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Entre sucuris e queixadas: transformações nos mitos pano de origem da ayahuasca

Between anacondas and white-lipped peccaries: transformations in panoan myths of Ayahuasca

RESUMO

O artigo propõe examinar dois dos principais mitos pano relacionados à ayahuasca como transformações de uma série de outros mitos. Estabelecendo assim um conjunto de transformação, procura-se demonstrar que esses mitos estão intimamente ligados aos mitos que versam sobre a relação dos humanos com bandos de queixadas. Essa ligação pode ser compreendida à luz de uma hipótese bastante influente acerca da história da difusão da ayahuasca, expandindo-a para a região dos altos rios Juruá e Purus. Em particular, trata-se de indicar algumas ideias para pensar como os mitos se transformaram para acomodar em seu seio o uso da ayahuasca, e o que essa mudança significa do ponto de vista das cosmologias que produziram aqueles mitos.

PALAVRAS-CHAVE
Mitos; povos Pano; ayahuasca; transformações míticas; história

ABSTRACT

This article proposes to examine two of the main panoan myths related to ayahuasca as transformations of a series of other myths. By establishing a set of transformations, it seeks to demonstrate that these myths are closely linked to the myths about the relationship between humans and herds of peccaries. This connection can be understood in light of a very influential hypothesis about the history of ayahuasca diffusion, expanding it to the region of the upper rivers Juruá and Purus. In particular, we want to suggest some ideas to think about how the myths were transformed to accommodate the use of ayahuasca in their midst, and what this change means from the point of view of the cosmologies that produced those myths.

keywords
Myths; Panoan peoples; ayahuasca; mythical transformations; history

O objetivo deste artigo é oferecer algumas chaves de análise para os mitos de origem da ayahuasca contados por alguns grupos “Pano do Sudeste”, isto é, aqueles tradicionalmente viveram nas áreas do alto rio Juruá, alto rio Purus e de seus afluentes (para usar a classificação sugerida por Townsley, 1994TOWNSLEY, Graham. 1994 “Los Yaminahua”. In SANTOS-GRANERO, Fernando; BARCLAY, Frederica. (eds.) Guía Etnográfica de la Alta Amazonía. Quito, Flacso, pp. 239-358.: 247). Para fazê-lo, procurarei restituir essas narrativas aos conjuntos de transformação de que fazem parte, para assim iluminar as relações existentes entre os distintos conjuntos de mitos. Espera-se dessa forma tornar visíveis paisagens de pensamento que não podem ser percebidas quando consideramos esses mitos isoladamente.

O impulso inicial para esta reflexão foram as gravações que eu fiz com lideranças e sábios yawanawa ao longo do ano de 2009. Quando voltei a escutá-las, alguns anos depois, me surpreendi ao perceber que uma história de origem da ayahuasca contada pelo saudoso Raimundo Luiz Yawanawa1 1 O “velho Raimundo”, como era carinhosamente chamado, foi uma das grandes lideranças responsáveis por conquistas políticas e territoriais importantes na segunda metade do século XX no Acre indígena. Faleceu no final de 2010, depois de uma longa luta contra o câncer. Eu não poderia mencionar o seu nome e as suas histórias sem deixar aqui esta homenagem à sua memória. Para desembaraçar alguns detalhes da narrativa, me socorri com uma versão traduzida dessa mesma gravação que foi produzida pela linguista Lívia Camargo, a quem agradeço, no contexto de um projeto de documentação linguística apoiado pelo Museu do Índio - Funai. poderia ser compreendida como uma transformação direta dos mitos que contam sobre pessoas que viraram queixada. Quando comecei a comparar os mitos yawanawa com outros mitos pano, e depois com outros mitos de outras tradições linguísticas vizinhas (arawak e arawa), me convenci de que a associação mítica entre os queixada e a ayahuasca não era uma peculiaridade do sistema mítico do “povo-queixada” (tradução corriqueira do etnônimo Yawanawa).

Peter Gow, em An Amazonian Myth and it’s History (2001), já havia explorado a relação entre um mito sobre um homem que foi para debaixo da terra e se transformou em queixada e o sistema xamânico que integra o uso da ayahuasca. Gow relata que o mito fora contado por um compadre seu, Artemio, no contexto de uma conversa sobre mirações de ayahuasca, da qual participava, além dele, um ashaninka chamado Julian, que estava então aprendendo com o reputado xamã Don Mauricio, pai de Artemio (cf. Gow, 2001GOW, Peter. 2001. An Amazonian Myth and its History. Oxford, Oxford University Press.: 37-39). Don Mauricio, comenta Gow, contava que anteriormente existiam muitos bandos de queixadas na região, mas que “quando os cahunchis (xamãs) tomavam ayahuasca, eles encontravam o buraco na floresta através do qual os queixadas vem para esse mundo, e o escondiam” (2001: 38).2 2 A tradução dessa passagem do livro de Gow é de minha responsabilidade, como as dos demais textos em língua estrangeira citados neste artigo.

Parte do argumento desenvolvido por Gow ao longo do livro demonstra que aquele mito, além de tematizar o problema da disponibilidade dos animais predados pelos Piro e as modalidades de xamanismo que vinham então caindo em desuso, dialoga com um outro mito sobre o destino do demiurgo Tsla (que viaja para o céu, pensado como terra dos brancos, de onde chegam os aviões dos gringos do Summer Institute of Linguistics), conectando o mundo subterrâneo visto pelo homem no mito ao mundo piro visto pelos gringos (“o céu dos Piro é o mundo dos gringos, como o mundo dos Piro é o céu dos queixadas” — 2001: 278). O mito, em suma, conta (ou tem) uma história para além do enredo que ele simplesmente narra, e daí o título do livro.

Pretendo sugerir aqui que ao lermos os mitos pano de origem da ayahuasca em suas relações com os mitos sobre os queixada (inclusive aqueles analisados por Gow) nos tornamos também capazes de compreendê-los em relação a uma história. Sigo, portanto, a senda aberta pelas Mitológicas de Lévi-Strauss, que mostram à exaustão como os mitos tomados em conjunto, e vistos a partir de suas transformações, falam ainda muitas outras coisas. Ao final de nosso esforço (uma pausa, e não um fim, pois a análise dos mitos é, em certo sentido, interminável) ficará claro não apenas que os mitos que tomamos como objeto são transformações uns dos outros (e de outros, fora do texto), como também que as análises mitológicas podem ser compreendidas como transformação dos mitos em análise, assim como transformação de outras análises dos mitos.3 3 Por isso eu não poderia sustentar qualquer pretensão de oferecer neste texto uma análise ou demonstração final de um suposto “verdadeiro sentido” desses mitos. Antes, trata-se de um primeiro apanhado de uma reflexão em andamento. Além disso, como é bem sabido, em mitologia “quem conta um conto aumenta um ponto”: me dou por satisfeito se as análises que se seguem motivarem outras interpretações, consoantes ou discordantes dessas que aqui apresento.

Os mitos que analiso a seguir foram narrados por pessoas cujas histórias coletivas se confundem com o trânsito por igarapés e “varações” que conectam as cabeceiras do rio Envira aos outros afluentes do rio Juruá (como o Tarauacá ou o Gregório), e ao rio Purus e seus afluente (como o Chandless, o Iaco ou o Acre). Trata-se de pontos de encontros e conflitos envolvendo grupos indígenas e seringueiros ou patrões seringalistas brasileiros, e grupos de caucheiros vindos do Peru, associados a outros coletivos indígenas vindos do rio Ucayali, do Madre de Dios e de seus afluentes — e aqui inclui-se principalmente pessoas piro-yine vindas do Madre de Dios e do baixo Urubamba; pessoas ashaninka e pessoas shipibo e conibo vindas da região do rio Ucayali; entre outros.4 4 É claro que diversas formas de relação entre esses povos indígenas através dos “varadouros” e istmos que cortam os divisores de águas aconteciam antes da chegada e do estabelecimento de não-indígenas na região (cf. Zarzar, 1983; Gow, 1993: 331). O que não havia então, segundo a hipótese com a qual concordamos (e à qual voltaremos na conclusão), era o uso disseminado da ayahuasca. Voltaremos a esses encontros na conclusão do texto.

A ANTA QUE JOGAVA JENIPAPO, OU O HOMEM QUE CASOU COM A SUCURI

Os leitores que acompanham a “Panologia” (um dos ramos mais prolíficos da etnologia sobre os povos indígenas na Amazônia Ocidental) sabem que existem pelo menos duas estruturas narrativas básicas comumente associadas à ayahuasca: o mito que conta sobre como um homem namorou com uma mulher-sucuri, indo viver com ela no mundo submerso; e o mito que conta como o povo de uma aldeia resolve subir aos céus através do uso intensivo de uma espécie de cipó. A coleção e comparação de todas as versões dessas narrativas permitiria a escrita de todo um novo volume das Mitológicas. Com efeito, o primeiro mito que reproduzo aqui, por exemplo, é talvez o mito pano que foi mais registrado e difundido. Eu mesmo já ouvi sua narrativa por pessoas yawanawa e huni kuin incontáveis vezes. Foi registrado em vários contextos e suportes: dele existem dezenas de versões escritas em livros e monografias, existem muitas pinturas, ilustrações em livros e desenhos. E existe ainda uma versão em filme de animação feita pelos Yawanawa5 5 O filme Awarã Nane Putani pode ser assistido no link https://vimeo.com/72352580. ; uma versão em filme, encenada com atores (filmada na aldeia Jacobina, na Terra Indígena Kaxinawa-Ashaninka do Rio Breu); e uma versão em jogo eletrônico para computador (baseada em narrativas registradas na Terra Indígena Kaxinawa do Baixo Rio Jordão).

As versões huni kuin desse mito são reputadas muito explicitamente como a história de origem do nixi pae (ayahuasca). Entre os Yawanawa é também comum atribuir essa função ao mito de Puyahunihu, que reproduziremos mais adiante (embora nosso artigo não comece por ele, é o nosso verdadeiro M016 6 Anexada ao artigo está uma lista de todos os mitos mobilizados aqui. , e todo esse artigo orbita ao redor desse mito). A versão que resumo aqui está baseada na que foi registrada por Miguel Carid Naveira (Carid Naveira, 1999CARID NAVEIRA, Miguel. 1999. Yawanawa: da guerra à festa. Florianópolis, Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 188-190; esse será o nosso M02), e inicialmente, como pano de fundo para essa narrativa, terei em vista onze outras versões muito parecidas com esta: cinco versões huni kuin (M03 — Tastevin, 1925TASTEVIN, Constant. [1925] 2009. “O rio Muru: seus habitantes, crenças e costumes Kachinawá”. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.) Tastevin, Parrissier. Rio de Janeiro, Museu do Índio-Funai. pp.136-71.: 165; 1926TASTEVIN, Constant. [1926] 2009 “O Alto Tarauacá”. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.) Tastevin, Parrissier. Rio de Janeiro, Museu do Índio-Funai. pp.172-205.: 202-203; M04 — Lagrou, 2000LAGROU, Els. 2000. “Two Ayahuasca myths from the Cashinahua of Northwestern Brazil”. In LUNA PORRAS, Luis Eduardo; WHITE, Steven. (orgs.). Ayahuasca Reader. Santa Fé, Synergetic Press, pp. 31-35.; 2007LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridades e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). São Paulo, Top Books.: 197-200; M05 — Camargo, 1999CAMARGO, Eliane. 1999. Yube, o homem-sucuriju: Relato caxinauá. Paris, Amerindia, n°24: 195-212.; M06 — D’ans, 1975D’ANS, Andre Marcel. 1975. La verdadera Biblia de los Cashinahua. Lima, Mosca Azul.: 122-131; M07 — Ibã, 2005IBÃ, Isaias Sales. 2005. Nixi Pae: o espírito da floresta. Rio Branco, Comissão Pró-Índio do Acre.), duas versões sharanawa (M08 — Siskind, 1973SISKIND, Janet. 1973. To hunt in the morning. Oxford, Oxford University Press.: 138140; M09 — Deleage, 2009DELEAGE, Pierre. 2009. Le chant de l’anaconda: L’apprentissage du chamanisme chez les Sharanahua (Amazonie occidentale). Nanterre, Société d’Ethnologie.: 95-98), uma versão shawadawa (M10 — Iskuhu et. al., 2009ISKUHU [Edilson Pereira; DIAKA [Francisco Oliveira de Lima]; ISHUKU, Nai Tãde [João Napoleão Pereira]; SHOWÃ, Mäku [José Arenilton Pereira da Silva]. (orgs.) 2009. Shawã Shãdipahu: histórias do Povo Shawãdawa (Arara). Rio de Janeiro e Rio Branco, Museu do Índio-Funai e Comissão Pró-Índio do Acre.: 83-85), e três versões yaminawa (uma do rio Acre, M11 — Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.: 460-462; uma do rio Mapuya, M12 — Perez Gil, 2006PÉREZ GIL, Laura. 2006. Metamorfoses yaminawa: xamanismo e socialidade na Amazônia peruana. Florianópolis, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 117-119; e uma contada por um homem yaminawa que saiu do rio Acre para morar na Terra Indígena Jaminawa do rio Caeté, M13 — Padilha et. al., 2019PADILHA, Rosenilda Nunes; PADILHA, Lindomar Dias; LACERDA, Luiz Felipe Barboza. (orgs.). 2019 Nuku Shedivawe Xina. São Leopoldo, Casa Leiria.: 75-78).

A versão yawanawa (M02) conta que

Um homem já casado estava sem nada para comer e decidiu ir pescar. Na beira de um lago, ele ouviu um barulho, e observou escondido. Uma anta veio até a beira do lago e jogou três frutos de jenipapo na água. Então se ouviu uma voz: “Txipi teu marido te chamou”. Da água saiu uma mulher muito bonita, que transou com a anta. O homem voltou para casa pensando no que tinha visto. Ele não conseguiu dormir lembrando da mulher do lago.

No dia seguinte disse para sua mulher: “Ô, eu vou buscar jenipapo, meu corpo está muito feio, tão branco”. O homem então buscou jenipapo, e deu uma parte para que sua mulher o pintasse, guardando um cacho para jogar mais tarde no lago. A mulher pintou todo o seu corpo. Depois disso, o homem disse que ia procurar alguma coisa para comer no lago, pegou suas flechas e foi embora. Ele foi até o lugar onde tinha visto a anta, e jogou os frutos do jenipapo no lago. “Txu, teu marido chegou”, ele ouviu a irmã mais nova gritar. Do lago saiu uma mulher ainda mais bonita do que a que ele tinha visto no dia anterior. Quando ela passou perto do homem, ele a agarrou pelo cabelo. A mulher, vendo que não era a anta, contorcia-se gritando: “Me deixa, me deixa!”. O homem então contou que vira a irmã dela namorando a anta. A mulher então resolveu namorar o homem: “para que possamos conversar direito, eu vou passar um remédio em seus olhos”. Quando a mulher pingou o sumo de uma planta nos olhos do homem, ele viu que o lago era uma grande casa. A mulher perguntou então se o homem era solteiro, ao que ele confirmou, mentindo. Os dois então se casaram, e o homem passou a viver no fundo do lago com as duas irmãs.

Toda noite, seu sogro tomava ayahuasca com a sua família. O homem queria tomar, mas a suas esposas o desaconselhavam. Uma noite, apesar dos conselhos em contrário, o homem experimentou a ayahuasca. Quando ele começou a sentir os efeitos da bebida, ele logo passou mal. Então a mulher pediu para seu pai assoprar sobre ele. Quando o sogro foi assoprar sobre sua cabeça, desesperado, o homem gritou: “Essa cobra quer me engolir, mulher me ajuda que a cobra está me engolindo”. Ele então passou a noite inteira gritando sem controle.

Muito tempo se passou, e as mulheres já estavam grávidas do homem. Uma delas teve um menino e a outra uma menina. O homem já se acostumara à sua nova família. Enquanto isso, a mulher humana que tinha ficado na terra achava que ele estava morto, e já estava cumprindo o luto, tinha já raspado o cabelo. Passando fome, ela ia com os filhos até uma ponte que o marido tinha construído sobre um igarapé. Dentro da água, as crianças encontraram um bodó (ishki) no buraco de um pau, mas tentando pegá-lo descascaram a sua cauda. Quando finalmente conseguiram pegar o bodó, deram-no à criança mais nova para que ela o guardasse no cesto, mas bodó espetou a mãozinha da criança e escapou. A mulher não parava de lamentar: “bodó velho preto, por que tu fugiu? Meus filhinhos estão com fome, eles vivem sem pai, eles vieram pegar um bodó e você foge”.

Esse mesmo bodó viu o homem deitado com as duas mulheres. Em um momento propício, se aproximou dele, e contou que vira a sua antiga mulher lamentando. O homem então sentiu muita saudade de sua antiga família. Os dois então combinaram a fuga do homem.

No outro dia bem cedo o ishki convidou o homem para trazer o resto da lenha que tinha deixado. O homem fingiu que não queria ir, mas ishki agarrou o homem pelo braço e arrastou ele para fora como tinham combinado. O homem se sentou sobre as costas do ishki e este o lançou sobre a terra seca. O homem foi embora de volta para a sua antiga casa, enquanto o ishki foi se esconder no último remanso de água, para que as cobras não o encontrassem.

O homem chegou em sua casa e encontrou a sua mulher chorando. Ela reclamou do cheiro ruim que ele exalava. Esquentou água e deu banho nele. Enquanto isso, a família das sucuris sentia a sua falta e o procuraram. O pai-sucuri fez uma reza chamando a chuva, e choveu muito, os rios e lagos alagaram a terra. Mesmo assim as sucuris não puderam encontrá-lo (Naveira, 1999: 188-190).

Há alguns motivos para que esse mito esteja entre os que são mais conhecidos na Amazônia Ocidental: ao oferecer uma figuração muito concreta da experiência de um viajante que longe de casa experimenta a ayahuasca, o mito se presta como uma máquina de tradução para os encontros que se tornam cada vez mais intensos e prolíficos desde que os Yawanawa, os Huni Kuin, os Shanenawa e outros coletivos pano entraram no “tempo da cultura” e dos festivais (Aquino, 2006AQUINO, Terri. 2006. “Prefácio”. In WEBER, Ingrid. Um copo de cultura: os Huni Kuin do rio Humaitá e a escola. Rio Branco, Edufac, pp. 15-27.; Ferreira Oliveira, 2018FERREIRA OLIVEIRA, Aline. 2018. “Os outros da festa: um sobrevoo por festivais yawanawa e huni kuin”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 24, n. 51: 167-201. DOI 10.1590/S0104-71832018000200007
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). Tanto os jovens indígenas que deixam as suas aldeias para conduzir rituais neoxamânicos nas cidades do sudeste e do estrangeiro, quanto os brancos que participam de festivais, encontros e iniciações promovidos frequentemente nas terras indígenas no Acre, encontram ressonâncias fenomenológicas significativas no enredo do mito. Esse mito é por isso muito utilizado, sendo, a cada encontro, introduzido pragmaticamente nesse circuito em expansão, no qual brancos e indígenas desejam comunicar aos outros as suas próprias experiências com a ayahuasca (o que, nesses tempos de “redes sociais”, não é pouca coisa).

Mas o mito possui também ressonâncias mais propriamente amazônicas. A começar pela anta que desvela para o homem a possibilidade de sua relação com uma mulher-sucuri. A anta como um afim sedutor é um personagem comum em mitos ameríndios. Mais do que isso, como demonstra Lévi-Strauss em O Cru e o Cozido, a figura do “tapir sedutor” vê-se muito comumente envolvida nos eventos míticos que dão origem aos venenos, em especial ao veneno de pesca (Lévi-Strauss, 1964LÉVI-STRAUSS, Claude. [1964] 2004. O Cru e o Cozido (Mitológicas vol. I). Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac & Naify.: 314). Como a ayahuasca,7 7 Em hantxa kuin, ayahuasca se diz nixi pae, sendo que “pae é o termo usado para designar bebidas alcoólicas, alucinógenas, toxicas ou venenosas” (Lagrou, 2007: 218). os venenos fazem o mito “passar por uma espécie de desfiladeiro cuja estreiteza aproxima singularmente a natureza e a cultura, a animalidade e a humanidade” (Lévi-Strauss, 1964LÉVI-STRAUSS, Claude. [1964] 2004. O Cru e o Cozido (Mitológicas vol. I). Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac & Naify.: 316), ao promoverem a reversibilidade dos planos da cultura e da natureza, que então tornam-se “permeáveis”: “o veneno definiria assim um ponto de isomorfismo entre natureza e cultura, resultante de sua compenetração”, tal como o animal sedutor, que também representa a “intrusão violenta da natureza no seio da cultura” (1964: 317).

Na versão acima transcrita, diante dos olhos do caçador escondido, a anta atira frutos de jenipapo na água (na maioria das outras versões, o narrador especifica que ela atirou três frutos no lago, e é muito comum que ele faça onomatopeias para identificar o barulho das sementes caindo na água). Esses frutos, que em situações normais estão entre os alimentos da anta (na versão huni kuin M06, o jenipapo é fruto de seu roçado), caso em que ela defecaria o caroço no lugar de atirá-los à água como se fossem bolos de oaca (o que evoca a relação apontada por Lévi-Strauss entre as fezes do animal e os venenos de pesca),8 8 Há um mito muito difundido entre povos falantes de línguas pano que conta a origem do veneno conhecido no Acre como “oaca” (ou pooikama, em sharanawa): uma mulher transa com uma anta transformada em homem, que a leva para pescar usando como veneno seus próprios excrementos (cf. Siskind, 1973: 115-116). Esse mito, como observou Gow, é uma das bases para os mitos que contam os Piro-Yine sobre um personagem cômico chamado Shanirawa (uma paródia de mitos yaminawa), mitos que parecem também incluir uma versão dessa história que analisamos aqui (cf. Gow, 2001: 98; o personagem aparece também nos mitos escritos por Matteson: 1965: 184-192). aparecem como elo de uma relação de afinidade, permitindo a comunicação amorosa entre pessoas de distintos povos-natureza e de sexo oposto. Isso conecta-se muito literalmente à função da tintura de jenipapo na produção das pinturas que embelezam e produzem o corpo das mulheres e dos homens, especialmente em situações ritualizadas de encontro entre diferentes pessoas (homens - mulheres; anfitriões - estrangeiros; humanos - extra-humanos, etc.): nessa versão yawanawa, o caçador sai depois de ser pintado com esmero pela sua antiga mulher; em algumas versões huni kuin, os narradores enfatizam a beleza da pintura da mulher-sucuri que sai do lago (cf., p.ex., o M04). Com efeito, para muitos povos pano a origem mais comum dos padrões gráficos kene é justamente a pele da sucuri ou da jiboia (Lagrou, 2007LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridades e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). São Paulo, Top Books.; Padilha et. al., 2019PADILHA, Rosenilda Nunes; PADILHA, Lindomar Dias; LACERDA, Luiz Felipe Barboza. (orgs.). 2019 Nuku Shedivawe Xina. São Leopoldo, Casa Leiria.).9 9 A importância da jiboia e da sucuri nos sistemas simbólicos dos povos pano foi estudada por diversos autores (para ficar no escopo de nossa bibliografia, cf. Lagrou, 2007; Deleage, 2009; Sáez, 2006; Perez Gil, 1999, 2006; Carid Naveira, 1999; Roe, 1982). Por falta de espaço, não cabe aqui tentar resumir as sofisticadas análises desses autores, sobre as quais nos apoiamos.

O jenipapo atirado ao lago pela anta provoca a saída de uma mulher-sucuri, e assim a aproximação súbita do mundo do caçador e do mundo dos seres subaquáticos. Mas é uma planta-colírio que permitirá ao homem ver o mundo subaquático como ele via o seu próprio mundo, efeito que será depois revertido pela ayahuasca, permitindo ao homem ver o “outro lado do outro lado” (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2015. The Relative Native: Essays on Indigenous Conceptual Worlds. Chicago, Hau Books.: 284). O mito apresenta a ayahuasca também como uma teoria da visão, ou mais especificamente como uma teoria sobre o que significa ver como os outros (bichos, mortos ou brancos). Esse mundo subaquático é muito comumente representado em mitos amazônicos como morada de povos eminentemente sobrenaturais, por vezes agentes etiológicos implacáveis (cf. por exemplo, Barreto, 2013BARRETO, João Paulo de Lima. 2013. Wai-Mahsã: peixes e humanos: Um ensaio de Antropologia Indígena. Manaus, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Amazonas., para uma classificação dos seres subaquáticos do ponto de vista dos tukano). Alguns coletivos falantes de línguas arawak que vivem próximos aos divisores de águas entre os rios Juruá, Purus, Urubamba e Madre de Dios, como os Ashaninka (Varese, 2006VARESE, Stefano. [1968] 2006. La Sal de Los Cerros: Resistência y Utopía en la Amazonía Peruana. Lima, Fondo Editorial del Congresso del Perú.: 173; Pimenta, 2015PIMENTA, José. 2015. Alteridade contextualizada: variações ashaninkas sobre o branco. Anuário Antropológico, vol. 40, n. 1: 279-306. DOI 10.4000/aa.1558
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) e os Matsigenka (Johnson, 2003JOHNSON, Allen. 2003. Families of the forest: the Matsigenka indians of the Peruvian Amazon. Berkeley, University of California Press.: 189), enfatizam que os brancos (chamados por eles pelo termo de origem quechua viracochas) viviam no fundo de um lago, de onde foram pescados.

É admirável também a difusão do motivo mítico do sogro-sucuri que oferece ao herói mítico plantas enteógenas e/ou cantos e técnicas xamânicas de cura, que aparece também em mitologias geograficamente muito distantes do sudoeste amazônico. Entre os Ashuar e os Canelo Quichua, Tsunki ou Tsungi, espírito aquático dono das sucuris e demais seres da água é quem ensina aos seus genros xamãs sobre o uso de plantas, dos dardos de feitiço e de outras técnicas xamânicas (Beyer, 2009BEYER, Stephan V. 2009. Singing to the Plants: A Guide to Mestizo Shamanism in the Upper Amazon. Albuquerque, University of New Mexico Press.: 529-531). Em algumas versões das histórias de Tsunki, esses espíritos vivem em palácios ou cidades submersas, cercados de mercadorias e máquinas. Há também, entre os povos tukano, por exemplo, as muitas versões de um mito no qual o pai de Yawira ou Wai Pino Mahko (uma mulher-sucuri) dá ao genro o tabaco, a coca e o banisteriopsis (cf. Bidou, 1983BIDOU, Patrice. 1983. Le Travail du chamane: Essai sur la personne du chamane dans une société amazonienne, les Tatuyo du Pirá-paraná, Vaupés, Colombie. L’Homme, Paris, vol. 23, n. 1: 5-43. DOI 10.3406/hom.1983.368341
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). Poderíamos também mencionar os espíritos da Yacumama ou Yacuruna, muito presentes nos contextos mestiços do xamanismo ayahuaqueiro na Amazônia Ocidental (Gow, 1994GOW, Peter. 1994. “River people: Shamanism and history in Western Amazonia”. In THOMAS, Nicholas; HUMPHREY, Caroline. (eds.), Shamanism, History & the State. Michigan, University of Michigan. pp. 90-113). E os leitores de A Queda do Céu (Albert & Kopenawa, 2015ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Trad. Beatriz PerroneMoisés. São Paulo, Cia das Letras.) vão se lembrar do relato de Davi sobre os sonhos que prenunciavam sua transformação em xamã, e de como seu sogro foi iniciado: as filhas de Têpêrêsiki (comumente associado à sucuri), gente das águas, observam os bons caçadores, “chamam-nos e levam suas imagens até sua casa, onde os retêm por muito tempo. É durante essa estadia nas profundezas dos rios que eles começam a se tornar outros” (Albert & Kopenawa, 2015ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Trad. Beatriz PerroneMoisés. São Paulo, Cia das Letras.: 102).10 10 Curiosamente, Kopenawa conta que diferentemente de seu sogro ele nunca foi capturado pelas mulheres yawarioma, mas que, fato comparável, durante uma caçada ele foi atacado por um bando de queixadas. Apavorado pelo fedor e pelo barulho do ranger de dentes dos porcos, ele desmaiou. Naquela noite, ele conta, ele sonhou com os espíritos queixada, e então compreendeu o que havia acontecido: “foi nesse momento que os espíritos queixada começaram a me aparecer em sonho. Um número incontável deles escapava de um enorme buraco na terra, do qual saía também um vendaval. Dançavam devagar com seus enfeites de penas, sobre um espelho que refletia uma luminosidade ofuscante” (Kopenawa & Albert, 2015: 103-104).

Que um grande predador como a sucuri seja um espírito poderoso e ameaçadoramente antropófago pode-se compreender através de uma espécie de dedução transcendental da razão amazônica:

é comum que os grandes animais predadores sejam formas diletas de manifestação dos espíritos. Entende-se, ademais, por que os animais de presa vêem os humanos como espíritos, por que os predadores nos vêem como animais de presa, e por que animais tidos por incomestíveis sejam frequentemente assimilados a espíritos (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo, Cosac & Naify.: 393).

Daí a pregnância do caráter espiritual da sucuri, mas também a relação de afinidade mormente tematizada no mito, pois, além disso, nos regimes de troca sem “heterosubstituição” amazônicos, percebe-se

porque a afinidade potencial (…) é especificada nos mitos como afinidade efetiva, mas unilateral, onde os doadores de mulheres são os canibais por excelência. Quem dá mulheres sem recebê-las em troca (e só uma pessoa vale outra), abre um crédito canibal contra os tomadores. A mitologia sul-americana tem como uma de suas figuras típicas o sogro antropófago, (…) de quem se obtêm os bens culturais. (…) “O caçador é por excelência um genro”; com efeito, pois, em caso contrário, o genro será a caça por excelência (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo, Cosac & Naify.: 175, 177).

Como afirmei acima, esse é um mito para o qual existem incontáveis versões. Seu enredo básico possui uma estabilidade muito marcada, desde as versões registradas por Tastevin em 1925 e 1926, passando pelas versões escritas por Lagrou (2000LAGROU, Els. 2000. “Two Ayahuasca myths from the Cashinahua of Northwestern Brazil”. In LUNA PORRAS, Luis Eduardo; WHITE, Steven. (orgs.). Ayahuasca Reader. Santa Fé, Synergetic Press, pp. 31-35.; 2007)LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridades e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). São Paulo, Top Books. ou Deleage (2009)DELEAGE, Pierre. 2009. Le chant de l’anaconda: L’apprentissage du chamanisme chez les Sharanahua (Amazonie occidentale). Nanterre, Société d’Ethnologie., até as versões que se pode ouvir no presente contadas pelos jovens ayahuasqueiros indígenas no Acre. Algumas versões acrescentam detalhes interessantes à narrativa, mas nenhuma delas modifica substancialmente o enredo (alterando a sua estrutura actancial ou introduzindo um novo personagem relevante, por exemplo), exceto nas motivações do caçador (ou pescador, na versão yawanawa) no começo da história,11 11 Na maior parte das versões, a narrativa começa quando um homem sai para caçar e chega na beira de um lago (como nas versões huni kuin M03 e M04; nas versões sharanawa M08 e M09; ou na versão shawandawa M10), ou de um igarapé (na versão M07, registrada entre os huni kuin do rio Jordão). Na versão huni kuin de D’Ans (M06), o homem sai para buscar jenipapo para pintar seu filho recém-nascido. e, mais importante, no seu final.

Nas versões huni kuin (M03, M04, M05, M06 e M07), há uma diferença muito importante no final da narrativa: depois que o homem sai do lago, as sucuris o procuram sem sucesso, por vezes depois de fazer chover para que as águas dos rios e lagoas transbordem. O homem então se esconde de sua antiga família sucuri, mas depois de alguns dias ele e a sua família sentem fome de carne. Na versão M06, ele sai para caçar na beira de um lago, e tenta flechar um jacu, mas erra. É quando vai buscar sua flecha, que ele é encontrado por seu filho sucuri, que o ataca e engole um pedaço do seu pé (em algumas versões, apenas o seu dedo). Então, sucessivamente, ele vai sendo atacado pelos outros membros de sua antiga família sucuri, que vão engolindo um pedaço cada vez maior de seu corpo. O homem clama pela ajuda de seus parentes, mas eles o encontram já todo quebrado. Eles matam as sucuris e abrem os seus corpos com facas, mas o homem já está todo mole, quebrado ou doente.

Nas duas versões mais antigas de que dispomos (M03 escrita em 1926, e M06 escrita em 1975), o homem é levado por seus parentes de volta para a aldeia, e, ao sentir que vai morrer, conta da ayahuasca e pede que lhe tragam cipós e folhas da mata, que ele vai conferindo, até que eles encontram o Banisteriopsis caapi e as folhagens da Psychotria viridis. O homem então ensina a preparar a beberagem. Nas outras três versões huni kuin que fazem parte desse nosso corpus mítico (M04, M05 e M07) alguns dias depois que o homem morre nasce sobre o seu túmulo tipos de cipó.12 12 Na versão M04, no lugar onde o homem foi enterrado nascem quatro tipos diferentes: xane huni, baka huni, shawan huni, ni huni (Lagrou, 2007: 199). Na versão M05, do corpo do falecido nascem três tipos de cipó: shawan huni, shane huni e huni kayabi (Camargo, 1999: 211). Na versão do mito registrada pelo pesquisador Ibã Huni Kuin no rio Jordão (M07), o homem avisa aos seus parentes que de seu túmulo nascerá, na parte direita, cipó, e na parte esquerda, a “rainha” (Psychotria viridis). Ele ainda explica como seus parentes devem preparar a bebida, e avisa que se assim o fizessem ele lhes apareceria na miração, para ensinar-lhes a cantar (Ibã, 2005: 33).

Na versão yawanawa que reproduzimos acima (nosso M02), e nas versões sharanawa M09 e shawandawa M10, depois que o homem sai do lago com a ajuda do ishki (bodó), as sucuris (ou o patriarca sucuri) fazem chover e transbordar as águas para persegui-lo, mas não conseguem encontrá-lo. A versão sharanawa de Siskind (M08) termina abruptamente quando o homem sai da água. As versões yaminawa do rio Acre (M11) e yaminawa do rio Mapuya (M12), que, como o M02 yawanawa, não são reputadas como história de origem da ayahuasca, invertem o final, e contam que o homem é que tenta encontrar sua antiga família sucuri, mas sem sucesso.

Devemos observar que as versões yawanawa, yaminawa e shawandawa não são tomadas pelos seus narradores como histórias de origem da ayahuasca (há, nesses sistemas míticos, outras histórias que cumprem essa função). Também nas versões sharanawa esses mitos não são apresentados por Siskind e por Deleage (e possivelmente pelos narradores que as contaram a eles) como histórias de origem, mas antes como mitos nos quais a ayahuasca desempenha um papel fundamental, e que por isso norteiam a experiência com a beberagem. No mito yaminawa do rio Acre (M11) é dito explicitamente que o homem já conhecia a ayahuasca (cf. Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.: 461).

Há um outro mito escrito por Calavia Sáez (chamemo-lo de M14) que se oferece como a origem do costume de tomar ayahuasca: um homem sai para caçar e se esconde “atocaiado”. Ali ele é atacado e engolido até a metade por uma sucuri. Quando seus parentes o encontram, ele diz que eles deveriam tomar shori (ayahuasca). Ninguém sabia o que era isso, e ele então ensinou-os a preparar a bebida e a cantar (esse mito é, portanto, uma versão do final das versões M03 e M06). A versão desse mito oriunda dos yaminawa da aldeia Raya, no rio Mapuya (M17), conta como um homem aprendeu a “jogar feitiço e a curar” (Naveira, 2007CARID NAVEIRA, Miguel. 2007. Yama Yama: os sons da memória. Afetos e parentesco entre os Yaminahua. Florianópolis, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 345): quando ninguém sabia enfeitiçar ou curar, um homem que fora pescar na beira de um igapó foi enfeitiçado por uma sucuri. Seus parentes o encontram quando a sucuri já havia engolido a sua perna. Eles cortam a sucuri e retiram o homem, que, no entanto, morreu. Quando seus parentes chegam à aldeia com seu corpo para enterrar, ele ressuscita, mas fica ouvindo uma cantoria da sucuri em seu ouvido (apenas ele podia ouvi-la). Assim ele aprende rezas (kuxuai) e plantas para curar e enfeitiçar, conhecimento que repassa para os seus parentes. A narrativa termina sem qualquer menção à ayahuasca.

Percebe-se assim que o tema do cipó que nasce do cadáver de um homem é destacável e compõe um núcleo narrativo independente, que pode ou não aparecer como consequência do casamento com a mulher-sucuri. Esse tema faz uma tímida aparição nos mitos registrados por Calavia Sáez com os Yaminawa no rio Acre (no mito da “ascensão aos céus” M25, uma transformação de nosso M01, o cipó nasce do umbigo do pajé morto). Há também uma (in)versão curiosa no mito M15, que conta que um koshuiti (um “rezador”), estando para morrer, pede que seus netos plantem pimenta, cipó e tabaco sobre o seu túmulo. Assim fizeram, e dias mais tarde um desses netos encontrará sobre a tumba do velho koshuiti uma ronoá (que é como são chamadas em yaminawa a jiboia e a sucuri), que o levará para matar homens do povo Kukushnawa (Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.: 428-431).13 13 A história do neto que é levado a matar pessoas kukushnawa pelo seu avô falecido transformado em jiboia é amplamente difundida entre povos falantes de língua pano. Mas nela não costuma figurar a ayahuasca, a pimenta ou qualquer outra “planta de poder” (ver por exemplo a versão desse mito contada por yaminawas do rio Mapuya — Pérez Gil, 2006: 83-85).

Mais ainda, a ayahuasca pode estar completamente ausente do mito do homem que se casou com a mulher-sucuri: há uma versão shawandawa (M10), por exemplo, cujo enredo é quase exatamente o mesmo das outras versões que analisamos (o homem vê a anta jogar jenipapo no lago, a imita, namora e se casa com a mulher sucuri…), mas que não menciona a ayahuasca. Os Shawandawa atribuem a origem do cipó a um outro acontecimento mítico, narrado em uma história identificada como “O Surgimento do Cipó” (nosso M16): um velho “pajé”, na hora de sua morte, pediu a seu filho para que fosse enterrado com os pés virados para o sol nascente. O filho o enterra com os pés para o poente, mas o velho já defunto se levantou e virou-se para o nascente, para o espanto de todos. Depois de algum tempo, nasce sobre seu túmulo a pimenta e o cipó. O filho mais velho do pajé descobre que a pimenta serve para enfeitiçar inimigos, e sonha que um homem o ensina a preparar a ayahuasca (mostrando inclusive qual folha deveria ser usada no preparo — Iskuhu et. al.: 2009ISKUHU [Edilson Pereira; DIAKA [Francisco Oliveira de Lima]; ISHUKU, Nai Tãde [João Napoleão Pereira]; SHOWÃ, Mäku [José Arenilton Pereira da Silva]. (orgs.) 2009. Shawã Shãdipahu: histórias do Povo Shawãdawa (Arara). Rio de Janeiro e Rio Branco, Museu do Índio-Funai e Comissão Pró-Índio do Acre.: 27).

Esse mito é uma versão muito próxima de um outro mito que Tastevin atribui aos Huni Kuin do alto Tarauacá (M18 — Tastevin, 1926TASTEVIN, Constant. [1926] 2009 “O Alto Tarauacá”. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.) Tastevin, Parrissier. Rio de Janeiro, Museu do Índio-Funai. pp.172-205.: 203-204): um velho huni kuin era um excelente caçador e um excelente pescador. Um dia, voltando de uma pescaria carregado de peixes, ele avisou aos seus paisanos: “vou morrer! Enterrem-me bem, sobretudo!”. Por ter sido enterrado em cova rasa, o velho revivia novamente, para o espanto de todos. Depois da terceira vez que ele saiu de sua cova, seus parentes “o pregaram no fundo da tumba com cinco estacas (…). Desta vez ele estava bem enterrado e não saiu mais” (Tastevin, 1926TASTEVIN, Constant. [1926] 2009 “O Alto Tarauacá”. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.) Tastevin, Parrissier. Rio de Janeiro, Museu do Índio-Funai. pp.172-205.: 203). De seu túmulo brotaram quatro plantas até então desconhecidas: o yuti (pimenta, que nasceu de seu olho direito), o patchi huni (cipó, que germinou de seu olho esquerdo); o chapa huni e o tukun huni, que saíram de sua boca e de seu nariz. Uma criança descobre depois que o yuti poderia ser usado para matar por envenenamento.

Esta versão é interessante porque traz a figura velho pajé relacionado à fartura na caça e na pesca (pois para ele “a natureza não tinha nenhum segredo” — Tastevin, 1926TASTEVIN, Constant. [1926] 2009 “O Alto Tarauacá”. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.) Tastevin, Parrissier. Rio de Janeiro, Museu do Índio-Funai. pp.172-205.: 203), e que se recusa a morrer definitivamente, espantando seus parentes. A recusa em morrer liga esse mito à história shawandawa de origem da ayahuasca (M16), mas conecta-o também e a um outro mito shawandawa: o mito de Puiayhudihu (M32), que é uma transformação direta de nosso M01.

UM INTERLÚDIO PRÉ-MODERNISTA

A versão shawandawa para origem da ayahuasca (M16) não fala de caçadores, lagos ou sucuris, mas apresenta-se como uma transformação muito próxima das versões dos Yaminawa do rio Acre e do Mapuya que comentamos acima (M14 e M17). Nestas, por sua vez, há o tema de um homem que vai caçar ou pescar na beira de um lago e que é então atacado pela sucuri, o que os conecta muito diretamente ao final das versões huni kuin do mito de origem da ayahuasca (M03, M04, M05, M06 e M07).

Esse tema de um caçador que na beira de um lago é atacado e parcialmente engolido por uma sucuri está presente no conjunto de mitos huni kuin que foi registrado em forma escrita há mais tempo. Seu escriba, João Capistrano H. de Abreu, esteve com dois jovens huni kuin, Budu e Tuxin, vindos do rio Iboaçu, tributário do rio Muru, afluente do Tarauacá, que foram levados ao Rio de Janeiro por Luiz Sombra em 1908 (Abreu, 1941ABREU, João Capistrano de. 1941. Rã-txa hu-ni-ku-i: Grammatica, textos e vocabulário Caxinauás. Edição da Sociedade Capistrano de Abreu.: 5-9). Considero fundamental passar pelo corpus mítico registrado por Capistrano de Abreu pois sua obra teve um papel importante no debate indigenista do modernismo brasileiro, debate que pode ser tomado como uma transformação possível da posição indígena diante da interpelação colonizadora, isto é, como um pensamento sobre o encontro “interétnico” ou “cultural” — encontro nos quais a ayahuasca foi se tornando presença comum.

Em dois mitos narrados em sequência (M19 e M20 — Abreu, 1941ABREU, João Capistrano de. 1941. Rã-txa hu-ni-ku-i: Grammatica, textos e vocabulário Caxinauás. Edição da Sociedade Capistrano de Abreu.: 347-351), um homem vai caçar na beira de um lago e é atacado por uma sucuri, que o engole. No primeiro mito (M19), o caçador escondido em uma tocaia observa uma sucuri atacar e comer uma anta. Enquanto ele assistia à cena, ele é atacado por uma outra sucuri, que o engole. Ele consegue arrancar o coração da sucuri e sair de dentro dela, gritando por seu irmão, que o encontra já com o corpo todo mole. Seu irmão o carrega para a aldeia, onde o caçador, depois de dias com o corpo mole, sem poder comer, falece. No segundo mito (M20), um homem, chamado Busã (como se chama o protagonista de algumas versões do mito huni kuin do homem que se casou com a sucuri), flecha uma juriti (o que evoca o M06, quando o homem é atacado pela sucuri ao tentar flechar um jacu), mas quando vai pegá-la percebe que uma sucuri saía do lago, em sua direção. Ele escapa da sucuri escondendo-se dentro de um toco de pau podre.

Em uma outra sequência de dois mitos, referidos por Capistrano de Abreu como “o feiticeiro e a sucuri” (M21) e “o feiticeiro e os porcos” (M22 — Abreu, 1941ABREU, João Capistrano de. 1941. Rã-txa hu-ni-ku-i: Grammatica, textos e vocabulário Caxinauás. Edição da Sociedade Capistrano de Abreu.: 403-409), conta-se que um “tuxáua” organizou uma grande pescaria com venenos (como no começo de nosso M01 yawanawa). Depois de pescar peixes e de matar um jacaré, o tuxáua e seus companheiros vêem uma sucuri engolir um queixada inteiro. Os homens açoitam a sucuri, que não pode se mexer por estar com a barriga repleta com o queixada. Eles chamam um “feiticeiro” (mukaya) para falar com a cobra. Chamada por ele, ela entra em sua casa, e conta que estava apenas comendo, não havia feito nada aos homens, que a espancaram sem motivo. Emendada nessa, está a história (M22) de um feiticeiro que era capaz de “convidar” queixadas para que seus parentes os matassem. Ele então vai até a sua casa e se deita em uma rede, enquanto seus parentes matam os porcos que se aproximam. Depois de prepararem a carne, seus parentes começam a comer. O feiticeiro pede um pedaço bem pequeno de carne, mas se engasga: daí em diante ele não comeu mais carne de queixada.

O último mito deste conjunto que eu gostaria de mencionar faz a única referência à ayahuasca no corpus mítico registrado por Capistrano de Abreu: trata-se da história “O caxinauá que bebeu huni” (M23 — Abreu, 1941ABREU, João Capistrano de. 1941. Rã-txa hu-ni-ku-i: Grammatica, textos e vocabulário Caxinauás. Edição da Sociedade Capistrano de Abreu.: 413-421). A história conta que Macari, depois de tirar huni, manda a sua esposa preparar a bebida. Ele então avisa aos seus parentes que iria tomar huni para ver as “almas de sua gente morta”. Quando ficou bêbado de huni, Macari corre, vendo sucuris e jacarés agressivos por toda parte. As almas vêm buscá-lo então, mas ele não quer ir. Com medo, seus parentes se escondem, mas ele quebra todas as panelas de barro deles, para depois correr pelo caminho e subir em uma samaúma. Lá em cima ele corre pelos galhos, gritando com medo das almas, que tentam encantá-lo ainda sem sucesso. Macari desce da samaúma, e vai novamente até a casa de seus parentes. Eles sentem o seu cheiro ruim, e sentem medo dele. Ele continua vendo sucuris que querem mordê-lo, e por isso ele sobe na samaúma outra vez. É então que ele começa a ver as coisas das almas: vê casas, vê criação de onças e cachorros, vê cobras e lacraias deitadas. As almas assentam Macari em uma rede, e então o alimentam com mingau de banana, mudubim torrado, inhames cozidos. As almas perguntam se Macari era casado, e dão a ele muitos presentes: roupas, redes, flechas, arcos, machados, terçados, facas, miçangas, colares de dentes de macaco, pulseiras e braceletes, cintos de contas. Enquanto isso, a mulher de Macari chorava de saudade. Macari não consegue descer da samaúma, até que um urubu-rei, com pena do herói, o leva de volta para a aldeia. Ele então conta para os seus parentes tudo o que viu, e distribui os presentes que ganhou para a sua mulher e seus parentes.

Esses cinco mitos (M19-M23), de registro mais antigo em nosso conjunto, nos interessam sobremaneira aqui, pois eles mobilizam vários elementos presentes nos mitos de origem da ayahuasca com que trabalhamos: está ali o caçador na beira do lago e o seu encontro com a anta e a sucuri; está o corpo mole e doente do caçador que fora atacado pela sucuri (dunôwã, na grafia de Capistrano de Abreu), carregado à aldeia pelos seus parentes, para depois falecer; está o encontro e o diálogo do “feiticeiro” com a cobra; estão os queixada convidados a entrar em casa por um xamã. E, por fim, está a ayahuasca (ou huni), mas que aparece de um jeito imediato, sem qualquer etiologia, e ainda causando medo e espanto entre os parentes de Macari. Não obstante, esses temas não se articulam em um mito coerente, como aquele que aparecerá nas páginas de Tastevin alguns anos depois (Tastevin, 1925TASTEVIN, Constant. [1925] 2009. “O rio Muru: seus habitantes, crenças e costumes Kachinawá”. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.) Tastevin, Parrissier. Rio de Janeiro, Museu do Índio-Funai. pp.136-71., 1926TASTEVIN, Constant. [1926] 2009 “O Alto Tarauacá”. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.) Tastevin, Parrissier. Rio de Janeiro, Museu do Índio-Funai. pp.172-205.). E é notável também o resultado da viagem ao alto de Macari: como em uma viagem arriscada, mas bem-sucedida, a um povo estrangeiro, ele retorna a sua aldeia (de carona com o urubu-rei) carregando incontáveis presentes, entre eles muitas mercadorias que, pela época em que essa história foi narrada a Capistrano de Abreu, consistiam nos artigos mais cobiçados de estiva prototípicos dos seringais.14 14 Calávia Sáez analisa um mito yaminawa que fala de uma expedição a um rio grande, na qual um homem é recepcionado por uma cunhada sucuri e pelo seu esposo. Para levá-lo para sua morada submersa, “passamlhe um remédio na cara para que possa viver embaixo d’água. O poço é a casa, e o balseiro é seu telhado”, e lá curam suas chagas e lhe dão carne de queixada para comer (2006: 272). Eles então dão a ele muitos presentes, “machado de ferro, terçado, rede e roupa” (2006: 273). Oscar Calavia Sáez especula então se esse povo sucuri doador de mercadorias não poderia ser uma versão mítica dos Conibo falantes de língua pano do Ucayali (2006: 273).

OS QUE FORAM COM MERDA E TUDO

O outro motivo mítico pano muito comumente associado à origem da ayahuasca fala de um povo que subiu ao céu (cf. Lagrou, 2000LAGROU, Els. 2000. “Two Ayahuasca myths from the Cashinahua of Northwestern Brazil”. In LUNA PORRAS, Luis Eduardo; WHITE, Steven. (orgs.). Ayahuasca Reader. Santa Fé, Synergetic Press, pp. 31-35.; Deleage, 2009DELEAGE, Pierre. 2009. Le chant de l’anaconda: L’apprentissage du chamanisme chez les Sharanahua (Amazonie occidentale). Nanterre, Société d’Ethnologie.; Perez Gil, 2006PÉREZ GIL, Laura. 2006. Metamorfoses yaminawa: xamanismo e socialidade na Amazônia peruana. Florianópolis, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 121), e conhece variações mais significativas. A versão que eu transcrevo a seguir, à qual me referi na introdução deste artigo, foi contada e comentada para mim em 2009 por Raimundo Luiz Yawanawa, pensador de capacidade narrativa ímpar. Eis o nosso M01:

Assim aconteceu a história dos Puyaihunihu.15 15 Segundo a linguista Lívia Camargo (comunicação pessoal) o nome Puyaihunihu pode ser glosado da seguinte forma: pui, “fezes”; yai, “tendo” ou “existindo”; hu, forma plural para “ir”; ni, passado remoto; hu, coletivizador, plural. A tradução mais aproximada então seria “aqueles que foram com as suas fezes”. Por um tempo estive muito animado com o fato de que hunihu significa também “queixada” em yawanawa, o que configurava um atalho muito direto para a relação entre a ayahuasca e os queixada. Entretanto, em conversas com alguns yawanawa, especialmente com Maria Julia Kenemani (a quem agradeço muitíssimo!), fui informado que esse nome poderia ser compreendido apenas segundo o significado glosado acima.

Dizem que nessa época ninguém ouvia falar em morte. Um chefe aconselhou seu pessoal, falando que seus sogros e sogras estavam com fome, que eles deveriam ir caçar. Eles fizeram uma caçada coletiva, gritando e espantando os animais para que eles caíssem em um lago. Na beira desse lago o chefe havia feito uma tocaia, onde esperava junto com a sua mulher mais nova.

Desde a tocaia o chefe flechou uma nambu, e quando foi pegar o pássaro morto ele caiu doente. (“Ele havia sido enfeitiçado por cobras aquáticas e por tracajás”, comentou o narrador). A mulher então chamou os outros caçadores, que carregaram o chefe para o acampamento de caçada. O chefe voltou a si, e pediu à mulher que assasse a nambu que ele havia matado. Mas ele foi ficando cada vez mais fraco, até morrer.

As pessoas não sabiam o que era morrer, e ainda ficaram esperando o chefe acordar outra vez. Mas ele nem suspiro deu. As pessoas nem choravam, apenas perguntavam o que ele tinha, assustadas. Depois de um tempo, o corpo dele já começou a feder. As pessoas, ainda sem saber o que fazer, resolveram enterrar ele. (O narrador comentou que “as pessoas não sabiam o que era morrer, e por isso não diziam ‘a alma dele vai assombrar, mexer com a gente’”).

Enterraram ele bem no meio da maloca. Em cima do túmulo dele nasceu pimenta, saindo do seu peito. Do outro lado do peito nasceu shupa (um tipo de Brugmansia). Do coração dele nasceu o tabaco. O uni (ayahuasca) nasceu dos braços dele, o tukun uni... (“Isso aconteceu com o chefe porque um pequeno tracajá e uma cobra atraíram ele para perto do lago e envenenaram ele. Dentro do corpo dele não tinha semente de cipó, não tinha semente de shupa, não tinha semente de pimenta. A cobra grande, o espírito dela, as sementes no espírito dela, isso que foi colocado dentro do corpo do chefe. Por isso ele morreu, e por isso de seu túmulo nasceram essas plantas”, comentou o narrador).

Quando as pessoas viram essas plantas nascendo, elas disseram “foram esses aqui que mataram nosso chefe. Vamos fazer como o nosso chefe, vamos atrás dele”. Elas então começaram a tomar muito shanka uni. Beberam, beberam. Com saudade do chefe, elas beberam do cipó que saiu de seu corpo. Elas não comiam, não bebiam água. O cipó não as deixava sentir fome. Elas não precisavam buscar cipó longe, elas tomavam ali da sepultura dele mesmo. E derramavam cipó no terreiro, e derramavam no caminho do porto.

Derramavam nas coisas todas, bebiam e derramavam cipó. Apenas um homem não bebia. Ele dizia: “eu não vou tomar esse cipó velho e amargo com vocês não”. Só esse homem comia, sozinho. Mariscava e comia peixe sozinho. Fazia mingau de banana e tomava sozinho. Enquanto isso as outras pessoas continuavam a tomar uni e a derramar uni por todo canto.

Não sei quantos meses as pessoas ficaram fazendo isso. Não sei quantos anos. O corpo delas foi secando. Elas ficaram sem sangue. Ficaram sem carne, ficaram pele e osso. Mas o pensamento delas estava forte. Quando elas estavam bem diferentes, elas sentiram que já dava para ir embora. “Vamos embora!”, elas disseram. Elas então pediram àquele homem que não bebia cipó e que estava de barriga cheia, bem alimentado, para ir até a outra aldeia, dos parentes que moravam perto. Era para ele ir lá e falar que as pessoas estavam indo embora, que eles fossem dar caiçuma para aqueles que iam partir. Esse homem então foi avisar aos outros, mas no caminho ele viu uma mulher pegando água, e quis transar com ela. Mas ela o enganou: “espera que eu vou derramar essa água ali, e já volto”, e não voltou mais. Ele ficou lá, desejando a mulher, esperando.

Os outros, que tinham ficado leves de tanto tomar cipó, ainda esperavam os parentes chegar para começar a subir atrás do chefe. Eles queriam ir com as pessoas olhando. Mas eles cansaram de esperar e começaram a subir. Iam subindo e tocando buzina. As mulheres choravam e iam subindo para o céu. Enquanto subiam, eles tomavam pó de pimenta, tomavam rapé, tomavam shupa. Enquanto eles subiam, o Txanu Vete (o homem que ficara tomando mingau) ouviu as buzinas. Ele então se apressou, chegou à aldeia vizinha e disse: “nossos parentes estão indo embora, atrás de nosso chefe que morreu. Eles disseram que vocês deveriam ir dar caiçuma para eles fazerem sua viagem”. “Por que você não nos avisou logo?” eles o repreenderam.

Quando eles chegaram lá, os parentes já tinham passado das árvores. O homem então subiu num pé de açaí e ficou gritando: “epa, epa, vem me pegar, eu quero ir com vocês!”. Mas não tinha mais jeito. O homem ficou sozinho para trás. E assim todos foram subindo, com suas casas e suas coisas. Eles foram subindo, e quando já estavam entre a terra e o céu o vento quase destruiu todas as suas coisas. Mas eles tomavam rapé, colocavam pó de pimenta na boca, tomavam rapé de shupa, e assim faziam o vento parar. Os marimbondos-morte vinham ferroar eles, mas eles tomavam rapé, colocavam pó de pimenta na boca, tomavam rapé de shupa, e assim escapavam os marimbondos. Assim eles iam se mudando para o céu.

Chegaram até o caminho da morte. O espírito da morte não ia deixá-los passar. Mas eles tomavam rapé, colocavam pó de pimenta na boca, tomavam rapé de shupa, e assim seguiram em frente. Eles chegaram até o pé da terra-morte. E ela balançava, e jogava eles de um lado para o outro. Mas eles tomavam rapé, colocavam pó de pimenta na boca, tomavam rapé de shupa, e assim faziam a terra da morte parar. Eles chegaram na beira do igarapé-morte, e esse igarapé da morte virava de um lado para o outro e assim era muito perigoso. Mas eles tomavam rapé, colocavam pó de pimenta na boca, tomavam rapé de shupa, e seguiram viagem. Assim eles chegaram a um lugar onde nunca tinham ido: o roçado dos espíritos. Eles olharam aquele roçado, e os pé de macaxeira pareciam que estavam todos molhados de sangue e ficavam pingando. Eles, novamente, tomavam rapé, colocavam pó de pimenta na boca, tomavam rapé de shupa, e assim seguiram viagem.

Assim eles chegaram ao céu. Viram o que parecia ser uma casa, mesmo sem ter morrido. Lá dentro eles viram o seu chefe, sendo pintado por duas mulheres. Uma pintava as suas costas, outra pintava a frente de seu corpo. Era a casa do povo do céu. As pessoas então se aproximaram de seu chefe. Mas quando iam se sentar, os bancos rolavam pelo chão. As esteiras rasgavam. As coisas se quebravam todas. Além disso, eles fediam. O chefe então disse: “o que vocês vieram fazer aqui, com essa coisarada de vocês? Vocês são fedorentos! Vão embora!”. (“Eles fediam, porque eles não estavam mortos, eles foram ao céu sem morrer”, comentou o narrador). Eles então pensaram: “nós já viemos aonde está ele, pensando nele, mas ele já fez isso conosco. Nós não podemos fazer mais nada. Então vamos voltar pra trás de novo”. Eles então vieram descendo. Resolveram então que não iam mais voltar ao mesmo lugar, que iam procurar um outro lugar, onde não houvesse doença. Quando paravam em um lugar, ouviam o pássaro: “hiri, hiri, hiri”. “Aqui é terra de doença, vamos embora”, e seguiam procurando um lugar. Foi quando encontraram um lugar onde não havia esse pássaro cantando, onde nada se mexia, silêncio. Aí resolveram ficar. Esse era o povo Puyaihunihu. Quando a gente vê que a pessoa vai morrer, o espírito daquele povo vem buscar o espírito de quem vai daqui para lá. Eles eram muito espertos, porque foram para o céu sem morrer. Assim é a história do Puyaihunihu.

Esse mito, também pensado como “história daqueles que subiram aos céus”, foi explicado por Raimundo Luiz como um dos mitos sobre a origem da mortalidade humana.16 16 As outras versões desse mito (p.ex., a versão sharanawa M25, a versão yaminawa M26, as versões huni kuin M28, M29 e M30) não o tomam nesse sentido. Esta versão compartilha com as versões sharanawa (M25) e yaminawa do rio Mapuya (M31, em que, curiosamente, não há qualquer tomada de ayahuasca) o começo na narrativa, que conecta essas versões aos mitos yaminawa M14 e M17 que comentamos acima. A versão sharanawa começa com o chefe Chashoroafo construindo uma tocaia de caça na beira de um lago, desde a qual ele será enfeitiçado por tartarugas (Deleage, 2009DELEAGE, Pierre. 2009. Le chant de l’anaconda: L’apprentissage du chamanisme chez les Sharanahua (Amazonie occidentale). Nanterre, Société d’Ethnologie.: 108). As versões yawanawa começam de um jeito muito parecido com o mito huni kuin “o feiticeiro e a sucuri” de Capistrano de Abreu (M21), para, em seguida, se aproximarem do final das narrativas huni kuin sobre “o homem que se casou com uma sucuri” (o homem atacado pelas sucuris é levado doente para sua aldeia onde ele morre, e de seu cadáver nasce o Banisteriopsis caapi, a pimenta e o shupa).

As três versões huni kuin presentes em nosso conjunto de mitos começam de maneira abrupta, sendo que as versões M28 e M29 não relatam a morte de um velho ou de um chefe: em ambos os casos, “os antigos” simplesmente desejaram ascender aos céus. A versão M30, registrada por professores huni kuin que fizeram suas pesquisas na Terra Indígena Alto Rio Purus no começo dos anos 1990, é claramente uma história de origem do cipó: motivados pelo mau comportamento dos parentes, um conjunto de pessoas decide experimentar as quatro variantes de cipó que nasceram do túmulo do “homem mais velho da aldeia” (kana huni, shane huni, baka huni, e keya huni, ou “cipó do alto”, que lhes permite subir até o nível das árvores, pois as versões huni kuin terminam antes da chegada aos céus).

O desfecho das narrativas também se transforma consideravelmente: as versões sharanawa (M25) e as versões yawanawa (M01 e M24) acompanham a subida desse povo até os céus, passando pelas perigosas provações do “caminho da morte” (yama vai, em yawanawa). Na versão sharanawa recolhida por Deleage (M25), o chefe, depois de envenenado por tartarugas, percebe que vai morrer e pede para seus parentes prepararem ayahuasca e para derramarem a bebida ao redor da aldeia (o que leva a crer que eles já conheciam a ayahuasca). Eles mandam um jovem ir avisar a aldeia vizinha que o seu chefe havia morrido, mas o jovem se distrai no meio da viagem, pois ao chegar na primeira casa é recebido com o oferecimento de uma perna de queixada assada (o mesmo acontece na versão yawanawa M24). Quando o jovem chega com os outros, os Roa17 17 Roa e Dawa são as metades que compõem o socius yaminawa, sendo a metade Roa associada às “coisas da água e do alto céu”, e a metade Dawa às “coisas da terra seca e dos bosques” (Townsley, 1994: 308-309). Julio Raimundo Isudawa escreveu que “existem dentro do povo Jaminawa dois tipos de pessoa: Rua Dawavu e os Dawa Vakevu. Cada um desses tipos está ligado a um tipo de animal. Os Rua Dawavu são ligados aos animais aquáticos, como piranha, mandim, jacaré, cobra d’água, arraia. O único bicho da terra que tem relação com eles é o queixada. Estão ligados também aos animais que voam mais alto, como o urubu rei e o gavião. Por isso os Rua Dawavu aprendem a ser pajés mais rápido” (Isudawa, 2013: 28). (como são chamados neste mito) já vão alto no céu. Esses Roa passam por alguns perigos em sua ascensão18 18 Na versão escrita por Deleage um dos perigos enfrentados pelos Roa em sua ascensão é uma espécie de espírito-morcego, do qual eles escapam enrolando caucho no pescoço, impedindo assim que os morcegos lhes chupem o sangue. Eu não posso deixar de observar que esse detalhe inusitado chama a atenção para a eventual ligação transformativa entre essa viagem ao céu e aquela empreendida pelo demiurgo Tslatu entre os Manxineru (cf. Matos, 2018: 182-183), contada em um mito que é uma versão do mito sobre a viagem de Tsla analisado por Gow, que mencionamos na introdução. , mas seguem viagem até encontrar um lugar onde as árvores eram baixas, nas quais havia muitos macacos mansos, e onde eles encontram pedaços de queixadas já cozidos. Ali eles fazem morada. “Essas pessoas”, diz o narrador, “quando morremos, nos assistem chegar. E eles dizem para si mesmos: ‘Os pobres morreram de doença; se não tivéssemos vindo morar aqui, teríamos sofrido como eles’” (Deleage, 2009DELEAGE, Pierre. 2009. Le chant de l’anaconda: L’apprentissage du chamanisme chez les Sharanahua (Amazonie occidentale). Nanterre, Société d’Ethnologie.: 108-109).

Deleage observa que a parte final do mito vem sendo deixada de lado por alguns narradores: “talvez a descrição dos estágios dessa ‘jornada escatológica’ tenha mantido relevância apenas em relação a uma tradição xamânica cantada, como ainda podemos observar entre os Marubo” (Deleage, 2009DELEAGE, Pierre. 2009. Le chant de l’anaconda: L’apprentissage du chamanisme chez les Sharanahua (Amazonie occidentale). Nanterre, Société d’Ethnologie.: 109 n.21). Como pudemos ver, essa parte final é bem desenvolvida nas versões yawanawa. Ela está presente também na versão yaminawa do Mapuya (M31), na qual, como observamos acima, surpreendentemente as pessoas não tomam ayahuasca. Entretanto, nela uma perna do chefe morto se transforma em perna de queixada, enquanto a outra perna se transforma em um ramo de Banisteriopsis (Pérez Gil, 2006PÉREZ GIL, Laura. 2006. Metamorfoses yaminawa: xamanismo e socialidade na Amazônia peruana. Florianópolis, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 122).

Na versão yawanawa que me foi contada pelo velho Raimundo Luiz, do corpo do chefe morto pelos seres subaquáticos nasce o tukun uni, o shupa e o utxi (como no mito huni kuin de Tastevin, o M18). A versão contada pelo Vicente Yawarani a Miguel Carid (1999: 191-194)CARID NAVEIRA, Miguel. 1999. Yawanawa: da guerra à festa. Florianópolis, Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina. acrescenta a essa lista o tabaco. De qualquer maneira, o povo Puyaihunihu (que na versão de Vicente, M24, é também designado como o povo chefiado por Rua) sobe aos céus, deixando para trás um mensageiro que não soube se abster de comer, e que também falha em transmitir o recado por desejar imoderadamente fazer sexo com uma mulher que ele encontra pelo caminho (as versões huni kuin também incorporam este como o motivo para a falha do mensageiro)19 19 Na coletânea de mitos piro-yine do padre dominicano Ricardo Alvarez (voltaremos a ela em breve) existe uma história que é uma transformação muito direta desses mitos, e que fala da tentativa de um grupo piro para ascender aos céus, seguindo um xamã (não incluímos essas versões em nossa análise aqui por falta de espaço). A ascensão vai dando certo, até que sobe na plataforma que transportava as pessoas aos céus uma mulher menstruada, que faz a plataforma despencar. As pessoas que estavam ali caíram em um lago e se transformaram em Giyakleshimane, um povopeixe (cf. Alvarez, 1960: 28-31). A mulher menstruada aparece aí cumprindo a função do homem que não resiste aos seus apetites. Cabe observar que é a morada subaquática desses Giyakleshimane que é confundida por sua própria casa por Shanirawa, personagem dos mitos mencionados por Gow aos quais nos referimos em nota acima. .

Depois de passar pelas aventuras do “caminho da morte”, o povo de Rua chega à casa no céu onde seu falecido chefe estava sentado, sendo pintado por duas mulheres. Os viajantes são convidados a se sentar, mas as esteiras se rasgavam, os bancos rolavam pelo chão. Ao receber seus parentes que vinham de baixo, na versão M24 narrada por Vicente Yawarani, o chefe fala: “o que foi que vocês vieram fazer aqui, mulheres de mau cheiro, vocês vieram para quebrar tudo, as coisas deste pessoal aqui, vão embora por onde vocês vieram” (Carid Naveira, 1999CARID NAVEIRA, Miguel. 1999. Yawanawa: da guerra à festa. Florianópolis, Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 194). O povo que vem de uma viagem de baixo para cima, chega aos céus barulhento (pois eles sobem soprando buzinas e gritando), partindo esteiras e rolando os bancos, e fedendo. Essas pessoas, que vão à terra dos mortos levando os seus corpos e as suas fezes, chegam, quando vistos por quem já estava lá em cima, como se fossem um bando de queixadas. E são mandadas embora pelo seu chefe, que tem o poder de fazer com que o bando desça novamente.

VIRANDO QUEIXADA

Há dois conjuntos muito interessantes de mitos pano que versam sobre a transformação dos homens em queixada. No primeiro deles, a transformação é coletiva: Ao convite de um chefe, um grupo de pessoas foi para uma caçada coletiva. Enquanto eles estavam acampados, um homem (ou a mulher de um caçador, em algumas versões) encontra um ninho de ovos de pássaro. Os ovos são trazidos para o acampamento, são comidos por todos que ali estavam. Todos os que comem os ovos, quando vão falar, emitem grunhidos: eles haviam se transformado em queixada. Na versão yawanawa (M33), e nas versões huni kuin (M3620 20 Esta versão que faz parte daquele conjunto de mitos escritos por Capistrano de Abreu em 1909, e foi incluído por Lévi-Strauss no “Rondó do Catitu”, destinado a analisar as imagens do mau-cunhado (Lévi-Strauss, 1964: 130). e M37), apenas uma jovem se recusa a comer, como também se recusava a namorar. Ela pendura a sua rede no alto, fora do alcance de seus pretendentes. Nestes mitos, ela ocupa uma função análoga ao jovem que se abstém de tomar a ayahuasca no mito huni kuin M04 (e que assim será aquele que se lembrará das canções e poderá ensiná-las aos outros), ou ao Txanu Vete do mito M01 (que se recusa a partilhar a ayahuasca com seus conterrâneos, e que, ao inverso da garota abstêmia, deixa de comunicar por ser guloso e não refrear seus apetites sexuais). Ela será a única que não se transformará em queixada, e que vai depois conduzir os caçadores humanos ao bando transformado em porcos.21 21 As versões huni kuin desenvolvem toda a narrativa ao redor da resistência da mulher em se casar: é em retaliação ao seu comportamento que as pessoas vão à mata atrás das frutas e dos ovos cuja mistura lhes permitirá a transformação em queixada, deixando a mulher sozinha. Essa mulher se casará com uma larva de tabaco transformada em pessoa, e sua progenitura irá compor novamente o povo huni kuin. A versão de M37, registrada por D’Ans, termina dizendo que, quando os Roabake (ou Duabake na grafia adotada no Brasil) narram esse mito, eles enfatizam que são os filhos daquele homemtabaco. Sobre as metades inubake e duabake entre os huni kuin, cf. Lagrou 2007. A versão de D’Ans (M37) comenta ao final da narrativa “a partir de então, os queixadas regressam regularmente para constatar o quanto se multiplicaram os homens. A cada vez, provocam grandes prejuízos nos roçados. Desde então, nos acostumamos a comer carne de queixada” (1975: 112).

Os mitos que compõem o segundo conjunto contam como um caçador ineficiente ou panema acaba se transformando em queixada. Como o conjunto anterior, esses mitos apresentam uma notável uniformidade. Neles um caçador sai à caça de queixadas, mas não consegue matar nenhum. Ele permanece na floresta (em algumas versões por persistência, em outras porque fica perdido), e é surpreendido (em algumas versões, entre sonhos intranquilos) por pessoas se aproximando e conversando sobre o ataque de flechas: eram os queixada que apareciam a ele como gente. Ele acaba acompanhando essas pessoas-queixada (em algumas versões casa-se e faz família entre elas). Na versão yaminawa M38, os queixada pingam o sumo da folha dei-sa em seus olhos, para que ele possa ver paxiubinha como comida. Depois de algum tempo, o homem é resgatado por seus antigos paisanos, e ele então ajuda a encontrar e a matar a antiga família queixada. Também na versão yaminawa M38, o homem acaba morrendo ao provar da carne dos porcos ex-parentes (evocando assim o mito huni kuin M22 de Capistrano de Abreu).

Esses mitos foram objetos de excelentes análises de Sáez (2001SÁEZ, Oscar Calavia. 2001. El rastro de los pecaríes: variaciones míticas, variaciones cosmológicas e identidades étnicas en la etnología Pano. Journal de la Societé des Américanistes, Paris, vol. 87: 161-76. DOI 10.4000/jsa.1846
https://doi.org/10.4000/jsa.1846...
, 2002, sd), cujas conclusões não cabe repetir aqui. Devo observar, no entanto, que o primeiro conjunto é muito comumente tomado como a origem dos humanos atuais (descendentes do casamento da jovem que restou com a larva de tabaco transformada em homem), e/ou dos queixada como tipo arquetípico de carne de caça. E nos dois conjuntos narrativos é muito comum também que o personagem que resta (nos mitos de transformação coletiva) ou que retorna (nos mitos de transformação individual22 22 Há, é claro, diferenças significativas nas funções assumidas por esse “homem só” nas mitologias pano — cf. Sáez, 2006: 341-343. ) se tornem franqueadores à caça, ao serem capazes de apontar onde estão aqueles (antigos) parentes queixada.

CRUZANDO O DIVORTIUM AQUARUM

É possível observar o paralelismo entre, de um lado, os mitos de transformação coletiva em queixada e os mitos que contam sobre o povo que subiu aos céus (o nosso M01, por exemplo); e de outro entre os mitos de transformação individual em queixada e os mitos que narram sobre o casamento de um homem com a sucuri. Em uma interessante coletânea de mitos piro-yine publicada em 1960, o padre dominicano Ricardo Alvarez registrou mitos que poderiam ser pensados à luz desse segundo paralelismo.

Uma narrativa chamada por Alvarez de “A mãe dos queixadas” (M43), lê-se que um feiticeiro (ou kahonchi) viaja por dias por dentro da terra, até encontrar uma “cidade dos queixadas”. Nesta cidade, há um palácio, onde vive a “mãe dos queixadas”, que mostra ao kahonchi os diferentes tipos de animais que compõe a sua criação, e cada tipo de queixada recebe dela o nome que antes os piro-yine atribuíam aos seus diferentes subgrupos (koshichineri, manchineri, kakoaleneri, hahamlineri…). A “mãe dos queixadas” mostra também ao feiticeiro uma buzina, que ela usa para comandar os queixadas. De noite, a “mãe dos queixadas” convida o feiticeiro para dormir com ela, e ele aceita. Mas enquanto ela dorme ele rouba a buzina e volta à superfície. A narração termina dizendo que “desde então a selva está povoada por queixadas, que são alimento muito saboroso e abundante, graças ao kahonchi piro que soube tomá-las de sua mãe, que as guardava dentro da terra” (Alvarez, 1960ALVAREZ, Ricardo. 1960. Los Piros: leyendas, mitos, cuentos. Lima, Instituto de Estudios Tropicales Pio Aza.: 153).

Ricardo Alvarez registrou também um outro mito muito parecido com este (M44), mas que coloca em cena a relação entre um kahonchi e “a mãe da água” (ou honginro). Neste mito, tomando ayahuasca e toé (Brugmansia), o kahonchi descobre como fazer-se ouvir pela honginro. Na beira do lago, ele chama por ela, e pede a ela que o leve à sua casa submersa. Ela dá a ele então pedaços da barba branca de um Yakuruna (ou “gente das águas” em quechua), e explica que o homem deve semear esses pedaços de barba. Da barba de Yakuruna semeada nasce um piripiri23 23 Piripiri é como são chamados diversos tipos de ciperáceas cujas raízes são cultivadas por indígenas e ribeirinhos na Amazônia Ocidental, e que possuem funções mágicas as mais variadas. , que quando mascado pelo homem permite-lhe comandar todo tipo de peixe. O kahonchi então casa-se com a honginro, e os seus filhos, diz o narrador, “vivem nos distintos rios e distintos poços, e são o terror da gente que habita a terra” (Alvarez, 1960ALVAREZ, Ricardo. 1960. Los Piros: leyendas, mitos, cuentos. Lima, Instituto de Estudios Tropicales Pio Aza.: 158).

Esses mitos são versões muito próximas do mito que serve como um fio condutor na investigação de Peter Gow em An Amazonian Myth and it’s History (2001). A história narrada a Gow por Artemio (M41) conta de um homem que, estando cansado de viver entre os seus, resolve vagar pela floresta. Ele encontrou então um buraco e ao entrar nele achou um tambor. Ao tocá-lo (“tan, tan, tan”!), uma vara de queixadas aparece e o persegue. Ele sobe em uma árvore e, quando deixa o tambor cair lá de cima os porcos pegam o tambor e voltam para o buraco. O homem volta ao buraco e, dessa vez, vai através dele até o final. Ele chega do outro lado, e vê rios, florestas, como havia no lugar de onde havia partido. Vê também currais repletos de queixadas. O dono dos queixada o vê, e então solta seus porcos, que atacam o homem até quase matá-lo. O dono dos queixadas cura o homem com sopros e pergunta a ele se ele gostaria de viver ali. Ele então troca as roupas do homem: tira as vestes humanas e coloca nele peles de animais, que eram as roupas daquele mundo. Ali o homem vive normalmente, bebe caiçuma, caça, pesca, exatamente como fazia em seu próprio mundo. Até o dia em fica doente de saudades de casa. Ele volta pelo buraco e sai outra vez na superfície. É quando ele vê tudo vermelho, como na aurora. Quando ele consegue finalmente chegar à sua velha casa, sua mulher o rejeita. O homem então volta ao mundo dos queixadas, dessa vez acompanhado por seu filho. Seu filho, quando tenta retornar à sua antiga casa, não consegue: o buraco pelo qual eles haviam passado havia se fechado (Gow, 2001GOW, Peter. 2001. An Amazonian Myth and its History. Oxford, Oxford University Press.: 35).

Mina Opas recolheu uma versão deste mito contada por um velho evangélico na comunidade Diamante, às margens do rio Madre de Dios (2008: 148-149). Semelhante à versão de Gow, essa versão possui, no entanto, dois detalhes importantes: o mundo subterrâneo é chamado de mtengatwenu (“rio raso”), e o homem é levado por um tatu para fora do mundo subterrâneo (tal como o homem que se casou com a sucuri fora levado por um bodó para fora do mundo submerso nos mitos pano).

Como observei anteriormente, há um notável paralelismo entre essas narrativas e as versões dos mitos do homem que se casou com a sucuri. A viagem para baixo do homem solitário; a passagem franqueada pelas três pancadas do tambor, como fizera o barulho do jenipapo caindo na água enfatizado por alguns narradores dos mitos da ayahuasca; a troca de roupas, que aqui aparece como análoga ao uso dos colírios (presente também, como vimos, no mito yaminawa sobre o homem que virou queixada M38); o ataque que quase leva o homem a morte, evitada pelos cuidados xamânicos dispensados pelo dono dos queixada aparece aqui no lugar do sofrimento provocado pela ayahuasca, curado com os sopros e cantos do sogro sucuri; a tentativa malfadada de retorno do subterrâneo pode ser vista como a morte definitiva do homem depois de atacado pelos seus antigos afins sucuris; e assim por diante.

O último mito que eu gostaria de evocar revela um horizonte que sugere um fio de continuidade possível entre o mito da “anta que jogava jenipapo” (ou do “homem que se casou com a sucuri”) e o mito do “povo que subiram aos céus” (ou sobre “os que foram com merda e tudo”), fio que torna visível toda uma paisagem cosmológica em transformação, ligando o mundo subterrâneo, o mundo submerso e os céus24 24 Essa paisagem inteiriça, que conectaria linearmente os episódios dos mitos pano da ayahuasca, desde o casamento do homem com a sucuri até a subida aos céus atrás de um falecido chefe, foi também sugerida e problematizada por Oscar Calavia Sáez (cf. Sáez, 2006: 351-355). . Trata-se, novamente, de mito piro-yine, que também foi analisado por Peter Gow (2001: 58-59)GOW, Peter. 2001. An Amazonian Myth and its History. Oxford, Oxford University Press. entre as transformações do mito do homem que foi para o mundo dos queixada.

Essa versão foi narrada por Juan Sebastián Perez Etene para a missionária do Summer Institute of Linguistics Esther Matteson (Matteson, 1965MATTESON, Esther. 1965. The Piro (Arawakan) Language. Berkeley, University of California Press.: 164-169): Um homem estava cochilando no aceiro de seu roçado. Ele acorda, assustado por um veado, que se aproxima fazendo barulho “nikch, nikch, nikch”. Afastando-se dele, cai em um buraco. Quando sai do buraco, está em outro mundo, na beira do mtengatwenu (“rio raso”). Ali ele vê uma mulher extremamente bonita, chamada no mito Kmaklewakleto (ou “aquela que é sempre jovem”). Ela pinga sumo de certas folhas no seu olho, tornando-o capaz de ver. Ele vê no rio diversos tipos de peixe, todos belamente pintados. A mulher leva o homem para sua casa, o alimenta e lhe mostra a sua criação: os queixada. A mulher reclama do destino de seus animais, que quando ela deixa saírem e passearem, eles voltam machucados e quase-mortos. Então ela fala que o seu pai estava para chegar. O pai dela vem em uma canoa celeste. A canoa se aproxima. Os pilares da canoa diziam: “ah, ali está um ser humano, aquele que jogou suas roupas fora”. O homem subiu na canoa. Dentro da parte coberta estava sentado o sol. Seus escravos eram pássaros cabeça-seca. Durante a viagem, quando chegava a hora de comer, os pássaros induziam o homem ao sono. Enquanto ele dormia, eles retiraram seus intestinos, e os dependuraram ao lado da canoa. Depois, continuando a viagem, eles chegaram novamente aonde estava Kmaklewakleto, e ali eles deixaram o homem. “Ele não havia jogado suas próprias roupas no rio. Aqueles que o fazem são levados para onde estão os mortos, onde quer que seja. Mas ele não havia jogado suas roupas na água”, comentou o narrador (Matteson: 1965MATTESON, Esther. 1965. The Piro (Arawakan) Language. Berkeley, University of California Press.: 169). Por isso eles o deixaram ali outra vez. Kmaklewakleto recebeu o homem e o levou de volta por um caminho que ela conhecia. Assim ele chegou novamente aonde estavam sua antiga mulher e os seus filhos (Matteson: 1965MATTESON, Esther. 1965. The Piro (Arawakan) Language. Berkeley, University of California Press.: 164-169).

CONCLUSÃO

Segundo uma hipótese muito influente proposta por Peter Gow (1994GOW, Peter. 1994. “River people: Shamanism and history in Western Amazonia”. In THOMAS, Nicholas; HUMPHREY, Caroline. (eds.), Shamanism, History & the State. Michigan, University of Michigan. pp. 90-113; cf. De Mori, 2011DE MORI, Bernd Brabec. 2011. “Tracing Hallucinations: Contributing to a Critical Ethnohistory of Ayahuasca Usage in the Peruvian Amazon”. In JUNGABERLE, Henrik; LABATE, Beatriz. (eds.), The Internationalization of Ayahuasca. Zürich, LIT-Verlag. pp. 23-47.), o xamanismo ayahuasqueiro25 25 O autor chama de “xamanismo ayahuasqueiro” um conjunto de práticas mais ou menos coerentes que se desenvolveu entre mestiços ou ribeirinhos, e que é muito próximo ao que hoje se chama de “vegetalismo” na Amazônia Peruana. Esse tipo de xamanismo é distinto de outro uso comum que os povos do Purus e Juruá fazem da ayahuasca, que é um uso mais coletivo e festivo e menos restrito à atuação terapêutica de um xamã (cf. Gow, 1994: 110; de Mori 2011: 28). se desenvolveu inicialmente nos centros missionários, e depois se expandiu, com a consolidação da economia extrativista da borracha, pelos rios e pelos novos centros em progressiva urbanização, catalisada pelo processo de colonização. Dali ele teria se difundido nos seringais e nos cauchais, alcançando assim as populações que haviam sido reduzidas ao trabalho pelos patrões da borracha. À medida que se tornava uma forma dominante, porém heteróclita de pensar a doença e a cura (1994: 91), o xamanismo ayahuasqueiro foi se consolidando como uma resposta muito pertinente à história colonial, repleta de episódios de perseguição organizada aos diferentes grupos indígenas, e de tristes epidemias com consequências funestas para os povos originários (uma época em que os humanos morriam ou eram perseguidos como bandos de queixada). Por isso, ele estaria presente com mais intensidade entre os coletivos que sofreram mais diretamente com o engajamento no extrativismo gomífero e em seus sistemas econômicos de aviamento.

A hipótese de Gow é mais direcionada aos sistemas sociais do leste das terras baixas do Peru ao Equador, região cujas expressões urbanas são as relativamente populosas cidades de Iquitos e Pucallpa. Mas é altamente provável que elementos marcantes dessas formas de xamanismo tenham sido levados por trabalhadores ucayalinos shipibo,26 26 Roe registra um mito shipibo que é muito diretamente uma transformação do mito do “homem que casou com uma sucuri”: Uma mulher solteira namorava secretamente com uma sucuri. Todas as manhãs ela se pintava com jenipapo e ia para a beira de um lago carregando uma cuia. Um cunhado seu resolve então segui-la. A mulher chegava à beira do lago e batia a cuia três vezes sobre a superfície da água. Surgia do lago então uma sucuri, que fazia sexo com a mulher. O homem corre para avisar ao irmão o que ele vira. No outro dia, os dois vão bem cedo ao lago, fazem como a mulher, e quando a cobra vem saindo da água, os dois homens a matam. Inconsolada, a mulher se transforma em um um pequeno pássaro negro (Roe, 1982: 56-57). Interessante observar que o ato de jogar três sementes de jenipapo no lago, nas histórias do “homem que namorou a sucuri” é espelhado aqui no bater da cabaça três vezes sobre a superfície da água, como é também no ato do homem que bate o tambor três vezes para chamar os queixada no mito piro-yine. Os shipibo não parecem associar esta história ao surgimento da ayahuasca, que, segundo de Mori, é narrada pelos “médicos” shipibo como tendo surgido do cadáver de um xamã de nome Agustín Murayari (de Mori, 2011: 30). conibo, amahuaca ou piro que transitavam entre o Ucayali e as cabeceiras do Juruá, Purus e seus afluentes, a soldo de grandes patrões caucheiros, como os irmãos Mathias e Carlos Scharff (que foi acusado de promover correrias nos rios Gregório e Liberdade), ou Baldomiro Rodriguez27 27 Sabemos também que o irmão de Baldomiro, Maximo Rodriguez, manterá sob seu comando um contingente expressivo de trabalhadores shipibo em Fundo Iberia, explorando seringais e castanhais no Madre de Dios e seus afluentes. Ali deu-se um contato sustentado entre grupos yaminawa, grupos piro-yine (e manxineru) e grupos shipibo-conibo (cf. Rummenhoeller, 2003). Calavia Sáez, a partir de uma análise de um conjunto considerável de mitos yaminawa, sugeriu que o contraste entre a importância atual da ayahuasca e o seu papel muito reduzido ou secundário nos mitos poderia ser um “indício, entre outros muitos, de que a ayahuasca, ao menos na sua dimensão atual, pode ser uma relativa novidade vinda do mundo ribeirinho do Ucayali” (2006: 154). Segundo o autor, isso explicaria a atribuição da origem do costume de tomar ayahuasca aos Yaminawa, feita pelos huni kuin que informaram Tastevin (1925: 165), uma vez que eram os diferentes grupos designados por esse etnônimo que mormente serviam como elemento de ligação entre a região do alto Ucayali e baixo Urubamba e as cabeceiras dos rios Envira e Purus. .

Ainda que seja completamente vã a tentativa de limitar a interfluvialidade dos coletivos “Pano do Sudeste” (para retomar a classificação de Townsley, 1994TOWNSLEY, Graham. 1994 “Los Yaminahua”. In SANTOS-GRANERO, Fernando; BARCLAY, Frederica. (eds.) Guía Etnográfica de la Alta Amazonía. Quito, Flacso, pp. 239-358.: 247), devemos observar que o rio Envira é particularmente interessante nesse contexto, pois ele aparece como antiga morada em quase todas as fontes consultadas no estabelecimento do corpus mítico aqui mobilizado. Podemos pensar que o alto rio Envira e os caminhos de interflúvio que o ligam às cabeceiras do Purus e Curanja estão entre os principais pontos pelos quais a difusão do uso da ayahuasca e de seus temas míticos se introduzirão entre esses coletivos Pano do Sudeste.

Sob o pano de fundo dessa hipótese, o nosso périplo parece sugerir que a introdução do xamanismo de ayahuasca na região vai instilar elementos que serão devidamente transformados pelos mitos, e que vão assim aparecer em contextos novos, mas comparativamente reconhecíveis. Em particular, como no caso descrito por Gow (1994GOW, Peter. 1994. “River people: Shamanism and history in Western Amazonia”. In THOMAS, Nicholas; HUMPHREY, Caroline. (eds.), Shamanism, History & the State. Michigan, University of Michigan. pp. 90-113, 2001)GOW, Peter. 2001. An Amazonian Myth and its History. Oxford, Oxford University Press., o uso da ayahuasca vai interceptar e transformar dois elementos centrais nos sistemas xamânicos da região e nos mitos que os acompanham: a relação que mantinham os xamãs com seres extra-humanos da floresta e dos rios para ter acesso à caça e à pesca; e os aspectos verticais da escatologia presentes nessas cosmologias.

Os mitos pano comumente reputados como sendo de origem da ayahuasca, tanto em suas versões “casamento com a sucuri” quando na “ida para os céus”, são mitos que preservam em seu pano de fundo ou em seu horizonte a transformação em queixada. Em certo sentido, poder-se-ia sugerir que foram os mitos que versavam sobre essas transformações que acomodaram e absorveram o impacto causado pela introdução do xamanismo ayahuasqueiro na região. A transformação em queixada é eminentemente de perspectiva: trata-se de ver os queixadas como pessoas, ser capaz de ouvi-los, ou ainda ser capaz de ver como eles (se) vêem (com a ajuda do dei-sa yaminawa) ou de ser visto como eles são vistos (vestindo as suas peles, como na história piro-yine). Essa transformação vincula-se aos sentidos da transposição em eixos verticais: aquele que vê um coletivo desde cima, o vê como esse coletivo enxerga aqueles que estão no subterrâneo, isto é, como um bando de queixadas. Nos dois conjuntos de mitos de ayahuasca (o do homem que se casou com a sucuri, e o do povo que foi para o céu) essa passagem está intimamente ligada à mortalidade: aquele que traz a ayahuasca para os seus parentes é alguém que foi comido pelas sucuris ou envenenado por elas. A ayahuasca introduz, entretanto, uma transitividade nessas transformações: o comido ou o envenenado retorna.

Essas figuras aparecem também nas histórias sobre os queixada como aqueles que restaram ou que retornaram: eles são aqueles capazes de evocar ou de localizar magicamente a caça. Esse tipo de xamã, que se comunica diretamente com as caças ou com seus donos, é eclipsado nos mitos que se adaptaram à ayahuasca desde a versão de Tastevin28 28 Em seu artigo sobre o rio Muru, Tastevin observa que os Huni Kuin tomavam honé para “adivinhar onde se esconde a caça” (Tastevin, 1925: 167). Esse uso da ayahuasca, muito incomum hoje em dia, parece ter sido muito mais corriqueiro. Ver, por exemplo, o uso que ainda fazem os Matsigenka do rio Manu, entre os quais o uso do preparo do cipó com a chacrona se deu apenas a partir da década de 50, com o contato com os intérpretes dos missionários. Ainda hoje o uso matsigenka está voltado para a purificação dos caçadores (“kamarampi significa, literalmente remédio de vomitar”, sugere Shepard, 2014: 22) e para promover a mira e a sorte dos caçadores. Sobre os Yawanawa, Pérez Gil observou que “a respeito da função do xamã como promotor do sucesso na atividade cinegética dos outros homens do grupo - através de sua mediação com seres considerados como os donos dos animais ou de ações, cantos por exemplo, que visam atrair as presas desejadas -, prática esta tão presente entre outros grupos amazônicos, entre os Yawanawa este aspecto não parece muito saliente hoje em dia, mas existem indícios de que no passado este papel foi mais relevante do que na atualidade” (1999: 52-53). Há um mito shipibo que aponta a ligação entre a sucuri e as capacidades cinegéticas de um caçador: ele conta que uma sucuri transformada em homem assopra a zarabatana de um caçador, e, “daquele dia em diante, o caçador, graças à sua amizade com o homem-sucuri, sempre teve sucesso na caça, tornando-se um caçador muito renomado” (Roe, 1982: 52). (1926). Mas sua arte permanece virtualmente pertinente, e a ayahuasca é o objeto de uma política étnica muito propositiva no Acre contemporâneo: como mostrou Sáez (sd.), na filosofia política que se pode ler nos mitos, alcançar uma unificação política equivale a se tornar uma presa potencial (i.e., equivale e se transformar em bando de queixada).

Ao se ligarem à transformação coletiva ou individual em queixada, que também (et pour cause) diz respeito à passagem vida-morte (e às vezes à volta à vida, como nos mitos M16 e M18, por exemplo), os mitos da ayahuasca se inserem num fluxo de transformação da escatologia, que nesses povos foi sendo dissociada da epopéia xamânica do caminho da morte (que tem fragmentos preservados no mito M01 e em suas versões mais próximas, como M25, M24 e M32). Esses motivos narrativos vão sendo progressivamente deixados em segundo plano, num processo no qual os componentes ou dimensões verticais da paisagem cosmológica vão cedendo lugar às formas populares da escatologia cristã, que são mais compatíveis com o xamanismo ayahuasqueiro (Gow, 1994GOW, Peter. 1994. “River people: Shamanism and history in Western Amazonia”. In THOMAS, Nicholas; HUMPHREY, Caroline. (eds.), Shamanism, History & the State. Michigan, University of Michigan. pp. 90-113: 94). Seria plausível pensar que as viagens aos céus das escatologias xamânicas foram sendo subsumidas progressivamente às idas e voltas dos mundos subterrâneos ou submersos.

Essa transformação é exemplificada na versão shawandawa do mito do “povo que foi morar no céu” (M32): depois que os paisanos do chefe doente tentam curá-lo sem sucesso, eles começam a tomar muita ayahuasca (“eram índios muito religiosos, sempre tomavam tsinbu”, alega o narrador). Eles sobem aos céus, mas um homem entre eles resolve voltar para falar com os parentes deixados para trás. Ele se recusa a levar seus parentes para o céu, e por isso eles resolvem matá-lo. Eles matam esse homem, mas ele continua voltando (como o homem que se recusa a morrer nos mitos de origem da ayahuasca M16 e M18), até um dia em que ele avisa que não retornará mais: “bem meus primos, meus parentes, agora eu vou embora. Mas quando eu voltar aqui à terra, vocês vão ver como é que vocês vão passar, vocês vão ver a diferença que vai ser! Um dia eu ainda hei de voltar”. Seus parentes então choraram muito. E o narrador conclui: “dessa vez ele foi embora e nunca mais voltou. Diz que esse homem era Jesus” (Iskuhu et. al, 2009ISKUHU [Edilson Pereira; DIAKA [Francisco Oliveira de Lima]; ISHUKU, Nai Tãde [João Napoleão Pereira]; SHOWÃ, Mäku [José Arenilton Pereira da Silva]. (orgs.) 2009. Shawã Shãdipahu: histórias do Povo Shawãdawa (Arara). Rio de Janeiro e Rio Branco, Museu do Índio-Funai e Comissão Pró-Índio do Acre.: 51).29 29 Um/a dos/as pareceristas anônimos/as deste artigo observou que seria mais plausível atribuir a presença de elementos cristãos no mito shawandawa ao impacto mais recente do evangelismo e das religiões ayahuasqueiras (como o Santo Daime) sobre as comunidades contemporâneas, no lugar de vê-las como transformações míticas ligadas à expansão do xamanismo ayahuasqueiro pelos interflúvios propulsionada pelo extrativismo gomífero. Trata-se de fato, de uma questão que mereceria uma investigação detida e um trabalho de campo cuidadoso. Observo, em abono à minha hipótese, que a observação da/o parecerista não é incompatível com a hipótese proposta, uma vez que o evangelismo recente pode ser visto em continuidade com os processos de inserção desses coletivos indígenas na Economia-Mundo do extrativismo. Além disso, o significativo não é a simples menção do nome de Jesus, mas antes que o narrador do mito faça ele ocupar a posição que em outras transformações era a do homem que volta da morte (no mito da mesma coleção shawandawa M16, por exemplo), e que na versão de Tastevin (M18) era a de um velho “excelente caçador e pescador”, que morre de maneira estritamente análoga ao chefe do mito yawanawa M01. Por fim, é interessante observar que as referências míticas ao Ucayali abundam nos hinários do Santo Daime, permitindo pensá-lo também como um fluxo de transformação paralelo (e não alternativo) ao que sugerimos aqui.

  • 1
    O “velho Raimundo”, como era carinhosamente chamado, foi uma das grandes lideranças responsáveis por conquistas políticas e territoriais importantes na segunda metade do século XX no Acre indígena. Faleceu no final de 2010, depois de uma longa luta contra o câncer. Eu não poderia mencionar o seu nome e as suas histórias sem deixar aqui esta homenagem à sua memória. Para desembaraçar alguns detalhes da narrativa, me socorri com uma versão traduzida dessa mesma gravação que foi produzida pela linguista Lívia Camargo, a quem agradeço, no contexto de um projeto de documentação linguística apoiado pelo Museu do Índio - Funai.
  • 2
    A tradução dessa passagem do livro de Gow é de minha responsabilidade, como as dos demais textos em língua estrangeira citados neste artigo.
  • 3
    Por isso eu não poderia sustentar qualquer pretensão de oferecer neste texto uma análise ou demonstração final de um suposto “verdadeiro sentido” desses mitos. Antes, trata-se de um primeiro apanhado de uma reflexão em andamento. Além disso, como é bem sabido, em mitologia “quem conta um conto aumenta um ponto”: me dou por satisfeito se as análises que se seguem motivarem outras interpretações, consoantes ou discordantes dessas que aqui apresento.
  • 4
    É claro que diversas formas de relação entre esses povos indígenas através dos “varadouros” e istmos que cortam os divisores de águas aconteciam antes da chegada e do estabelecimento de não-indígenas na região (cf. Zarzar, 1983ZARZAR, Alonso. 1983 “Intercambio con el enemigo; etno-história de las relaciones intertribales en el Bajo Urubamba y Alto Ucayali”. In ZARZAR, Alonzo. & ROMAN, Luís. Relaciones intertribales en el Bajo Urubamba y Alto Ucayali. Lima, Centro de Investigación y Promoción Amazónica, pp. 11-86.; Gow, 1993GOW, Peter. 1993. Gringos and Wild Indians: Images of History in Western Amazonian Cultures. L’Homme, vol. 33, n. 126-128: 327347. DOI 10.3406/hom.1993.369643
    https://doi.org/10.3406/hom.1993.369643...
    : 331). O que não havia então, segundo a hipótese com a qual concordamos (e à qual voltaremos na conclusão), era o uso disseminado da ayahuasca.
  • 5
    O filme Awarã Nane Putani pode ser assistido no link https://vimeo.com/72352580.
  • 6
    Anexada ao artigo está uma lista de todos os mitos mobilizados aqui.
  • 7
    Em hantxa kuin, ayahuasca se diz nixi pae, sendo que “pae é o termo usado para designar bebidas alcoólicas, alucinógenas, toxicas ou venenosas” (Lagrou, 2007LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridades e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). São Paulo, Top Books.: 218).
  • 8
    Há um mito muito difundido entre povos falantes de línguas pano que conta a origem do veneno conhecido no Acre como “oaca” (ou pooikama, em sharanawa): uma mulher transa com uma anta transformada em homem, que a leva para pescar usando como veneno seus próprios excrementos (cf. Siskind, 1973SISKIND, Janet. 1973. To hunt in the morning. Oxford, Oxford University Press.: 115-116). Esse mito, como observou Gow, é uma das bases para os mitos que contam os Piro-Yine sobre um personagem cômico chamado Shanirawa (uma paródia de mitos yaminawa), mitos que parecem também incluir uma versão dessa história que analisamos aqui (cf. Gow, 2001GOW, Peter. 2001. An Amazonian Myth and its History. Oxford, Oxford University Press.: 98; o personagem aparece também nos mitos escritos por Matteson: 1965: 184-192).
  • 9
    A importância da jiboia e da sucuri nos sistemas simbólicos dos povos pano foi estudada por diversos autores (para ficar no escopo de nossa bibliografia, cf. Lagrou, 2007LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridades e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). São Paulo, Top Books.; Deleage, 2009DELEAGE, Pierre. 2009. Le chant de l’anaconda: L’apprentissage du chamanisme chez les Sharanahua (Amazonie occidentale). Nanterre, Société d’Ethnologie.; Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.; Perez Gil, 1999PÉREZ GIL, Laura. 1999 Pelos caminhos de Yuve: conhecimento, cura e poder no xamanismo yawanawa. Florianópolis, Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina., 2006; Carid Naveira, 1999CARID NAVEIRA, Miguel. 1999. Yawanawa: da guerra à festa. Florianópolis, Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina.; Roe, 1982ROE, Peter G.1982. The cosmic zygote: Cosmology in the Amazon Basin. New Jersey, Rutgers University Press.). Por falta de espaço, não cabe aqui tentar resumir as sofisticadas análises desses autores, sobre as quais nos apoiamos.
  • 10
    Curiosamente, Kopenawa conta que diferentemente de seu sogro ele nunca foi capturado pelas mulheres yawarioma, mas que, fato comparável, durante uma caçada ele foi atacado por um bando de queixadas. Apavorado pelo fedor e pelo barulho do ranger de dentes dos porcos, ele desmaiou. Naquela noite, ele conta, ele sonhou com os espíritos queixada, e então compreendeu o que havia acontecido: “foi nesse momento que os espíritos queixada começaram a me aparecer em sonho. Um número incontável deles escapava de um enorme buraco na terra, do qual saía também um vendaval. Dançavam devagar com seus enfeites de penas, sobre um espelho que refletia uma luminosidade ofuscante” (Kopenawa & Albert, 2015: 103-104).
  • 11
    Na maior parte das versões, a narrativa começa quando um homem sai para caçar e chega na beira de um lago (como nas versões huni kuin M03 e M04; nas versões sharanawa M08 e M09; ou na versão shawandawa M10), ou de um igarapé (na versão M07, registrada entre os huni kuin do rio Jordão). Na versão huni kuin de D’Ans (M06), o homem sai para buscar jenipapo para pintar seu filho recém-nascido.
  • 12
    Na versão M04, no lugar onde o homem foi enterrado nascem quatro tipos diferentes: xane huni, baka huni, shawan huni, ni huni (Lagrou, 2007LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridades e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). São Paulo, Top Books.: 199). Na versão M05, do corpo do falecido nascem três tipos de cipó: shawan huni, shane huni e huni kayabi (Camargo, 1999CAMARGO, Eliane. 1999. Yube, o homem-sucuriju: Relato caxinauá. Paris, Amerindia, n°24: 195-212.: 211). Na versão do mito registrada pelo pesquisador Ibã Huni Kuin no rio Jordão (M07), o homem avisa aos seus parentes que de seu túmulo nascerá, na parte direita, cipó, e na parte esquerda, a “rainha” (Psychotria viridis). Ele ainda explica como seus parentes devem preparar a bebida, e avisa que se assim o fizessem ele lhes apareceria na miração, para ensinar-lhes a cantar (Ibã, 2005IBÃ, Isaias Sales. 2005. Nixi Pae: o espírito da floresta. Rio Branco, Comissão Pró-Índio do Acre.: 33).
  • 13
    A história do neto que é levado a matar pessoas kukushnawa pelo seu avô falecido transformado em jiboia é amplamente difundida entre povos falantes de língua pano. Mas nela não costuma figurar a ayahuasca, a pimenta ou qualquer outra “planta de poder” (ver por exemplo a versão desse mito contada por yaminawas do rio Mapuya — Pérez Gil, 2006PÉREZ GIL, Laura. 2006. Metamorfoses yaminawa: xamanismo e socialidade na Amazônia peruana. Florianópolis, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 83-85).
  • 14
    Calávia Sáez analisa um mito yaminawa que fala de uma expedição a um rio grande, na qual um homem é recepcionado por uma cunhada sucuri e pelo seu esposo. Para levá-lo para sua morada submersa, “passamlhe um remédio na cara para que possa viver embaixo d’água. O poço é a casa, e o balseiro é seu telhado”, e lá curam suas chagas e lhe dão carne de queixada para comer (2006: 272). Eles então dão a ele muitos presentes, “machado de ferro, terçado, rede e roupa” (2006: 273). Oscar Calavia Sáez especula então se esse povo sucuri doador de mercadorias não poderia ser uma versão mítica dos Conibo falantes de língua pano do Ucayali (2006: 273).
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    Segundo a linguista Lívia Camargo (comunicação pessoal) o nome Puyaihunihu pode ser glosado da seguinte forma: pui, “fezes”; yai, “tendo” ou “existindo”; hu, forma plural para “ir”; ni, passado remoto; hu, coletivizador, plural. A tradução mais aproximada então seria “aqueles que foram com as suas fezes”. Por um tempo estive muito animado com o fato de que hunihu significa também “queixada” em yawanawa, o que configurava um atalho muito direto para a relação entre a ayahuasca e os queixada. Entretanto, em conversas com alguns yawanawa, especialmente com Maria Julia Kenemani (a quem agradeço muitíssimo!), fui informado que esse nome poderia ser compreendido apenas segundo o significado glosado acima.
  • 16
    As outras versões desse mito (p.ex., a versão sharanawa M25, a versão yaminawa M26, as versões huni kuin M28, M29 e M30) não o tomam nesse sentido.
  • 17
    Roa e Dawa são as metades que compõem o socius yaminawa, sendo a metade Roa associada às “coisas da água e do alto céu”, e a metade Dawa às “coisas da terra seca e dos bosques” (Townsley, 1994TOWNSLEY, Graham. 1994 “Los Yaminahua”. In SANTOS-GRANERO, Fernando; BARCLAY, Frederica. (eds.) Guía Etnográfica de la Alta Amazonía. Quito, Flacso, pp. 239-358.: 308-309). Julio Raimundo Isudawa escreveu que “existem dentro do povo Jaminawa dois tipos de pessoa: Rua Dawavu e os Dawa Vakevu. Cada um desses tipos está ligado a um tipo de animal. Os Rua Dawavu são ligados aos animais aquáticos, como piranha, mandim, jacaré, cobra d’água, arraia. O único bicho da terra que tem relação com eles é o queixada. Estão ligados também aos animais que voam mais alto, como o urubu rei e o gavião. Por isso os Rua Dawavu aprendem a ser pajés mais rápido” (Isudawa, 2013ISUDAWA, Júlio Raimundo. 2013. Usi Nameash Viana: Somos casados de várias etnias. Cruzeiro do Sul, Monografia apresentada no Curso de Formação Docente para Indígenas, Universidade Federal do Acre.: 28).
  • 18
    Na versão escrita por Deleage um dos perigos enfrentados pelos Roa em sua ascensão é uma espécie de espírito-morcego, do qual eles escapam enrolando caucho no pescoço, impedindo assim que os morcegos lhes chupem o sangue. Eu não posso deixar de observar que esse detalhe inusitado chama a atenção para a eventual ligação transformativa entre essa viagem ao céu e aquela empreendida pelo demiurgo Tslatu entre os Manxineru (cf. Matos, 2018MATOS, Marcos de Almeida. 2018. Organização e história dos Manxineru do Alto rio Iaco. Florianópolis, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 182-183), contada em um mito que é uma versão do mito sobre a viagem de Tsla analisado por Gow, que mencionamos na introdução.
  • 19
    Na coletânea de mitos piro-yine do padre dominicano Ricardo Alvarez (voltaremos a ela em breve) existe uma história que é uma transformação muito direta desses mitos, e que fala da tentativa de um grupo piro para ascender aos céus, seguindo um xamã (não incluímos essas versões em nossa análise aqui por falta de espaço). A ascensão vai dando certo, até que sobe na plataforma que transportava as pessoas aos céus uma mulher menstruada, que faz a plataforma despencar. As pessoas que estavam ali caíram em um lago e se transformaram em Giyakleshimane, um povopeixe (cf. Alvarez, 1960ALVAREZ, Ricardo. 1960. Los Piros: leyendas, mitos, cuentos. Lima, Instituto de Estudios Tropicales Pio Aza.: 28-31). A mulher menstruada aparece aí cumprindo a função do homem que não resiste aos seus apetites. Cabe observar que é a morada subaquática desses Giyakleshimane que é confundida por sua própria casa por Shanirawa, personagem dos mitos mencionados por Gow aos quais nos referimos em nota acima.
  • 20
    Esta versão que faz parte daquele conjunto de mitos escritos por Capistrano de Abreu em 1909, e foi incluído por Lévi-Strauss no “Rondó do Catitu”, destinado a analisar as imagens do mau-cunhado (Lévi-Strauss, 1964LÉVI-STRAUSS, Claude. [1964] 2004. O Cru e o Cozido (Mitológicas vol. I). Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac & Naify.: 130).
  • 21
    As versões huni kuin desenvolvem toda a narrativa ao redor da resistência da mulher em se casar: é em retaliação ao seu comportamento que as pessoas vão à mata atrás das frutas e dos ovos cuja mistura lhes permitirá a transformação em queixada, deixando a mulher sozinha. Essa mulher se casará com uma larva de tabaco transformada em pessoa, e sua progenitura irá compor novamente o povo huni kuin. A versão de M37, registrada por D’Ans, termina dizendo que, quando os Roabake (ou Duabake na grafia adotada no Brasil) narram esse mito, eles enfatizam que são os filhos daquele homemtabaco. Sobre as metades inubake e duabake entre os huni kuin, cf. Lagrou 2007LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridades e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). São Paulo, Top Books..
  • 22
    Há, é claro, diferenças significativas nas funções assumidas por esse “homem só” nas mitologias pano — cf. Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.: 341-343.
  • 23
    Piripiri é como são chamados diversos tipos de ciperáceas cujas raízes são cultivadas por indígenas e ribeirinhos na Amazônia Ocidental, e que possuem funções mágicas as mais variadas.
  • 24
    Essa paisagem inteiriça, que conectaria linearmente os episódios dos mitos pano da ayahuasca, desde o casamento do homem com a sucuri até a subida aos céus atrás de um falecido chefe, foi também sugerida e problematizada por Oscar Calavia Sáez (cf. Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.: 351-355).
  • 25
    O autor chama de “xamanismo ayahuasqueiro” um conjunto de práticas mais ou menos coerentes que se desenvolveu entre mestiços ou ribeirinhos, e que é muito próximo ao que hoje se chama de “vegetalismo” na Amazônia Peruana. Esse tipo de xamanismo é distinto de outro uso comum que os povos do Purus e Juruá fazem da ayahuasca, que é um uso mais coletivo e festivo e menos restrito à atuação terapêutica de um xamã (cf. Gow, 1994GOW, Peter. 1994. “River people: Shamanism and history in Western Amazonia”. In THOMAS, Nicholas; HUMPHREY, Caroline. (eds.), Shamanism, History & the State. Michigan, University of Michigan. pp. 90-113: 110; de Mori 2011DE MORI, Bernd Brabec. 2011. “Tracing Hallucinations: Contributing to a Critical Ethnohistory of Ayahuasca Usage in the Peruvian Amazon”. In JUNGABERLE, Henrik; LABATE, Beatriz. (eds.), The Internationalization of Ayahuasca. Zürich, LIT-Verlag. pp. 23-47.: 28).
  • 26
    Roe registra um mito shipibo que é muito diretamente uma transformação do mito do “homem que casou com uma sucuri”: Uma mulher solteira namorava secretamente com uma sucuri. Todas as manhãs ela se pintava com jenipapo e ia para a beira de um lago carregando uma cuia. Um cunhado seu resolve então segui-la. A mulher chegava à beira do lago e batia a cuia três vezes sobre a superfície da água. Surgia do lago então uma sucuri, que fazia sexo com a mulher. O homem corre para avisar ao irmão o que ele vira. No outro dia, os dois vão bem cedo ao lago, fazem como a mulher, e quando a cobra vem saindo da água, os dois homens a matam. Inconsolada, a mulher se transforma em um um pequeno pássaro negro (Roe, 1982ROE, Peter G.1982. The cosmic zygote: Cosmology in the Amazon Basin. New Jersey, Rutgers University Press.: 56-57). Interessante observar que o ato de jogar três sementes de jenipapo no lago, nas histórias do “homem que namorou a sucuri” é espelhado aqui no bater da cabaça três vezes sobre a superfície da água, como é também no ato do homem que bate o tambor três vezes para chamar os queixada no mito piro-yine. Os shipibo não parecem associar esta história ao surgimento da ayahuasca, que, segundo de Mori, é narrada pelos “médicos” shipibo como tendo surgido do cadáver de um xamã de nome Agustín Murayari (de Mori, 2011DE MORI, Bernd Brabec. 2011. “Tracing Hallucinations: Contributing to a Critical Ethnohistory of Ayahuasca Usage in the Peruvian Amazon”. In JUNGABERLE, Henrik; LABATE, Beatriz. (eds.), The Internationalization of Ayahuasca. Zürich, LIT-Verlag. pp. 23-47.: 30).
  • 27
    Sabemos também que o irmão de Baldomiro, Maximo Rodriguez, manterá sob seu comando um contingente expressivo de trabalhadores shipibo em Fundo Iberia, explorando seringais e castanhais no Madre de Dios e seus afluentes. Ali deu-se um contato sustentado entre grupos yaminawa, grupos piro-yine (e manxineru) e grupos shipibo-conibo (cf. Rummenhoeller, 2003RUMMENHOELLER, Klaus. 2003. “Shipibos en Madre de Dios: la historia no escrita”. In. HUERTAS CASTILLO, Beatriz; ALTAMIRANO, Alfredo García. (eds.) Los pueblos indígenas de Madre de Dios: historia. Etnografía y coyuntura. Lima, IWGIA, pp. 165-84.). Calavia Sáez, a partir de uma análise de um conjunto considerável de mitos yaminawa, sugeriu que o contraste entre a importância atual da ayahuasca e o seu papel muito reduzido ou secundário nos mitos poderia ser um “indício, entre outros muitos, de que a ayahuasca, ao menos na sua dimensão atual, pode ser uma relativa novidade vinda do mundo ribeirinho do Ucayali” (2006: 154). Segundo o autor, isso explicaria a atribuição da origem do costume de tomar ayahuasca aos Yaminawa, feita pelos huni kuin que informaram Tastevin (1925TASTEVIN, Constant. [1925] 2009. “O rio Muru: seus habitantes, crenças e costumes Kachinawá”. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.) Tastevin, Parrissier. Rio de Janeiro, Museu do Índio-Funai. pp.136-71.: 165), uma vez que eram os diferentes grupos designados por esse etnônimo que mormente serviam como elemento de ligação entre a região do alto Ucayali e baixo Urubamba e as cabeceiras dos rios Envira e Purus.
  • 28
    Em seu artigo sobre o rio Muru, Tastevin observa que os Huni Kuin tomavam honé para “adivinhar onde se esconde a caça” (Tastevin, 1925TASTEVIN, Constant. [1925] 2009. “O rio Muru: seus habitantes, crenças e costumes Kachinawá”. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.) Tastevin, Parrissier. Rio de Janeiro, Museu do Índio-Funai. pp.136-71.: 167). Esse uso da ayahuasca, muito incomum hoje em dia, parece ter sido muito mais corriqueiro. Ver, por exemplo, o uso que ainda fazem os Matsigenka do rio Manu, entre os quais o uso do preparo do cipó com a chacrona se deu apenas a partir da década de 50, com o contato com os intérpretes dos missionários. Ainda hoje o uso matsigenka está voltado para a purificação dos caçadores (“kamarampi significa, literalmente remédio de vomitar”, sugere Shepard, 2014SHEPARD, Glenn H. 2014. “Will the real shaman please stand up?”. In LABATE, B., & CAVNAR, C. (eds.) Ayahuasca shamanism in the Amazon and beyond. Oxford, University of Oxford Press, pp. 16-39.: 22) e para promover a mira e a sorte dos caçadores. Sobre os Yawanawa, Pérez Gil observou que “a respeito da função do xamã como promotor do sucesso na atividade cinegética dos outros homens do grupo - através de sua mediação com seres considerados como os donos dos animais ou de ações, cantos por exemplo, que visam atrair as presas desejadas -, prática esta tão presente entre outros grupos amazônicos, entre os Yawanawa este aspecto não parece muito saliente hoje em dia, mas existem indícios de que no passado este papel foi mais relevante do que na atualidade” (1999: 52-53). Há um mito shipibo que aponta a ligação entre a sucuri e as capacidades cinegéticas de um caçador: ele conta que uma sucuri transformada em homem assopra a zarabatana de um caçador, e, “daquele dia em diante, o caçador, graças à sua amizade com o homem-sucuri, sempre teve sucesso na caça, tornando-se um caçador muito renomado” (Roe, 1982ROE, Peter G.1982. The cosmic zygote: Cosmology in the Amazon Basin. New Jersey, Rutgers University Press.: 52).
  • 29
    Um/a dos/as pareceristas anônimos/as deste artigo observou que seria mais plausível atribuir a presença de elementos cristãos no mito shawandawa ao impacto mais recente do evangelismo e das religiões ayahuasqueiras (como o Santo Daime) sobre as comunidades contemporâneas, no lugar de vê-las como transformações míticas ligadas à expansão do xamanismo ayahuasqueiro pelos interflúvios propulsionada pelo extrativismo gomífero. Trata-se de fato, de uma questão que mereceria uma investigação detida e um trabalho de campo cuidadoso. Observo, em abono à minha hipótese, que a observação da/o parecerista não é incompatível com a hipótese proposta, uma vez que o evangelismo recente pode ser visto em continuidade com os processos de inserção desses coletivos indígenas na Economia-Mundo do extrativismo. Além disso, o significativo não é a simples menção do nome de Jesus, mas antes que o narrador do mito faça ele ocupar a posição que em outras transformações era a do homem que volta da morte (no mito da mesma coleção shawandawa M16, por exemplo), e que na versão de Tastevin (M18) era a de um velho “excelente caçador e pescador”, que morre de maneira estritamente análoga ao chefe do mito yawanawa M01. Por fim, é interessante observar que as referências míticas ao Ucayali abundam nos hinários do Santo Daime, permitindo pensá-lo também como um fluxo de transformação paralelo (e não alternativo) ao que sugerimos aqui.
  • FINANCIAMENTO: Não se aplica
  • ÍNDICE DE MITOS
    M01 - Puyahunihu, versão narrada por Raimundo Luiz Yawanawa em 2009.
    M02 - “A anta que jogava jenipapo”, versão yawanawa do rio Gregório (Naveira, 1999: 188-190).
    M03 - “Origem da Ayahuasca”, versão huni kuin do rio Tarauacá e Muru (Tastevin, 1925TASTEVIN, Constant. [1925] 2009. “O rio Muru: seus habitantes, crenças e costumes Kachinawá”. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.) Tastevin, Parrissier. Rio de Janeiro, Museu do Índio-Funai. pp.136-71.: 165; 1926: 202-203).
    M04 - “Origem da Ayahuasca”, versão huni kuin do rio Purus (Lagrou, 2000LAGROU, Els. 2000. “Two Ayahuasca myths from the Cashinahua of Northwestern Brazil”. In LUNA PORRAS, Luis Eduardo; WHITE, Steven. (orgs.). Ayahuasca Reader. Santa Fé, Synergetic Press, pp. 31-35.; 2007: 197-200).
    M05 - “Yube, o homem-sucuriju”, versão huni kuin do rio Curanja (Camargo, 1999CAMARGO, Eliane. 1999. Yube, o homem-sucuriju: Relato caxinauá. Paris, Amerindia, n°24: 195-212.).
    M06 - “A invenção da ayahuasca”, versão huni kuin do rio Curanja (D’Ans, 1975D’ANS, Andre Marcel. 1975. La verdadera Biblia de los Cashinahua. Lima, Mosca Azul.: 122-131).
    M07 - “A história do cipó”, versão huni kuin do rio Jordão (Ibã, 2005IBÃ, Isaias Sales. 2005. Nixi Pae: o espírito da floresta. Rio Branco, Comissão Pró-Índio do Acre.).
    M08 - “Sobre o espírito sucuri”, versão sharanawa do rio Purus (Siskind, 1973SISKIND, Janet. 1973. To hunt in the morning. Oxford, Oxford University Press.: 138-140).
    M09 - “A mulher-sucuri”, versão sharanawa do rio Purus (Deleage, 2009DELEAGE, Pierre. 2009. Le chant de l’anaconda: L’apprentissage du chamanisme chez les Sharanahua (Amazonie occidentale). Nanterre, Société d’Ethnologie.: 95-98).
    M10 - “O homem que se casou com a cobra grande” versão shawadawa do rio Bagé (Iskuhu et. al, 2009ISKUHU [Edilson Pereira; DIAKA [Francisco Oliveira de Lima]; ISHUKU, Nai Tãde [João Napoleão Pereira]; SHOWÃ, Mäku [José Arenilton Pereira da Silva]. (orgs.) 2009. Shawã Shãdipahu: histórias do Povo Shawãdawa (Arara). Rio de Janeiro e Rio Branco, Museu do Índio-Funai e Comissão Pró-Índio do Acre.: 83-85).
    M11 - “A que transava com a anta”, versão yaminawa do rio Acre (Calávia Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.: 460-462).
    M12 - “O homem que casou com a sucuri” versão yaminawa do rio Mapuya (Pérez Gil, 2006PÉREZ GIL, Laura. 2006. Metamorfoses yaminawa: xamanismo e socialidade na Amazônia peruana. Florianópolis, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 117-119).
    M13 - “Runua shau awa txutadi, a história da anta e da cobra”, versão yaminawa do Caeté (Padilha et. al, 2019PADILHA, Rosenilda Nunes; PADILHA, Lindomar Dias; LACERDA, Luiz Felipe Barboza. (orgs.). 2019 Nuku Shedivawe Xina. São Leopoldo, Casa Leiria.: 75-78).
    M14 - “O homem morto pela sucuri”, versão yaminawa do rio Acre (Calávia Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.: 462-463; variante: “o índio que aprendeu com a cobra”, Calávia Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.: 426).
    M15 - “Kukushnawa” versão yaminawa do rio Acre (Calávia Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.: 428-431).
    M16 - “O surgimento do cipó”, versão shawandawa do rio Bagé (Iskuhu et. al., 2009ISKUHU [Edilson Pereira; DIAKA [Francisco Oliveira de Lima]; ISHUKU, Nai Tãde [João Napoleão Pereira]; SHOWÃ, Mäku [José Arenilton Pereira da Silva]. (orgs.) 2009. Shawã Shãdipahu: histórias do Povo Shawãdawa (Arara). Rio de Janeiro e Rio Branco, Museu do Índio-Funai e Comissão Pró-Índio do Acre.: 27).
    M17 - “História do homem devorado pela sucuri”, versão yaminawa do rio Mapuya (Naveira, 2007CARID NAVEIRA, Miguel. 2007. Yama Yama: os sons da memória. Afetos e parentesco entre os Yaminahua. Florianópolis, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 344-346).
    M18 - “A lenda dos peixes”, versão huni kuin do rio Tarauacá (Tastevin, 1926TASTEVIN, Constant. [1926] 2009 “O Alto Tarauacá”. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.) Tastevin, Parrissier. Rio de Janeiro, Museu do Índio-Funai. pp.172-205.: 203-204).
    M19 - “Os irmãos engolidos por cobras”, versão huni kuin do rio Iboaçu (Abreu, 1941ABREU, João Capistrano de. 1941. Rã-txa hu-ni-ku-i: Grammatica, textos e vocabulário Caxinauás. Edição da Sociedade Capistrano de Abreu.: 347-349).
    M20 - “O caxinauá perseguido pela cobra”, versão huni kuin do rio Iboaçu (Abreu, 1941ABREU, João Capistrano de. 1941. Rã-txa hu-ni-ku-i: Grammatica, textos e vocabulário Caxinauás. Edição da Sociedade Capistrano de Abreu.: 349-351).
    M21 - “O feiticeiro e a sucuri”, versão huni kuin do rio Iboaçu (Abreu, 1941ABREU, João Capistrano de. 1941. Rã-txa hu-ni-ku-i: Grammatica, textos e vocabulário Caxinauás. Edição da Sociedade Capistrano de Abreu.: 403-407).
    M22 - “O feiticeiro e os porcos”, versão huni kuin do rio Iboaçu (Abreu, 1941ABREU, João Capistrano de. 1941. Rã-txa hu-ni-ku-i: Grammatica, textos e vocabulário Caxinauás. Edição da Sociedade Capistrano de Abreu.: 407-409).
    M23 - “O caxinauá que bebeu huni” versão huni kuin do rio Iboaçu (Abreu,1941: 413-421). M24 - “Puiayhunihu” versão yawanawa do rio Gregório (Carid Naveira, 1999CARID NAVEIRA, Miguel. 1999. Yawanawa: da guerra à festa. Florianópolis, Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 191-194).
    M25 - “As tartarugas que enfeitiçaram Chashoaroafo”, versão sharanawa do rio Purus (Deleage 2000: 108-109).
    M26 - “A ascenção ao céu”, versão yaminawa do rio Acre (Calávia Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.: 404-405).
    M27 - “Ruva nesa vevadi, história de um homem que foi traído pela tartaruga de igapó”, versão yaminawa do Caeté (Padilha et. al, 2019PADILHA, Rosenilda Nunes; PADILHA, Lindomar Dias; LACERDA, Luiz Felipe Barboza. (orgs.). 2019 Nuku Shedivawe Xina. São Leopoldo, Casa Leiria.: 113-114).
    M28 - “O mito de shanka huni”, versão huni kuin do rio Purus (Lagrou, 2000LAGROU, Els. 2000. “Two Ayahuasca myths from the Cashinahua of Northwestern Brazil”. In LUNA PORRAS, Luis Eduardo; WHITE, Steven. (orgs.). Ayahuasca Reader. Santa Fé, Synergetic Press, pp. 31-35.: 31-32).
    M29 - “O apaixonado que perdeu o vôo dos cashinaua”, versão huni kuin do rio Curanja (D’Ans, 1975D’ANS, Andre Marcel. 1975. La verdadera Biblia de los Cashinahua. Lima, Mosca Azul.: 147-149).
    M30 - “A história do cipó leve”, versão huni kuin do rio Purus (CPI/Acre, 1995CPI/ACRE (org.). 1995. Shenipabu Miyui. Rio Branco, Comissão Pró-Índio do Acre.: 90-92).
    M31 - “Hudihu”, versão yaminawa do rio Mapuya (Pérez Gil, 2006PÉREZ GIL, Laura. 2006. Metamorfoses yaminawa: xamanismo e socialidade na Amazônia peruana. Florianópolis, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 121-122).
    M32 - “O povo que foi morar no céu”, versão shawandawa do rio Bagé (Iskuhu et. al, 2009ISKUHU [Edilson Pereira; DIAKA [Francisco Oliveira de Lima]; ISHUKU, Nai Tãde [João Napoleão Pereira]; SHOWÃ, Mäku [José Arenilton Pereira da Silva]. (orgs.) 2009. Shawã Shãdipahu: histórias do Povo Shawãdawa (Arara). Rio de Janeiro e Rio Branco, Museu do Índio-Funai e Comissão Pró-Índio do Acre.: 47-51).
    M33 - “Os que comeram o ovo do pássaro que cantava yawa yawa”, versão yawanawa do rio Gregório (Naveira, 1999: 172-174).
    M34 - “Os que se transformaram em queixada”, versão sharanawa do rio Purus (Deleage & Aguilla, 2010DELEAGE, Pierre; AGUILLA, Jaime del. 2010. Mythologie Sharanahua (traduction provisoire). (mimeo).: 36).
    M35 - “Yawabesbo, os transformados em queixada”, versão yaminawa do rio Acre (Calávia Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.: 423-424).
    M36 - “Os caxinuás que viraram porcos”, versão huni kuin do rio Iboaçu (Abreu, 1941ABREU, João Capistrano de. 1941. Rã-txa hu-ni-ku-i: Grammatica, textos e vocabulário Caxinauás. Edição da Sociedade Capistrano de Abreu.: 187-196).
    M37 - “Os queixadas e os homens”, versão huni kuin do rio Curanja (D’Ans, 1975D’ANS, Andre Marcel. 1975. La verdadera Biblia de los Cashinahua. Lima, Mosca Azul.: 107-112).
    M38 - “Yawavide, o homem que virou queixada”, versão yaminawa do rio Acre (Calávia Sáez, 2006SÁEZ, Oscar Calavia. 2006. O Nome e o Tempo dos Yaminawa: Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São Paulo, Editora da Unesp.: 427-428).
    M39 - “O caçador obstinado que se transformou quase completamente em queixada”, versão huni kuin do rio Curanja (D’Ans, 1975D’ANS, Andre Marcel. 1975. La verdadera Biblia de los Cashinahua. Lima, Mosca Azul.: 159-162).
    M40 - “Aquele que foi levado pelos queixada”, versão sharanawa do rio Purus (Deleage & Aguilla, 2010DELEAGE, Pierre; AGUILLA, Jaime del. 2010. Mythologie Sharanahua (traduction provisoire). (mimeo).: 21).
    M41 - “O homem que foi para debaixo da terra”, versão piro-yine do baixo rio Urubamba (Gow, 2001GOW, Peter. 2001. An Amazonian Myth and its History. Oxford, Oxford University Press.: 35).
    M42 - “O homem que foi para debaixo da terra”, versão piro-yine do rio Madre de Dios (Opas, 2008OPAS, Minna. 2008. Different but the same: Negotiation of Personhoods and Christianities in Western Amazonia. Turku, Tese de Doutorado, University of Turku.: 148-149).
    M43 - “A mãe dos queixada”, versão piro-yine (Alvarez, 1960ALVAREZ, Ricardo. 1960. Los Piros: leyendas, mitos, cuentos. Lima, Instituto de Estudios Tropicales Pio Aza.: 152-153).
    M44 - “A mãe da água”, versão piro-yine (Alvarez, 1960ALVAREZ, Ricardo. 1960. Los Piros: leyendas, mitos, cuentos. Lima, Instituto de Estudios Tropicales Pio Aza.: 157-158).
    M45 - “O sol”, versão piro-yine (Matteson, 1965MATTESON, Esther. 1965. The Piro (Arawakan) Language. Berkeley, University of California Press.: 164-169).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2020
  • Aceito
    17 Jun 2021
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