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Genealogia da agressividade infantil no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: o diagnóstico entre clínica e política 1 1 Este artigo é resultado da pesquisa desenvolvida na tese “Os impasses da agressividade na infância: dos discursos sobre a criança ao desejo parental”, financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e defendida no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro e no Centre de Recherches Psychanalyse, Médecine et Société da Université Paris Cité. Ele é uma versão modificada de “A agressividade infantil no DSM: os diagnósticos e os seus efeitos subjetivos”, publicado na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental de 2023, volume 26.

Genealogy of child aggressiveness in the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders : diagnostic between clinic and politics

Généalogie de l’agressivité infantile dans le Manuel Diagnostique et Statistique des Troubles Mentaux : le diagnostic entre clinique et politique

Genealogía de la agresividad infantil en el Manual Diagnóstico y Estadístico de Trastornos Mentales : el diagnóstico entre la clínica y la política

Resumo:

Este artigo faz uma análise genealógica da inclusão da “agressividade infantil” e suas variações no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) ao longo das suas edições. Começamos por avaliar a relevância da inclusão deste signo clínico nos critérios de diagnóstico, sobretudo a partir de 1980. Em seguida, analisamos as implicações clínicas e políticas desta inclusão, em particular no que concerne à construção de uma psicopatologia da infância e à definição social de normas de conduta. Por fim, analisamos como a ênfase colocada na normatização da agressividade infantil através de discursos normativos, em consonância com as exigências neoliberais de desempenho, contribui para o aumento da expressão da agressividade como forma de lidar com o mal-estar e com o sofrimento subjetivo.

Palavras-chave:
agressividade; criança; DSM; diagnóstico; sofrimento

Abstract:

This article provides a genealogical analysis of the inclusion of “child aggressiveness” and its variations in the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) throughout its editions. We begin by assessing the relevance of the inclusion of this clinical sign in the diagnostic criteria, especially since 1980. We then analyze the clinical and political implications of this inclusion, particularly regarding the construction of a psychopathology of childhood and the social definition of norms of conduct. Finally, we analyse how the emphasis placed on the normalization of child aggression through normative discourses, in line with neoliberal demands for performance, contributes to an increase in the expression of aggression as a way of dealing with malaise and subjective suffering.

Keywords:
aggressiveness; child; DSM; diagnostic; distress

Résumé :

Cet article propose une analyse généalogique de l’inclusion de l’« agressivité infantile » et de ses variations dans le Manuel diagnostique et statistique des troubles mentaux (DSM) au fil de ses éditions. Nous commençons par évaluer la pertinence de l’inclusion de ce signe clinique dans les critères diagnostiques, en particulier depuis 1980. Nous analysons ensuite les implications cliniques et politiques de cette inclusion, notamment en ce qui concerne la construction d’une psychopathologie de l’enfance et la définition sociale de normes comportementales. Enfin, nous analysons comment l’accent mis sur la normalisation de l’agressivité de l’enfant par les discours normatifs, en accord avec les exigences de performance néolibérales, contribue à l’augmentation de l’expression de l’agressivité comme moyen de faire face au malaise et à la souffrance subjective.

Mots-clés :
agressivité; enfant; DSM; diagnostic; souffrance

Resumen:

Este artículo realiza un análisis genealógico de la inclusión de la “agresividad infantil” y sus variaciones en el Manual Diagnóstico y Estadístico de los Trastornos Mentales (DSM) a lo largo de sus ediciones. Comenzamos evaluando la relevancia de la inclusión de este signo clínico en los criterios diagnósticos, especialmente desde 1980. A continuación, analizamos las implicaciones clínicas y políticas de esta inclusión, sobre todo en lo que respecta a la construcción de una psicopatología de la infancia y a la definición social de las normas de comportamiento. Por último, analizamos cómo el énfasis puesto en la normalización de la agresividad infantil a través de discursos normativos, en consonancia con las exigencias neoliberales de rendimiento, contribuye a un aumento de la expresión de la agresividad como forma de afrontar el malestar y el sufrimiento subjetivo.

Palabras clave:
agresividad; niño; DSM; diagnóstico; sufrimiento

Este artigo aborda de maneira genealógica o processo de elaboração do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), atualmente em sua quinta edição, e a forma pela qual a clínica da “criança agressiva” foi concebida ao longo dos anos nesse dispositivo. Identificam-se diferentes categorias diagnósticas atribuídas à agressividade da criança nas sucessivas edições do manual, ressaltando-se uma virada de concepção a partir da terceira edição, em 1980. Em seguida, discutem-se as relações entre essa psicopatologia diagnóstica da infância, seu uso na clínica e o horizonte político dessa intervenção, na medida em que o estabelecimento do diagnóstico permite uma melhor compreensão da incidência dos vestígios da infância na vida adulta e, eventualmente, nas formas de conduta desviante.

Com uma pesquisa que analisa de que forma os significantes “agressividade infantil”, “criança agressiva” e “comportamento agressivo da criança” apareceram na genealogia do DSM como dispositivo, ou seja, desde 1952, em sua primeira edição, até os dias atuais, busca-se inscrever a problemática da criança agressiva na história das hipóteses diagnósticas da psicopatologia e nas diferentes formas de abordagem da infância na atualidade. Por fim, pretende-se situar o lugar da psicanálise nessa genealogia, analisando os efeitos do abandono discursivo de sua referência a partir da terceira edição do DSM, mas também de uma problematização do lugar do sujeito, bem como de suas demandas de reconhecimento. Nossa tese é que (1) os traços da “criança agressiva” ou da “agressividade infantil” no DSM revelam como a infância foi objeto de investimento da psicopatologia nos séculos XX e XXI, tendo incidência não apenas nos sistemas de classificação e tratamento dos transtornos mentais, mas também nas formas de governamentalidade dos sujeitos; e que (2) a suposta tentativa de regulação da agressividade, ou de produção de discursos sobre a agressividade da criança pela forma do diagnóstico, acabaria por gerar mais agressividade e violência, na medida em que relançaria os sujeitos a ter na agressividade uma via de expressão.

A elaboração de um manual e a psicopatologia da infância

Após a Segunda Guerra Mundial um caos se instala. Com efeito, se, desde a Primeira Guerra, observa-se a incidência de traumatismos diversos desse acontecimento nos diferentes dispositivos que constituem o campo psi (Crocq, 1999Crocq, L. (1999). Les traumatismes psychiques de guerre. Paris, France: Odile Jacob. ; Delaporte, 2003Delaporte, S. (2003). Les médecins dans la Grande Guerre (1914-1918). Paris, France: Bayard. ), é apenas a partir da sexta revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), em 1949, que se inclui uma seção exclusiva dedicada às doenças mentais. Nesse período, apenas 10% dos casos das doenças mentais se enquadram nas categorias diagnósticas até então adotadas, de modo que essa decalagem em relação aos casos e a consequente falta de padrão no sistema de nomenclatura se tornaram insustentáveis. Assim, um comitê americano realizou a revisão dos arquivos do exército, das hipóteses diagnósticas empregadas no manual padrão e utilizadas pelos psiquiatras de então no serviço civil, e propôs um novo documento. Profissionais de diferentes áreas da psiquiatria, inclusive da psicanálise, foram convocados para essa empreitada, de modo que esse documento deu origem à primeira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-1), sob a direção da American Psychological Association (APA, 1952American Psychological Association (1952). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders. Washington, DC: American Psychiatric Association. ).

Conforme analisa Christian Dunker ( 2014 Dunker, C. I. L. (2014). Questões entre a psicanálise e o DSM. Jornal de Psicanálise, 47(87), 79-107. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352014000200006&lng=pt&tlng=pt .
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), a influência da psicanálise na psiquiatria norte-americana foi determinante para a utilização de três conceitos fundamentais no manual: personalidade, estrutura e psicodinâmica. Além da psicanálise, o sistema de classificação do DSM-1 seria marcado pela psiquiatria psicodinâmica de Adolf Meyer, um de seus representantes nos Estados Unidos. Então presidente da APA, Meyer considerava de maneira significativa a história de vida dos pacientes no quadro diagnóstico (Shorter, 2015Shorter, E. (2015). The history of nosology and the rise of the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Dialogues in Clinical Neuroscience, 17(1), 59-67. doi: 10.31887/DCNS.2015.17.1/eshorter
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). No DSM-1, no entanto, quase não há menção à “criança agressiva” de maneira direta ou relevante, nem à categoria de “infância” como uma fase específica do desenvolvimento. De fato, a única menção à infância aparece ligada à “reação de adaptação” face a um determinado contexto, que poderia ocasionar o desenvolvimento de um transtorno de conduta ou a caracterização de uma “personalidade inadequada” (APA, 1952American Psychological Association (1952). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders. Washington, DC: American Psychiatric Association. , p. 35). O significante “agressividade” ou “agressivo”, por sua vez, está relacionado, no manual, à ideia de pertencimento a uma “personalidade passivo-agressiva”, a qual poderia se manifestar desde a infância, mas que teria como marca característica a sua manutenção ao longo da vida do indivíduo (APA, 1952American Psychological Association (1952). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders. Washington, DC: American Psychiatric Association. , pp. 36–37). A infância só aparece, assim, nessa primeira edição do DSM, no contexto da história de vida de um paciente adulto identificado como doente mental. É apenas retrospectivamente, nas funções de etiologia ou de determinação histórica da doença, que a criança está ligada a uma forma de psicopatologia considerada doravante como transtorno, manifesta sempre em sua forma definitiva e acabada na idade adulta.

Dezesseis anos depois, com a publicação da segunda edição do DSM, observa-se um primeiro traço de uma especificidade diagnóstica da infância no manual, bem como da possibilidade de uma criança agressiva. Ainda centrado na noção de “reação”, o manual formula a categoria de “Transtorno de comportamento na infância e na adolescência” (APA, 1968American Psychological Association (1968). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders: DSM-2 (2nd ed.). Washington, DC: American Psychiatric Association. , pp. 49–51) em referência a diagnósticos situados em uma zona intermediária de “estabilidade”, sendo mais estáveis que os “transtornos situacionais transitórios” e menos estáveis que a psicose, a neurose e o transtorno de personalidade. Na descrição dessa zona diagnóstica, a “agressividade” aparece como um de seus sete signos clínicos, relacionado de maneira específica com a fase de vida da infância ou da adolescência. Além de signo, ela ganha um nome próprio: “reação não socializada agressiva da infância (ou adolescência)” 2 2 A criança (ou o adolescente) que apresenta esse transtorno intermediário é “caracterizada por desobediência hostil ou dissimulada, brigas, agressividade física e verbal, vingança e destrutividade” (APA, 1968 , p. 50). , introduzindo a agressividade física ou verbal no domínio social da desobediência e da confrontação das normas. Assim, a problemática da agressividade ou da conduta agressiva aparece pela primeira vez no DSM-2, como signo de uma modalidade de classificação diagnóstica específica de transtornos da infância.

Com efeito, essas duas primeiras edições do DSM são marcadas pela influência da psicanálise e da psiquiatria psicodinâmica. É interessante notar como, ao mesmo tempo que o diagnóstico dos transtornos infantis passa a ser incluído no manual, a presença da psicanálise e de suas principais referências discursivas para o campo da psicopatologia começam a se apagar. Conforme Mannoni ( 1973Mannoni, M. (1973). Éducation impossible. Paris, France: Seuil. ), apesar de Freud ter rompido com o espírito médico de sua época, diferentes noções psicanalíticas pós-freudianas estavam muitas vezes ligadas a um saber psiquiátrico voltado para a “adaptação do indivíduo às necessidades de uma sociedade produtiva” (p. 154). Mannoni alerta ainda para o fato da existência de uma diferença sensível entre o diagnóstico médico e o diagnóstico psiquiátrico, pois enquanto o primeiro diagnostica para tratar – no sentido que esse termo evoca de cuidar, preocupar-se –, o segundo, ao diagnosticar, “patologiza”, isto é, segrega, fixa a identidade do indivíduo, da criança – no caso, em uma categoria. A incidência da psicanálise no projeto de classificação do DSM em suas primeiras edições, nesse sentido, deve ser entendida no interior do quadro mais geral de recepção de um dispositivo que, apropriando-se de seu discurso, submete-o à função específica do diagnóstico. Não por acaso são as noções de personalidade, de estrutura e a perspectiva do psicodinamismo que tiveram maior incidência nessa apropriação, pois seria a partir delas que se tornaria possível vincular dinâmicas descritivas de processos metapsicológicos com uma psicopatologia dos transtornos mentais.

A virada diagnóstica do DSM e a problemática da criança agressiva

Em 1980, observamos, de fato, a elaboração, na terceira edição do DSM, de uma seção diagnóstica dedicada à infância. Ora, compondo um comitê específico de treze integrantes, o DSM-3 apresentou pela primeira vez uma longa seção de 64 páginas de diagnósticos descritivos dos “Transtornos da primeira infância, infância e adolescência” (APA, 1980American Psychological Association (1980). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders: DSM-3 (3rd ed.). Washington, DC: American Psychiatric Association. , pp. 35–99). Convém ressaltar que, além dessa seção, outras doze foram criadas, constituindo assim 265 categorias diagnósticas ao longo de suas 494 páginas. Com efeito, dirigido pelo psiquiatra Robert Spitzer, o DSM-3 buscou aproximar o sistema de classificação americano da nomenclatura empregada pela Organização Mundial de Saúde no projeto da CID. O objetivo era responder às necessidades de padronização internacional dos termos utilizados em psiquiatria, bem como à demanda crescente da indústria farmacêutica por critérios diagnósticos mais precisos e definidos. Muitos autores enfatizam ainda o estabelecimento no DSM-3 de uma verdadeira virada da prática diagnóstica em psicopatologia. Com o intuito de construir um sistema classificatório operacional e pretensiosamente “ateórico” por meio de diagnósticos descritivos e nominativos, o projeto do manual romperia tanto com a psiquiatria clássica, isto é, da escola francesa ou alemã, quanto com a psicodinâmica, orientada por uma espécie de cruzamento entre a psicopatologia e a psicanálise (Caponi, 2016Caponi, S. (2016). Vigiar e medicar: o DSM-V e os transtornos ubuescos na infância. In S. Caponi, M. F. Vásquez-Valencia, & M. Verdi (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp. 47-60). São Paulo, SP: LiberArs. ; Dunker, 2014 Dunker, C. I. L. (2014). Questões entre a psicanálise e o DSM. Jornal de Psicanálise, 47(87), 79-107. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352014000200006&lng=pt&tlng=pt .
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; Guarido, 2007 Guarido, R. (2007). A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos na Educação. Educação e Pesquisa, 33(1), 151-161. Recuperado de https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=29833110 .
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; Roudinesco, 2000Roudinesco, E. (2000). Por que a psicanálise?. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ).

No DSM-3, o diagnóstico desses “transtornos que têm as primeiras evidências na infância ou na adolescência” seria dividido em cinco grandes grupos: intelectual, comportamental, emocional, físico e de desenvolvimento. Nessa seção, o significante “agressivo” apareceria 31 vezes 3 3 Uma busca pela palavra no manual sugere 14 vezes ocorrências de “agressivo” no DSM-2, contra 117 vezes no DSM-3. , o que já indicaria um aumento significativo em relação à edição precedente. Contudo, além desse índice quantitativo, é importante nos perguntarmos: de que maneira esse significante foi ali inscrito? Qual a sua função, dado que se articula com os significantes “criança” ou “infância”, designando assim uma fase específica da história de vida?

Primeiramente, observamos que a “reação não socializada agressiva da infância (ou adolescência)”, tal como é descrita no DSM-2, transforma-se doravante em “transtorno de conduta” (APA, 1980American Psychological Association (1980). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders: DSM-3 (3rd ed.). Washington, DC: American Psychiatric Association. , pp. 45-50), assim como os quadros de “reação de fuga” e de “reação delinquente”. Esse transtorno, relativo aos modos de agir, de se portar e de se orientar em termos de comportamento, é dividido no DSM-3 em subtipos específicos, os quais “são baseados na presença ou ausência de vínculos sociais adequados e na presença ou ausência de um padrão de comportamento antissocial agressivo” (APA, 1980American Psychological Association (1980). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders: DSM-3 (3rd ed.). Washington, DC: American Psychiatric Association. , p. 45). Vê-se, portanto, como é em torno da adequação da conduta a uma dada situação ou a partir da presença ou ausência daquilo que se identifica como agressividade na socialização da criança que se define a manifestação do “transtorno de conduta”, reunindo sob esse termo formas de agir incompatíveis com a natureza dos vínculos sociais. Em paralelo, a problemática da criança agressiva aparecerá igualmente de maneira relevante no quadro diagnóstico do “transtorno opositor”. Esses dois diagnósticos, isto é, aquele dos “transtornos de conduta” e este do “transtorno opositor”, estarão inscritos em dois grupos distintos, o primeiro no grupo “comportamental” e o segundo no grupo “emocional”. A dita “oposição”, neste último, designaria menos um traço de conduta e, portanto, de comportamento individual, e mais uma condição afetiva da criança, na qual o fator emocional teria uma função determinante.

É interessante notar que, desde o DSM-3, o dito “comportamento agressivo” passará a funcionar de maneira capilarizada, isto é, segundo um modo de operação que ganha espaço aos poucos, revelando-se presente nos interstícios de um diagnóstico a outro. Por exemplo, é comum um paciente com “transtorno de conduta” apresentar também “dificuldade de atenção”, fazendo com que o “transtorno de déficit de atenção” seja comumente adicionado ao diagnóstico. Outro exemplo pode ser verificado em relação ao “curso” do transtorno: o grau mais grave tende a configurar o diagnóstico de “transtorno de personalidade antissocial”, sobretudo se for do tipo “não social” e “agressivo”. A agressividade, nesse caso, adquire a função de agravamento do transtorno, na medida em que, integrada à noção de personalidade, apresenta o estado de deterioramento das formas de socialização. Isso também ocorre no “transtorno opositor”: considerando o fator cronicidade como sendo sua característica mais comum – pois dura vários anos, podendo permanecer na vida adulta –, apresentará a forma de um “transtorno de personalidade passivo-agressiva”, este último caracterizado desde o DSM-1 (APA, 1952American Psychological Association (1952). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders. Washington, DC: American Psychiatric Association. , pp. 36–37).

Além disso, a dimensão capilar do significante “agressividade” na terceira edição do manual fica ainda mais evidente no “Apêndice A”, em que, para auxiliar os clínicos na hipótese diagnóstica, são propostas “árvores de decisão”. Vejamos o exemplo da árvore do “diagnóstico diferencial do comportamento antissocial, agressivo, desafiante ou opositivo” (APA, 1980American Psychological Association (1980). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders: DSM-3 (3rd ed.). Washington, DC: American Psychiatric Association. , p. 345). Se o paciente apresentar pelo menos um dos comportamentos listados, utiliza-se a árvore para definir o diagnóstico adequado por meio de perguntas orientadoras. Nesse caso, mesmo se todas as respostas às perguntas forem negativas, ainda assim se chegará ao diagnóstico do “transtorno da criança, do adolescente ou do adulto de comportamento antissocial agressivo”. Ou seja, a dita “agressividade”, manifesta por princípio em todo diagnóstico de comportamento antissocial, estará presente em qualquer uma das nove possibilidades da árvore, sendo usada, portanto, para fins diagnósticos.

Observa-se esse mesmo procedimento quando, na descrição dos “transtornos que têm primeiras evidências na infância ou na adolescência”, é proposto que:

As crianças geralmente têm problemas no desenvolvimento que não são incluídos nas categorias específicas de diagnóstico do DSM-3, como atividade sexual precoce e comportamento agressivo. Nesses casos, pode ser utilizado um diagnóstico de Transtorno Mental Não Especificado.

(APA, 1980American Psychological Association (1980). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders: DSM-3 (3rd ed.). Washington, DC: American Psychiatric Association. , p. 36).

Ou seja, mesmo se a criança não apresentar sinais e sintomas incluídos nos critérios diagnósticos dos “transtornos da primeira infância, infância e adolescência”, ao manifestar “comportamento agressivo”, ela pode ser concebida como portadora de “transtorno mental não especificado”. Além disso, o DSM-3 indica por códigos certas condições que não são consideradas como transtornos mentais, mas que “merecem atenção ou tratamento” pelo clínico. O “comportamento agressivo”, com efeito, constitui-se como uma dessas condições. Vê-se, portanto, que no projeto diagnóstico da terceira edição do DSM realiza-se por diferentes vias o mapeamento das formas de manifestação da “criança agressiva”. O signo da “agressividade”, nesse caso, determina várias hipóteses diagnósticas, inclusive aquelas não previstas no manual, e que se tornam objeto de investigação.

É interessante notar ainda que é precisamente quando a psicanálise sai de cena do sistema diagnóstico do DSM e a psicopatologia infantil ganha corpo, adquirindo um tratamento específico, que o significante “comportamento agressivo” é veementemente incluído. Vale dizer que, em todas suas ocorrências, em nenhum momento o termo é de fato definido por meio de uma designação precisa ou de uma descrição pormenorizada. O significante “agressivo” constitui apenas um índice de manifestação da presença de uma modalidade de comportamento que tanto a criança quanto o adulto podem apresentar. Christian Dunker ( 2014 Dunker, C. I. L. (2014). Questões entre a psicanálise e o DSM. Jornal de Psicanálise, 47(87), 79-107. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352014000200006&lng=pt&tlng=pt .
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), em sua análise do DSM, afirma que “há uma espécie de política envolvida nos processos que tornam uma dada forma de sofrer mais visível e mais bem reconhecida em uma dada época do que em outras”. Ora, se considerarmos essa proposição, podemos nos perguntar: o que a visibilidade da criança e, sobretudo e mais precisamente, do comportamento agressivo da criança, a partir do DSM-3, pode nos indicar a respeito de uma política da classificação diagnóstica, veiculada e sustentada por meio desse manual? Ou, para dizer de outro modo, que lugar político pode ter a dita “agressividade infantil” no DSM, uma vez que a partir de sua terceira edição essa modalidade diagnóstica, que não pode deixar de ser identificada na clínica como uma forma de sofrimento, adquire um espaço tão importante na determinação dos transtornos mentais da infância?

O lugar político da agressividade infantil no DSM

Conforme nos aponta Sandra Caponi ( 2016Caponi, S. (2016). Vigiar e medicar: o DSM-V e os transtornos ubuescos na infância. In S. Caponi, M. F. Vásquez-Valencia, & M. Verdi (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp. 47-60). São Paulo, SP: LiberArs. ), a especificidade do grupo destinado ao diagnóstico de transtornos mentais na infância começa a se apagar nos 14 anos que separam a terceira da quarta edição do DSM. A quarta edição do manual mantém uma seção específica destinada à infância, mas ela modifica um detalhe importante em sua designação ao referir-se aos “transtornos geralmente diagnosticados na primeira infância, infância ou adolescência” (APA, 1994American Psychological Association (1994). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders: DSM-4 (4th ed.). Washington, DC: American Psychiatric Association. , p. 35, grifo nosso). Tais transtornos, com efeito, não serão mais tratados no DSM como pertencendo exclusivamente às crianças ou adolescentes, isto é, fazendo-se presente apenas nessas faixas etárias, mas terão o seu início na infância ou na adolescência. No que diz respeito à agressividade, os diagnósticos em que o “comportamento agressivo” teria uma função predominante serão situados não mais entre os grupos “comportamental” e “emocional”, mas na zona de “déficit de atenção e transtornos de comportamento disruptivos”, assumindo a forma assim de “transtorno do déficit de atenção e/ou hiperatividade” (TDAH), “transtorno de conduta” ou “transtorno opositor-desafiador”, este último caracterizado pela adição do significante “desafiador” em sua nomenclatura.

Igualmente, inicia-se no DSM-4 uma pesquisa intergeracional em relação ao diagnóstico para determinar “fatores etiológicos e padrão familiar” relativos à doença. Isto é, baseando-se em estudos que sugerem uma articulação entre a prevalência de transtornos mentais em crianças e a presença de signos indicativos de psicopatologia nos pais e outros antecedentes, identifica-se a necessidade de o clínico atentar para fatores familiares de comorbidade da doença. Ora, é como se no interior de uma mesma categoria diagnóstica atribuída a um indivíduo em particular, seja ele adulto ou criança, fosse possível identificar traços de sua transmissibilidade a partir de condições intergeracionais determinantes. No entanto, essa busca genealógica da incidência de um dado transtorno mental, por assim dizer, não tem por consequência identificar fatores eventualmente traumáticos na história de vida dos indivíduos. Ao contrário, não é tanto a história individual e sua relação com o meio aquilo que importa nessa etiologia da doença, mas fatores biológicos e estatísticos que determinariam a formação de uma patologia, que desconhece a subjetividade. Nesses termos, o projeto do DSM parece sustentar um esvaziamento do sujeito em relação ao diagnóstico, operando por procedimentos que recusam a participação daquele nos processos de adoecimento. Como supõe Elizabeth Roudinesco ( 2000Roudinesco, E. (2000). Por que a psicanálise?. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), desde sua terceira edição, o DSM caminhou “sempre no sentido de um abandono radical da síntese efetuada pela psiquiatria dinâmica. Calcado no esquema signo-diagnóstico-tratamento, ele acabou eliminando de suas classificações a própria subjetividade” (p. 16). Assim, a pretensa objetividade do manual, com o projeto de sistematização cada vez mais capilar e específico da doença mental, não resultou na inclusão respectiva da subjetividade como elemento indispensável para toda hipótese diagnóstica. A expressão de sofrimento psíquico na clínica como resposta subjetiva a um dado estado de coisas não seria compatível com a determinação dos signos da doença, o estabelecimento do diagnóstico e a determinação das formas de tratamento.

Para retornar ao nosso tema, Birman ( 2014Birman, J. (2014). Drogas, performance e psiquiatrização na contemporaneidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 17(spe), 23-37. doi: 10.1590/S1516-14982014000300003
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, p. 32) nos lembra que a agressividade não pode ser pensada no campo estrito do comportamento, já que, como nos indica Lacan ( 1966aLacan, J. (1966a). L’agressivité en psychanalyse. In Écrits (pp. 101-123). Paris, France: Seuil. , p. 121), ela seria efeito do não reconhecimento da legitimidade das demandas do sujeito. O esvaziamento da dimensão do sujeito que identificamos no DSM, em vez de contribuir para o melhor discernimento daquilo que vem a caracterizar a “agressividade” como signo presente na infância ou na adolescência de transtornos com incidência na vida adulta, ou ainda como fator diagnóstico intergeracional, corrobora para o apagamento da escuta das demandas subjetivas na clínica, visto o desinteresse que se tem em relação à sua participação na origem da doença. A identificação da presença ou da ausência de “agressividade” e a forma como essa constatação será incluída num determinado sistema de classificação diagnóstica não acolhem a demanda do sujeito de se fazer reconhecer na especificidade de seu desejo, nem solicitam a implicação desse sujeito num eventual projeto terapêutico. Como propõe Sauret ( 2017Sauret, M.-J. (2017). La bataille politique de l’enfant. Toulouse, France: ERES. , p. 56), “a resposta dada pela ciência à criança (‘você é isso ou aquilo’, ‘você tem isso ou aquilo’) não comporta nenhum desejo”. Trata-se, portanto, da redução do sujeito a determinações biopsicossociais que não reconhecem as demandas subjetivas, de modo que essas últimas, pelo contrário, só podem se manifestar sob a forma de sintomas. Em relação a eles, a ciência identifica signos de transtornos mentais, definindo-os, no caso da agressividade, como passagens ao ato, violência, agitação, hiperatividade e outras formas de disfuncionamento.

Foi finalmente com a consolidação da quinta edição do DSM em 2013 que a especificidade da zona diagnóstica infantil, já em dissolução na quarta edição, adquiriu seu formato definitivo. Na quinta edição, instituiu-se para o diagnóstico uma linha de continuidade patológica entre a infância, a adolescência e a vida adulta numa perspectiva de desenvolvimento (APA, 2013American Psychological Association (2013). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders: DSM-5 (5th ed.). Washington, DC: American Psychiatric Association. ). Ora, conforme aponta Caponi ( 2016Caponi, S. (2016). Vigiar e medicar: o DSM-V e os transtornos ubuescos na infância. In S. Caponi, M. F. Vásquez-Valencia, & M. Verdi (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp. 47-60). São Paulo, SP: LiberArs. , p. 32): “se os impulsos agressivos antes tolerados, se as condutas indesejadas que faziam parte do universo infantil, ingressaram ao campo da psiquiatria, isso ocorreu porque esses comportamentos se descreveram como indicadores de riscos para doenças mentais graves na vida adulta”. De fato, como assinala Foucault ( 2001Foucault, M. (2001). Les anormaux: Cours au Collège de France (1974-1975). Paris, France: EHESS, Gallimard, Seuil. , p. 212-218), foi a partir do momento em que a psiquiatria investiu a infância como fase específica da vida individual que paralelamente ela pôde identificar na vida adulta formas patológicas de manutenção do infantil. Ora, pela definição de uma continuidade histórica entre a infância e a vida adulta se tornou possível observar vestígios da criança no adulto, de forma que o infantil em psicopatologia caracterizaria justamente modalidades de fixação, bloqueio ou inibição que impediriam o desenvolvimento do indivíduo rumo ao seu estado de acabamento e amadurecimento característico do adulto.

No entanto, se essa utilização da história de vida que retoma a infância para explicar o diagnóstico no adulto já existia na medicina da alienação mental e na psiquiatria clássica do século XIX, ela teria sido retomada no século XX pelo discurso da psicopatologia de maneira inteiramente nova. Pois, enquanto no século XIX, a identificação da loucura no adulto definia-se em função de sua explicação na infância, implicando o reconhecimento da condição infantil na etiologia da doença e, portanto, os seus efeitos de incriminação – nesses termos, se o indivíduo portava na infância aquilo que é hoje, é porque é culpado –, na psiquiatria do século XX, a retomada da história individual para explicar a doença na atualidade terá por função desculpabilizar o sujeito (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). Les anormaux: Cours au Collège de France (1974-1975). Paris, France: EHESS, Gallimard, Seuil. , pp. 212–213). Assim, o investimento da infância pela psiquiatria não teve por função incriminar o sujeito pelo lugar determinante da infância na formação da doença, mas, ao contrário, ele o desresponsabilizou. Ao incluir a etiologia do transtorno mental num sistema de classificação de doenças determinado por uma história que ultrapassa o indivíduo, esse último não tem participação em sua formação. Por essa via, a criança se tornou peça-chave no funcionamento dessa racionalidade diagnóstica, pois seja culpabilizando o sujeito, seja o desresponsabilizando, foi sempre pela infância e por sua permanência na fase adulta que se identificou as condições de possibilidade da doença e as formas de sua determinação na história do doente.

Por isso, para Foucault, a infância, além de se tornar objeto de investimento da psiquiatria pela psicopatologia, se constituiu como condição de possibilidade da generalização da psiquiatria como ciência das condutas normais e anormais. A psiquiatrização crescente da infância, tal como observamos, estaria relacionada com aquilo que Foucault ( 2004aFoucault, M. (2004a). Sécurité, territoire, population: Cours au Collège de France (1977-1978). Paris, France: EHESS, Gallimard, Seuil. , pp. 120–123) definiu como estratégia securitária. Ou seja, ao identificar na criança a virtualidade de toda condição patológica futura, antecipar e intervir em seu desenvolvimento antes que aquilo que aparece apenas como traço ou signo potencial de doença, disfuncionalidade individual ou do ambiente, se torne, de fato, um transtorno na vida adulta, a psiquiatria participa ativamente do projeto político de defesa da sociedade. Pois, assim sendo, ela não apenas contribui para a higienização do corpo social, por meio de processos de medicalização das populações, mas intervém nas condições de transmissibilidade da doença pela hereditariedade. Seria finalmente sob esse aspecto que haveria um ponto de cruzamento histórico importante entre as formas de racismo do século XX e o desenvolvimento das hipóteses diagnósticas intergeracionais, o qual teria como resultante a constituição de práticas de eugenismo na modernidade (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). Les anormaux: Cours au Collège de France (1974-1975). Paris, France: EHESS, Gallimard, Seuil. , pp. 224–225).

Outrossim, além do aspecto evidentemente securitário dessa abordagem, uma vez que a continuidade entre a infância e a vida adulta permitiria a participação da psiquiatria no momento de formação da doença, isto é, ao aparecerem seus signos mais incipientes, Birman ( 2014Birman, J. (2014). Drogas, performance e psiquiatrização na contemporaneidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 17(spe), 23-37. doi: 10.1590/S1516-14982014000300003
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) assinala uma correlação significativa entre tal movimento de psiquiatrização da infância, e por conseguinte, das individualidades, e a tentativa de dar conta do mal-estar na atualidade, provocado pelos imperativos de performance, de consumo e de seus efeitos de precarização, participantes dos modos de subjetivação neoliberal. Com efeito, com a constituição do neoliberalismo não apenas como modalidade de gestão da economia pelo Estado, mas como forma de racionalidade governamental, no domínio da subjetividade foi possível entrever paralelamente a formação de um homo œconomicus: cada sujeito, entendido como empresário de si mesmo, seria regulado em função das práticas de mercado, atingido por todos os reguladores de valor que definem as relações entre mercadoria e consumo (Foucault, 2004bFoucault, M. (2004b). Naissance de la biopolitique: Cours au Collège de France (1978-1979). Paris, France: Gallimard, Seuil. , pp. 231-232, 236). Essas novas modalidades de ser do sujeito e de determinação das estruturas políticas pela economia inaugurariam aquilo que Bourdieu ( 2000Bourdieu, P. (2000). Les structures sociales de l’économie. Paris, France: Seuil. , pp. 319-321) chamou de “antropologia econômica”.

Por um lado, sob esse novo sistema de governamentalidade, as subjetividades foram concebidas no horizonte da “sociedade do espetáculo”, definida por Debord ( 1992Debord, G. (1992). La société du spectacle. Paris, France: Gallimard. , p. 17), em que a performance passa a determinar a categoria do ser pela forma do aparecer. E, nesse sentido, será sempre pela via do aparecer que as subjetividades passarão a ordenar suas performances, por meio daquilo que Debord identifica no contexto do teatro pela ordem dos simulacros. Por outro lado, considerando o neoliberalismo político, essa dita espetacularização do ser passou a ser definida num horizonte de consumo em que os modos de aparecimento dos sujeitos são orientados em função da forma da mercadoria, sendo a precariedade a marca das subjetividades que não se inscrevem nesse jogo de oferta e procura. Considerando esse panorama, Castel ( 2011Castel, R. (2011). La gestion des risques: de l’antipsychiatrie à l’après-psychanalyse. Paris, France: Minuit. , pp. 142-147) pôde enunciar a constituição histórica de uma sociedade pós-psicanalítica marcada pela “gestão de riscos”, isto é, pela existência de formas de subjetivação caracterizadas pela submissão do acaso e do imprevisível à ordem do cálculo, em nome da produtividade e da rentabilidade da economia.

É nesse contexto e como tentativa de dar conta das exigências de performance que a psiquiatrização da agressividade na infância permite uma forma de regulação do mal-estar, como identificou Birman ( 2014Birman, J. (2014). Drogas, performance e psiquiatrização na contemporaneidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 17(spe), 23-37. doi: 10.1590/S1516-14982014000300003
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), na medida em que impede que as formas de subjetivação do mal-estar se revelem pela via da violência. No entanto, como indicou Foucault ( 2003Foucault, M. (2003). Le pouvoir psychiatrique: Cours au Collège de France (1973-1974). Paris, France: Gallimard, Seuil. , p. 56), o aparecimento dessa série de sistemas disciplinares suplementares cuja progressão se estende ao infinito (a escola, o exército, a fábrica, a prisão, a polícia) sempre teve por objetivo recuperar os indivíduos indisciplinados, inscrevendo-os novamente nesses mesmos dispositivos. Seriam, enfim, os indivíduos que não se sujeitam a essas instituições aqueles a se tornarem objetos do poder psiquiátrico como forma de disciplinarização dos corpos e de investimento biopolítico. Pois se, por um lado, seria possível observar um movimento perpétuo das instituições em submeter toda e qualquer anomalia ao progresso da norma, com o objetivo de, em resposta ao mal-estar, evitar a manifestação da agressividade, por outro lado, haveria sempre um “a mais” das subjetividades que permaneceria irredutível a toda normalização das condutas. Como indicou Canguilhem ( 1975Canguilhem, G. (1975). Le normal et le pathologique. Paris, France: PUF. , pp. 120-121), a anomalia, nesse sentido, não poderia significar a presença imediata de um quadro patológico, mas a existência de outras normas possíveis inerentes à variabilidade da vida. Assim, essa recusa de toda vida face à sua inscrição na norma, essa “anomia” identificada por Foucault ( 2003Foucault, M. (2003). Le pouvoir psychiatrique: Cours au Collège de France (1973-1974). Paris, France: Gallimard, Seuil. , p. 56), manifesta por um distanciamento a todo tempo relançado das formas de subjetivação em relação aos modos de regulação dos mecanismos de poder, poderia enfim ser concebida como uma forma de reinserção do sujeito foracluído da ciência a que Lacan ( 1966bLacan, J. (1966b). La science et la vérité. In Écrits (pp. 855-877). Paris, France: Seuil. , pp. 863-864) fez referência, que, por sua insubmissão à norma, encontra na agressividade uma via de expressão.

Nos termos de Birman ( 2014Birman, J. (2014). Drogas, performance e psiquiatrização na contemporaneidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 17(spe), 23-37. doi: 10.1590/S1516-14982014000300003
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), esse processo de psiquiatrização corresponderia a uma forma de regulação do mal-estar a fim de “impedir que este seja transformado em agressividade e em violência pelos sujeitos, na medida em que as instâncias institucionais de poder não reconhecem a legitimidade das demandas políticas daqueles segmentos sociais, destituídos que foram de quase tudo” (p. 32). Como forma de regulação do mal-estar, essa produção discursiva em torno da agressividade ocorre cada vez mais cedo na história dos indivíduos e, ao mesmo tempo que evita a expressão da agressividade, ou seja, a expressão de um sujeito perante o não reconhecimento de sua demanda, transforma a ideia da criança agressiva em um signo de risco de uma suposta delinquência. Dessa maneira, a inclusão da agressividade infantil como psicopatologia no caso das hipóteses diagnósticas presentes no DSM parece se constituir como uma tentativa de produzir na clínica um corpo dócil e performático que, evitando a dimensão da subjetividade, relança o tempo todo aquilo que fora esvaziado desse lugar para esse campo político de resistência, em que a “anomia” não se reduz às formas disciplinares de governamentalidade e às exigências performáticas da sociedade neoliberal.

Considerações finais

Esta pesquisa procurou identificar a forma pela qual os significantes “agressividade infantil”, “criança agressiva” e “comportamento agressivo da criança” apareceram na genealogia do DSM. A nossa análise revela, assim, que a “capilarização” de seus usos promoveu um aumento discursivo em psicopatologia sobre a agressividade da criança, pretendendo fazer da “agressividade infantil” um signo de risco de doenças mentais na idade adulta e, ao mesmo tempo, regulando a agressividade propriamente dita pela via do diagnóstico e do tratamento, na contramão do reconhecimento das demandas das subjetividades. Contudo, o que a disseminação do termo “agressivo” a partir do DSM-3 nos apontou é que a suposta regulação das condutas agressivas na infância relançaria, por fim, a agressividade como expressão subjetiva do mal-estar. A dimensão clínica do diagnóstico, portanto, encontraria um lugar privilegiado no campo político do neoliberalismo, na medida em que estaria implicada na governamentalidade dos sujeitos pela distinção médica entre normal e anormal. Nesse contexto, como forma de retorno da dimensão da subjetividade, a agressividade apareceria de maneira ainda mais persistente, pois associada àquilo que nos sujeitos resiste a tais procedimentos de poder.

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    » https://doi.org/10.31887/DCNS.2015.17.1/eshorter
  • 1
    Este artigo é resultado da pesquisa desenvolvida na tese “Os impasses da agressividade na infância: dos discursos sobre a criança ao desejo parental”, financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e defendida no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro e no Centre de Recherches Psychanalyse, Médecine et Société da Université Paris Cité. Ele é uma versão modificada de “A agressividade infantil no DSM: os diagnósticos e os seus efeitos subjetivos”, publicado na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental de 2023, volume 26.
  • 2
    A criança (ou o adolescente) que apresenta esse transtorno intermediário é “caracterizada por desobediência hostil ou dissimulada, brigas, agressividade física e verbal, vingança e destrutividade” (APA, 1968American Psychological Association (1968). Diagnostic and Statistical Manual, Mental Disorders: DSM-2 (2nd ed.). Washington, DC: American Psychiatric Association. , p. 50).
  • 3
    Uma busca pela palavra no manual sugere 14 vezes ocorrências de “agressivo” no DSM-2, contra 117 vezes no DSM-3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2021
  • Aceito
    14 Nov 2023
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