações do garoto em sessão quanto os relatos da mãe, a respeito de como o garoto estava em casa, demonstravam comportamentos diferentes dos habituais. Tais demonstrações, na leitura da psicóloga, representavam os sentimentos do garoto em relação à cirurgia.

A partir da leitura da psicóloga a respeito dos novos comportamentos de Raí, um espaço de narração passou a circunscrever a pulsão em excesso derivada da angústia do garoto e que se reproduzia em seu corpo. As agitações de Raí, assim como seu silêncio nas sessões que antecederam e sucederam a cirurgia, eram entendidos como formas do garoto expressar sua angústia. Em um atendimento após a cirurgia, o garoto, enquanto dedilhava um violão de brinquedo, deixou cair uma tampa de caneta, que estava em sua mão, dentro do buraco de ressonância. O instrumento, quando era balançado, emitia um barulho característico. A psicóloga passa a supor e narrar para Raí que o seu ato representava um acontecimento recente: o seu dedo pediculado também havia, de certa forma, se soltado dos demais de sua mão. Guerra ( 2017 Guerra, V. (2017). Simbolização e objetos na vida psíquica: os objetos tutores. Jornal de psicanálise, 50(92), 267-287. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v50n92/v50n92a21.pdf
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) destaca que a narrativa e a prosódia lúdica configuram parte da contenção psíquica favorecida pelos objetos tutores. Em outras palavras, é o outro quem cria um enredo e fornece elementos para o sujeito transitar.

A câmera manteve sua posição e adentrava ao cenário com sua peculiaridade de registrar e traduzir em sua tela os acontecimentos das sessões. Após dois meses da cirurgia de Raí, durante um atendimento, enquanto a psicóloga e o pesquisador utilizavam a arte narrativa para remontar as intensas vivências do garoto nos últimos meses, o pesquisador decidiu reproduzir na câmera, para Raí, uma sessão antiga. Nela, a psicóloga e o pesquisador haviam trabalhado junto ao garoto sua fixação e manipulação de copos descartáveis, utilizando-os para friccionar em sua mão, justamente na área em que havia realizado a cirurgia.

Observando a atenção da criança em relação à filmagem que estava sendo reproduzida, a psicóloga e o pesquisador passam a analisar, em voz alta, a decisão inédita de Raí em não vir mais acompanhado aos encontros de seu inseparável copo. Antes, Raí sempre vinha acompanhado de um copo com suco às sessões, que, no relato de sua mãe, era levado a todos os lugares aonde ele ia.

Novamente, atendo-se a isso, é dito ao garoto o quanto a câmera havia guardado momentos importantes do atendimento, como passar as mãos pelas paredes de veludo do consultório e se sentar nos cantos da sala, que ele fazia nas primeiras sessões.

A câmera, no caso de Raí, é uma testemunha de mudanças que talvez não tenham podido ser significadas no momento em que ocorreram. A perda do copo de suco ou o abandono dos copos descartáveis encontram uma equivalência simbólica com a extração do dedo, se levarmos em consideração que o objeto autístico é vivido como uma parte do corpo. O registro audiovisual permitiu colocar em série esses objetos, possibilitando uma tradução para essas vivências. Assim, além de atuar como um objeto tutor, inaugurando espaços criativos de transformação e vinculação afetiva, a câmera passou a ocupar um lugar de traduzir significantes difíceis de serem compreendidos, projetando, revivendo e reanimando as próprias vivências do garoto em sessão pela via material do áudio e do vídeo.

Uma testemunha de um ato inaugural – Dimitri

Dimitri inicia as sessões no ambulatório após a entrada de Lucas e Raí, atendido por outra psicóloga. A entrada do pesquisador nesse caso também se dá a fim de realizar filmagens para sua pesquisa. Ele é apresentado pela psicóloga ao garoto, que o recebe timidamente. O brincar com os objetos é acompanhado de algumas palavras, ora em inglês, ora em português, que parecem descrever as características visíveis dos objetos. Inserindo-se na brincadeira entre a psicóloga e Dimitri, que consistia em manusear os objetos, cantarolar e fazer batuques nas paredes, o pesquisador apresenta a câmera ao garoto. Inicialmente, não é demonstrado nenhum interesse. Nota-se, aqui, que o objeto ofertado recebe o mesmo tratamento usualmente dado pelo autista a outros brinquedos.

Em uma das sessões, em meio à cantoria e aos sons emitidos pela flauta de Dimitri, o garoto passa a ficar em silêncio, enquanto a psicóloga e o pesquisador cantam. Percebendo sua pausa, psicóloga e pesquisador também interrompem o canto e, para a surpresa de ambos, o garoto emerge de seu silêncio com um sorriso e um toque soprado em sua flauta. Esse esboço de presença e ausência se estende por longos minutos. Nas pausas o garoto passa a emergir, deslocando esse contorno de ausência e presença também para a alternância entre os batuques feitos na parede pela psicóloga e pulos e gritos de Dimitri. A narratividade, presente nesses momentos como, por exemplo, quando a psicóloga se refere ao silêncio de Dimitri como uma espera por seu aval para pular e tocar sua flauta, é, segundo descreve Guerra ( 2017 Guerra, V. (2017). Simbolização e objetos na vida psíquica: os objetos tutores. Jornal de psicanálise, 50(92), 267-287. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v50n92/v50n92a21.pdf
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), característica do espaço de interludicidade, a qual auxilia o par presença-ausência uma vez que demarca início, pausas e fim.

Terminando a sessão, a terapeuta leva o garoto para lavar a mão na pia, próxima à câmera. O garoto, enquanto lava as mãos, direciona olhares curiosos ao objeto. Com isso, o pesquisador posiciona o visor para que o garoto se veja e, ao fixar seu olhar à imagem, emite uma vocalização, entendida pelo pesquisador como “ bonito ”. Enquanto a lente está virada para si, o garoto começa a pular, abrir a boca, sorrir e gritar. Segundo a psicóloga, essa sessão inaugura a composição do brincar com a alternância entre presença/ausência.

É importante destacar que o pesquisador permaneceu apenas três sessões no caso de Dimitri, devido ao conflito de horários com os outros casos acompanhados. Por isso, não podemos arrazoar muito mais sobre os efeitos substanciais da presença de uma câmera para sua estrutura subjetiva. Entretanto, algo peculiar tanto da câmera quanto da própria estrutura subjetiva de Dimitri se encontraram. Segundo Llabador ( 2018Llabador, G. (2018). A terapia de Hélène e/com a câmera. In: C. Hoffmann, & J. C. Cavalheiro (Orgs.). Marcas da singularidade e da diferença: O que as crianças e os adolescentes nos revelam (pp. 153-161). São Paulo, SP: Instituto Langage. ), dirigir-se à câmera possibilita a essas crianças uma comunicação e uma relação, a partir de uma via menos assustadora.

Nas sessões até aqui discutidas, podemos pensar o quanto a câmera sustentou uma espécie de relação especular imaginária entre integrantes da brincadeira e atuou como um objeto que acompanhava e tutoreava os garotos em seus feitos. Como bem destaca Guerra ( 2017 Guerra, V. (2017). Simbolização e objetos na vida psíquica: os objetos tutores. Jornal de psicanálise, 50(92), 267-287. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v50n92/v50n92a21.pdf
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), o objeto tutor é uma testemunha do encontro. A filmadora, em sua função primordial, é uma testemunha material de registro de acontecimentos diante de sua lente. Ao se tornar o objeto de um outro humano, nesses casos, com o pesquisador introduzindo e induzindo seu uso nas sessões, a filmadora também ganha um lugar subjetivo e anímico.

A entrada do pesquisador nos casos aqui descritos só foi possível pela via de seu objeto (a câmera), pois, como afirma Laurent ( 2014Laurent, E. (2014). A batalha do autismo: Da clínica à política. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), “[. . .] o suporte de um objeto é [. . .] necessário para se tornar parceiro do autista: ‘Sem objeto, não há Outro’” (p. 55, ênfase adicionada).

Essa pesquisa evidenciou a necessidade de considerar a importância daquele que anima e filma por trás da câmera. Paravidini, Próchno, Perfeito e Chaves ( 2009Paravidini, J. L. L., Próchno, C. C. S. C., Perfeito, H. C. C. S., & Chaves, L. S. (2009). Atendimento psicoterapêutico conjunto pais-crianças: Espaço de circulação de sentidos. Estilos da Clínica, 14(26), 90-105. doi: 10.11606/issn.1981-1624.v14i26p90-105
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) propõem um atendimento psicoterapêutico conjunto pais-crianças, que conta com, no mínimo, dois psicoterapeutas na sessão. Um deles é o agente condutor, enquanto o outro é descrito como observador e portador da palavra escrita da sessão. Nas supervisões há uma inversão desses lugares, e o psicoterapeuta que tinha um papel mais ativo deve silenciar e ouvir o relato do colega.

Lucero et al . ( 2021Lucero, A., Imperial, R. T., Rosi, F. S., Gonçalves, L. G., Gava, M., Bersot, M., & Santos, J. L. G. (2021). O uso de objetos e filmagem no tratamento psicanalítico em grupo de crianças autistas. Psicologia USP, 32, e180201. doi: 10.1590/0103-6564e180201
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) também ressaltam a importância de dar a palavra àquele que manipula a câmera já que ele está implicado na escolha do que filmar, pois deve calcular os efeitos de sua movimentação e precisa levar em consideração que nem tudo pode ser apreendido pela filmagem.

É válido ressaltar que, de um modo geral, encontramos nas abordagens orientadas pela psicanálise a importância de deixar aberto o lugar de circulação da palavra. No que concerne à câmera, ela não substitui a presença de um psicoterapeuta ou analista e, tal como vimos, a criança não é indiferente à presença de alguém por trás da câmera, ainda que um dos sintomas que caracterizam o autismo seja essa suposta indiferença. Não obstante, acreditamos que a tecnologia que permite à criança ver através das lentes, ver a si mesma, rever cenas passadas ou vê-las por outros olhos é o que se mostra como especificidade do uso da câmera no atendimento clínico.

Considerações finais

Poderíamos considerar uma câmera filmográfica facilmente alvo de interesse das crianças por corresponder à fantasmática inconsciente, pressupondo haver algo que também me olha, me captura, me registra e me perpetua. O fenômeno do registro parece se situar na contemporaneidade de forma indubitável. Multiplicam-se os aplicativos, em que a foto e os fragmentos de vídeo são centrais. Seu fascínio, ainda, é acrescido à famosa self , o enamoramento consigo mesmo.

Quando nos referimos a uma clínica em que os sujeitos pouco puderam ser capturados devido aos seus impasses estruturais, quais propriedades desse objeto poderiam facilitar o processo terapêutico e o encontro com o outro? Como tecemos ao longo deste trabalho, a câmera auxiliou na sustentação e reconhecimento de um setting permeado por momentos minuciosos e primordiais, que muitas vezes passam despercebidos na experiência presencial. Ao ser conduzida por um outro humano, a câmera possibilitou encontros intersubjetivos importantes e o despertar da atenção de crianças antes pouco interessadas por aquilo que a elas era ofertado, inaugurando um espaço de coconstrução e interludicidade.

Progressivamente, a câmera ascendeu a um lugar privilegiado e transitou em diversas posições no cenário clínico. Isso possibilitou às crianças, em muitos momentos, a introdução da alteridade e de seus significantes. A câmera é um objeto que causa fascínio por sua qualidade de captura e registro e também proporciona códigos simples de comunicação, favorecendo sujeitos com impasses graves na constituição psíquica a estabelecerem um laço com o outro.

É o analista quem cria as condições para que os objetos deixem de ser tomados apenas como autísticos e passem a ser intermediadores da relação, propiciando o estabelecimento de novas relações. É importante sublinhar que nem todas as crianças com diagnóstico de autismo possuem um objeto autístico e nem sempre o trabalho analítico favorece a construção de um objeto autístico complexo, pois algo que efetivamente só pode ser feito pelo sujeito. Da mesma forma, o duplo pode aparecer de diversas maneiras e talvez seja interessante caracterizá-lo pela animação libidinal que ele causa no sujeito. Vimos como a câmera exercia essa função, em especial, quando as crianças podiam se ver pelo visor, como um espelho. Difícil discernir o valor dessa imagem, ainda que o júbilo possa aparecer como reação típica, tal como Lacan ( 1949/1998Lacan, J. (1949/1998). O estádio do espelho como formador da função do eu. In Escritos (pp. 96-103). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar ) nos descreve no estádio do espelho. Afinal, onde se situa o olhar do Outro quando o espelho é colocado tão perto dos olhos a ponto de excluir da cena quem está ao redor?

O objeto transicional de Winnicott nos ajuda a refletir sobre os modos de relação da criança com a câmera, porém a impossibilidade de a criança ter esse objeto e se apoderar efetivamente dele nos leva em direção ao objeto tutor, na medida em que ele assume essa função a partir da fala de um Outro. Para tanto, como vimos, é preciso que a câmera tenha sido alvo do interesse da criança, como Guerra ( 2017 Guerra, V. (2017). Simbolização e objetos na vida psíquica: os objetos tutores. Jornal de psicanálise, 50(92), 267-287. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v50n92/v50n92a21.pdf
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) tão bem demonstra em seus exemplos com bebês. O adulto aproveita (ou interpreta) qualquer sinal de interesse do bebê pelo objeto para coconstruir uma relação.

No que tange às crianças com traços autistas, é preciso também estar atento a esses sinais de interesse e essas brechas pulsionais, porém com cuidado para não sermos invasivos. A câmera, diferente dos brinquedos, tem uma função muito específica, que não deixa que nosso imaginário facilmente a transforme em um avião ou um carrinho. Uma câmera é uma câmera: querem ver como funciona? Acreditamos que algo dessa objetividade atraia o autista, pouco afeito às brincadeiras habitualmente propostas nas sessões de terapia.

A noção de objeto de mediação enquanto intermediário, o qual permite o trânsito da libido e regula a circulação pulsional (Orrado, & Vivès, 2016Orrado, I, & Vives J.-M. (2016). L’objet de médiation: Du transi au transit. Évolution psychiatrique, 81(4), 919-926. doi: 10.1016/j.evopsy.2015.12.009
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) na medida em que supõe certa posição do próprio analista, parece-nos essencial para pensar o que pode uma câmera em sessões psicanalíticas com crianças com traços autísticos. Afinal, vimos como ela exerceu diversas funções, dependendo de cada caso clínico.

A relação com os objetos concretos, como enunciado por Freud com o jogo do fort-da , faz parte do desenvolvimento de qualquer sujeito, e os autistas também devem exercer livremente essa atividade. As técnicas de tratamento que privilegiam apenas as aquisições cognitivas ou utilizam os objetos como formas de recompensa impedem o desenvolvimento de uma dimensão essencial da subjetividade. Também os clínicos que esperam da filmagem apenas uma garantia de objetividade ou veracidade perdem a oportunidade de realizar uma intervenção que parte, muitas vezes, das próprias crianças autistas.

O objeto câmera é mais uma indicação de que cabe ao clínico encontrar uma maneira de brincar com a criança, servindo-se de seus objetos e fazendo uso de objetos de mediação. A psicanálise mostra que brincar não é apenas “coisa de criança”, mas pode ter uma função muito importante para o fantasiar. O prazer partilhado é o que nos incita ao laço social. Infelizmente isso não é diretamente mensurável, apesar de ter consequências evidentes mesmo nas crianças tidas como bem desenvolvidas, educadas e escolarizadas, com cada vez menos tempo para brincar e fazer amigos.

Referências

  • Asnis, V.P., & Elias, N. C. (2019). Aprendizado musical e diminuição de estereotipias em crianças com autismo – estudo de caso. In D. H. A. Machado, & J. Cazini (Orgs.), Inclusão e Educação 3 (pp. 60-68). Ponta Grossa, PR: Atena.
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  • 1
    Este trabalho contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), processo 17/26995-0
  • 2
    Aquele que ainda não fala
  • 3
    Um dos autores deste trabalho.
  • 4
    Conjunto das manifestações dos afetos inconscientes do analista em relação aos de seu paciente (Roudinesco, & Plon, 1998Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ).
  • 5
    Deformação congênita caracterizada pela alteração quantitativa anormal dos dedos, podendo ser subdivida em dois grupos: dedos bem desenvolvidos e pediculados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2022
  • Aceito
    14 Nov 2023
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