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O luto da ciência ideal

The mourning of ideal science

Le deuil de la science idéale

El duelo de la ciencia ideal

Resumo

A ciência moderna tem sido objeto de idealizações desde sua emergência, as quais parecem perdurar mesmo após revisões e críticas presentes na filosofia da ciência contemporânea. Isso indica que parte das tentativas de readequação da imagem que se constrói sobre a ciência - e dos discursos que circulam sobre ela - não parece ter efeito. Propomos, neste artigo, que essas dificuldades resultam, em parte, da complexidade em lidar com os investimentos libidinais dos processos de idealização. Isso é indicado com base na teoria psicanalítica e na filosofia da ciência, sendo seguido por um trabalho conceitual sobre os mecanismos atuantes em processos identificatórios e nos possíveis efeitos da perda de um ideal, sustentando a necessidade de realização de um luto. Assim, afirmamos que desidealizar a ciência é, sobretudo, uma maneira de fortalecê-la.

Palavras-chave:
luto; ciência; psicanálise; ideal

Abstract

Modern science has been object of idealizations since its appearance, which persist even after revisions and criticisms present in the contemporary philosophy of science. This indicates that many attempts of readjusting the image constructed about science - and the discourses about it - seem to have no effect. Thus, we propose in this article that these difficulties result, in part, from the complexity of dealing with libidinal investments of the idealization processes. This is indicated based on psychoanalytic theory and philosophy of science, being followed by a conceptual work on the mechanisms that act in identification processes and on the possible effects of the loss of an ideal, sustaining the need for mourning. Therefore, we affirm that “de-idealizing” science is, above all, a way to strengthen it.

Keywords:
mourning; science; psychoanalysis; ideal

Résumé

La science moderne a fait l’objet d’idéalisations depuis son émergence, qui semblent perdurer même après les révisions et les critiques présentes dans la philosophie de la science contemporaine. Cela indique qu’une partie des tentatives de réajustement de l’image que l’on se fait de la science - et des discours qui circulent à son sujet - ne semblent pas avoir d’effet. Par conséquent, nous proposons dans cet article que ces difficultés résultent, en partie, de la complexité à traiter les investissements libidinaux des processus d’idéalisation. Ceci s’appuie sur la théorie psychanalytique et la philosophie des sciences, suivi d’un travail conceptuel sur les mécanismes agissant dans les processus d’identification et sur les effets possibles de la perte d’un idéal, soutenant le besoin de deuil. Ainsi, nous affirmons que la désidéalisation de la science est, avant tout, une manière de la renforcer.

Mots-clés :
deuil; science; psychanalyse; idéal

Resumen

Desde su surgimiento, la ciencia moderna viene siendo objeto de idealizaciones, las cuales parecen persistir, incluso, después de revisiones y críticas presentes en la filosofía de la ciencia contemporánea. Esto indica que parte de los intentos de reajustar la imagen que se construye sobre la ciencia - y los discursos sobre ella - parecen no surtir efecto. Este artículo plantea que estas dificultades provienen, en parte, de la complejidad de lidiar con las inversiones libidinales de los procesos de idealización. Esto se fundamenta en la teoría psicoanalítica y la filosofía de la ciencia, y sigue de un trabajo conceptual sobre los mecanismos que actúan en los procesos de identificación y sobre los posibles efectos de la pérdida de un ideal, que sostiene la necesidad del duelo. Por tanto, se defiende que desidealizar la ciencia es una forma de fortalecerla.

Palabras clave:
duelo; ciencia; psicoanálisis; ideal

Num momento em que a produção de conhecimento científico ocupa, diariamente, capas de jornais e portais de notícias, nota-se que o modo como as discussões são realizadas carrega certo tom defensivo. Tais comunicações não se limitam a apresentar resultados obtidos, mas insistem também no valor do conhecimento produzido cientificamente, algo que talvez causaria surpresa em outro momento histórico. Entretanto, o cenário atual indica que, além de apresentar estudos e seus resultados, é necessário reafirmar a legitimidade do modo como foram produzidos, especialmente em assuntos ligados a políticas públicas que demandam a participação da população. Isso indica que, junto a discussões sobre a pertinência de modos variados de produção de conhecimento - campo usualmente restrito a filósofos da ciência e epistemólogos -, deve-se igualmente considerar o modo como tais conhecimentos são recebidos e assimilados. O objetivo deste artigo é discutir a dimensão afetiva que permeia tanto a produção quanto a recepção do conhecimento, um elemento central para compreender como o conhecimento científico tem circulado em nossa sociedade.

Em linhas gerais, pode-se dizer que embora diversas tentativas de readequação de expectativas em relação à imagem da ciência tenham sido realizadas (Latour, 2012Latour, B. (2012). Enquête sur les modes d’existence: une anthropologie des modernes. Paris: La Découverte.; Stengers, 1993/2000Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993)) - no sentido de instaurar uma imagem menos absoluta ou infalível -, elas parecem não ter tido êxito. Acepções que inflacionam o poder da ciência muitas vezes gozam de grande circulação social, apesar dos esforços de construção de uma imagem mais complexa e menos ingênua do que seria o fazer científico. Ademais, pode-se reconhecer respostas agressivas a essas próprias tentativas de modificação de expectativas (Kofman, 2018Kofman, A. (2018, 21 de outubro). Bruno Latour, the post-truth philosopher, mounts a defense of science. The New York Times Magazine. Retrieved from https://www.nytimes.com/2018/10/25/magazine/bruno-latour-post-truth-philosopher-science.html
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), o que ressalta a importância da dimensão afetiva sobre a qual iremos discorrer. Trata-se, sem dúvida, de apenas uma parte de uma questão multicausal, porém de central importância; compreendemos que tal componente afetivo seja relevante para a compreensão de fenômenos atuais.

Tal dimensão afetiva recai, especificamente, na idealização do conhecimento científico e seus efeitos. Tais efeitos são relevantes tanto enquanto o ideal está operante quanto nos casos em que o ideal é perdido. Fazendo uso da teoria psicanalítica, apresentaremos a idealização como um processo que resulta num tipo de relação acrítica com o objeto. Será indicado que esse processo de idealização pode ser articulado à própria emergência e estabilização da ciência moderna, a qual teria sido muitas vezes apresentada enquanto infalível ou absoluta. Em seguida, será indicado que, mesmo sendo tal concepção alvo de tentativas de desconstrução por diversos autores, ainda assim perdura um ideal de autonomia do fazer científico em relação à dimensão política, que acabaria, muitas vezes, por restaurar certas expectativas de pureza ou infalibilidade. Tal ideia será desenvolvida tendo como referência principal a filósofa Isabelle Stengers, indicando a necessidade de considerar a política no fazer científico. Finalmente, apresentaremos a necessidade de realização de um processo de luto desse ideal de autonomia do fazer científico, de modo que o componente afetivo possa ser elaborado.

O enamoramento e o ideal

Afirmamos que algumas tentativas de modificação das expectativas sobre a ciência fracassaram, porém, essa afirmação deve ser tomada com cuidado. Não significa que a ciência seja menos efetiva do que costumava ser, nem que estejamos apontando um problema ligado ao modo como se produz conhecimento. Trata-se de reconhecer que, por muito tempo, a ciência foi idealizada e algumas das tentativas de desidealizá-la não funcionaram como esperado. Como aponta Bruno Latour (2012Latour, B. (2012). Enquête sur les modes d’existence: une anthropologie des modernes. Paris: La Découverte.), a imagem social da ciência é usualmente aquela de algo infalível, ou então de um processo puro, que goza de absoluta independência em relação a questões não científicas. O próprio Latour se engajou na desconstrução desses ideais, sendo por vezes mal interpretado ou mesmo culpabilizado pela emergência de posições negacionistas (Kofman, 2018Kofman, A. (2018, 21 de outubro). Bruno Latour, the post-truth philosopher, mounts a defense of science. The New York Times Magazine. Retrieved from https://www.nytimes.com/2018/10/25/magazine/bruno-latour-post-truth-philosopher-science.html
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). Frente a essas acusações, ele afirma que não fez nada mais do que explicitar o fato de que a ciência estaria sendo colocada numa posição insustentável, a qual estamos, neste artigo, nomeando como “ideal”. Seria justamente a idealização que dificultaria tal readequação de expectativas. Ademais, a própria acusação descabida contra Latour indica não somente a necessidade de compreensão do que estaria em jogo nessa idealização como também os diferentes efeitos da queda desses ideais.

Este artigo visa, portanto, abordar criticamente não o fazer científico, mas o modo como lidamos com a ideia do que é a ciência. Tal abordagem consiste em refletir para além da práxis científica em si, considerando a função que a ciência - e seus ideais - exerce enquanto uma instituição dotada de enorme reconhecimento social, ocupando um lugar na organização da coletividade e sendo um objeto relevante em processos psíquicos. Em relação a esses últimos - nos quais recai nosso interesse -, tomar a ciência enquanto algo que pode ser idealizado indica a presença de componentes afetivos.

Para compreender o afeto presente na idealização, propomos considerar dois processos descritos por Freud: a sublimação e o enamoramento. O primeiro, mote de discussões em diversos momentos da obra do psicanalista, pode ser definido como um processo de deserotização, ou seja, frente à perda iminente de um objeto amoroso, a relação com o objeto pode ser modificada de modo que ele não seja perdido totalmente (Freud, 1923/2011bFreud, S. (2011b). O eu e o Id. In Obras Completas (P. C. Souza, trad., Vol. 16, pp. 9-64). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1923)). Uma das possibilidades é a retirada de parte do componente sexual presente no investimento, mas preservando seu caráter amoroso. Isso pode resultar, por exemplo, na internalização do objeto enquanto um modelo identificatório, o que permite que continue sendo investido pulsionalmente e, de alguma maneira, contornando a perda que se colocava como iminente. Além disso, tais objetos podem ser substituídos, de modo que um objeto que nunca fora originalmente alvo de investimentos sexuais diretos pode ser investido amorosamente e ter grande importância para o indivíduo.

Naquilo que Freud (1921/2011a)Freud, S. (2011a). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (S. Tellaroli, trad., Vol. 15, pp. 9-100). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921) descreve como “enamoramento”, o objeto investido amorosamente é idealizado de forma a “substituir um ideal não alcançado do próprio Eu. Ele é amado pelas perfeições a que o indivíduo aspirou para o próprio Eu, e que através desse rodeio procura obter, para satisfação de seu narcisismo” (Freud, 1921/2011aFreud, S. (2011a). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (S. Tellaroli, trad., Vol. 15, pp. 9-100). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921), p. 55). Trata-se, portanto, de uma impossibilidade de realização pulsional originalmente direcionada ao Eu que, num segundo momento, é deslocada a outro objeto. O objeto em questão já gozaria de algum tipo de investimento, inclusive podendo ser um modelo identificatório; a partir daí, o objeto é idealizado de modo a suprir isso que não teria sido alcançado na investida direcionada ao próprio Eu, dando destino a uma modificação de investimento nos moldes sublimatórios indicados acima, mas também restaurando as características originais do investimento ao idealizar o objeto enquanto portador das características não encontradas no objeto original - o próprio Eu. Aliás, o objeto investido pode ser colocado no lugar de ideal do Eu, produzindo modificações importantes na função da consciência moral. Essa função é descrita por Freud como responsável pela internalização das exigências do meio e pela produção de sanções e reprimendas sempre que o Eu se mostra inadequado em relação àquilo que dele é esperado. Entretanto, quando um objeto de enamoramento é colocado nesse lugar, há uma modificação em relação àquilo que é ou não aceitável, podendo até mesmo prejudicar o próprio juízo de realidade do indivíduo:

Cala a crítica exercida por essa instância; tudo o que o objeto faz e pede é justo e irrepreensível. A consciência não se aplica a nada que acontece a favor do objeto; na cegueira do amor, o indivíduo pode se tornar, sem remorsos, um criminoso. Toda a situação pode ser resumida cabalmente numa fórmula: O objeto se colocou no lugar do ideal do Eu. (Freud, 1921/2011aFreud, S. (2011a). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (S. Tellaroli, trad., Vol. 15, pp. 9-100). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921), p. 56)

Vemos, portanto, que o processo de idealização consiste numa resposta à perda de um objeto ou impossibilidade de investimento nele, e à deformação de um objeto substituto. Mais especificamente, trata-se de uma impossibilidade de realização libidinal narcísica que se transmuta na construção idealizada de um objeto que apresentaria aquilo que foi impossibilitado de ser realizado narcisicamente. Assim, o objeto idealizado serviria para realizar aquilo que o Eu não foi capaz de realizar com si mesmo. Como se um objeto dotado de total independência, ou então do poder de dizer a verdade absoluta sobre todos os fenômenos do mundo, fosse eleito como uma forma de um indivíduo lidar com sua própria incapacidade de realizar tais feitos. Mais especificamente, pode-se recolher em Freud (1917/2010)Freud, S. (2010). Uma dificuldade da psicanálise. In Obras completas (P. C. Souza, trad., Vol. 14, pp. 179-187). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917) a ideia de que características como essas estariam a serviço da evitação de uma sensação de desamparo. Embora indicados de maneira caricata, esses exemplos nos servem para voltar à questão da ciência e à possibilidade de que seja idealizada. A partir disso, abordaremos dois ideais que nos parecem centrais na história da ciência: o ideal de verdade absoluta e o ideal de autonomia total.

A ciência e o ideal

A primeira idealização em questão pode ser compreendida como correlata à emergência da ciência moderna. Haveria, segundo Isabelle Stengers (1993/2000)Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993), um ideal de que o conhecimento produzido cientificamente seria verdadeiro e absoluto, um conhecimento que expressaria as coisas como realmente são. Nessa construção, a linguagem matemática seria privilegiada, numa associação entre matemática e realidade que Stengers reconhece como amplamente presente desde as argumentações de Galileu (Stengers, 1993/2000Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993)). Assim, resultados de estudos e experimentos científicos deveriam ser tomados enquanto formas incontestes do verdadeiro. Mas essa acepção não tardaria em gerar desconfiança e, como aponta Ian Hacking (1983/2012a)Hacking, I. (2012). Representar e intervir: tópicos introdutórios de filosofia da ciência natural. Rio de Janeiro, RJ: Eduerj. (Trabalho original publicado em 1983), tal idealização foi abandonada por diversas tradições epistemológicas, incluindo a positivista.

Embora boa parte da filosofia da ciência contemporânea não trabalhe com uma correlação entre conhecimento e verdade absoluta, isso não significa que não se tenha construído algum outro tipo de ideal. Em diversos casos, o que se vê são tentativas de demarcação entre o que é e o que não é ciência, as quais muitas vezes restauraram algum tipo de idealização, mesmo quando ideais de infalibilidade ou do caráter absoluto do conhecimento possam ter sido abandonadas. Segundo Stengers, tais idealizações incluiriam a defesa da unicidade e do caráter progressivo da produção de conhecimento; mas, a principal idealização residiria nas tentativas de sustentação de uma imagem de independência total da ciência enquanto um campo autônomo em relação a questões externas, especialmente em relação à política. Para tanto, a totalidade do fazer científico precisaria ser sustentada somente em bases epistemológicas e metodológicas.

Abordagens críticas à compreensão do fazer científico a partir do estabelecimento de uma racionalidade única e progressiva existem há bastante tempo, mas isso não define que sempre tiveram impacto relevante nas discussões. Há dois eventos que parecem ter intensificado esse debate, estabelecendo o que então viria a ser conhecido como Science Wars (Guerras da ciência). O primeiro é a publicação de A estrutura das revoluções científicas, por Thomas Kuhn (1962/2013)Kuhn, T. (2013). A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, SP: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1962), que introduziu de maneira incontornável a centralidade da história para pensar a filosofia da ciência. Como aponta Hacking (1983/2012a)Hacking, I. (2012). Representar e intervir: tópicos introdutórios de filosofia da ciência natural. Rio de Janeiro, RJ: Eduerj. (Trabalho original publicado em 1983), a proximidade de Kuhn com as ciências naturais e sua circulação no mundo anglo-saxão foram decisivas para que ele tivesse o impacto que seus predecessores não tiveram, por gozar da legitimidade de alguém “de dentro” da comunidade científica.

Em linhas gerais, Kuhn logrou descrever o funcionamento das ciências enquanto um processo não cumulativo, desprovido de uma racionalidade única e atravessado por questões contingentes como a resistência a novas ideias e a pressão exercida por cientistas que ocupam lugares de poder (Kuhn, 1962/2013Kuhn, T. (2013). A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, SP: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1962)). Nesse sentido, deu visibilidade a uma compreensão que toma filosofia e história da ciência enquanto indissociáveis, uma vez que somente o estudo da racionalidade científica em seu caráter epistêmico não seria suficiente para explicar o desenvolvimento da ciência. Abordagem essa influenciada pela obra do filósofo e historiador das ciências Alexandre Koyré, e que teria ganhado maior notoriedade sob a pena de Kuhn (Lacerda Abrahão, 2015Lacerda Abrahão, L. H. (2015). Koyré e a “epistemologia histórica de Kuhn e Feyerabend”. In M. L. Leitão Condé & M. Salomon, Alexandre Koyré: história e filosofia das ciências (pp. 203-235). Belo Horizonte, MG: Traço Fino.). Entretanto, por mais que abandone a pretensão de unicidade ou de normatividade epistemológica própria ao pensamento científico, Kuhn ainda sustentaria uma posição “internalista”, visto que os problemas que produziriam crises e precipitariam a construção de novos paradigmas seriam provenientes da própria comunidade científica1 1 Além de Kuhn, pode-se reconhecer diversos autores que sustentaram teses críticas à definição da ciência a partir de uma racionalidade única e progressiva, como, por exemplo, Gaston Bachlelard com sua noção de “corte epistemológico”. Segundo Stengers (1993/2000), entretanto, tais autores continuaram a apresentar uma crítica que não colocava em xeque a compreensão internalista do fazer científico, isto é, o entendimento de que a pertinência dos fatos científicos teria pouca ou nenhuma relação com fatores externos à comunidade científica. , sem influência de elementos externos (Stengers, 1993/2000Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993)). Desse modo, por mais que critique ideias que supõem um caráter único e racional do fazer científico, não coloca diretamente em questão a ideia de autonomia.

O segundo evento relevante às Science Wars remete ao trabalho do supracitado Bruno Latour, antropólogo e filósofo francês que ficou conhecido por sua crítica ao ideal de autonomia total das ciências (Latour, 1991/2007Latour, B. (2007). Jamais fomos modernos. São Paulo, SP: Editora 34. (Trabalho original publicado em 1991); Latour & Woolgar, 1979/1997Latour, B., & Woolgar, S. (1997). A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos (A. R. Vianna, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará. (Trabalho original publicado em 1979)). Em Vida de laboratório, Latour e Woolgar (1979/1997)Latour, B., & Woolgar, S. (1997). A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos (A. R. Vianna, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará. (Trabalho original publicado em 1979) partem de um estudo antropológico realizado em um laboratório norte-americano para disparar uma discussão sobre a relevância de atravessamentos “não científicos”, indicando que questões externas seriam muito mais relevantes do que se pensa geralmente. Tal publicação causou intensos debates, os quais reverberam até hoje. Como indicado, Latour tem sido o alvo de críticas e acusações recorrentes, que tratam sua obra como responsável pela emergência do fenômeno conhecido como fatos alternativos, uma vez que teria colocado a autoridade da ciência em xeque. Questionado sobre essas acusações, o autor é bastante preciso ao afirmar que aquilo que causou o atual problema de descrença na ciência teria sido justamente a construção de uma imagem da ciência incompatível com sua própria prática (Kofman, 2018Kofman, A. (2018, 21 de outubro). Bruno Latour, the post-truth philosopher, mounts a defense of science. The New York Times Magazine. Retrieved from https://www.nytimes.com/2018/10/25/magazine/bruno-latour-post-truth-philosopher-science.html
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).

Essa imagem de autonomia total, apesar de não depender de uma compreensão na qual a ciência seria infalível, ela ainda instauraria um ideal, sustentado na ideia de que o conhecimento científico seria um produto purificado, totalmente independente de questões externas. Segundo Latour, os fatos alternativos seriam uma consequência desse posicionamento insustentável, e ganhariam tração na impossibilidade de realização de tal promessa. Uma promessa que não se restringiria ao entendimento sobre o que é ou como funciona a ciência (Latour & Woolgar, 1979/1997Latour, B., & Woolgar, S. (1997). A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos (A. R. Vianna, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará. (Trabalho original publicado em 1979)), mas que também nortearia um ideal de modernidade (Latour, 1991/2007Latour, B. (2007). Jamais fomos modernos. São Paulo, SP: Editora 34. (Trabalho original publicado em 1991)).

Entretanto, apresentar esse debate de maneira tão esquemática seria reducionista. Trata-se de uma discussão que envolve diversos aspectos e que não poderia ser realizada neste artigo por conta de sua extensão. Desse modo, daremos destaque a dois aspectos da discussão que tocam diretamente o tema aqui proposto: as explicações de estabilidade e a decidibilidade. Esse caminho permite demonstrar como o fazer científico pode prescindir de uma compreensão idealizada e, ao mesmo tempo, evitar posicionamentos relativistas extremos.

As explicações de estabilidade têm como objeto a pergunta de como é possível explicar a estabilidade do conhecimento produzido, ou seja, o porquê de teorias e procedimentos continuarem sendo aceitos e empregados. Diante dessa questão, Ian Hacking afirma que, mesmo numa posição não unicista e não normativa epistemologicamente, não é possível afirmar que cientistas possam fazer o que bem entenderem com seus objetos: junto aos limites impostos pela comunidade científica, há também a resistência dos próprios objetos de estudo (Hacking, 1999Hacking, I. (1999). Social construction of what? Cambridge: Harvard University Press., 2000Hacking, I. (2000). How inevitable are the results of successful science? Philosophy of Science, 67, S58-S71. doi: 10.1086/392809
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).

Em seu livro, intitulado The social construction of what? (A construção social de quê?), Hacking (1999Hacking, I. (1999). Social construction of what? Cambridge: Harvard University Press.) retrata um modo de crítica relativista que tentaria deslegitimar o conhecimento produzido a partir da revelação de possíveis interesses e compromissos presentes na formulação dos saberes. Por exemplo, como se o conhecimento produzido sobre a eficácia das vacinas contra covid-19 pudesse ser descartado pelo fato de parte dos estudos ter sido realizada por empresas que têm interesses econômicos em jogo. Segundo o autor, esse tipo de crítica radical, nomeada como “desmascaramento”, apresentaria dois pontos de fragilidade: primeiro, na desconsideração de que todo e qualquer conhecimento é produzido de modo inseparável de interesses “impuros”; segundo, na consideração indiferenciada do impacto desses interesses no conhecimento produzido, ou seja, de que esses atravessamentos não acontecem sempre da mesma maneira. Pode-se imaginar que há empresas que efetivamente manipulam dados com o intuito de produzir os resultados esperados, contudo, isso não significa que todo e qualquer estudo realizado por uma empresa com interesses econômicos deva ser descartado pelo simples fato de esses interesses existirem.

Entretanto, tal consideração mais cuidadosa da questão já parte da indicação de que o conhecimento sempre é atravessado por questões “impuras”. Segundo Hacking (2000Hacking, I. (2000). How inevitable are the results of successful science? Philosophy of Science, 67, S58-S71. doi: 10.1086/392809
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), deve-se considerar que sempre há uma dimensão contingente no fazer científico, a qual determina, no limite, a decidibilidade temática. Essa decidibilidade pode ser compreendida enquanto a escolha por uma teoria a despeito de outra, mesmo que ambas sejam igualmente robustas em termos teóricos ou metodológicos. Mais que isso, a decidibilidade também se encontra no fato de que há perguntas que são consideradas pertinentes em um determinado lugar e momento, enquanto outras não o são. Segundo o filósofo, tais atravessamentos extracientíficos existirem não retira nada do valor do conhecimento produzido; apenas indica que este deve ser compreendido enquanto um produto que não responde somente a questões internas da comunidade científica.

Nessa perspectiva, a comunidade científica continua exercendo um papel central, principalmente por realizar discussões que levam à produção e aceitação de consensos sobre os conhecimentos produzidos. Isso não nega que tais consensos respondam, em alguma medida, a aspirações e interesses sociais que excedam a comunidade científica, algo inclusive esperado, uma vez que não é possível realizar uma separação completa entre comunidade científica e a sociedade à qual ela pertence. Isso significa que existem procedimentos, princípios epistemológicos e metodológicos que sejam discutidos e desenvolvidos pela comunidade científica; comunidade essa que pode, inclusive, ter uma agenda de interesses que não acompanhe ou até que entre em conflito com outros setores da sociedade. Entretanto, como bem aponta Stengers (1993/2000)Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993), tais procedimentos próprios à comunidade científica não têm sua decidibilidade explicada somente por questões epistemológicas ou metodológicas, de modo que uma dimensão política pode sempre ser considerada presente. Algo que ressalta o papel da ciência de produzir consensos, e não de revelar verdades absolutas.

Assim, Stengers (2000Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993)) propõe uma explicação para a intensidade do debate levantado por Latour: mesmo que a busca por unidade epistemológica possa não ser algo tão relevante para os cientistas2 2 Stengers afirma que críticas à consistência e unicidade epistemológica e metodológica causaram fortes respostas de filósofos da ciência, e não necessariamente de cientistas. Isso porque fornecer uma explicação suficiente para o sucesso do conhecimento científico seria uma tarefa sobretudo filosófica, enquanto os cientistas estariam mais preocupados em continuar fazendo ciência. Entretanto, como indicado no texto, isso muda de figura quando a possibilidade de autonomia total da ciência é colocada em questão. , a questão da autonomia seria - uma vez que indicaria um estatuto de liberdade e de poder que outorgaria -, em última instância, certo tipo de autoridade conferido a uma prática desinteressada de questões políticas ou econômicas. Nesse sentido, o cientista poderia contornar - ou mesmo se ausentar - de discussões sobre atravessamentos políticos de sua produção; mais que isso, esse desinteresse faria parte da imagem social da ciência, que atribuiria ao cientista a capacidade de decidir sobre o que é ou não um conhecimento válido, mas da maneira mais neutra e objetiva possível: deixando “a própria ciência” falar.

Nesse ponto, pode-se retomar a questão da idealização, questionando-se, agora, não somente sobre aqueles que de alguma maneira são colocados no lugar de ideal, mas também sobre aqueles que o assimilam. A magnitude das respostas que perguntas acerca da autonomia da ciência produziu, e ainda produz - como é relatado por diversos autores (Hacking, 1982Hacking, I. (1982). Language, truth and reason. In M. Hollis & S. Lukes, Rationality and relativism (pp. 48-66). Oxford: Blackwell., 1999Hacking, I. (1999). Social construction of what? Cambridge: Harvard University Press., 1993/2012, 2000Hacking, I. (2000). How inevitable are the results of successful science? Philosophy of Science, 67, S58-S71. doi: 10.1086/392809
https://doi.org/10.1086/392809...
, 2012Hacking, I. (2012). Language, truth and reason 30 years later. Studies in History and Philosophy of Science , 43(4), 599-609. doi: 10.1016/j.shpsa.2012.07.002
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; Latour, 2012Latour, B. (2012). Enquête sur les modes d’existence: une anthropologie des modernes. Paris: La Découverte.; Stengers, 1993/2000Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993)) -, indica não só uma perda de poder implicada nesse processo, mas também algo que se esvai junto ao ideal. É necessário pensar, portanto, por que a ciência seria objeto de investimentos libidinais tão intensos.

A paixão pela ciência

Não é difícil encontrar exemplos de como a aceitação ou não de instituições científicas enquanto produtoras de conhecimento confiável mobiliza afetos. Isso fica claro em momentos de crise, como a pandemia causada pelo novo coronavírus: cientistas são convocados a responder questões amplas e com enorme impacto na vida das pessoas, decidindo sobre sua circulação, seu afastamento de entes queridos, a possibilidade ou não de trabalhar, entre outros. Nessa grande amálgama de posicionamentos mais ou menos embasados, mais ou menos trágicos, mais ousados ou mais conservadores, o significante “ciência” e seus derivados - científico, comprovado, etc. - ganham lugar privilegiado, e exibem uma polissemia de notável amplitude.

Nesse cenário, são de especial interesse as afirmações e negações proferidas - suas aceitações ou não pela comunidade científica - e o modo como o recurso à ciência volta a ter um emprego instrumental com intenções diversificadas. Mais que um modo (ou modos) de produção de conhecimento, a ciência explicita sua potência política num cenário bastante próximo ao indicado nas páginas anteriores.

Por exemplo, a notória reiteração por parte das autoridades de saúde do Governo do Estado de São Paulo, de que a vacina Coronavac apresentava 100% de eficácia para casos graves de covid-19. No site do próprio governo, afirmava-se: “De acordo com o estudo, a vacina do Butantan evita 100% contra casos graves e moderados e 78% contra casos leves” (Governo do Estado de São Paulo, 2021Governo do Estado de São Paulo. (2021). Vacina Já. Recuperado de https://www.vacinaja.sp.gov.br/
https://www.vacinaja.sp.gov.br/...
). Vale lembrar que, após uma primeira apresentação confusa (Biernath, 2021Biernath, A. (2021, 8 de janeiro). CoronaVac: cientistas criticam transparência, mas dizem que vacina será valiosa para conter pandemia no país. BBC. Recuperado de https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55596694
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55...
), os dados publicados indicavam diferentes graus de eficácia em relação à gravidade dos quadros da doença - em torno de 50% de eficácia global, 78% contra casos leves e moderados e 100% contra casos graves. Entretanto, um olhar cuidadoso via que a significância estatística de cada um desses números era diferente: se, em relação à eficácia global e contra casos leves, os dados indicavam uma significância estatística suficiente, isso estava longe de acontecer com aqueles referentes aos casos graves, em que a baixa amostragem não permitia fazer qualquer afirmação consistente (Fioravanti, 2021Fioravanti, C. (2021, 15 de janeiro). CoronaVac atinge eficácia recomendada pela OMS. Revista Fapesp. Recuperado de https://revistapesquisa.fapesp.br/coronavac-atinge-eficacia-recomendada-pela-oms/
https://revistapesquisa.fapesp.br/corona...
). Isso significa que, embora o número de 100% seja entendido como desprovido de valor estatístico, o governo não deixou de afirmar esse dado como algo que deveria ser objeto de confiança por parte do público geral.

Não apontamos isso com o intuito de deslegitimar os dados, muito menos de atacar pesquisas científicas. Ao contrário, os dados consolidados indicam que a vacina em questão deve ser usada do modo mais amplo possível, sustentando uma importante posição contra diretrizes negacionistas. O que interessa, entretanto, é o modo como isso é afirmado, o lugar em que esse conhecimento é colocado. A apresentação de dados consistentes conjuntamente com resultados ainda desprovidos de valor estatístico mostra que há algo que ultrapassa o estudo em si, atuando muito mais num campo retórico habitado por afetos do que como comunicação de estudos científicos.

Pode-se pensar que afirmar 100% de eficácia produz um efeito de arrebatamento, uma sedução de quem é exposto aos dados. Algo que inclui não somente a vacina em questão, mas a própria imagem da ciência enquanto infalível3 3 Nesse sentido, vale lembrar que, para além dos interesses específicos que o Governo do Estado de São Paulo poderia ter numa comunicação como essa - a qual perdurou, pelo menos, até o final de 2021, quando o site foi checado -, há também a participação de pesquisadores do próprio Instituto Butantan, que apresentaram os dados de tal maneira, numa espécie de triunfo. Ressaltamos ainda que, diferentemente do Governo do Estado, os pesquisadores posteriormente apontaram a fragilidade dos dados desprovidos de significância estatística. . Por outro lado, talvez produza uma desconfiança radical da parte de quem compreende a insuficiência de sustentação desses dados a partir dos parâmetros do próprio estudo em que tais dados foram produzidos. Nesse ponto, tentativas de aceitação total e irrestrita podem ter um efeito nocivo, produzindo desconfiança e, eventualmente, recusas.

Como indicado anteriormente, esse tipo de mobilização de uma imagem idealizada de ciência não é privilégio dos dias atuais. Isabelle Stengers (1993/2000)Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993) afirma que um dos traços característicos da ciência é a demarcação entre o que é o conhecimento científico, válido e legítimo, e aquilo que não passaria de ficções. Essa atividade, nomeada pela autora como demarcacionismo, seria um dos principais motores da filosofia da ciência em suas aspirações normativas (Stengers, 1993/2000Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993)). Se a autora não deixa de apontar o fracasso das tentativas de diferenciação entre ciência e não ciência baseadas em epistemologias normativas ou premissas metodológicas, também indica que haveria certo espanto produzido pela ciência, o qual produziria tentativas tão apaixonadas de garantir a diferença entre o conhecimento científico e outras formas de saber. Apesar de discordar das tentativas empreendidas, a filósofa reconhece o que as motiva: a grandiosidade do impacto causado pela emergência da ciência moderna, e que ainda persistiria nos tempos atuais. Diz ela que

Se a epistemologia normativa fracassou na identificação de um critério de demarcação entre ciência e não ciência, é necessário em parte reconhecer que a busca de tal critério poderia afigurar-se justificada. Desde que Galileu constituiu a referência ao que doravante chamamos “ciência moderna” - poder frente ao qual o outro poder, o da Igreja, se deve inclinar - a pergunta “isto é científico?” é a pergunta decisiva, a que atrai as paixões e suscita a invenção, aquela de que depende, aparentemente, a razão de ser das ciências. (Stengers, 2000Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993), p. 86)

Nessa perspectiva, o afeto mobilizado teria um de seus fundamentos nos efeitos que o acontecimento produziu, isto é, uma possibilidade de resistência ao poder estabelecido. Entretanto, essa resposta parece carregar a tiracolo uma necessidade de justificar como tal feito teria sido possível. Ou, mais que isso, uma tendência a preencher novamente o lugar de um poder normativo que teria sido deixado vago pelo enfraquecimento do saber religioso. O que nos leva de volta às idealizações apontadas anteriormente, em que a imagem que se constrói do fazer científico excede suas possibilidades.

Curiosamente, Freud abordara algo semelhante ao tratar de respostas produzidas por tentativas de desconstruções de ideais estabelecidos. O caráter curioso diz respeito ao fato de, nesse caso específico, ele mesmo reforçar um ideal de cientificidade. Trata-se de suas considerações presentes em “Uma dificuldade da psicanálise” (Freud, 1917/2010Freud, S. (2010). Uma dificuldade da psicanálise. In Obras completas (P. C. Souza, trad., Vol. 14, pp. 179-187). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)), texto célebre pela afirmação de que a psicanálise consistiria numa “terceira afronta ao amor-próprio do ser humano” (p. 186). A primeira teria sido com Copérnico, ao deslocar a Terra do centro do universo; a segunda com Darwin, ao deslocar a raça humana do centro da criação; enquanto a terceira, causada pelo próprio Freud, desbancaria o reinado do Eu, o qual já não seria mais “o senhor em sua própria casa” (Freud, 1917/2010Freud, S. (2010). Uma dificuldade da psicanálise. In Obras completas (P. C. Souza, trad., Vol. 14, pp. 179-187). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917), p. 186).

Entretanto, é notório que essas três afrontas não deixem de consolidar, a partir daquilo que negam, a afirmação de um ideal de ciência, uma vez que é ela que se consolida como a autora das três mudanças dolorosas às quais historicamente houve resistência. Mesmo que consistisse numa modificação radical do entendimento do papel da razão, a afronta realizada por Freud ainda é, assim como as outras duas, fruto do conhecimento científico. Ou seja, mesmo reformando a centralidade do Eu na compreensão da psique humana, a racionalidade científica continua num lugar privilegiado, inclusive por ser aquilo que une os três nomes referidos - Copérnico, Darwin e Freud. O exemplo de Freud é oportuno, portanto, por reunir duas facetas presentes em nossa argumentação: (1) ele aponta aos elementos afetivos presentes em idealizações socialmente compartilhadas que servem enquanto organizadores de valores e sentidos, e (2) contribui, performaticamente, para a idealização da qual estamos tratando neste artigo4 4 De fato, pode-se compreender que Freud sustentou um ideal de cientificidade durante boa parte de sua obra. Embora não estivesse completamente alheio ao potencial identificatório de teorias científicas específicas - algo apontado por ele ao falar que a agressividade entre partidários de diferentes teorias poderia se assemelhar àquela encontrada entre uma massa e os elementos estranhos a ela (Freud, 2011a) -, sustentou consistentemente um projeto de cientificidade para a psicanálise que poderia ser considerado ultrapassado atualmente (Askofaré, 2013; Beer, 2017). Fato é que o próprio percurso da psicanálise em seus movimentos de desconstrução de ideais de cientificidade produziu diversas amostras de surpreendente agressividade, de posições defensivas e de fechamento ao diálogo, tanto por parte de psicanalistas quanto de seus críticos. Análises críticas desse percurso podem ser encontradas em Askofaré (2013), Beer (2017) e Beividas (2000), entre outros. . A diferença consiste no fato de que iremos usar o aparato conceitual psicanalítico para analisar a idealização da ciência que descrevemos anteriormente, a mesma que Freud parece partilhar. Esta que, como anunciado, precisa ser enlutada.

O luto do ideal de ciência

A ideia de que o luto é um processo que diz respeito não somente a objetos, mas também a ideais, consta nas linhas iniciais de Luto e melancolia (Freud, 1917/2014Freud, S. (2014). Luto e melancolia (M. Carone, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify. (Trabalho original publicado em 1917)). Isso indica que ideais são investidos libidinalmente, e que a perda de um ideal acarreta uma necessidade de desligamento e religamento libidinal. No referido texto, Freud desdobra amplamente a possibilidade melancólica, a qual seria caracterizada por uma identificação com o objeto perdido que faria o Eu tornar-se alvo de intensas expressões de sadismo e masoquismo moral. A leitura de Freud apresenta um processo em que o Eu se identificaria antes com a perda do objeto do que com o objeto em si, algo efetuado via a agressividade dirigida ao próprio Eu. Como diz o psicanalista, “a sombra do objeto cairia sobre o ego” (Freud, 1917/2012, p. 32).

Por outro lado, a questão da mania - usualmente articulada à melancolia - é pouco explorada pelo autor. Ganha algumas linhas de discussão, mas num tom aparentemente mais favorável em relação ao desferido ao seu tradicional par opositor, sendo aludida enquanto um triunfo em relação àquilo que a melancolia teria fracassado: “Trata-se, nesses estados, de uma influência pela qual um grande dispêndio psíquico, mantido durante muito tempo ou produzido habitualmente, por fim se torna supérfluo, ficando assim disponível para múltiplas aplicações e possibilidades de descarga” (Freud, 1917/2012, p. 36). Essa leve preferência pela mania parece indicar algo que o psicanalista considera um traço essencial de um processo de luto: a possibilidade de reinvestimento libidinal e da existência de processos pulsionais menos restritos ou cristalizados.

O que estaria em jogo não seria somente o desligamento libidinal do objeto perdido, mas a possibilidade de que aquilo que foi liberado possa ser usufruído livremente. Isso, porém, depende da elaboração da perda, ponto em que Freud faz uma ressalva em relação à mania, dado que “nela mais uma vez permanece oculto para o ego o que ele suplantou e sobre o qual ele triunfa” (Freud, 1917/2012, p. 36). Ou seja, o traço comum na mania e na melancolia, para Freud, continua a ser a impossibilidade de elaboração da perda, mesmo que isso possa resultar tanto num aprisionamento pulsional melancólico que retroage sobre o próprio Eu de maneira agressiva, seja num investimento objetal descontrolado da libido até então represada.

Tomar o processo de luto nesses termos implica considerar a elaboração da perda do objeto enquanto um fator determinante da futura destinação das pulsões envolvidas. Algo que ficará mais claro após alguns anos, quando Freud se debruça sobre os processos de dessexualização em “O eu e o isso” (Freud, 1923/2011bFreud, S. (2011b). O eu e o Id. In Obras Completas (P. C. Souza, trad., Vol. 16, pp. 9-64). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1923)). O psicanalista propõe que quando um objeto é interditado (ou perdido), as pulsões de vida e de morte, até então fusionadas, se separam num processo nomeado de disjunção pulsional. Ao serem ligadas a outro objeto, ou ao próprio objeto que pode ser assimilado enquanto ideal identificatório, as pulsões se rejuntariam. Haveria, então, um processo comum a qualquer processo identificatório, o qual produziria restos:

O componente erótico não mais tem a força, após a sublimação, de vincular toda a destrutividade a ele combinada, e esta é liberada como pendor à agressão e à destruição. Dessa disjunção o ideal tiraria o caráter duro e cruel do imperioso “Ter que”. (Freud, 1923/2011bFreud, S. (2011b). O eu e o Id. In Obras Completas (P. C. Souza, trad., Vol. 16, pp. 9-64). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1923), pp. 68-69)

Esse resto de pulsão de morte poderia, além de ser dirigido ao próprio Eu, via masoquismo moral impetrado pelo supereu, ser dirigido a objetos externos. Ademais, quanto maior o investimento no objeto perdido, mais intenso seria esse processo, logo maior a agressividade destinada interna ou externamente. Aqui reencontramos uma dimensão que Freud sublinha insistentemente não dever ser ignorada: a econômica.

Trata-se de considerar a intensidade da pulsão, o montante de libido e de agressividade. Ou seja, a dimensão quantitativa deve ser considerada ao se pensar eventos arrebatadores, capazes inclusive de produzir deformações do Eu (Freud, 1937/2018Freud, S. (2018). Análise terminável e interminável. In Obras completas (P. C. Souza, trad., Vol. 19, pp. 159-188). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1937)). O que indica que a intensidade do investimento dirigido ao objeto perdido deve ser atentada ao se pensar na elaboração da própria perda, tanto em relação à possibilidade de desligamento do objeto quanto na destinação futura das pulsões. O traço comum de ocultação da perda presente na melancolia e na mania sugere que há algo demasiadamente angustiante em jogo, algo que restringe ou que acelera o reinvestimento libidinal e de agressividade, de modo a afastar a questão da perda.

Essa questão pode ser articulada ao entendimento lacaniano de que, muitas vezes, a perda de um ideal é parte da irrupção de uma verdade que emerge desestabilizando os saberes e as identificações instituídas (Lacan, 1986Lacan, J. (1986). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.). Um processo, portanto, acompanhado de grande angústia, a qual é usualmente aplacada pelo estabelecimento de um novo ideal.

Esse movimento estaria presente na dialética entre verdade e saber afirmada pelo psicanalista enquanto elemento central da clínica (Lacan, 1966/1998bLacan, J. (1998b). A ciência e a verdade. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 869-892). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . (Trabalho original publicado em 1966)), em que a verdade sempre se oporia ao saber estabelecido; porém, em seguida ao momento disruptivo, seu conteúdo poderia ser ele mesmo instituído enquanto saber, o qual seria passível de ser destituído por outra disrupção de verdade. Caminho sustentado por Lacan para indicar que a repetição desse processo pode produzir outro modo de relação com o próprio saber, conduzindo a outras possibilidades de experiência da verdade.

Essa ideia é presente, inclusive, na crítica lacaniana à compreensão de cura via identificação com o analista (Lacan, 1958/1998aLacan, J. (1998a). Direção do tratamento e os princípios de seu poder. In Escritos (pp. 591-652). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . (Trabalho original publicado em 1958)): sustentar a angústia da perda de um ideal sem colocar o analista - ou qualquer outro objeto - enquanto modelo identificatório possibilitaria uma experiência da vida pulsional mais livre, algo crucial na evitação de que a psicanálise servisse a um horizonte normativo. Trata-se, no entanto, também de permitir que a angústia presente junto à perda não seja rapidamente silenciada, para que a própria relação com os ideais possa ser transformada.

Considerando o que foi apresentado em relação à perda da ciência ideal, é possível compreender a intensidade do investimento perdido, mostrando também a agressividade das respostas subsequentes. A questão quantitativa remete diretamente às considerações de Stengers (1993/2000)Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993) e Hacking (1982Hacking, I. (1982). Language, truth and reason. In M. Hollis & S. Lukes, Rationality and relativism (pp. 48-66). Oxford: Blackwell., 1993/2012a), sobre as paixões suscitadas nas Science Wars. A angústia da perda do ideal pode levar à negação do valor do ideal perdido, cristalizando numa identificação com a deslegitimação dos conhecimentos produzidos. Por outro lado, essa angústia pode levar a tentativas de restauração da crença em verdades absolutas, o que pode ser articulado à deslegitimação dos processos de produção de consensos, algo comum em posições negacionistas (Beer, 2021Beer, P. (2021). From negation to negationism: the Covid-19 pandemic in Brazil. Journal of Psychosocial Studies, 14(3), 187-201. doi: 10.1332/147867321X16285243650694
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; Duarte & César, 2021Duarte, A., & César, M. (2021). Negação da política e negacionismo como política: pandemia e democracia. Educação & Realidade, 45(4), e109146. doi: 10.1590/2175-6236109146
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). Pode-se, inclusive, imaginar que parte da agressividade presente nesses discursos possa ser explicada retomando a ideia de Freud sobre o resto de pulsão de morte que sobra desse processo5 5 A questão do negacionismo, embora ligada à discussão realizada neste artigo, não pôde ser devidamente desenvolvida por uma limitação de espaço. Esperamos, entretanto, que alguns elementos mobilizados neste texto possar ajudar na compreensão desse fenômeno, tão urgente e complexo. . Vale lembrar, inclusive, que a perda desse ideal não é fruto somente do trabalho de filósofos da ciência, mas, sim, um efeito dos próprios limites do fazer científico. Nesse sentido, pensar maneiras de elaborar essa perda é uma tarefa incontornável.

Recolocar a ciência no pedestal da verdade - igual quando dados científicos são apresentados de maneira a terem suas próprias contradições suplantadas, como se não houvesse lugar para dúvida, ou mesmo quando são apresentados de maneira “purificada” - parece ser uma atitude também apressada e com efeitos indesejados. O que se constrói com isso é, em vez de outro modo de lidar com a ciência, a reatualização de um ideal. Reatualização que pode inclusive ter o efeito contrário ao desejado, intensificando as posições contrárias à abertura crítica que se almeja no fazer científico.

As tentativas até então efetuadas de desidealização da ciência têm se mostrado essenciais, pois permitem que ela deixe de ocupar um lugar impossível. Isso implica também a necessidade de um trabalho de luto. Esse trabalho almeja que o reinvestimento libidinal demande a elaboração da perda, e não um afastamento desta. Como pode ser visto na experiência clínica, elaborar a perda envolve dar-se conta daquilo que se perde, mas também do que perdura. Um trabalho que demanda, portanto, ampliar e aprofundar os debates e o ensino científico.

Quando Latour (2012Latour, B. (2012). Enquête sur les modes d’existence: une anthropologie des modernes. Paris: La Découverte.) ressalta a necessidade de confiarmos na ciência enquanto instituição, ele afirma o valor do conhecimento científico de maneira categórica. Mas, a ênfase na ciência enquanto instituição implica que esse valor está, sobretudo, em seu funcionamento: na possibilidade de debate, na abertura crítica, no caráter falível, discutível e incompleto do conhecimento.

Não se deve subestimar quanta energia já foi - e ainda é - investida em tentativas de garantir uma suposta pureza do conhecimento. Por isso, realizar o desinvestimento que aqui propomos e poder lidar com a angústia produzida é um processo longo, com idas e vindas, que deve ser atravessado com cuidado. Essa marcha já foi iniciada, como mostra o trabalho de diversos autores aqui reunidos, e muitos outros. Mas é necessário seguir, atentando-se para os entraves pulsionais e evitando a tentação de restituir um lugar ideal. Talvez seja uma boa maneira de tirar da ciência o que de melhor ela oferece, que não é a capacidade de produzir verdades absolutas, mas, sim, de implicar seus sujeitos na incompletude de sua produção.

Referências

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  • Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993)
  • 1
    Além de Kuhn, pode-se reconhecer diversos autores que sustentaram teses críticas à definição da ciência a partir de uma racionalidade única e progressiva, como, por exemplo, Gaston Bachlelard com sua noção de “corte epistemológico”. Segundo Stengers (1993/2000)Stengers, I. (2000). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1993), entretanto, tais autores continuaram a apresentar uma crítica que não colocava em xeque a compreensão internalista do fazer científico, isto é, o entendimento de que a pertinência dos fatos científicos teria pouca ou nenhuma relação com fatores externos à comunidade científica.
  • 2
    Stengers afirma que críticas à consistência e unicidade epistemológica e metodológica causaram fortes respostas de filósofos da ciência, e não necessariamente de cientistas. Isso porque fornecer uma explicação suficiente para o sucesso do conhecimento científico seria uma tarefa sobretudo filosófica, enquanto os cientistas estariam mais preocupados em continuar fazendo ciência. Entretanto, como indicado no texto, isso muda de figura quando a possibilidade de autonomia total da ciência é colocada em questão.
  • 3
    Nesse sentido, vale lembrar que, para além dos interesses específicos que o Governo do Estado de São Paulo poderia ter numa comunicação como essa - a qual perdurou, pelo menos, até o final de 2021, quando o site foi checado -, há também a participação de pesquisadores do próprio Instituto Butantan, que apresentaram os dados de tal maneira, numa espécie de triunfo. Ressaltamos ainda que, diferentemente do Governo do Estado, os pesquisadores posteriormente apontaram a fragilidade dos dados desprovidos de significância estatística.
  • 4
    De fato, pode-se compreender que Freud sustentou um ideal de cientificidade durante boa parte de sua obra. Embora não estivesse completamente alheio ao potencial identificatório de teorias científicas específicas - algo apontado por ele ao falar que a agressividade entre partidários de diferentes teorias poderia se assemelhar àquela encontrada entre uma massa e os elementos estranhos a ela (Freud, 2011aFreud, S. (2011a). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (S. Tellaroli, trad., Vol. 15, pp. 9-100). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921)) -, sustentou consistentemente um projeto de cientificidade para a psicanálise que poderia ser considerado ultrapassado atualmente (Askofaré, 2013Askofaré, S. (2013). D’un discours l’autre: la science à l’épreuve de la psychanalyse. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail.; Beer, 2017Beer, P. (2017). Psicanálise e ciência: um debate necessário. São Paulo, SP: Blucher.). Fato é que o próprio percurso da psicanálise em seus movimentos de desconstrução de ideais de cientificidade produziu diversas amostras de surpreendente agressividade, de posições defensivas e de fechamento ao diálogo, tanto por parte de psicanalistas quanto de seus críticos. Análises críticas desse percurso podem ser encontradas em Askofaré (2013)Askofaré, S. (2013). D’un discours l’autre: la science à l’épreuve de la psychanalyse. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail., Beer (2017)Beer, P. (2017). Psicanálise e ciência: um debate necessário. São Paulo, SP: Blucher. e Beividas (2000)Beividas, W. (2000). Inconsciente et verbum: psicanálise, semiótica, ciência, estrutura. São Paulo, SP: Humanitas., entre outros.
  • 5
    A questão do negacionismo, embora ligada à discussão realizada neste artigo, não pôde ser devidamente desenvolvida por uma limitação de espaço. Esperamos, entretanto, que alguns elementos mobilizados neste texto possar ajudar na compreensão desse fenômeno, tão urgente e complexo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2021
  • Revisado
    05 Out 2022
  • Aceito
    15 Dez 2022
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