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Transferência e a clínica psicanalítica das psicoses

Transference and the psychoanalytic clinic of the psychosis

Transfert et la clinique psychanalytique des psychotiques

La transferencia y la clínica psicoanalítica de las psicosis

Resumo:

Desde o início do desenvolvimento de sua teoria, Freud observara que os psicóticos não respondiam ao tratamento psicanalítico, levando à ideia de que à psicose corresponderia um mecanismo de constituição diferente. Aos poucos, a transferência passou a ser alvo da investigação que conduzisse à descoberta de um modo a lidar com a psicose. Mas as descobertas freudianas foram insuficientes para se estabelecer um laço transferencial satisfatório para os psicóticos. Com Jacques Lacan, alguns conceitos freudianos sofreram modificação, com a criação de operadores próprios, surgindo a erotomania, consequência estrutural e lógica do vínculo entre analista e psicótico. Sendo assim, este artigo busca demonstrar uma clínica possível, sob a perspectiva psicanalítica, para o tratamento da psicose, a partir do estabelecimento do laço transferencial, por meio do manejo apropriado do gozo, que promova estabilização e consiga mitigar o sofrimento, como saída possível para o problema da indicação do tratamento psicanalítico aos psicóticos.

Palavras-chave:
psicanálise; psicose; transferência

Abstract:

Early in his theoretical developments, Freud noticed that psychotics did not respond to the psychoanalytic treatment, suggesting that psychosis would correspond to a different constitution mechanism. Gradually, transference became the target of investigation for discovering a way to tackle psychosis. However, Freud’s findings were insufficient to solve the issue of establishing a satisfactory transference bond with psychotics. Jacques Lacan modified some Freudian concepts to create his own operators and coined erotomania, the structural and logical consequence of the bond between analyst and psychotic. This article proposes a possible clinic, from a psychoanalytic perspective, as a possible treatment route for psychosis by establishing a transference bond via the appropriate management of jouissance, which promotes stabilization.

Keywords:
psychoanalysis; psychosis; transference

Résumé :

Au début de ses développements théoriques, Freud a observé que les psychotiques ne répondaient pas au traitement psychanalytique, indiquant qu’un mécanisme de formation différent correspondrait à la psychose. Progressivement, le transfert est devenu la cible de la découverte d’une manière pour faire face à la psychose. Jacques Lacan a modifié certains concepts freudiens pour crée des opérateurs propres et a inventé l’érotomanie, la conséquence structurelle et logique de la relation entre analyste et psychotique. Cet article propose une clinique possible, dans la perspective psychanalytique, comme solution possible au traitement de la psychose à partir de l’établissement du transfert par le biais du maniement approprié de la jouissance qui conduise à la stabilisation.

Mots-clés :
psychanalyse; psychose; transfert

Resumen:

Desde el comienzo del desarrollo de su teoría, Freud observó que los psicóticos no respondían al tratamiento psicoanalítico, lo que dio lugar a la idea de que la psicosis correspondía a un mecanismo de formación diferente. Gradualmente, la transferencia se convirtió en el objetivo de la investigación que podría conducir al descubrimiento de una manera peculiar para hacer frente a la psicosis. En el estudio de Jacques Lacan, algunos conceptos freudianos se han modificado con la creación de operadores propios, y emergió la erotomanía como consecuencia estructural y lógica de la relación entre el analista y el psicótico. Así, este artículo busca demostrar una posible clínica desde una perspectiva psicoanalítica para el tratamiento de la psicosis, basada en el establecimiento del vínculo transferencial, a través del adecuado manejo del goce que promueva la estabilización y logre mitigar el sufrimiento, como una posible salida al problema de indicar tratamiento psicoanalítico a los psicóticos.

Palabras clave:
psicoanálisis; psicosis; transferencia

Introdução

A psicose sempre foi um desafio à psicanálise. Desde Freud, à medida em que desenvolvia sua teoria para lidar com as afecções psíquicas, ficava claro que os psicóticos não respondiam, da mesma forma que os neuróticos, ao tratamento psicanalítico, fazendo surgir a ideia de que à psicose correspondia um mecanismo de constituição peculiar. O ponto crucial na relação entre o analista e analisando é o modo como se instala a transferência, e esta passou a ser o nó central e o alvo da investigação que pudesse conduzir à descoberta de um modo peculiar para lidar com a psicose e suas particularidades.

Considerada, em O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, 1964Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (2a ed. revista). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964). /2008), como um dos conceitos fundamentais da psicanálise, a transferência é, para Freud, o motor propulsor do tratamento analítico, seu modo de operar e gerar efeitos, condição sem a qual a análise não avança. O laço transferencial opera como pano de fundo da regra de ouro da psicanálise, a associação livre, tendo como mecanismo o deslocamento, efetuado pelo paciente, de seus afetos cotidianos, para a figura do analista.

Segundo Freud ( 1912Freud, S.. (1996). A dinâmica da transferência. In S. Freud (Org.), Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 7, pp. 107-119). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1912). /1996), o investimento feito pelo analisando se ligará a um dos clichês presentes em seu psiquismo, incluindo o analista numa das séries que o doente elaborou até o momento da análise. É decisiva, ainda, para esse deslocamento a figura paterna, materna, ou até mesmo de um irmão ou de outra pessoa com precedência sobre o paciente, devendo ser consideradas não só expectativas conscientes, mas também as retidas ou inconscientes, na produção de tal investimento.

Acontece que a transferência, segundo essa concepção, não trazia resultados alentadores para os casos de psicose, durante o tempo em que Freud desenvolveu sua investigação e seus estudos, tendo até mesmo, em seu texto Um estudo autobiográfico (Freud, 1925Freud, S.. (1996). Um estudo autobiográfico. In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 20, pp. 9-78). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1925). /1996), afirmado uma ausência de perspectiva terapêutica. Segundo ele, faltaria aos psicóticos a capacidade para uma transferência positiva, impedindo assim a aplicação do principal recurso da técnica analítica. Apesar disso, Freud nunca abriu mão de pesquisar e estudar a psicose e seus respectivos mecanismos, como é possível observar quando se realiza um exame, ainda que breve, de seu percurso nesta investigação.

Segundo Mezêncio ( 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. , p. 9), apesar de o termo psicanálise ter aparecido em obras freudianas posteriores, tem-se como escrito inaugural do método os Estudos sobre a histeria (Freud, 1895Freud, S.. (1996). Estudos sobre a histeria. In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 2, pp. 11-318). Rio de Janeiro, RJ: Imago (Trabalho original publicado em 1895). /1996), dando início à investigação das afecções mentais, inclusas aí, além da histeria, as obsessões e psicoses, cujos tratamentos não eram eficazes, nos moldes da medicina e da psicologia vigentes. Observa-se que Freud intencionava criar um método de tratamento, sem qualquer contraindicação, e com claro caráter psíquico, em virtude da causalidade que descobrira na etiologia da histeria afastando-se da medicina, afeita a causas degenerativas e hereditárias como base dos transtornos mentais.

Nesse começo de desenvolvimento de sua teoria, Freud se utilizou da via da hipnose, que logo fora abandonada, por ter se apresentado com limitações que desautorizavam o seu uso, entre as quais, o fato de que não era um tratamento causal, agindo apenas sobre os sintomas, que retornavam e indicavam uma ineficácia terapêutica. Porém, outros dois motivos levaram Freud a abandonar a técnica da hipnose: a dificuldade do manejo e a incapacidade dos doentes mentais de se deixarem hipnotizar. Quanto ao primeiro inconveniente, argumenta com a existência da sugestão, como impeditivo de produzir efeitos sem a presença do médico a quem o paciente atribuía poder, e por quem manifestava sentimentos de amor, motivo pelo qual não era possível dar crédito científico a uma técnica com uma ingerência desse tipo. Verificou mais tarde, entretanto, com o desenvolvimento do método psicanalítico, que tais perturbações de origem amorosa não eram intrínsecas à hipnose, e insistiram em aparecer, fazendo-o desenvolver o manejo desta manifestação que viria a se chamar transferência. O segundo inconveniente dizia respeito à falta de inclinação dos doentes mentais em se deixarem hipnotizar, o que colocava uma barreira na técnica, uma contraindicação aos psicóticos. Assim, levando-se em conta a intenção de Freud, constante em toda sua obra, em desenvolver sua teoria para todas as afecções mentais, e movida pelo paradigma da causalidade psíquica, a hipnose foi abandonada.

Freud, então, passa a utilizar a cura pela fala, talking cure , adotando o método de associação livre, e a regra fundamental da psicanálise, “que estabelece que tudo que lhe venha à cabeça deve ser comunicado sem crítica” (Freud, 1912Freud, S.. (1996). A dinâmica da transferência. In S. Freud (Org.), Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 7, pp. 107-119). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1912). /1996, p. 118). A partir daí, desenvolve sua teoria para explicar como a resistência, presente no laço transferencial, participa da dinâmica das neuropsicoses de defesa 1 1 Termo utilizado por Freud para designar, conjuntamente, os tipos de neurose e psicoses, mas que foi abandonado em seus escritos posteriores. , entre as quais se incluíam a histeria, as obsessões, a psicose. Em As neuropsicoses de defesa (Freud, 1894Freud, S. (1996). As neuropsicoses de defesa. In S. Freud (Org.), Edição standard das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 3, pp. 49-72). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1894). /1996) e Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa (Freud, 1896Freud, S.. (1996). Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa. In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 3, pp. 157-183). Rio de Janeiro, RJ: Imago (Trabalho original publicado em 1896). /1996), Freud admite que o mecanismo de recalque, comum à histeria e à obsessão, é a separação entre a representação incompatível e o afeto, diferenciando-se pelo destino deste último, que seria a inervação somática (conversão) e a representação obsessiva (substituição), respectivamente. Já no caso da psicose, o mecanismo funciona com a rejeição tanto da representação incompatível quanto do afeto, a fuga para a psicose, desligando-se da realidade. Até esse momento, não havia contraindicação à aplicação da psicanálise às psicoses, cujo tratamento tinha por objetivo o restabelecimento das representações rejeitadas pelo paciente.

No começo do século XX, à medida em que o método era investigado e estudado, algumas dificuldades surgiram, modificando-se o panorama das restrições quanto à sua aplicação. No início da primeira década, Freud publicou duas obras sobre a técnica da psicanálise, O método psicanalítico de Freud (Freud, 1904Freud, S.. (1996). O método psicanalítico de Freud. In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 7, pp. 233-240). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1904). /1996) e Sobre a psicoterapia (Freud, 1905aFreud, S.. (1996). Sobre a psicoterapia. In S. Freud (Org.), Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 7, pp. 241-254). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1905a). /1996), nas quais dá detalhes das indicações e contraindicações ao procedimento analítico, incluindo como condições ao tratamento: capacidade de estado psíquico normal, exigência de inteligência e ética, livre disposição para a análise, limite superior de idade e risco para a vida do paciente. Apesar de não explícito, inicialmente, termina por qualificar a psicose como imprópria à psicanálise, apesar de acrescentar que considera possível que, “mediante uma modificação apropriada do método, possamos superar essa contraindicação e assim empreender a psicoterapia das psicoses” (Freud, 1905aFreud, S.. (1996). Sobre a psicoterapia. In S. Freud (Org.), Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 7, pp. 241-254). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1905a). /2006, p. 250).

Quase concomitantemente à obra acima citada, é publicado o caso Dora, em Fragmento da análise de um caso de histeria (Freud, 1905bFreud, S.. (1996). Fragmento da análise de um caso de histeria. In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 7, pp. 13-113). Rio de Janeiro, RJ: Imago (Trabalho original publicado em 1905b). /2006) quando, então, o autor aponta, pela primeira vez, a importância da transferência como indispensável ao êxito do tratamento, apesar de seu caráter paradoxal de resistência à cura. Segundo Mezêncio ( 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. , p. 30), “essa irrupção do pulsional logo se mostrou de caráter irredutível, obrigando à obtenção de outra espécie de aliança, usando-se o obstáculo como alavanca”.

A partir de então, Freud busca descobrir em que o método psicanalítico deve ser modificado para permitir sua aplicação também aos psicóticos, e, para isto, passa a se corresponder com Carl Jung, psiquiatra suíço, e Karl Abraham, psiquiatra alemão. Em correspondência mantida com Jung, transcrita em Mezêncio ( 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. , p. 32), Freud, depois de afirmar a distinção do mecanismo das psicoses, relata sobre a transferência que, “na ausência dela o paciente deixa de fazer esforço ou de ouvir quando lhe submetemos nossa tradução”. Entretanto, não se tem, ainda, nesse momento, como inexistente a transferência na análise dos psicóticos, exceto para aqueles gravemente acometidos. Também, nesse período, Freud começa a abordar as hipóteses de autoerotismo, as modalidades de recalque para a psicose e a importância do componente homossexual da libido na paranoia.

Segundo Mezêncio ( 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. ), Freud propôs a Jung, em 1907, pesquisar a hipótese de que os esquizofrênicos investem sua libido autoeroticamente, em vez de ligarem-na aos objetos exteriores, impedindo-os de estabelecerem qualquer laço transferencial. Além disso, suas ideias sobre o papel da libido homossexual no desencadeamento da paranoia advêm da relação que teve com Wilhelm Fliess, médico alemão, com quem se correspondeu até 1902, ocasião em que acusou Freud de plágio, fato interpretado por este como um desencadeamento paranoico. Ademais, o pai da psicanálise também sugeriu a Karl Abraham a ideia do autoerotismo na esquizofrenia, tendo este, em seu trabalho, confirmado a ausência de investimento libidinal nos objetos, e o retorno ao estágio do autoerotismo, nestes doentes, o que explicaria também a falta de transferência com a qual se lida em seu tratamento. Como se observa, “existe um ponto comum evidente entre estes autores: o destaque para o papel da transferência no desenvolvimento de uma técnica para o tratamento das psicoses” (Mezêncio, 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. , p. 44).

Entre 1911 e 1915, Freud publica seus escritos técnicos, onde a importância da transferência e de seu manejo para superar as resistências, no tratamento psicanalítico, é colocada em destaque, e funciona como indicador da emergência do recalcado ao substituir os sintomas pela instauração da neurose de transferência, atualizando o inconsciente. Em corolário disso, Freud faz a primeira contraindicação do tratamento das psicoses, ligada à transferência, ao afirmar a impossibilidade de “influência ou cura”, com os paranoicos, em que a transferência é negativa (Freud, 1912Freud, S.. (1996). A dinâmica da transferência. In S. Freud (Org.), Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 7, pp. 107-119). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1912). /1996, p. 118).

Aqui, começa-se a inferir que a mudança do método psicanalítico, pensada por Freud para acolhimento dos psicóticos, poderia ter como parâmetro a existência da transferência, uma vez que o analista sempre seria objeto de investimento libidinal, ficando reservado a este o adequado manejo para evitar os efeitos danosos de um eventual laço negativo.

Apesar de tal conclusão, Freud, em 1914, elabora seu conceito de narcisismo, e reformula, de consequência, a teoria da libido, fato que vai provocar mudanças profundas, em sua teoria psicanalítica, notadamente, na seara das psicoses. Com efeito, até então, a primeira teoria da libido, que dava fundamento às neuroses de transferência, tinha por base a dualidade: pulsões de autoconservação e sexuais, e o consequente conflito entre libido e interesse do eu. Em Sobre o narcisismo: uma introdução , Freud, entretanto, afirma que o desenvolvimento sexual humano segue uma sequência em que os instintos autoeróticos estão presentes desde o nascimento, são inatos, enquanto o narcisismo (aqui denominado de primário) se forma a partir de uma nova ação psíquica que se acrescenta ao autoerotismo, dando existência a partir daí ao Eu e à libido. Posteriormente, esse investimento inicial do Eu é revertido parcialmente aos objetos, dando origem a dualidade: libido do Eu e libido do objeto.

Os psicóticos, ainda, segundo Freud ( 1914Freud, S.. (1996). Sobre o narcisismo: uma introdução. In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 14, pp. 75-108). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914). /1996), abandonariam o interesse em face do mundo externo, retirando deste a sua libido, sem substituí-lo por outras pessoas ou coisas na fantasia (assim como o fazem os neuróticos). Neste caso, a libido retirada do mundo externo seria destinada ao Eu, surgindo, assim, um modo de proceder que se denominaria narcisismo secundário. Assim, Freud pode relacionar as neuroses de transferência à libido do objeto e as psicoses à libido do Eu, criando, assim, a denominação de neuroses narcísicas, para estas últimas. Segundo Ferrari e Laia ( 2009Ferrari, I. F.; Laia, S. (2009). Psicopatologia: a perspectiva freudiana. In V. L. Besset, H. F. Carneiro (Orgs.), A soberania da clínica na psicopatologia do cotidiano (pp. 183-214). Rio de Janeiro, RJ: Garamond. , p. 205), a partir das noções de narcisismo, Freud caracteriza a paranoia “pela regressão da libido a uma relação de objeto narcísica pautada pela imagem unificada do corpo”, e a esquizofrenia “pela regressão a um objeto autoerótico e que se impõe como um corpo fragmentado pelas pulsões”.

Nesse momento teórico, há que ser aberto um parêntese para que se aborde o texto freudiano sobre o caso Schreber ( Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia – dementia paranoides ), o qual escrito, anteriormente, em 1911, já adiantara a concepção de narcisismo, e a incapacidade de transferência dos psicóticos, em sua elaboração. Curiosamente, Freud ( 1911Freud, S.. (1996). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 7, pp. 13-89). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1911). /1996) determina como fator desencadeante da psicose de Schreber, justamente, a transferência com seu médico Flechsig, estabelecida como recomposição de suas relações familiares, como uma transposição do afeto destinado, antes, ao irmão e ao pai. Segundo Freud, ainda, a psicose (a doença, propriamente dita) promove desorganização e sofrimento psíquicos, sendo pois o delírio sua tentativa de cura.

Mezêncio ( 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. , p. 67-68) faz um resumo da análise freudiana do caso Schreber, argumentando ser a manifestação da libido homossexual em direção a seu médico, por transferência, a causa ativadora da doença, e levando Schreber, ao desta se defender, transformar a fantasia do desejo em delírio de perseguição. Acrescenta que “a substituição de Flechsig por Deus permite a solução do conflito, com o retorno da libido transferida ao médico de volta ao pai (Deus)”. Esta estabilização é descrita por Freud como o retorno da libido, antes retirada dos objetos: inicialmente, dedicando uma experiência hostil ao médico, que gerou o delírio de perseguição, e, posteriormente, transformando sua natureza negativa, devotando amor ao pai, tornando-se a mulher de Deus, via delírio de amor, ambos decorrentes da lógica de derivação gramatical à fórmula do amor homossexual por projeção, em que se modificam a ação e o objeto amado, respectivamente (Freud, 1911Freud, S.. (1996). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 7, pp. 13-89). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1911). /1996, p. 71).

Nos anos de 1915 e 1916, Freud, em suas Conferências introdutórias sobre psicanálise , voltará a articular as neuroses narcísicas com suas (im)possibilidades de tratamento analítico, alegando que a psicanálise das neuroses narcísicas dificilmente terá êxito, em virtude do “muro” narcísico intransponível, devendo o método ser substituído (Freud, 1917aFreud, S.. (1996). A teoria da libido e o narcisismo. In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 16, pp. 413-431). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1917a). /1996, p. 423). Ademais, ratificando, em Freud ( 1917bFreud, S.. (1996). Transferência. In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 16, pp. 433-448). Rio de Janeiro, RJ: Imago (Trabalho original publicado em 1917b). /1996, p. 447-448), acrescenta-se que “aqueles que sofrem de neuroses narcísicas não têm capacidade para a transferência ou apenas possuem traços insuficientes da mesma. . . . . não manifestam transferência, e, por essa razão, são inacessíveis aos nossos esforços e não podem ser curados por nós”.

Posteriormente, com a definição da nova dualidade pulsional, na década de 20 (pulsão de vida e de morte), Freud ( 1924aFreud, S.. (1996). Neurose e Psicose. In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 19, pp. 163-171). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1924a). /1996) cria uma nova classificação de suas afecções psíquicas, baseada no conflito e na divisão do eu, em três grupos: neurose narcísica ou melancolia (eu vs supereu), psicoses (eu vs mundo externo) e neuroses (eu vs isso). No entanto, teve que ir mais além, para explicar como, na neurose, assim como na psicose, pode existir uma perturbação da relação do paciente com a realidade. Assim, em Freud ( 1924bFreud, S.. (1996). A perda da realidade na neurose e na psicose. In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 19, pp. 201-209). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1924b). /1996), introduzem-se suas duas etapas da constituição: na neurose, ignora-se a realidade, e depois repara-a, via fantasia ou evitação; na psicose, rejeita-se a realidade, para, em seguida, criar uma nova.

Apesar de tais construções teóricas freudianas, permaneceu indefinida a solução de como estabelecer um laço transferencial satisfatório para os psicóticos, e o status quo de seu trabalho em busca de uma adaptação do método psicanalítico para o tratamento dos psicóticos não se modificara, situação que permaneceu até a sua morte.

Psicose e transferência em Lacan

Com Jacques Lacan, a psicanálise teve um retorno a Freud, e, a partir de 1951, seja com seu ensino oral, seja por meio de escritos, alguns conceitos freudianos sofreram modificação, enquanto Lacan criava seus próprios conceitos e operadores.

Em seu O seminário, livro 3: as psicoses (Lacan, [s.d.]Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3: as psicoses (2a ed. revista). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956). /1988), Lacan elaborou o mecanismo constitutivo da psicose, articulando-o a uma operação simbólica que ocorre no âmbito da linguagem. Com base nos conceitos freudianos de afirmação ( Bejahung ), negação ( Verneinug ) e expulsão ( Ausstoßung ), Lacan afirma a fundação do simbólico na Bejahung primordial, referindo-se ao significante. Assim, propõe que aqueles submetidos à Bejahung , terão a afirmação (a inscrição simbólica), ainda que possa ser recalcado ou desmentido, posteriormente; enquanto que os outros ficarão sob os efeitos da Verwerfung , a rejeição ou foraclusão.

Esse mecanismo, combinado à lógica significante, explica a constituição da psicose, nos seguintes termos:

a operação constitutiva da psicose, a Verwerfung , será tida por Lacan como foraclusão do significante primordial que veicula a Lei e a condição do desejo, e que ele denomina significante Nome-do-Pai. No ponto em que o Nome-do-Pai estaria inscrito, na psicose responde no Outro um puro e simples furo. Trata-se de uma inscrição que não se faz, ao contrário da Bejahung , que implicaria exatamente a inscrição desse significante primordial.

(Guerra, 2010Guerra, A. M. C (2010). A psicose. Coleção Passo-a-passo, n. 90. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 30)

Na medida em que aquilo, que seria uma marca inaugural, é rejeitado e não consegue se tornar uma representação, permanece fora, no âmbito do real. Daí, é possível explicar o que Freud dizia, quando analisava o caso Schreber, ao afirmar que “a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora” (Freud, 1996/ 2011Freud, S.. (1996). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). In S. Freud (Org.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 7, pp. 13-89). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1911). , p. 78), o que em termos da teoria lacaniana, significaria: aquilo que não foi simbolizado, retorna no real, por meio dos fenômenos elementares.

Além disso, é possível divisar, ainda, neste seminário, as condições clínicas do desencadeamento. Segundo Guerra ( 2010Guerra, A. M. C (2010). A psicose. Coleção Passo-a-passo, n. 90. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 38-39), existe uma tríade de situações que, articuladas, promove o processo de desencadear a psicose: a foraclusão do Nome-do-Pai (condição estrutural), a quebra de uma de suas identificações imaginárias, e uma condição específica: quando a casualidade dos acontecimentos da vida convoca, ao psicótico, o Nome-do-Pai foracluído em oposição simbólica ao sujeito (a falta de significantes), ou seja, toca no ponto onde falta Um-pai, no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes, é satisfeita esta condição.

Com o primeiro ensino de Lacan (1953-1963), estabelecem-se, na seara da psicose, como conceitos referenciais, “a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro e elisão do falo, a regressão tópica ao estádio do espelho e um desregramento de gozo (por falta do arrimo fálico)” (Quinet, 2006Quinet, A (2006). Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 26).

Posteriormente, em O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, 1964Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (2a ed. revista). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964). /2008), dando início ao seu segundo ensino, Lacan resolve tirar o foco, em sua teoria, do registro simbólico e da lógica significante, deslocando-o para o registro real, com a formulação do conceito de objeto a . O problema do desencadeamento deixa de ser a busca por significantes e passa a ser a invasão do gozo. Segundo seu novo ensino, o sujeito neurótico é dividido pelo significante, e o objeto a é o resto que deve ser extraído pela operação da função fálica, que permite o limite do gozo. Na psicose, contudo, o objeto a não é extraído, e o psicótico o leva consigo no bolso, e isto promove os fenômenos elementares, além de dar existência real ao Outro, que tem o saber, “persegue, ama, modifica o corpo do psicótico, altera sua vontade, impõe-lhe pensamentos” (Guerra, 2010Guerra, A. M. C (2010). A psicose. Coleção Passo-a-passo, n. 90. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 67).

Ainda, nesse seminário, Lacan elabora uma modificação no conceito de transferência, criando uma função inexistente até então, o sujeito suposto saber, como o pivô sobre o qual giram os três aspectos da transferência, presentes na obra freudiana, de maneira esparsa: repetição, resistência e sugestão, fenômenos que se produzem na experiência analítica.

Lacan diferencia transferência e repetição, e funda o sujeito suposto saber deduzindo-o da regra fundamental da psicanálise e de sua implicação lógica de que tudo que se diz significará algo. Trata-se de uma suposição estrutural, quer dizer, “a teoria do sujeito suposto saber situa a transferência como consequência imediata daquilo que Lacan chamou de discurso analítico” (Miller, 1988bMiller, J-A.. (1988b). A transferência. O sujeito suposto saber. In J-A. Miller, Percurso de Lacan: uma introdução. (pp. 99-125). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 99), não o que o analista fala, mas “à estrutura da situação analítica”.

Erotomania

Seja como uma categoria autônoma de uma nosologia, seja apenas como um sintoma, pode-se afirmar que a erotomania é um tipo de delírio em que o doente imagina ser amado por outra pessoa. Segundo Dalgalarrondo ( 2008Dalgalarrondo, P. (2008). Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais (2a ed.). Porto Alegre, PR: Artmed. ), essa pessoa possui alguma projeção social ou importância para o delirante, e abandonará tudo para se casarem, sendo, geralmente, “mais rica, mais velha, de status social mais alto que o da paciente” (p. 221), além de ser relativamente frequente que a pessoa escolhida seja o médico ou a médica do indivíduo. Segundo Clérambault, citado por Mezêncio ( 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. ), desenvolve-se em três estágios: esperança, despeito e rancor, variando desde o otimismo, passando pela ambiguidade, e finalizando com o ódio. Entre as certezas do delirante, podemos citar: infelicidade e incompletude do objeto sem o sujeito; e entre os seus atos: vigilância e proteção, conversas indiretas, além da falsa impressão de todos nutrirem simpatia e interesse pelo romance.

Em momento algum de sua obra, Freud relaciona a erotomania ao conceito de transferência, por ele cunhado. No caso Schreber, no entanto, busca reforçar sua tese de ser o desejo homossexual, em casos de paranoia, o que provoca defesa em forma de delírios de amor (erotomania), de perseguição, de grandeza (megalomania), de ciúme. Para tanto, como já descrito acima, elabora as derivações gramaticais, a partir da fórmula do amor homossexual por projeção, em que se modificam a ação e o objeto amado, originando, respectivamente, o delírio de perseguição e a erotomania.

Por sua vez, Lacan esteve em contato com a erotomania desde a sua tese de doutorado, Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade , de 1932 (Lacan, 2011Lacan, J. (2011). Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade; seguido de Primeiros escritos sobre a paranoia (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. ), na qual se aborda o caso Aimée, em que a paciente sofria com delírios de perseguição, megalomania e erotomania, cujo objeto desta última era o Príncipe de Gales. Lacan, nesta obra, acolhe a tese de Freud, estabelecendo que a paranoia da paciente teria sido uma defesa contra um desejo homossexual, utilizando a terceira parte da análise do caso Schreber para elaborar as deduções gramaticais, a partir da fórmula da erotomania, sobre os delírios da paciente.

Segundo Mezêncio ( 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. ), Lacan, na referida tese, ainda que inadvertidamente, começa a decifrar o enigma ínsito ao tratamento possível para os psicóticos, pois aponta, em alguns trechos, os pontos em torno dos quais o problema seria solucionado: “as relações da transferência com o desencadeamento, a relação com o médico – seja de caráter persecutório ou erotomaníaco – que substitui o sintoma, constituindo o material primordial do tratamento: o sintoma analítico, ou seja, a transferência e as dificuldades do manejo” (p. 98).

Posteriormente, Lacan retoma o tema das psicoses em seu O seminário, livro 3: as psicoses ( 1996Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3: as psicoses (2a ed. revista). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956). /1988), tomando como base o caso Schreber, e o estado da arte da psicose, ainda orientado pelos conceitos freudianos, confirmando a impossibilidade de seu tratamento no âmbito da psicanálise. Dois anos depois, em um dos seus escritos mais importantes sobre o tema, publicado em 1958: De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (Lacan, 1958/ 1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan (Org.), Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), o autor volta a questionar a existência de transferência do psicótico, abordando como esta poderia ser manejada, diante das dificuldades que se apresentava.

Nesta análise, Lacan dá destaque à estrutura do delírio, o qual, por se constituir numa perturbação da relação com o outro, deveria estar relacionado com a transferência, e começa a colocar em evidência a saída elaborada por Schreber, em seu delírio erotomaníaco, como uma defesa contra a invasão do desejo homossexual e o primeiro delírio persecutório contra seu médico. Nesse caso, a erotomania estaria repleta da presença das figuras paternas, por meio da transferência, sendo uma solução com ares de apaziguamento entre o próprio Schreber e a figura de seu pai, aqui assumida por “seu Deus”.

Findo o primeiro ensino de Lacan (1953-1963), e estabelecidos os conceitos que serviriam de base para sua teoria sobre as psicoses, a clínica dos psicóticos, contudo, ainda se ressentia de uma resolução no nível transferencial, o que fazia perpetuarem-se os riscos de desencadeamento, associados ao tratamento.

Com a formalização do conceito do sujeito suposto saber, em O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise , e a consequente qualificação do analista como o mediador que traduz o sem-sentido do dito para uma significação, processo nomeado por Jacques-Allain Miller ( 1988aMiller, J-A. (1988a). A transferência de Freud a Lacan. In J-A. Miller (Org.), Percurso de Lacan: uma introdução. (pp. 75-98). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 97) como “impostura congênita da psicanálise”, poderia se pensar, segundo Michel Silvestre, citado por Mezêncio ( 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. ), a estrutura do sujeito suposto saber como conveniente para o tratamento analítico da psicose, como efeito da foraclusão do Nome-do-Pai, uma vez que se conjugariam a significação em suspenso, fundamento da demanda de análise do psicótico, e a suposição de que o analista poderia dar-lhe sentido.

Entretanto, e por outro lado, com a teoria do sujeito suposto saber se conseguiu desvendar o motivo pelo qual o laço transferencial, estabelecido com o analista e que caracteriza o vínculo analítico, tem o condão de promover o desencadeamento do psicótico. Tomando como base a tríade: foraclusão do Nome-do-Pai, a quebra da identificação imaginária, e encontro com Um-pai, se ao entrar em análise, o psicótico coloca o analista em uma posição de saber, este poderá assumir o lugar de Um-pai, levando o sujeito ao desencadeamento da psicose, antes já estruturada.

Em momento ulterior, Lacan, em 1966, citado por Mezêncio ( 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. ) alega que a relação de Schreber com seu médico se configura como uma espécie de “erotomania mortificante”, acrescentando que tal relação é característica da posição na qual somente a lógica do tratamento introduz, advertindo que algo semelhante ocorre na clínica psicanalítica em que o analista assume a posição de sujeito-suposto-saber. Conclui, assim, que a erotomania “decorre da estrutura e da lógica da relação analítica e tem conexão com a modalidade de transferência na psicose” (p. 103-104).

Assim, tem-se que, se a erotomania, com seu qualificativo de mortificante, é consequência estrutural e lógica do vínculo entre analista e psicótico, e se a transferência, por aquela induzida, tem o poder de desencadear a psicose, o problema da contraindicação do tratamento analítico aos psicóticos persiste e tem que ser resolvido por outra via. Com efeito, apesar de a erotomania de transferência ser um padrão para a análise de psicóticos, abre-se, por outro lado, a possibilidade de se investigar como se poderia conceber o manejo desse laço erotômano, suas consequências terapêuticas, de modo que o psicótico não situe o analista, na posição de um Outro perseguidor.

Ao dar relevo, em sua teoria para o registro do real, com os conceitos de objeto a e de gozo, o problema do desencadeamento passa a ser a invasão do gozo. Segundo seu novo ensino, como já dito, o psicótico traz consigo o objeto a no bolso, e isto promove os fenômenos elementares, além de dar existência real ao Outro perseguidor. Segundo Maleval, citado por Mezêncio ( 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. ), Lacan, a partir de 1964, desiste da lógica significante e passa a investigar o manejo da transferência, tendo por base “uma axiomática do gozo: assim situa o psicótico como um sujeito fora do discurso, invadido por um gozo desordenado . . e que é capaz de desenvolver uma ‘erotomania de transferência’” (p. 105).

Portanto, levando-se em conta que a erotomania, como modalidade de transferência para os psicóticos, carrega paradigmaticamente, o caráter mortificante, vertente de gozo do Outro, pode-se pensar em uma direção de tratamento, por meio de um manejo apropriado do gozo, de artifícios que promovam uma estabilização e consigam dar conta de seu sofrimento, como uma saída possível para o intrincado problema da indicação do tratamento psicanalítico para os psicóticos.

Manejo da transferência

Estabelecida a erotomania como modalidade de transferência para o tratamento psicanalítico com os psicóticos, é necessário que o analista proceda a algumas intervenções, seja de caráter ativo, seja de caráter omissivo, que possibilite dar conta do vínculo erotômano que envolve a respectiva relação dual, de modo que o psicótico não se veja mortiferamente tomado, o que impossibilitaria qualquer tipo de êxito na condução do tratamento. Tais intervenções é o que denominamos de manejo ou manobra da transferência.

Ademais, para se pensar a clínica com os psicóticos, assim como uma transferência possível, é preciso que não se considere o estudo das neuroses uma condição para a abordagem da psicose. De fato, segundo Meyer ( 2008 Meyer, G. R.. (2008). Algumas considerações sobre o sujeito na psicose. Ágora,, 11(1), 299-312. doi: https://doi.org/10.1590/S1516-14982008000200009
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), isto significaria a criação de um muro quase que insuperável, já que Freud teorizou o conceito de transferência ao escutar os neuróticos, motivo pelo qual não há como aplicá-lo à psicose, naqueles termos.

Enquanto a transferência na neurose é pautada pelo sujeito suposto saber, como acima referido, na clínica da psicose, de acordo com Meyer ( 2007 Meyer, G. R. (2007). A clínica da psicose no campo da saúde mental: transferência e desejo do analista. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 2(1), 319-331. doi: https://doi.org/10.1590/1415-47142007002010
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), é justamente essa suposição de saber, como suporte da transferência, que deve ser questionada. A crença delirante de que o Outro sabe, e consequentemente invade o sujeito, obriga-nos a pensar uma transferência que não esteja fundamentada nesse pressuposto.

Lacan, em seu O seminário , livro 3: as psicoses (Lacan, 1955-1956Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3: as psicoses (2a ed. revista). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956). /1988), enfatiza a importância que deve ser dada agora ao saber do próprio psicótico, e convida os analistas a se posicionarem como secretários do alienado, a acompanharem o psicótico a partir da escuta do que ele tem a dizer e do saber da diferença que caracteriza seu discurso. Desse modo, o analista deve ter uma posição, segundo Zenoni citado por Meyer ( 2007 Meyer, G. R. (2007). A clínica da psicose no campo da saúde mental: transferência e desejo do analista. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 2(1), 319-331. doi: https://doi.org/10.1590/1415-47142007002010
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), de não saber, ou seja, a transferência deve estar assentada no sujeito suposto não saber, sendo que este saber não é suposto, mas sim realizado pelo próprio sujeito psicótico.

Desse modo, no tratamento da psicose, deve-se operar a partir de um esvaziamento de saber prévio sobre o psicótico, por parte do analista. Essa posição é benéfica para que não ocorra uma relação intrusiva, persecutória de transferência, contribuindo para a construção de um Outro mais moderado (ZENONI, apud Meyer, 2008 Meyer, G. R.. (2008). Algumas considerações sobre o sujeito na psicose. Ágora,, 11(1), 299-312. doi: https://doi.org/10.1590/S1516-14982008000200009
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).

Segundo Beneti, citado por Mendes ( 2005 Mendes, A. A. (2005). Tratamento na psicose: o laço social como alternativa ao ideal institucional. Mental, 4(1), 15-28. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272005000100002
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), o psicótico, na maioria das vezes, convida o analista a ser um Outro absoluto que seja capaz de suprir o rasgo no tecido simbólico; em outras palavras, propõe-lhe seu gozo. Nesse ponto se faz necessário que o analista não ceda a essa demanda, fazendo intervenções a partir de uma posição subjetiva, sem ocupar o lugar que, ocasionalmente, seja-lhe concedido, para evitar o papel de perseguidor, diante do qual o psicótico passaria a ser objeto. Assim o fazendo, o analista estabelece um manejo transferencial apropriado, dirigindo-o com o intuito de propiciar um limite às experiências que invadem o psicótico, e que o deixam sem chance de qualquer resposta.

Esse manejo ocorrerá justamente quando o analista se posicionar como secretário do alienado, posição esta cunhada por Lacan ( [s.d.]Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3: as psicoses (2a ed. revista). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956). ), correspondendo a esse lugar de sujeito suposto não saber, de esvaziamento. Desse modo, o Outro deixará de ser tão absoluto e intrusivo, e passa a ser mais moderado para o psicótico.

Assim, se a erotomania é a posição do sujeito psicótico, como objeto do Outro, o secretário do alienado é a posição do analista na relação transferencial com esse sujeito. Sobre essa ênfase do saber do psicótico, Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan (Org.), Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 592) diz que o psicanalista “certamente dirige o tratamento, o primeiro princípio desse tratamento lhe é soletrado logo de saída . . . não se deve de modo algum dirigir o paciente”. Deve-se, dessa maneira, secretariar o sujeito, dirigindo o tratamento, mas não impondo um saber ou um querer a ele. Essa posição de secretário, segundo Mendonça ( 2012 Mendonça, R. L. (2012). O inconsciente a céu aberto e a transferência: o secretário do alienado como manejo clínico na psicose (Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São João del-Rei).. Recuperado de https://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/mestradopsicologia/Dissertacao_-_O_inconsciente_a_ceu_aberto_e_a_transferencia.pdf
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), a partir da crítica lacaniana, não diz respeito a uma impotência por parte do analista, mas da capacidade de dar crédito à fala do sujeito, e a intervir para auxiliar a construção de uma barreira ao gozo invasor.

Segundo Zenoni, citado por Meyer ( 2007 Meyer, G. R. (2007). A clínica da psicose no campo da saúde mental: transferência e desejo do analista. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 2(1), 319-331. doi: https://doi.org/10.1590/1415-47142007002010
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), a função de secretariar o alienado implica o acompanhamento do trabalho do psicótico, sendo uma das características dessa função, seguir a direção que o sujeito indica. Portanto, não compete ao psicanalista a função de interpretação, já que isso poderia comprometer a transferência e o próprio tratamento. Com efeito, a interpretação, muitas vezes, contém a dimensão de enigma, o que pode se desdobrar em um caráter persecutório para o psicótico, fazendo-o se interrogar sobre o que o analista quis dizer, inclusive, preenchendo as condições necessárias e suficientes ao desencadeamento, como acima já referido.

Nessa postura de silenciamento para dar lugar às construções do psicótico, a partir da noção do secretário do alienado, o analista se colocaria, segundo Mendes ( 2005 Mendes, A. A. (2005). Tratamento na psicose: o laço social como alternativa ao ideal institucional. Mental, 4(1), 15-28. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272005000100002
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), como alguém que presencia a relação do sujeito com o Outro. O “analista daria, a partir de um certo apagamento de si próprio, a possibilidade de estar na presença de um sujeito suposto não saber, podendo então, representar um vazio onde o sujeito vai colocar seu testemunho” (MENDES, 2005 Mendes, A. A. (2005). Tratamento na psicose: o laço social como alternativa ao ideal institucional. Mental, 4(1), 15-28. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272005000100002
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, p. 23).

É importante que se frise, nesse particular, que o termo testemunha, de origem jurídica, corresponde à pessoa que vai a Juízo depor, sob as penas da lei, sobre o que sabe a respeito dos fatos que estejam sub judice , e seu depoimento toma o nome de testemunho. Alguns autores, contudo, confundem a posição do analista, incluindo-o como testemunha, atribuindo a esta palavra seu sentido comum, ou seja, de pessoa que presencia algum fato; daí o analista seria testemunha do depoimento do psicótico. Deve ser salientado, apesar de tais entendimentos, que o único que exerce, realmente, a função de testemunha nessa relação é o psicótico com o seu depoimento, uma vez que cabe ao analista um papel mais abrangente do que simplesmente testemunhar ou presenciar o testemunho do psicótico.

Com efeito, o psicótico apresenta ao analista seu testemunho, sua relação penosa com o Outro que o invade, as construções a respeito de suas experiências, sua condição de objeto perante o Outro. O analista, por sua vez, acolhe o testemunho do psicótico, sem qualquer juízo de valor ou de saber, disponibilizando-lhe um espaço de escuta, onde ele possa construir um Outro mais moderado e seja capaz de se reconhecer e se localizar perante este; mais do que apenas presenciar ou “testemunhar” o testemunho do psicótico, o analista deve acolhê-lo, ajudá-lo a construir um sentido para sua fala. Esta é a dinâmica: testemunho do psicótico e acolhimento do analista.

Assim, cabe ao analista disponibilizar um espaço ao psicótico onde ele possa direcionar a interpretação dos fenômenos que lhe ocorrem, acolhendo-a de bom grado. O psicótico, por sua vez, dá seu testemunho sobre sua condição de objeto diante do Outro, interpretando os fenômenos e conferindo-lhes algum sentido (Maciel, 2008 Maciel, V. S. (2008). A transferência no tratamento da psicose. Mental, 10(1), 31-40. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272008000100003
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), o que, contudo, não significa que o analista seja passivo:

O psicanalista, ao ocupar o lugar de secretário, para além de afirmar a posição do sujeito de testemunha aberta do discurso do Outro, pode ajudá-lo a construir um sentido para isto que ele testemunha. Assim, seu papel é ativo, o que significa não apenas registrar o que a testemunha relata, mas tomar seu testemunho “ao pé da letra”.

(MEYER, 2008 Meyer, G. R.. (2008). Algumas considerações sobre o sujeito na psicose. Ágora,, 11(1), 299-312. doi: https://doi.org/10.1590/S1516-14982008000200009
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, p. 310)

Além desse manejo, Soler, citada por Mendes ( 2005 Mendes, A. A. (2005). Tratamento na psicose: o laço social como alternativa ao ideal institucional. Mental, 4(1), 15-28. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272005000100002
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), aponta também uma outra manobra transferencial, que é a de orientação de gozo. O analista, assim, deveria operar uma vacilação entre a posição de acolhimento do testemunho e a de orientação de gozo. Enquanto, no primeiro caso, o analista silencia para dar voz ao psicótico, no segundo, ele trabalha como um secretário não muito discreto, fazendo oposição aos momentos mortíferos. Dessa forma, faz limite ao gozo desordenado que invade o psicótico. Saliente-se, aqui, mais uma vez, que ao falar em orientação do gozo, é preciso deixar claro que o que é possível ser orientado, direcionado, é o tratamento, e não o sujeito.

Maciel ( 2008 Maciel, V. S. (2008). A transferência no tratamento da psicose. Mental, 10(1), 31-40. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272008000100003
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) ao apresentar alguns casos clínicos, ilustra o recurso ao manejo da transferência por meio dessa posição de testemunha, e de auxílio e acolhimento por parte do analista. A autora apresenta o fragmento do caso intitulado Lúcio, que era um paciente psicótico atendido em um consultório particular, por um psiquiatra que recomenda a suspensão de seus remédios antipsicóticos, e é atendido, também, por uma analista no mesmo local. Após essa suspensão da medicação, Lúcio volta a apresentar fenômenos elementares frequentemente, e diz a analista que como tem muita coisa acontecendo, ele precisa conversar mais lá. Diante disso, ela disponibiliza um maior número de atendimentos. Lúcio comparece aos atendimentos e “conta diversas manobras que precisa fazer em seu dia a dia principalmente no que diz respeito à convivência com os vizinhos” (Maciel, 2008 Maciel, V. S. (2008). A transferência no tratamento da psicose. Mental, 10(1), 31-40. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272008000100003
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, p. 36). Sendo assim, a analista passa a se colocar como uma testemunha do que esse paciente tem a “conversar”, cultivando um lugar muitas vezes de silêncio, mas sempre indicando que ele tinha sua atenção, e sempre reafirmando um lugar onde o paciente pudesse “depositar seu saber construído” (Maciel, 2008 Maciel, V. S. (2008). A transferência no tratamento da psicose. Mental, 10(1), 31-40. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272008000100003
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, p. 36).

A partir disso, pela primeira vez, Lúcio acaba por não optar pela internação, e sim aposta em permanecer fazendo uso desse espaço que lhe foi disponibilizado. Conseguindo, inclusive, manter sua convivência social, “localizando o espaço de tratamento como o espaço para onde pode direcionar seu delírio” (Maciel, 2008 Maciel, V. S. (2008). A transferência no tratamento da psicose. Mental, 10(1), 31-40. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272008000100003
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, p. 36). Alguns meses depois, seu psiquiatra indica que ele retorne ao uso da medicação, e Lúcio nesse momento localiza os atendimentos que teve com analista como uma etapa decisiva, podendo indicar a necessidade em outros momentos e situações, de uma testemunha.

Outro fragmento desse mesmo caso é abordado por Maciel ( 2008 Maciel, V. S. (2008). A transferência no tratamento da psicose. Mental, 10(1), 31-40. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272008000100003
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) para ilustrar de modo breve outro manejo da transferência, que foi abordado por Soler (1991), no que diz respeito à orientação de gozo. Deixando claro, mais uma vez, que se trata de uma orientação de gozo no tocante ao tratamento, e não uma direção do sujeito. Lúcio também participava de uma igreja, e essa participação, além de algumas convocações feitas pela igreja, faz com que Lúcio responda com delírio, sendo essa resposta, para ele, muito invasiva e sem contenção. Várias falas do paciente indicam que a Igreja acaba se tornando para ele um Outro sem lei, invasivo e perseguidor. Diante dessa situação, a analista então se coloca de modo ativo, “dizendo que é preciso que ele não vá tanto à Igreja e que ele pode escolher como vai acontecer sua participação, podendo se afastar quando achar necessário” (Maciel, 2008 Maciel, V. S. (2008). A transferência no tratamento da psicose. Mental, 10(1), 31-40. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272008000100003
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, p. 37). Ou seja, o próprio paciente indica que a relação com a igreja tem um excesso, e ao dizer isso à analista, coube a ela acolher essa fala, esse elemento simbólico e “devolver a ele como forma de interdição” (Maciel, 2008 Maciel, V. S. (2008). A transferência no tratamento da psicose. Mental, 10(1), 31-40. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272008000100003
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 37). Logo:

A intervenção de orientação do gozo deve estar pautada na indicação do sujeito, para que diante dessa orientação do analista ele possa construir uma maneira de ele mesmo fazer essa barra. Lúcio, algum tempo depois, afirma: “Eu quero continuar aqui com você pra manter o equilíbrio, um equilíbrio que eu nunca tive. Pra quando eu for rezar o terço, por exemplo, não achar que tem ali uma pessoa iluminada”.

(Maciel, 2008 Maciel, V. S. (2008). A transferência no tratamento da psicose. Mental, 10(1), 31-40. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272008000100003
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 37)

Assim, nesses dois fragmentos apresentados, nota-se que o analista deverá intervir seja de modo mais ativo ou omissivo, sempre levando em consideração o saber daquele sujeito, mas sempre buscando dar conta do vínculo erotômano que envolve essa relação, evitando, dessa maneira, que o psicótico se veja mortiferamente tomado.

Diante desses manejos, nota-se que apesar do constante impasse na obra freudiana quanto à possibilidade de tratamento da psicose, Lacan, segundo Mezêncio ( 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. ), coloca um fim a esta indagação ao dizer que o analista não deve retroceder diante da psicose. De fato, a transferência na psicose é o ponto-chave para a construção de uma saída possível para esse impasse, ou seja, para a possibilidade de tratamento analítico nesses casos.

Segundo Laurent, citado por Mezêncio ( 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. ), Lacan buscou em sua obra elaborar as condições para o acolhimento do psicótico, adequando a ele o dispositivo analítico, não tomando como base a neurose, e considerando, como premissa, a ideia de que o dispositivo tem que se adequar a cada um que lhe dirija uma demanda. Assim, a indicação de um tratamento analítico deve ser feita individualmente, em cada caso, não partindo de uma proposição universal:

Desse modo, a questão da indicação toma a formulação: o encontro com o analista é útil ou não? Em lugar de saber se o caso é acessível à psicanálise, afirma-se que não há contraindicação ao encontro com o analista, ainda que o produto desse encontro não seja, a rigor, uma análise.

(Mezêncio, 2011Mezêncio, M. de S. (2011). Clínica Psicanalítica das Psicoses: o impasse da transferência. Belo Horizonte, MG: Coopmed. , p. 29)

Daí, tem-se que o analista deverá analisar no que o tratamento analítico pode ser útil àquele sujeito, adotando algum manejo transferencial, de acordo com o caso, e com a relação do psicótico com o Outro. A psicanálise, assim, busca de alguma forma ser útil ao psicótico, ao fazer do ambiente analítico uma experiência, um espaço de apaziguamento para aquele sujeito.

Considerações finais

Diante de tudo que foi exposto, observa-se que a clínica psicanalítica da psicose, a todo o momento, adota contornos, mais do que em qualquer outra circunstância, de uma grande singularidade, podendo ser adjetivada como a clínica do “um-dia-de-cada-vez”, na qual a construção deve partir dos caminhos indicados pelo próprio sujeito, conforme os fatos cotidianos da vida se lhe apresentam. É como se o psicótico vivesse numa corda bamba de encontros com o Outro. De fato, impossível definir uma estabilização que se faça eterna, ou duradoura o suficiente, pois as vicissitudes do dia a dia sempre hão de tirar o psicótico de uma posição de gozo satisfatória, e o furo do simbólico, a todo o momento, estará a lhe desafiar.

Outrossim, é razoável inferir que, de fato, existe uma clínica possível, sob a perspectiva psicanalítica, para o tratamento da psicose, sendo o ponto-chave para tal conclusão a existência de um laço transferencial. Apesar de não se configurar como um vínculo nos moldes do tratamento para os neuróticos, a transferência, nesse caso, assume a modalidade de uma erotomania, que decorre da estrutura e da lógica da relação analítica, e que precisa ser adequadamente manejada pelo analista, para que não evolua à sua forma mortificante de se apresentar.

Importante salientar que é bastante comum a referência ao aforismo lacaniano, proferido em Abertura da seção clínica (Lacan, 1977 Lacan, J. (1977). Abertura da sessão clínica. Recuperado de: < http://www.traco-freudiano.org/tra-lacan/abertura-secao-clinica/abertura-clinica.pdf >
http://www.traco-freudiano.org/tra-lacan...
, p. 9), segundo o qual “A psicose é aquilo frente a qual um analista não deve retroceder em nenhum caso” 2 2 No original: La psychose, c’est ce devant quoi un analyste, ne doit reculer en aucun cas . . Entretanto, a partir do que foi largamente exposto, pode-se asseverar que inexiste afirmação de inspiração tão freudiana quanto essa. De fato, uma rápida incursão no percurso histórico nos autoriza assegurar que, em momento algum de sua investigação e terapêutica, Freud recuou diante de sua inesgotável sede de conhecimentos e interesse científico, sempre buscando desvendar os mistérios que circundavam a estrutura psicótica, mesmo quando contraindicava seu tratamento, ocasiões em que não obedecia a tal restrição em seu exercício particular.

Imprescindível observar, por dizer respeito às soluções possíveis para o psicótico, que, além do tratamento analítico, via erotomania de transferência, existem outras saídas que o psicótico adota, fora do ambiente analítico. Com efeito, temos como exemplos de estabilizações psicóticas, entre outras: a passagem ao ato, a metáfora delirante, invenção ou criação de uma obra, e a sublimação criadora. Quer dizer isto que, com certa frequência, o psicótico mesmo elabora uma saída para lidar com o Outro que o invade, dispensando a necessidade de um analista ou de um tratamento clínico.

Portanto, é fundamental que se frise, uma vez mais, que a psicanálise, não sendo a solução única ao psicótico, apenas será válida quando o analista lhe for útil, ou seja, quando o encontro com o discurso analítico se lhe apresentar de uma utilidade tal que ele possa colocar seu investimento libidinal em uma relação transferencial capaz de produzir-lhe um espaço de existência, criando meios de regrar o gozo e de barrar o Outro.

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  • 1
    Termo utilizado por Freud para designar, conjuntamente, os tipos de neurose e psicoses, mas que foi abandonado em seus escritos posteriores.
  • 2
    No original: La psychose, c’est ce devant quoi un analyste, ne doit reculer en aucun cas .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Aceito
    16 Mar 2023
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