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Políticas afetivo-sexuais na cisheteronormatividade: resistências e estratégias de bem viver de uma mulher transexual 1 1 Os autores agradecem o apoio recebido da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP, por meio da bolsa de Iniciação Científica, processo número 2016/16895-5, concedida ao primeiro autor, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, por meio da Bolsa de Produtividade em Pesquisa, nível 1A, concedida ao segundo autor.

Affective-sexual policies in cisheteronormativity: resistances and strategies of well-being of a transsexual woman

Politiques affectives-sexuelles en cishétéronormativité : résistances et stratégies de bien-être d’une femme transsexuelle

Políticas afectivo-sexuales en la cisheteronormatividad: resistencias y estrategias de bienestar de una mujer transexual

Resumo:

A partir de contribuições do transfeminismo e dos estudos queer, buscamos refletir sobre as experiências afetivo-sexuais de uma mulher trans, branca e heterossexual, destacando práticas e desejos sexuais, relacionamentos amorosos, casamentos e busca por parceiros em aplicativos de relacionamento. Observamos que as relações afetivo-sexuais são atravessadas por uma tensa negociação entre ser e parecer perante as políticas cisheteronormativas, de maneira que os mecanismos de poder tanto se espacializam como são deslocados nessa dimensão da vida. Ao longo de sua trajetória, a participante desenvolveu suas estratégias performativas e práticas de resistência com vistas a alcançar a vivência plena de sua existência, incluindo as dimensões da sexualidade e dos relacionamentos no campo afetivo-sexual.

Palavras-chave:
transexualidade; sexualidade; gênero; transfeminismo; estudos queer

Abstract:

Based on contributions from transfeminism and queer studies, we seek to reflect on the affective-sexual experiences of a trans, white, and heterosexual woman, highlighting sexual practices and desires, romantic relationships, marriages, and the search for partners in dating apps. We observe that affective-sexual relationships are crossed by a tense negotiation between being and seeming in the face of cisheteronormative policies, so that the mechanisms of power are both spatialized and displaced in this dimension of life. Throughout her trajectory, the participant developed her performative strategies and resistance practices with a view to fully experiencing her existence, including the dimensions of sexuality and of relationships in the affective-sexual field.

Keywords:
transsexuality; sexuality; gender; transfeminism; queer studies

Résumé :

À partir des apports du transféminisme et des études queer, nous cherchons à réfléchir sur les expériences affectives et sexuelles d’une femme trans, blanche et hétérosexuelle, mettant en lumière les pratiques et désirs sexuels, les relations amoureuses, les mariages et la recherche de partenaires dans les applications de rencontres. Nous observons que les relations affectives-sexuelles sont traversées par une négociation tendue entre être et apparaître face aux politiques cishétéronormatives, de sorte que les mécanismes de pouvoir sont à la fois spatialisés et déplacés dans cette dimension de la vie. Tout au long de son parcours, la participante a développé ses stratégies performatives et ses pratiques de résistance en vue de vivre pleinement son existence, incluant les dimensions de la sexualité et des relations dans le champ affectif-sexuel.

Mots-clés :
transsexualité; sexualité; genre; transféminisme; études queer

Resumen:

A partir de los aportes del transfeminismo y de los estudios queer , buscamos reflexionar sobre las experiencias afectivo-sexuales de una mujer trans, blanca y heterosexual, investigando las prácticas y deseos sexuales, las relaciones románticas, los matrimonios y la búsqueda de parejas en las aplicaciones de citas. Observamos que las relaciones afectivo-sexuales son atravesadas por una tensa negociación entre el ser y el aparecer frente a las políticas cisheteronormativas, por lo que los mecanismos de poder se espacializan y desplazan en esta dimensión de la vida. A lo largo de su trayectoria, la participante desarrolló sus estrategias performativas y prácticas de resistencia con miras a experimentar plenamente su existencia, incluyendo las dimensiones de la sexualidad y las relaciones en el ámbito afectivo-sexual.

Palabras clave:
transexualidad; sexualidad; género; transfeminismo; estudios queer

Introdução

A materialidade do corpo, segundo Judith Butler ( 2000Butler, J. (2000). Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In G. L. Louro (Org.), O corpo educado: pedagogias da sexualidade (pp. 151-165). Belo Horizonte, MG: Autêntica. ), constitui-se como efeito de uma norma regulatória. É por meio da construção reiterada e normativa do “sexo” como um dado natural que a materialidade do corpo se torna viável para a vida no interior do domínio de gêneros inteligíveis. Isto é, a materialização do corpo que pensa, como a autora denomina, tem a sua construção governada pela materialização de uma norma cultural do “sexo”.

Os atos corpóreos como reprodutores da norma social, em ação performativa e reiterada, produzem o efeito ficcional de uma “essência interior”, utilizando-se também da apelação ao sexo como elemento central nesse processo. A partir da noção de performatividade, Butler ( 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. ) entende que o “gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, uma classe natural de ser” (p. 59). O “ser” de um gênero, portanto, é sempre um efeito cristalizado da performance reiterada e ordenada do corpo no interior da estrutura normativa.

O “fracasso” na materialização ficcional do corpo e dos gêneros considerados viáveis e aceitáveis pela cultura normativa marca a construção do ser abjeto. São abjetos aqueles corpos que constroem sua existência no lado externo aos que, por uma operação diferencial, constituem os corpos que pensam, corpos que importam. A não construção do “sexo” enquanto uma norma regulatória produz “o mais e o menos ‘humano’, o inumano, o humanamente impensável” (Butler, 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. , p. 117). Em outras palavras, a transgressão da matriz normativa, que postula a binaridade do sexo e do gênero, tem como contrapartida uma série de sanções da ordem social que demarcam, separam e castigam quem as transgride, como a pessoa trans, posicionando-a na condição de sujeito abjeto (Butler, 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. ).

Trata-se da cisnormatividade enquanto reguladora das ordens de gênero e que, ao reiterar historicamente a naturalização da cisgeneridade, nomeia e subjuga a transgeneridade como o desvio à norma, o corpo estranho. Nesse sentido, Jaqueline de Jesus ( 2012Jesus, J. G. (2012). Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos (2a ed.). Goiânia, GO: Ser­Tão. , p. 25) argumenta que cisgênero é um conceito amplo que “abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento”. Amara Moira Rodovalho ( 2017Rodovalho, A. M. (2017). O cis pelo trans. Revista Estudos Feministas, 25(1), 365-373. doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p365
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) compreende a cisgeneridade como um lugar normativo a partir do qual as pessoas trans são enunciadas. Para Yuretta Sant’Anna ( 2017 Sant’Anna, Y. (2017, 24 de agosto). Cisgeneridade e identidade. Blog Transfeminismo. Recuperado de https://transfeminismo.com/cisgeneridade-e-identidade/
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), cisgêneras são as pessoas que têm suas identidades de gênero respeitadas e legitimadas pelo Estado e pela sociedade, carregando, portanto, uma condição sociopolítica que demarca privilégios.

Para Viviane Vergueiro Shimakawa ( 2015 Simakawa, V. V. (2015). Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade (Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia, Salvador). Recuperado de https://repositorio.ufba.br/handle/ri/19685
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), os padrões de gênero naturalizados e idealizados da cisgeneridade se constituem como mecanismos normativos a partir de três traços. O primeiro, a pré-discursividade, refere-se ao entendimento sociocultural que acredita poder determinar sexos-gêneros a partir de critérios objetivos e corporais, a despeito de autopercepções ou das posições e contextos interseccionais e culturais envolvidos. O segundo traço é a binaridade . Empreendendo uma refinada naturalização das diferenças corporais, o dispositivo da cisnormatividade opera uma leitura sobre os corpos de tal maneira que, quando eles seguem o eixo “correto”, têm os gêneros definidos a partir de somente duas alternativas: macho/homem e fêmea/mulher. Por fim, o terceiro traço refere-se à permanência , que ampara a premissa de que os corpos “normais” dispõem de uma coerência entre suas dimensões fisiológica e psicológica e o “sexo biológico” que se expressa em identificações coerentes para cada corpo e que permanece de maneira estável, duradoura e consistente ao longo da vida.

A cisnormatividade ocupa uma posição central no debate das questões trans por ser responsável pela constituição discursiva dos gêneros “naturais”, “verdadeiros”, “normais” e “ideais” e, consequentemente, pela estigmatização, marginalização e desumanização dos gêneros inconformes (Bagagli, 2018Bagagli, B. P. (2018). “Cisgênero” nos discursos feministas: uma palavra “tão defendida; tão atacada; tão pouco entendida”. Campinas, SP: Unicamp/IEL/Setor de Publicações. ; Rodovalho, 2017Rodovalho, A. M. (2017). O cis pelo trans. Revista Estudos Feministas, 25(1), 365-373. doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p365
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; Shimakawa, 2015 Simakawa, V. V. (2015). Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade (Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia, Salvador). Recuperado de https://repositorio.ufba.br/handle/ri/19685
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). Pensar a transgeneridade em si mesma, suprimindo ou omitindo a discussão sobre a cisnormatividade, equivale a tornar essenciais e patológicas tais identidades (Bagagli, 2018Bagagli, B. P. (2018). “Cisgênero” nos discursos feministas: uma palavra “tão defendida; tão atacada; tão pouco entendida”. Campinas, SP: Unicamp/IEL/Setor de Publicações. ). Portanto, a discussão da condição cis, da nomeação não apenas enquanto sujeito, mas, principalmente, da matriz normativa reguladora das ordens de gênero, surge da necessidade de escarafunchar, como um contragolpe, o dispositivo cisnormativo, que se recusa a dizer quem é ou a assumir o caráter performativo de sua própria condição naturalizada (Rodovalho, 2017Rodovalho, A. M. (2017). O cis pelo trans. Revista Estudos Feministas, 25(1), 365-373. doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p365
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). Ela também surge da necessidade de desvelar a perversidade do processo de atribuição de marcadores humanizadores e desumanizadores àqueles indivíduos que, respectivamente, atendem e que transgridem o discurso normativo (Porchat, 2010 Porchat, P. (2010). Intervenções no corpo como marcadores de gênero no fenômeno transexual. A Peste, 2(2), 413-421. https://revistas.pucsp.br/index.php/apeste/article/view/16639/12491
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).

Complexificando a compreensão da ordem normativa discutida – cisnormatividade –, diversas autoras e ativistas têm apontado a relevância do termo cisheteronormatividade. Em sintonia com o movimento e estudos 2 2 Preferimos adotar essa terminologia à discutível expressão “teoria”, devido aos sentidos de sistematização e estrutura que tal palavra evoca. Trata-se de um conjunto de saberes que, antes de tudo, demarca uma posição teórico-epistemológica, uma postura filosófica perante a vida e uma disposição política, sendo atravessada, inclusive, pela não pretensão do queer em se deixar enquadrar por uma teoria (Louro, 2012 ). queer , o conceito de heteronormatividade pode ser definido como o alinhamento em concordância entre as categorias sexo, gênero, desejo e práticas sexuais (Butler, 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. ). Como mecanismos de constituição da condição de humanidade, pressupõe-se uma discussão acerca tanto das relações de gênero como dos modos de expressão da sexualidade, ambos colocados em relação para a produção de sujeitos hegemônicos, cisgênero e héteros. A descontinuidade entre o sexo e o gênero designado ao sujeito no nascimento constitui um desvio também à norma heterossexual, de maneira que, como historicamente defendeu Adrienne Rich ( 2012 Rich, A. (2012). Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, 4(5), 17-44. Recuperado de https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309
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), a inteligibilidade cisgênera pressupõe uma heterossexualidade compulsória como decorrência. Desse modo, considerando a estreita relação nas dimensões normativas entre sexo-gênero referenciadas à cisgeneridade e entre desejo-práticas sexuais referenciadas à heterossexualidade, diante da problematização do termo hétero se impõe a necessidade de repensá-lo com o intuito de potencializá-lo. Disso resulta a cisheteronormatividade.

Em uma sociedade cisheteronormativa, a matriz heterossexual é a base das relações de parentesco e a matriz cisgênera é a ordem reguladora das designações compulsórias e das experiências das identidades de gênero, ambas produzindo normalidade a partir de efeitos naturalizadores, relegando à abjeção e exclusão as experiências que a transgridem (Mattos & Cidade, 2016Mattos, A. R., & Cidade, M. L. R. (2016). Para pensar a cisheteronormatividade na Psicologia: lições tomadas do transfeminismo. Periódicus, 1(5), 132-153. doi: 10.9771/peri.v1i5.17181
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). Nesse sentido, para a pessoa trans, viver em uma sociedade cisheteronormativa impõe experiências que repercutem ao longo de toda a sua trajetória de vida e se expressam nos diversos âmbitos de sua existência (Bento, 2009 Bento, B. (2009). A diferença que faz a diferença: corpo e subjetividade na transexualidade. Bagoas - estudos gays: gêneros e sexualidades, 3(4), 95-112. Recuperado de https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2298
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). Neste estudo, propomos problematizar como tal processo se materializa nas relações afetivo-sexuais de uma mulher transexual, incluindo também seus marcadores interseccionais 3 3 Neste texto, o construto interseccionalidade é utilizado como um instrumento teórico-metodológico que possibilita uma compreensão sensível dos lugares sociais atravessados de maneira indissociável pelas categorias de gênero, raça e classe. Trata-se de pensar a opressão como sistema interligado que opera na organização das relações a partir desses marcadores, constituindo lugares sociais específicos em meio às relações de poder (Akotirene, 2020 ). como uma pessoa branca e heterossexual.

Para Beatriz Bagagli ( 2017 Bagagli, B. P. (2017). A orientação sexual na identidade de gênero a partir da crítica da heterossexualidade e da cisgeneridade. Letras Escreve, 7(1), 137-164. Recuperado de https://www.researchgate.net/publication/317678698_ORIENTACAO_SEXUAL_NA_IDENTIDADE_DE_GENERO_A_PARTIR_DA_CRITICA_DA_HETEROSSEXUALIDADE_E_CISGENERIDADE_COMO_NORMAS
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), a relação entre corpo e sexualidade se configura como uma questão central para a compreensão das diversas dimensões da sexualidade das pessoas trans e dos sujeitos com os quais elas se relacionam. Considerando a significação do sexo por meio das superfícies corporais imputadas pela ordem cis hétero, a questionabilidade da feminilidade ou masculinidade dos corpos trans se expressa também na condição de excepcionalidade em que suas sexualidades são posicionadas – não se sabe sobre a sexualidade e orientação sexual da pessoa trans na medida em que não se sabe como interpretar e simbolizar os seus corpos. Diante desse cenário de incógnitas e suspeitas, a orientação sexual se torna elemento de critério para a identidade de gênero autodeclarada, de modo que a heterossexualidade é presumida para que as identidades trans conquistem inteligibilidade. O discurso “o homem de verdade gosta de mulher” e seu par complementar (“mulher de verdade gosta de homem”) impõem um imbricamento compulsório entre cisgeneridade e heterossexualidade, inviabilizando e invisibilizando a vivência de outras expressões da sexualidade de pessoas trans.

Eduardo Lomando ( 2014 Lomando, E. M. (2014). Processos, desafios, tensões, e criatividade nas conjugalidades de homens e mulheres transexuais (Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre). Recuperado de https://lume.ufrgs.br/handle/10183/101427
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) argumenta que as conjugalidades entre pessoas trans e cis também são espaços de tensionamento das normas de gênero por possibilitarem desfechos flexíveis e criativos tanto nas negociações no campo da sexualidade como no modo de narrar e nomear suas identidades e relacionamentos. Em razão de algumas pessoas trans sentirem-se desconfortáveis com regiões do próprio corpo, principalmente com aquelas fortemente marcadas por leituras sociais de gênero que, com base em critérios excludentes, delimitam o que é feminino e masculino 4 4 Como expresso por Bagagli ( 2017 ), entendemos que a “disforia” sentida em relação a áreas ou partes corporais, que supostamente pode ser experienciada por muitas pessoas trans, não constitui nenhuma consequência do que seria uma identidade em inconformidade como a cisgeneridade, mas é efeito de processos vivenciados de formas diversas e que devem ser compreendidos no contexto das respostas dadas às tentativas de desumanização a que tais pessoas são repetidamente submetidas. Muitas vezes, as pessoas trans encontram modos criativos e singulares para subjetivarem seus corpos para resistirem aos imperativos normativos de gênero. , os casais realizam acordos e performatividades sexuais de maneira a se satisfazerem mutuamente na relação. Processualmente, a confiança e o respeito experimentados nas conjugalidades também favorecem uma quebra no halo fortemente reiterado pela cisheteronormatividade entre papéis de gênero e desejo sexual, possibilitando maior autonomia de identidade e prazer.

Tanto no estudo de Bagagli ( 2017 Bagagli, B. P. (2017). A orientação sexual na identidade de gênero a partir da crítica da heterossexualidade e da cisgeneridade. Letras Escreve, 7(1), 137-164. Recuperado de https://www.researchgate.net/publication/317678698_ORIENTACAO_SEXUAL_NA_IDENTIDADE_DE_GENERO_A_PARTIR_DA_CRITICA_DA_HETEROSSEXUALIDADE_E_CISGENERIDADE_COMO_NORMAS
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) como no de Lomando ( 2014 Lomando, E. M. (2014). Processos, desafios, tensões, e criatividade nas conjugalidades de homens e mulheres transexuais (Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre). Recuperado de https://lume.ufrgs.br/handle/10183/101427
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) se discute a transfobia que recai sobre a pessoa trans e respinga na pessoa com quem ela se relaciona. Maria Clara Araújo ( 2015 Araújo, M. C. (2015, 17 de outubro). Por que os homens não estão amando as mulheres trans? Blogueiras Negras. (Trabalho originalmente publicado no blog Transfeminismo). Recuperado de https://blogueirasnegras.org/por-que-os-homens-nao-estao-amando-as-mulheres-trans-2
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) aprofunda esse debate a partir do questionamento provocativo: “Por que os homens não estão amando as mulheres trans?”. A autora argumenta, a partir de experiências próprias, como mulher trans e negra, e de suas amigas trans, que em um relacionamento entre uma mulher trans e um homem cis o casal passa a ser discriminado e, no que concerne ao homem, sua masculinidade é desafiada e ridicularizada. A transfobia social transforma, portanto, um possível relacionamento em uma situação vexatória, o que reforça o estereótipo de que a mulher trans é procurada apenas para relações sexuais sigilosas e esporádicas. Araújo ( 2015 Araújo, M. C. (2015, 17 de outubro). Por que os homens não estão amando as mulheres trans? Blogueiras Negras. (Trabalho originalmente publicado no blog Transfeminismo). Recuperado de https://blogueirasnegras.org/por-que-os-homens-nao-estao-amando-as-mulheres-trans-2
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) conclui que a desumanização e abjeção que recaem sobre as pessoas trans as transformam em sujeitos não dignos de receber amor e construir laços de afeto, o que contribui para ampliar a precarização de suas vidas.

O questionamento de Araújo vai ao encontro do apontamento de Vinicius Alexandre e Manoel dos Santos ( 2021Alexandre, V., & Santos, M. A. (2021). Conjugalidade cis-trans: reinventando laços, desestabilizando certezas. Psicologia: Ciência e Profissão, 41, e224044. doi: 10.1590/1982-3703003224044
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) de que o casal cis-trans enfrenta inúmeras adversidades de caráter transfóbico, de modo que o apoio oferecido por amigos e familiares se torna elemento decisivo para o fortalecimento e desenvolvimento da relação conjugal. Assim, a aceitação do casal pela rede de apoio social de ambas as partes possivelmente gera efeitos benéficos na disposição da pessoa cis para se envolver no relacionamento e para realizar os embates necessários contra ataques, discriminações transfóbicas e investidas estigmatizantes.

Por outro lado, a partir de extenso processo de investigação, Richard Miskolci ( 2017Miskolci, R. (2017). Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line. Belo Horizonte, MG: Autêntica. ) demonstrou que a busca por parceiros afetivo-sexuais, mediada por plataformas digitais, tem possibilitado a grupos historicamente subalternizados em suas expressões de gênero e sexualidade uma suspensão – no meio online – das normatividades que constituem o espaço público – a esfera offline –, de modo que possam usufruir de experiências de reconhecimento com maior segurança. Nesse sentido, ao examinarem a história de vida de um homem trans, Raul Almeida e Manoel dos Santos ( 2021 Almeida, R. G., & Santos, M. A. (2021). Transmasculinidade e teoria queer: a experiência corporal da infância à vida adulta. Psicologia & Sociedade, 33, e240127. doi:10.1590/1807-0310/2021v33240127
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) constataram que as plataformas digitais foram os primeiros espaços encontrados pelo participante, ainda adolescente, para a expressão desejada de gênero e sexualidade. Operando um perfil que ele denominou de fake , pôde ser reconhecido como um garoto, em contraste com a dimensão offline, na qual o anseio por performar masculinidade e desejo afetivo-sexual por mulheres eram marcados pelo temor da punição e rejeição.

Em uma revisão das publicações recentes encontradas em periódicos de psicologia, elaborada para a fundamentação deste estudo, observamos uma certa ênfase em assuntos relativos à identificação a partir do uso de terminologia essencialista, compondo uma imagem unidimensional e unívoca da pessoa transexual como vítima do “ cis tema”, além de ausência de crítica à cisheteronormatividade que permeia as relações sociais e é reproduzida nos próprios fazeres e saberes da psicologia. Ainda que esteja contemplada uma compreensão dos direitos humanos, que dá contornos ao debate sobre a diversidade de gêneros e sexualidades e a despatologização da transexualidade, os estudos, em geral, dedicam-se a realçar experiências de sofrimento e aviltamento, posicionando as pessoas trans como objeto de estudo sem, contudo, reconhecer suas produções teóricas-epistemológicas e as possibilidades de agência sobre seus corpos com vistas a enfrentar as investidas da sociedade cisheteronormativa (Fuchs, Hining & Toneli, 2021Fuchs, J. J., B., Hining, A. P. S., & Toneli, M. J. F. (2021). Psicologia e cisnormatividade. Psicologia & Sociedade, 33, e220944. doi: 10.1590/1807-0310/2021v33220944
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).

O transfeminismo ensina à psicologia a necessidade de aprender a desconfiar de tudo o que se apresenta como natural, a importância do olhar interseccional como ferramenta de precisão para apreender as singularidades em meio a vários sistemas de poder, e o vigor do ativismo político como postura inerente à produção de conhecimento (Jesus, 2014 Jesus, J. G. (2014). Gênero sem essencialismo: feminismo transgênero como crítica do sexo. Universitas Humanística, (78), 241-257. Recuperado de http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-48072014000200011&lng=en&tlng=pt
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). A perspectiva queer , por sua vez, adiciona potência teórica nessa discussão, a partir de sua proposta de desvelar e expor o caráter construído e cristalizado do conhecimento produzido sobre – e não com – os sujeitos e as relações de gênero, assim como por seu modo de pensar cambiante, subversivo, que não se interessa por fixar certezas e tampouco elaborar explicações de ambição totalizante (Louro, 2001Louro, G. L. (2001). Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, 9(2), 541-553. doi: 10.1590/S0104-026X2001000200012
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, 2012 Louro, G. L. (2012). Os estudos queer e a educação no Brasil: articulações, tensões, resistências. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, 2(2), 363-369. Recuperado de https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/87
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), justamente o que a psicologia não considerou em sua histórica e obstinada patologização das identidades trans.

Considerando a problematização exposta e a discussão acerca dos pontos de convergência e encontro entre transfeminismo e estudos queer – que nos interessam como potências para subsidiar a reflexão acerca das experiências afetivo-sexuais de uma pessoa trans – propomos um deslocamento do olhar ancorado na autoidentificação para um debate pautado no campo do político, tendo por fundamento a produção de uma cartografia contra-hegemônica capaz de apreender os modos de espacialização dos mecanismos de poder e as estratégias políticas e performativas subversivas face às investidas cisheteronormativas.

Na perspectiva aberta por tais considerações, buscamos neste estudo refletir sobre as experiências afetivo-sexuais de uma mulher trans, destacando desejos e práticas sexuais, relacionamentos amorosos, casamentos e busca por parceiros íntimos em aplicativos de relacionamento.

Método

Participante

A participante, que designaremos pelo nome fictício de Luciana, autodeclara-se mulher transexual, branca, heterossexual. Tem 38 anos, é graduada em administração e reside na cidade de São Paulo. Trabalha no setor administrativo de uma empresa e declara não seguir uma religião.

As entrevistas que constituíram o corpus deste estudo são parte de uma pesquisa mais ampla, cujo objetivo era investigar a experiência corporal no âmbito das relações afetivo-sexuais de homens e mulheres trans ao longo da vida. O recorte foi delimitado em razão da disponibilidade de Luciana de colaborar com três entrevistas, realizadas com intervalos no decorrer de vários meses, que contribuíram para o enriquecimento e aprofundamento do material colhido, produzindo novos sentidos que puderam ser explorados com a participante a cada encontro.

Procedimento

O acesso à participante foi mediado por profissionais que atuam em um serviço de apoio à diversidade sexual e de gênero. Os pesquisadores não mantêm vinculação formal com o serviço em questão, mas conhecem as profissionais que nele atuam por conta de ações de cooperação realizadas anteriormente. Para contatar as(os) possíveis participantes, foi elaborada uma mensagem de texto que foi encaminhada pelas profissionais às pessoas trans atendidas no serviço. A mensagem as convidava a participar da pesquisa e detalhava quem eram os proponentes, quais eram os objetivos do estudo e como as questões éticas seriam asseguradas. Conforme sugerido no texto de apresentação, as pessoas interessadas entraram espontaneamente em contato. A mensagem informava que o atendimento prestado no serviço e a pesquisa eram procedimentos independentes e que as profissionais mediadoras não seriam informadas de quem havia entrado ou não em contato com os pesquisadores.

Foram realizadas entrevistas individuais em profundidade, em situação face a face, que se desdobraram ao longo de três encontros, com intervalo médio de cinco meses entre eles, nos anos de 2017 e 2018. As entrevistas tiveram duração variável, entre 115 e 140 minutos, e foram realizadas no local de trabalho e na residência da participante. Luciana formalizou sua concordância em participar voluntariamente da pesquisa por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

O primeiro encontro foi conduzido a partir de um roteiro de entrevista semiestruturada, a partir de uma questão norteadora: “conte-me como você se sente em relação a si mesma, ao seu corpo e às suas relações afetivas”. A segunda entrevista foi realizada a partir da análise prévia das narrativas produzidas durante o primeiro encontro e que requeriam aprofundamento. A terceira entrevista teve por objetivo a leitura e discussão, junto com a participante, das análises preliminares das duas entrevistas realizadas anteriormente, a fim de que se pudessem alinhar possíveis eixos interpretativos e identificar convergências e divergências ou corrigir eventuais equívocos e vieses de interpretação do material obtido nos primeiros encontros.

As entrevistas foram audiogravadas mediante consentimento da participante e transcritas literalmente e na íntegra. Inicialmente, foram realizadas leituras flutuantes e exaustivas, de cunho geral, do corpus textual, para a organização de ideias preliminares. Após sucessivas leituras, procurou-se organizar o material compilado; primeiramente, por um eixo cronológico e, posteriormente, pelos períodos significativos e eventos que se mostraram marcantes no âmbito das experiências afetivo-sexuais ao longo do ciclo vital da participante.

A análise das entrevistas se alicerçou em contribuições do transfeminismo e dos estudos queer , em especial os escritos de Butler ( 2000Butler, J. (2000). Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In G. L. Louro (Org.), O corpo educado: pedagogias da sexualidade (pp. 151-165). Belo Horizonte, MG: Autêntica. , 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. ), partindo de pressupostos teórico-epistemológicos e posicionamento ético-político já apresentados na introdução. Adotou-se como eixo orientador do procedimento de análise dos relatos as proposições daquilo que Louro ( 2012 Louro, G. L. (2012). Os estudos queer e a educação no Brasil: articulações, tensões, resistências. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, 2(2), 363-369. Recuperado de https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/87
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) denomina como novas políticas culturais do conhecimento: saberes produzidos pelos sujeitos ditos subalternizados pela cisheteronormatividade, como o movimento queer e o transfeminismo. Nessa perspectiva, o interesse maior está posto em problematizações mais do que em explicações e prescrições, adotando-se a desconstrução como estratégia de análise a partir de questões inusitadas e do entendimento de que o saber que importa é inerentemente dinâmico, desobediente e político.

O estudo foi conduzido em cumprimento às exigências éticas preconizadas para pesquisas envolvendo seres humanos e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, sob registro CAEE n° 52867216.2.0000.5407. Para resguardar a confidencialidade dos dados e a identidade da participante, os nomes próprios empregados nas narrativas são fictícios.

Resultados e discussão

As primeiras experiências afetivo-sexuais de Luciana ocorreram durante a adolescência. Nessa época, ela já se apresentava ao mundo como uma pessoa que se identificava com o gênero feminino. Começou a se hormonizar sem orientação médica aos 12 anos, por influência de uma amiga da escola, e aos 14 anos já se afirmava como Luciana e usava roupas femininas.

Ao recordar as primeiras experiências afetivo-sexuais, a participante relata que, com 14 anos, era “cantada” ou “xavecada” pelos meninos da rua onde morava: “ Eles sempre me trataram muito bem, eles me viam e falavam: ‘Oi, Lu’, ‘Ei, Lu, tá bonita, hein, olha, gostei desse vestidinho’. Eu causava um alvoroço com eles, eles sempre me tratavam bem ”. Luciana conta que se sentia maravilhada e lisonjeada com esses gracejos porque era notada pelos rapazes como uma pessoa feminina e atraente.

Ainda aos 14 anos, começou a namorar com um rapaz chamado Lucas, dois anos mais velho, que ela conhecera na escola. Luciana pondera que o fato de se sentir desejada e os elogios que recebia do namorado contribuíram para que ela vivenciasse uma “adolescência tranquila”. Relata que, quando andava na rua com Lucas, quem não conhecia sua trajetória de vida acreditava ser um namoro entre duas pessoas cisgênero. Assim, desde a adolescência, o investimento que Luciana fez na construção do seu corpo-identidade em alguma medida lhe possibilitou um menor desgaste para negociar sua identidade de gênero junto às pessoas com quem interagia (Rodovalho, 2017Rodovalho, A. M. (2017). O cis pelo trans. Revista Estudos Feministas, 25(1), 365-373. doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p365
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), bem como favoreceu uma condição de maior proteção diante da discriminação e do olhar de estranhamento que, via de regra, posiciona a pessoa trans como ser esquisito, corpo ininteligível, fora da norma (Almeida, 2012Almeida, G. (2012). ‘Homens trans’: novos matizes na aquarela das masculinidades? Revista Estudos Feministas, 20(2), 513-523. doi: 10.1590/S0104-026X2012000200012
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).

Ao completar 16 anos, Luciana pediu de presente de aniversário para o namorado a primeira relação sexual. Todavia, a experiência foi tão traumática e dolorida que ela decidiu terminar o namoro, após dois anos de relacionamento. Desde então, apenas em raros períodos de sua vida ela deixou de estar envolvida em um relacionamento sério. Após romper com esse primeiro namorado, ela se envolveu em outro relacionamento que perdurou dos 16 aos 21 anos, que ela considera o seu primeiro casamento. Seguiu-se outro namoro, dos 22 aos 25 anos, e o segundo casamento, dos 28 aos 36 anos, que terminou cerca de dois anos antes da realização das entrevistas.

Luciana conta que, após a primeira relação sexual, marcada por desconforto e dor, iniciou-se um conflito em relação à genitália, que se intensificou no decurso de seu segundo relacionamento, culminando em pensamentos suicidas.

No segundo relacionamento, como a gente ficou um tempo junto, ele pensava em ter filhos. Ele me tratava como mulher, a gente conversava sobre isso. Então, foi quando eu estava casada com ele que eu comecei a ir atrás do Hospital das Clínicas. Com 18 anos eu fui lá . . . Eu já pensava, inclusive, não só em me cortar, mutilar a genitália, pra ter uma pepeca o mais rápido possível . . . Eu pensava que, se eu não conseguisse isso, eu preferiria morrer. Então, você pensa muito em suicídio nessa época em que você tem esse embate com a sua genitália. Como você está como uma pessoa e ela te fala: “Para com isso, eu te vejo como uma mulher, para com isso”, dá umas crises. . .

Luciana relata que ter encontrado informações sobre o processo transexualizador foi tranquilizador, pois lhe permitiu vislumbrar a possibilidade de produzir mudanças corporais de acordo com seus desejos e identificações. No entanto, soube que o hospital havia suspendido por período indeterminado os investimentos no programa que lhe permitiria realizar os procedimentos pelo sistema público de saúde.

Observa-se, na fala de Luciana, que o sofrimento psíquico decorrente da insatisfação em relação à genitália também estava associado ao desejo de fortalecer seu relacionamento amoroso, o que para a participante incluía a possibilidade de se casar e ter filhos. Butler ( 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. ) afirma que “a ordem de ser de um dado gênero” – nesse caso, estar em conformidade com as regras que regem o discurso normativo sobre o que é ser mulher –, ocorre por estratégias performativas diversas, como “ser uma boa mãe, ser um objeto heterossexualmente desejável, ser uma trabalhadora competente” (p. 209). Por um lado, nota-se que o encadeamento de associações de Luciana sobre ter filhos, constituir uma família e ter uma vagina permanece circunscrito a uma pauta de itens e especificações de performatividades que precisam ser garantidas para assegurar o reconhecimento do gênero feminino; por outro, as ações de Luciana têm o intuito de fortalecer estratégias performativas contra as condições de precarização que afetam a vida dos sujeitos que transgridem a ordem cisgênera e heterossexual (Demetri & Toneli, 2017 Demetri, F. D., & Toneli, M. J. F. (2017). Performatividade contra a precariedade: modulações do sujeito político na obra de Judith Butler. Revista Psicologia Política, 17(39), 318-326. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2017000200010&lng=pt&tlng=pt
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).

O sofrimento gerado pela percepção de ter uma genitália que não está em conformidade com o próprio desejo se estendeu até os 25 anos, quando Luciana, então engajada em seu terceiro relacionamento amoroso, teve sua primeira experiência de prazer com seu pênis. Até então, segundo suas palavras, o pênis nunca tinha sido utilizado para esse fim.

Só aos 16 anos eu descobri isso da genitália, até então não usava pra nada. Só depois de transar que eu pensei: “Ai, eu queria ter uma vagina”. Essa vontade foi até os 25 anos, porque aos 25 anos eu tive a experiência de a pessoa me tocar na frente, porque até então eu nunca tinha tido essa experiência, pra mim era normal o homem não tocar na minha genitália, eu achava que ia me sentir um homem. Foi com muita insistência do meu namorado que eu deixei, mas eu me senti tão estranha, que era um lugar que realmente não era tocado, eu não permitia que tocassem porque realmente era uma zona morta. Ele falava como se fosse um órgão genital feminino, para eu permitir. Foi passando o tempo, eu fui deixando. . . eu fui gostando, fui gozando, isso vai fazendo parte do seu dia a dia. Então eu fui me acostumando, gostei, uma parte do meu corpo que antes eu não usava, usei, gostei.

Assim, após uma experiência fortuita, Luciana conta que descobriu o prazer em uma nova zona erógena, que desde então se tornou um hábito incorporado em seus jogos sexuais. Dos 16 aos 25 anos, ela atribuiu diferentes significados à genitália. Denominar a área genital como “zona morta” pode indicar uma morte simbólica dessa região. Foi o modo que Luciana encontrou para viver com seu corpo até os 25 anos, tanto que ela conta que, se alguém tocasse “naquela parte proibida”, a faria se sentir um homem. Por outro lado, permitir ser tocada e tocar essa região só foi possível a partir de uma ressignificação do órgão genital, propiciada em parte pela habilidade narrativa do namorado e a segurança que esse relacionamento inspirava. Em seu discurso de homem cisgênero, o órgão ganhou características femininas, o que gradualmente sensibilizou Luciana e a ajudou a amenizar a incongruência – que ela denomina de “conflito” entre “ser mulher” e “ter um pênis”, até então percebidos como duas realidades incompatíveis e indutoras de angústia e estranhamento.

Como apontado por Lomando ( 2014 Lomando, E. M. (2014). Processos, desafios, tensões, e criatividade nas conjugalidades de homens e mulheres transexuais (Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre). Recuperado de https://lume.ufrgs.br/handle/10183/101427
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), a maturidade da relação amorosa e a confiança recíproca possibilitam experiências sexuais que transcendem criativamente os scripts cisheteronormativos, cedendo espaço para uma margem maior de autonomia e liberdade para fantasias e experimentações, resultando em satisfação sexual para ambos. Assim como ocorria com os meninos da rua onde morava durante a adolescência, a participante conta que seus namorados sempre a enxergaram como uma mulher plena, e que as experiências de se sentir atraente e desejada pelos homens favorecia uma relação mais harmônica com seu próprio corpo.

Eles sempre diziam: “Te vejo como uma mulher”, todos eles falavam assim, e para todos eu era a primeira trans deles. Eles falavam: “Gosto de você, porque eu gosto de você, da sua pessoa, não por causa de você ter vagina ou não, eu te vejo como uma mulher, pra mim você é uma mulher como outra mulher qualquer”. Ou diziam: “Você pra mim é uma mulher, eu gosto de você porque você é divertida, você é alegre, você é bonita, você é gostosa, porque você me completa, porque você é minha mulher”.

As vivências de Luciana no campo afetivo-sexual, rumo à busca de uma plenitude que se daria com a completude de seu ser, destoam das experiências afetivas de muitas mulheres trans, como sinalizado por Araújo ( 2015 Araújo, M. C. (2015, 17 de outubro). Por que os homens não estão amando as mulheres trans? Blogueiras Negras. (Trabalho originalmente publicado no blog Transfeminismo). Recuperado de https://blogueirasnegras.org/por-que-os-homens-nao-estao-amando-as-mulheres-trans-2
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). Comumente, o que a literatura relata são experiências marcadas pela ausência de laços de afeto e amor e por relações fortuitas, pontuais e sigilosas. Portanto, para uma discussão situada desse aspecto, é pertinente destacar os marcadores interseccionais de Luciana (Jesus, 2014 Jesus, J. G. (2014). Gênero sem essencialismo: feminismo transgênero como crítica do sexo. Universitas Humanística, (78), 241-257. Recuperado de http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-48072014000200011&lng=en&tlng=pt
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) como uma mulher branca, com nível superior de escolaridade e que reside na maior metrópole brasileira. Na realidade atravessada por diversas dinâmicas de poder e em meio à persistente negociação de sentidos entre ser e parecer mulher, seguramente tais marcadores contribuíram para que Luciana fosse reconhecida como uma pessoa digna de ser desejada, amada e respeitada.

Nos relatos apresentados, também é interessante marcar como a performatividade de gênero de Luciana é bem-sucedida, na medida em que ela se sente reconhecida em seus relacionamentos, o que lhe possibilitou reorganizar sua narrativa do que é ser mulher, tanto para si mesma quanto para seus parceiros íntimos. Isso fica claro no fato de ter sido possível para ela apaziguar o conflito manifesto entre ter pênis e sua identidade de gênero feminino, a partir de determinado momento de sua vida, ou ainda na oportunidade de ter experimentado diversas situações que não são assoladas unicamente pela transfobia. Como sugere Rodovalho ( 2017Rodovalho, A. M. (2017). O cis pelo trans. Revista Estudos Feministas, 25(1), 365-373. doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p365
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), são práticas transgressivas que preservam o potencial de imputar mudanças nos sentidos que a palavra mulher comunica, integrando e valorizando a compreensão de mulher trans “como qualquer outra”.

No entanto, a participante também rememorou experiências difíceis e sentimentos desconfortáveis vivenciados no campo amoroso e sexual.

É muito difícil falar isso com o cara que está a fim de você, muitas vezes ele está vendo uma mulher, deseja essa mulher. Eu, no começo, tinha muita dificuldade de falar sobre isso, eu deixava rolando pra ver se o menino gostava de mim. Era um drama pra falar pra ele: “Olha, eu sou uma mulher diferente, eu preciso contar uma coisa que eu não sei se você vai gostar”. Muitos eu nem explicava, acabava deixando de ver a pessoa e não explicava, porque já teve casos em que eu contei para o rapaz, o rapaz era um amor e de repente: “Como assim? Então você ficou me beijando esse tempo todo e nunca me falou nada? Você sabe que você está me enganando, né? Porque você não é nada disso que você diz que é”.

Luciana conta que, recentemente, criou um perfil em um aplicativo de relacionamentos. Relata que a maioria dos homens que conheceu no aplicativo não sabia o que era transexualidade, eram desrespeitosos e indelicados, perguntavam se ela era travesti, se era homem, se fez cirurgia, entre outros questionamentos invasivos que lhe causavam desconforto. Sobre esses homens, referiu que eles enxergam a pessoa transexual como alguém que sequer merece respeito. Compartilhou o caso de um rapaz que, no início, mostrou-se educado e gentil, mas após saber de sua transexualidade, mudou completamente o discurso: “ a pessoa muda totalmente, deixa de te tratar com respeito para te tratar com desrespeito, começa a falar de sexo, fala abertamente. De repente, a pessoa se desmascara ”.

Segundo Miskolci ( 2017Miskolci, R. (2017). Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line. Belo Horizonte, MG: Autêntica. ), ainda que a normatividade reguladora das expressões de gênero e sexualidade se configure diferentemente nas mediações online, elas não estão excluídas de seus efeitos. Entendendo a dimensão online como uma ponte para o posterior encontro offline, o aplicativo não poupou Luciana dos efeitos cisheteronormativos quando ela revelou sua transexualidade. Almeida e Santos ( 2021 Almeida, R. G., & Santos, M. A. (2021). Transmasculinidade e teoria queer: a experiência corporal da infância à vida adulta. Psicologia & Sociedade, 33, e240127. doi:10.1590/1807-0310/2021v33240127
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) observaram que a possibilidade de a pessoa trans obter satisfação com o reconhecimento de sua performatividade de gênero na mediação online pode se dar pela virtualização do corpo, justamente o ponto crítico que Luciana relata: o momento em que ela cogita dar materialidade ao seu corpo e à sua condição de mulher trans.

Em ambos os relatos, a participante conta como os possíveis parceiros sexuais, depois que descobrem sua transexualidade, passam a identificá-la como uma pessoa que não merece consideração e respeito, acusando-a de ser indigna e ardilosa, mudando completamente o tratamento que lhe dirigiam. Isso evidencia a visão que recai sobre o corpo trans como posse de domínio público, permitindo que se façam questionamentos infames que violam todo e qualquer sentido de privacidade e dignidade, como perguntar se a pessoa fez cirurgia de redesignação sexual, falar abertamente sobre sexo, acusar a pessoa trans de má fé e enganação deliberada (Tannehill, 2014 Tannehill, B. (2014, 17 de janeiro). Dois pesos e duas medidas são fatais para transgêneros. Blogueiras Feministas. (Trabalho original publicado em Huffington Post). Recuperado de https://blogueirasfeministas.com/2014/01/17/dois-pesos-e-duas-medidas-sao-fatais-para-transgeneros/
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). Nesse sentido, Bagagli ( 2017 Bagagli, B. P. (2017). A orientação sexual na identidade de gênero a partir da crítica da heterossexualidade e da cisgeneridade. Letras Escreve, 7(1), 137-164. Recuperado de https://www.researchgate.net/publication/317678698_ORIENTACAO_SEXUAL_NA_IDENTIDADE_DE_GENERO_A_PARTIR_DA_CRITICA_DA_HETEROSSEXUALIDADE_E_CISGENERIDADE_COMO_NORMAS
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) acrescenta que, por ser significada pelas pessoas cis como uma espécie de trapaça, de burla à cisheteronormatividade, a transgeneridade tem de ser revelada imediatamente ao parceiro afetivo-sexual; caso não seja comunicada, de alguma maneira a violência perpetrada contra a pessoa trans é compreendida – e também justificada – como uma ação de legítima defesa do sujeito que estaria sendo “ludibriado”.

A base desse raciocínio distorcido está relacionada ao que Butler ( 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. ) denominou de abjeção, definida como o ato de posicionar o outro como um ser estranho, desprezível e repugnante, que desperta repulsa e que deve ser “descartado como excremento” (p. 191) por ser considerado escória da sociedade “civilizada”. Como ocorre comumente com a pessoa trans, o abjeto é entendido como alguém ininteligível à cultura hegemônica e às possibilidades imagináveis de gênero responsáveis pela humanização dos sujeitos, restando-lhe ocupar o lugar do estranho e ameaçador, aquele que desafia e desestabiliza a norma. O sujeito que ousa quebrar a aparente unidade indissociável entre gênero-sexo-desejo se torna alvo de sanções e, como castigo, é destinado a ocupar espaços marginais de indignidade e abjeção. Essa operação busca fortalecer o limite entre normal e anormal, de modo a legitimar as identidades culturalmente hegemônicas e punir exemplarmente aquelas que afrontam a norma, além de sinalizar para todos e todas que é uma fronteira perigosa de cruzar (Butler, 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. ).

É no escopo da condição de abjeção e da negação de humanidade que se funda a violência transfóbica. A discriminação e exclusão que acompanham a vida das pessoas trans por transgredirem as normas de gênero adquirem diversas modulações e formas de expressão, como as manifestações de ódio, repúdio e indignação direcionadas à Luciana no enquadramento cisheteronormativo das relações afetivo-sexuais (Podestà, 2019Podestá, L. L. (2019). Ensaio sobre o conceito de transfobia. Periódicus, 1(11), 363-380. doi: 10.9771/peri.v1i11.27873
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). A transfobia atua tanto em nível discursivo, como na frase do rapaz do aplicativo de relacionamentos (“você não é nada disso que você diz que é”), visando atingir o cerne da identidade e minar a autoestima da pessoa trans, como no nível da violação da integridade física, cujo desfecho pode ser fatal, sendo, portanto, um componente primordial do genocídio a que está exposta a população trans no Brasil (Jesus, 2013 Jesus, J. G. (2013). Transfobia e crimes de ódio: assassinatos de pessoas transgênero como genocídio. História Agora, 16(2), 101-123. Recuperado de https://www.researchgate.net/publication/281321251_Transfobia_e_crimes_de_odio_Assassinatos_de_pessoas_transgenero_como_genocidio
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; Santos, Oliveira & Oliveira-Cardoso, 2020Santos, M. A., Oliveira, W. A., & Oliveira-Cardoso, E. A. (2020). Inconfidências de abril: impacto do isolamento social na comunidade trans em tempos de pandemia de COVID-19. Psicologia & Sociedade, 32, e020018. doi: 10.1590/1807-0310/2020v32240339
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).

Em 2018, Luciana submeteu-se à cirurgia de redesignação sexual. Por ter se prolongado no tempo, a pesquisa flagrou o antes e o depois desse momento, que representou um ponto de inflexão na vida da participante. Na condição de recém-operada, no momento da terceira entrevista, ela compartilhou como havia sido sua experiência de ficar nua pela primeira vez “na frente” de um parceiro afetivo-sexual, embora não pudesse ainda se relacionar sexualmente (em termos de sexo insertivo) devido ao período de cicatrização.

Eu não sei como vai ser daqui pra frente, eu conheci um menino no aplicativo, foi agora, não falei “Olha, sou trans, mas sou operada”, não falei isso, tudo dá a entender que ele conheceu uma mulher, está saindo com uma mulher. Meu, eu nunca tinha visto aquela cara. Na hora em que eu fiquei nua na frente dele, ele abriu a boca, eu adorei aquele olhar: “Cara, como você é linda”. Ele me olhou assim, te juro, eu me senti uma fêmea completa nessa hora, porque realmente era esse tipo de reação que eu esperava, esperava que fosse um homem que me tratasse não como mais uma, mas como “a” mina. . . Quando eu tirei a roupa perto dele, fui tirando e ele foi olhando pra ver, eu não sei se ele esperava que saísse um pênis dali, não sei te dizer isso, talvez mais pra frente. . . porque a gente se conheceu agora.

A despeito de tantas dúvidas e inseguranças, é perceptível a sensação exultante de Luciana porque, pela primeira vez, estava tendo poder completo de decidir se e quando gostaria de falar sobre sua história com o parceiro sexual. Em momentos anteriores, ao compartilhar a revelação de que era trans, Luciana vivenciara histórias dolorosas de rejeição e humilhação (“de repente a pessoa se desmascara”), ou, em contraste com esse julgamento depreciativo, experiências de aceitação e respeito à sua identidade de gênero (“te vejo como uma mulher”). Possivelmente, esses são os fatores que modulam a tomada de decisão entre não revelar sua história, na tentativa de continuar usufruindo do tratamento que seria destinado a uma mulher cis, ou se abrir e correr o risco de ser desrespeitada e vítima de violência transfóbica.

Em outro momento, Luciana reitera a percepção que tem sobre a reação dos homens diante de uma trans que realizou ou não a cirurgia de afirmação de gênero.

Eu tô percebendo, pelas conversas com os homens, isso aí me dá um up , minha percepção de corpo como mulher, isso daí me valoriza como mulher. E, na cabeça dos homens, isso daí é tão importante, porque realmente te eleva para um outro nível. Você fica em um outro nível para eles. O homem te trata com carinho, todo amorzinho, e quando você fala que é trans, ele já te trata como uma putinha, uma vagabundinha que ele só vai comer. Aí, de repente, você fala para ele “Não, agora eu tenho”, aí ele volta a te tratar naquele nível de princesinha.

Em conformidade com o pensamento normativo, ser dotada de uma genitália socialmente esperada pelo gênero que ela performatiza é cumprir com o alinhamento fictício entre sexo e gênero, enquadrando-se no interior das possibilidades imagináveis de gênero (Butler, 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. ). Talvez por essa razão Luciana signifique essa experiência como um patamar acima – um up , como ela diz – no seu processo de valorização do que é normativamente compreendido como ser mulher. Ao perceber a boa receptividade dos parceiros íntimos em relação à exposição de sua genitália retificada e o receio que tem de contar a sua história, impõe-se o questionamento acerca de quais são os mecanismos e estratégias utilizados pela participante para se esquivar da estigmatização que recai sobre a mulher trans. Considerando que o poder que sustenta os mecanismos normativos do gênero e da sexualidade não podem ser recusados ou rejeitados no interior da realidade social, mas somente deslocados como modo de subversão (Butler, 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. ), problematiza-se: a cirurgia não seria um recurso encontrado por Luciana para garantir um lugar seguro na cultura cisheteronormativa, que só pôde ser conquistado a partir do apagamento daquilo que a colocava fora da inteligibilidade do gênero com o qual ela se identifica?

Por estar imersa nessa cultura normativa, Luciana também é por ela constituída, internalizando que os atos reiterados da performatividade de gênero são padrões naturais e desejáveis para a vida de sujeitos dignos de respeito e afeto. Ainda assim, como concluem Demetri e Toneli ( 2017 Demetri, F. D., & Toneli, M. J. F. (2017). Performatividade contra a precariedade: modulações do sujeito político na obra de Judith Butler. Revista Psicologia Política, 17(39), 318-326. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2017000200010&lng=pt&tlng=pt
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) a partir da obra de Butler, é fundamental o entendimento de que, apesar do poder participar da formação dos sujeitos políticos – aqueles que afrontam as regulações normativas –, ele nunca passa incólume, pois alguns dos seus termos e mecanismos de atuação são sempre renegociados e transformados. Se, por um lado, Luciana faz uso de linguagem essencialista para expressar a maneira como se percebe após ter realizado a intervenção cirúrgica – como uma “fêmea completa” –, ou se entende que ter uma vagina faz dela uma mulher melhor, por outro, tais modificações corporais também confundem os mecanismos reguladores da cisheteronormatividade, tendo em vista que revelam o caráter performativo do gênero e desmontam a compreensão sedimentada do corpo como naturalidade imutável e do gênero como continuidade do sexo.

No relato de Luciana sobre a experiência de ficar nua pela primeira vez após a cirurgia diante de um parceiro íntimo, evidencia-se que a posição que a pessoa desempenha no mundo e nas relações não é decidida unicamente por ela, de maneira unilateral, mas por uma negociação tensa de sentidos entre o que é ser e o que é parecer ser (Rodovalho, 2017Rodovalho, A. M. (2017). O cis pelo trans. Revista Estudos Feministas, 25(1), 365-373. doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p365
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), compreensão própria da lógica performativa na constituição do gênero (Butler, 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. ). Os recursos empregados pela participante na constituição do corpo, com vistas a favorecer a performance do gênero com o qual se identifica, têm efeitos positivos na relação que ela deseja ter com o mundo, ainda mais tratando-se do campo da sexualidade, no qual a relação com a materialidade corpórea é central (Bagagli, 2017 Bagagli, B. P. (2017). A orientação sexual na identidade de gênero a partir da crítica da heterossexualidade e da cisgeneridade. Letras Escreve, 7(1), 137-164. Recuperado de https://www.researchgate.net/publication/317678698_ORIENTACAO_SEXUAL_NA_IDENTIDADE_DE_GENERO_A_PARTIR_DA_CRITICA_DA_HETEROSSEXUALIDADE_E_CISGENERIDADE_COMO_NORMAS
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).

Assim, diante das experiências anteriores de angústia ao compartilhar sua condição de mulher transexual com potenciais parceiros afetivo-sexuais, assujeitando-se à questionabilidade de sua identidade de gênero, além de outras expressões transfóbicas, Luciana entende que avança na negociação dos sentidos sobre a pessoa que ela é, aprofundando a agência sobre seu corpo e o modo como deseja ser tratada e considerada.

Considerações finais

A cisheteronormatividade oferece um tecido social sinuoso e um dispositivo de enquadramento perverso para os corpos trans. Em suas experiências afetivo-sexuais, tendo em vista o caráter íntimo e a centralidade que o corpo assume nessas vivências, os mecanismos normativos do gênero e da sexualidade adquirem efeitos ímpares. A partir da análise dos relatos, foi possível observar que Luciana, ao longo de sua trajetória, desenvolveu estratégias para se proteger da precariedade que acomete as pessoas trans, a fim de garantir uma condição genuína de bem-viver. Tanto os relacionamentos duradouros que ela cultivou como sua luta para ter acesso aos processos de modificação corporal lhe possibilitaram uma reviravolta face às ordenações cisheteronormativas. Os primeiros viabilizaram vivências afetivo-sexuais mais livres das amarras coercitivas do que é socialmente compreendido como ser mulher, sendo a identidade de gênero de Luciana reconhecida com ou sem o envolvimento de sua genitália na relação. As modificações corporais, por sua vez, contribuíram para fazer avançar o tenso processo de negociação de sentidos sobre o ser e o parecer diante dos parceiros afetivo-sexuais, produzindo deslocamentos nas noções de poder e aprofundando as estratégias adotadas para performar o gênero em conformidade com seu desejo.

A participante também relatou situações de desrespeito e de aviltamento de sua existência protagonizadas por possíveis parceiros afetivo-sexuais. A despeito das violências transfóbicas, em seus diferentes matizes, e em alinhamento com as estratégias empregadas contra a condição de precariedade, Luciana segue afirmando-se nos espaços por onde transita, enfrentando quem busca fixá-la na condição de sujeito abjeto. A postura de não ceder às ameaças cisheteronormativas se fazem presentes cotidianamente, desde a coragem para sair na rua com roupas femininas aos 14 anos até as discussões acirradas com homens cis que ostentam retórica transfóbica em aplicativos de relacionamento. Luciana encarna, assim, uma existência que alinha tanto estratégias performativas contra a precariedade como práticas de resistência face às investidas cisheteronormativas, de modo a não sucumbir às intimidações cruéis e violências cotidianas, não retrocedendo no desejo de viver sua vida plenamente como um direito humano básico, incluindo a busca de realização na dimensão afetivo-sexual.

A negociação de sentidos, como processos discursivos que participam da construção dos sujeitos, opera a partir de diversas lógicas de poder, entre as quais a cisheteronormatividade se destaca como uma das mais relevantes. Ao longo deste estudo, pudemos discutir como as experiências afetivo-sexuais podem se tornar palco da espacialização e deslocamento de mecanismos normativos de gênero e sexualidade, nas mediações on-line e off-line. Todavia, é preciso demarcar que o poder opera a partir da intersecção com outras dimensões e vetores, incluindo raça, classe social, idade, território, geração, entre outras, o que evidencia a enorme diversidade de significações construídas sobre o ser mulher trans, tanto pelo entendimento singular do processo de gênero como pelos demais marcadores sociais. Nesse sentido, é importante retomar que as narrativas analisadas foram produzidas por uma mulher transexual, branca, graduada e residente na cidade de São Paulo. Certamente esses marcadores contribuíram positivamente na negociação com o seu contexto social a respeito dos lugares e papéis que ela pôde desempenhar e na garantia do caráter humanizador de sua existência.

Por fim, salienta-se que este texto teve como objetivo subjacente o aprofundamento da posição ético-política da psicologia no que se refere ao endosso de processos cisheteronormativos e, mais especificamente, transfóbicos reiterados pela área. Essa postura envolveu um olhar crítico em relação às produções acadêmicas da psicologia acerca da linguagem essencialista adotada, da imagem construída da pessoa trans e da naturalização da cisgeneridade. Houve também um compromisso dos pesquisadores em se apoiarem em estudos e posicionamentos produzidos fundamentalmente por pessoas trans, além de estarem atentos tanto às potencialidades de pesquisas desenvolvidas por sujeitos cis aliados quanto aos limites da enunciação cisgênero nas referências que compõem este artigo.

Referências

  • 1
    Os autores agradecem o apoio recebido da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP, por meio da bolsa de Iniciação Científica, processo número 2016/16895-5, concedida ao primeiro autor, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, por meio da Bolsa de Produtividade em Pesquisa, nível 1A, concedida ao segundo autor.
  • 2
    Preferimos adotar essa terminologia à discutível expressão “teoria”, devido aos sentidos de sistematização e estrutura que tal palavra evoca. Trata-se de um conjunto de saberes que, antes de tudo, demarca uma posição teórico-epistemológica, uma postura filosófica perante a vida e uma disposição política, sendo atravessada, inclusive, pela não pretensão do queer em se deixar enquadrar por uma teoria (Louro, 2012 Louro, G. L. (2012). Os estudos queer e a educação no Brasil: articulações, tensões, resistências. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, 2(2), 363-369. Recuperado de https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/87
    https://www.contemporanea.ufscar.br/inde...
    ).
  • 3
    Neste texto, o construto interseccionalidade é utilizado como um instrumento teórico-metodológico que possibilita uma compreensão sensível dos lugares sociais atravessados de maneira indissociável pelas categorias de gênero, raça e classe. Trata-se de pensar a opressão como sistema interligado que opera na organização das relações a partir desses marcadores, constituindo lugares sociais específicos em meio às relações de poder (Akotirene, 2020Akotirene, C. (2020). Interseccionalidade. São Paulo, SP: Sueli Carneiro; Pólen. ).
  • 4
    Como expresso por Bagagli ( 2017 Bagagli, B. P. (2017). A orientação sexual na identidade de gênero a partir da crítica da heterossexualidade e da cisgeneridade. Letras Escreve, 7(1), 137-164. Recuperado de https://www.researchgate.net/publication/317678698_ORIENTACAO_SEXUAL_NA_IDENTIDADE_DE_GENERO_A_PARTIR_DA_CRITICA_DA_HETEROSSEXUALIDADE_E_CISGENERIDADE_COMO_NORMAS
    https://www.researchgate.net/publication...
    ), entendemos que a “disforia” sentida em relação a áreas ou partes corporais, que supostamente pode ser experienciada por muitas pessoas trans, não constitui nenhuma consequência do que seria uma identidade em inconformidade como a cisgeneridade, mas é efeito de processos vivenciados de formas diversas e que devem ser compreendidos no contexto das respostas dadas às tentativas de desumanização a que tais pessoas são repetidamente submetidas. Muitas vezes, as pessoas trans encontram modos criativos e singulares para subjetivarem seus corpos para resistirem aos imperativos normativos de gênero.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2023
  • Aceito
    24 Jan 2023
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