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Transversalidades, descentramentos e inquietações

Transversalities, decenterings and concerns

Resumo

Esta apresentação consiste em um mapeamento, não exaustivo, das contribuições dos textos escritos a várias mãos pelas colaboradoras deste dossiê, também inspi­rado nos debates ocorridos por ocasião do 4º Seminário Casa, Corpo e Políticas da Terra. A perspectiva de gênero adotada nas abordagens etnográficas em domínios subdisciplinares distintos promove deslocamentos teóricos e analíticos, assim como nas dicotomias centrais da antropologia.

palavras-chave
Relações de gênero; maternidade; casa; parentesco; etnologia indígena; povos tradicionais; camponeses

abstract

This presentation consists of a non-exhaustive mapping of the contributions of the texts written by various hands by the contributors to this dossier, also inspired by the debates that took place at the 4th Seminar on House, body and politics of the land. The gender perspective adopted in ethnographic approaches in different subdisciplinary domains promotes theoretical and analytical shifts, as well as in the central dichotomies of anthropology.

keywords
Gender relations; motherhood; house; kinship; indigenous ethnology; traditional peoples; peasants

O que podem revelar as relações de gênero e os pontos de vista femininos da socialidade? Que efeitos teóricos e analíticos se apreendem em etnografias realizadas por mulheres? Que vieses se impõem pela predominância de perspectivas masculinas que se fazem perceptíveis nos textos clássicos de nossa formação da antropólogos e antropólogas? Essas questões nortearam o 4º Seminário Casa, Corpo e Políticas da Terra, que se realizou por via remota em outubro de 2020. O longo parêntese na rotina doméstica e de trabalho ocasionado por esse encontro se somou ao entusiasmo com que tomei parte nele, a convite das organizadoras, como observadora e relatora dos debates entre as participantes. Já vinha à distância e havia alguns anos acompanhando a movimentação de boa parte daquelas jovens antropólogas, dedicadas a temas, objetivos e sujeitos diversos, mas majoritariamente distribuídos pelas “subáreas” da etnologia indígena, da antropologia rural e das populações afro-brasileiras. Me entusiasmava a disposição em atravessar províncias temáticas da disciplina, assim como explorar questões de gênero a partir de um diálogo subdisciplinar aberto que elas promoviam. Sem dúvida, a honra e o entusiasmo se renovaram com o convite para apresentar este dossiê resultante daquele seminário.

As organizadoras daquela quarta edição do Seminário consideraram que já era tempo de propor uma reflexão conjunta dos debates acumulados nos três anteriores. Esse objetivo orientou uma desafiadora reformatação do Encontro. Textos redigidos em colaboração por autoras de gerações, instituições e especializações distintas, em torno de eixos temáticos extraídos dos eventos anteriores, promoveriam os debates entre palestrantes e a audiência. A partir de meu posto de observadora participante no Simpósio, procurei mapear as densas discussões que se estenderam ao longo de uma jornada de três dias. Nem de longe fiz jus à riqueza inesgotável dos debates em que tomamos parte, mas me permiti algumas inflexões que foram ativadas pelo contato (aí subsumidos os choques, ruídos e ressonâncias) das questões que já guardava comigo com aquelas levantadas por minhas colegas.

Uma impressão geral e primeira restou de todo o nosso Simpósio: os sucessivos descentramentos e recentramentos produzidos, quando as relações e relacionalidades de gênero como tais são levadas em consideração. Os efeitos etnográficos e analíticos resultantes dos temas, sujeitos e processos que a perspectiva de gênero adotada pelas autoras fazia emergir não redundavam em inversões das dualidades, oposições ou complementaridades pervasivas da literatura antropológica. Para dizer isso de outra maneira, os descentramentos provocados pelas suas considerações de gênero presumiam dicotomias, dualidades e oposições hierarquicamente relacionadas na teoria antropológica e conferiam centralidade a um de seus polos. Com isso não produziam, porém, um ponto de vista divergente da mesma coisa, mas desvelavam perspectivas que se compunham e decompunham, que se conectavam e colidiam, que se somavam e subtraíam uma à outra, sintonizadas e desarmônicas.

Assim, por exemplo, a problematização da figura da mãe e da maternidade conduziu a reconsiderações das práticas, valores, papéis, imaginações do feminino – e do masculino, por conseguinte. A posição de mãe extrapola o domínio doméstico e a função reprodutiva, assim como reverbera a condição das mulheres como esposas e amantes; irmãs, filhas e tias; amigas, companheiras e comadres; ativistas, militantes e lideranças. E não como mera alternância, nem simples aglutinação de papéis. Mas talvez como implicação recíproca de todos eles, sem que somados resultem em uma totalidade – de mulher, pessoa, indivíduo ou outra qualquer.

Paralelamente, o enfoque na maternidade evidencia a prevalência da conjugalidade como objeto de especulação antropológica, cuja problemática não esvanece, mas se requalifica com o desvio de centro de reflexão. As relações entre mulheres, assim como outros relacionamentos cross-sex , complexificam e transbordam supostas complementaridades e normatividades. O deslocamento de foco para a figura e o papel da mãe eclipsa em forte medida os do pai, porém não os anula. Um perspectivismo em que cada ponto de vista incorpora ou captura outros tantos, sem se confundir com eles, se explicita nas mulheres que comandam e matam, que cuidam, alimentam e envenenam, que protegem e enfeitiçam, que absorvem funções e atributos masculinos, articulados a múltiplos femininos. Um perspectivismo correspondente aos descentramentos e recentramentos sucessivos, em que os pontos de vista, em vez de se substituírem, presumem-se, implicam-se e multiplicam-se (Strathern 1992aSTRATHERN, Marilyn. 1992a. After nature: English kinship in the late twentieth century. Cambridge, Cambridge University Press. ; 1992bSTRATHERN, Marilyn. 1992b. Reproducing the future: essays on anthropology, kinship and the new reproductive technologies. Manchester, Manchester University Press. ).

Mas a reconhecida relevância estrutural da socialização dos filhos (Fortes, 1958) tendeu a dar sustentação teórica ainda maior à relevância da dimensão pública da vida social, à oposição complementar dos papéis masculinos e femininos em correlação às figuras do pai e da mãe. Uma presumível autoevidência dos processos domésticos e privados é correlata dessas dicotomias fundantes de nossa ortodoxia antropológica, que aproxima o polo público e masculino da sociedade e da cultura, enquanto empurra seu contrário para o lado da natureza. Talvez a limitada observação dos tratos domésticos e cotidianos encontre nos pressupostos dos investigadores (e não apenas no gênero deles e delas) seu principal contexto. Acontece que, quando, por uma razão ou por outra, são examinados de perto as lidas, as obrigações e os desempenhos do dia a dia da vida familiar, eles se mostram muito mais importantes, complexos e multifacetados do que parecem sugerir as banalidades da rotina dos cuidados da casa.

Na esteira de um debate extenso e intensificado nos anos de virada deste século, as casas se impuseram como cenário e objeto de observação, no trabalho de campo e nas etnografias das simposistas. A tematização das casas é inseparável do movimento de revisão dos estudos do parentesco, informado pelo feminismo na antropologia (Carsten, 1995CARSTEN, Janet. 1995. “The substance of kinship and the heat of the hearth: feeding, personhood, and relatedness among the Malays in Pulau Langwaki”. American Ethnologist, 22(2): 223-241. ; Carsten & Hugh-Jones, 1995CARSTEN, Janet & HUGH-JONES, Stephen (orgs.). 1995. About the house: Lévi-Strauss and beyond. Cambridge, Cambridge University Press. ), e não poderia estar ausente dos diálogos nesse encontro. Essa jovem tradição tem reforçado o caráter construído do parentesco e da produção das relacionalidades nas e pelas casas, particularmente concentrada e gerida pelas mães. Desdobramentos e deslocamentos nessa linha de argumentação ressaltaram-se em muitas proposições nos textos e nos debates que nos reuniram. De fato, do exame orientado pelos questionamentos de gênero que se propuseram as etnógrafas, o parentesco resultou como campo indeclinável de investigação, que se abriu a renovadas indagações correlacionadas, sobrepostas e conflitantes. Assim, a fabricação do parentesco conduziu à procriação, à criação de corpos através dos cuidados, da alimentação, dos remédios, da produção de substâncias por meio de outras substâncias e seres, tangíveis e intangíveis, como o sangue, o fogo, a luz, as ervas, os bichos, os Encantados, as madrinhas, as donas do corpo. De forma geral, a criação se configura como transformação mediada por elementos vários, e envolvendo atenção e cuidados, doses e manejos complexos, até mesmo perigosos.

Essa alquimia do parentesco, conforme denominei em outro lugar (Marques & Leal 2018MARQUES, Ana Claudia; LEAL, Natacha Simei. 2018. Alquimias do parentesco: casas, gentes, papéis, territórios. Rio de Janeiro, Ed. Gramma; São Paulo, Terceiro Nome. ), se realiza em grande medida dentro das casas. Aí dentro, menos nos quartos do que na cozinha, onde se preparam os alimentos, onde se come, onde se aquece o sangue, onde se dão as visitas e conversas. A cozinha é metonímia da casa, conforme argumentam as simposistas, uma vez que nesse espaço se concentram as atividades domésticas, mas também porque a cozinha ela mesma domestica, por assim dizer, espaços, seres, relações. Aqui emprego a ideia de domesticação no sentido de uma transformação operada ou pretendida, tendo em mente a instalação de uma casa em terra retomada ou reivindicada, nos contextos trabalhados por Dibe e Lauriene, por exemplo. Nesse sentido que atribuo à domesticação, o agenciamento com a terra contrasta radicalmente com as relações capitalistas de propriedade e exploração, a exemplo da agroecologia praticada e predicada pelas interlocutoras de Rodica. Talvez almeje para essa ideia um significado próximo ao de “controle”, conforme propuseram Rodica, Emilia e Ariane, a partir de suas interlocutoras, sublinhando seu caráter jamais absoluto. Na cozinha metonímia da casa se domesticam e controlam fluxos sempre até certo ponto, que leva em conta idiossincrasias e alteridades, por meio da hospitalidade, da ingestão e oferta de alimentos e outras substâncias entre vizinhos e estranhos, consanguíneos e afins, aliados e opositores, como mostram Ana e Julia, Dibe e Lauriene. A cozinha é metonímia da casa, ainda, na condição de membrana que separa e ao mesmo tempo faz o contato – por assim dizer domesticando e controlando – entre o fora e o dentro, o mesmo e o outro, a própria casa e o mundo.

Em certo sentido, a cozinha é parte destacável da casa, se tivermos em conta a circulação da comida – que por sua vez serve de modelo a outras substâncias. A importância e os valores atribuídos ao movimento foram captados em numerosas etnografias recentes, especificamente explorados na coletânea Giros etnográficos em Minas Gerais , organizada por John Comerford, Ana Carneiro e Graziele Dainese. Para os habitantes de pequenas localidades espalhadas pelo Brasil, movimento é modo e condição de vida que não deve cessar, aí incluída a alternância entre mobilidade e repouso, marchas e paradas. Movimentos que se dão para fora e também no interior das comunidades, tanto nas “saídas” para “caçar melhora”, não raro em locais muito distantes, quanto nas “mexidas” e “visitas” constantes entre parentes e vizinhos, de praxe por parte dos políticos e conhecidos; e ainda nos “giros” e “folias”, nas romarias e procissões que comunicam dimensões e seres humanos, não humanos e mais que humanos. Movimento extensivo a partir das casas e intensivo dentro delas. Pelo movimento se dinamiza a configuração de casas, conforme nomeou Marcelin ( 1996MARCELIN, Louis Herns. 1996. A invenção da família afro-americana: família, parentesco e domesticidade entre os negros do Recôncavo da Bahia. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional. ; 1999MARCELIN, Louis Herns. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no Recôncavo Bahiano”. Mana 5(2): 31-60. ), essa rede de unidades domésticas inter-relacionadas e que participam da construção concreta e simbólica umas das outras. Pela comensalidade, pela oferta, pelo jeito de prepará-la, pelos ingredientes com que é elaborada, a comida é um vetor privilegiado – ainda que ao lado de tantos outros – da configuração de casas, próximas e distantes. E até de seu transbordamento e transfiguração pelas habitações precárias, pelos assentamentos, pela terra reivindicada, segundo mostram Dibe e Lauriene, em consonância com outras pesquisas (e.g., Guedes, 2013GUEDES, André Dumans. 2013. O trecho, as mães e os papéis: etnografia de movimentos e durações no norte de Goiás. São Paulo, Garamond. ; Alves, 2016ALVES, Yara de Cassia. 2016. A casa raiz e o voo de suas folhas: Família, movimento e casa entre os moradores de Pinheiro-MG. São Paulo, Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo. ; Handerson, 2020HANDERSON, Joseph. 2020. “Maisons diasporas et maisons locales: mobilités haïtiennes et réseaux transnationaux”. Etnográfica. Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, 24(3): 749-774. ). Nessa perspectiva se deslocam as relações de continente e conteúdo, englobante e englobado, mais usualmente associadas à casa, cozinha, terra, roçado, paisagem.

Lugar de intimidade, do reencontro consigo mesmo e com quem se partilha o próprio ser e modo de ser, a casa é abrigo e resistência às forças desagregadoras do mundo. Mundo dos brancos, dos trabalhos alienantes, dos inimigos, do Estado, dos perigos, do desconhecido, do imprevisto. Devido a tantas influências ameaçadoras, o contínuo processo de produção de modos de ser se realiza preferencialmente no ambiente doméstico e conduzido pelas mães. Mas, por muitas razões, as casas não se podem fechar para o mundo, que é tanto seu avesso quanto condição de sua existência. No mundo se encontram os meios de nele perseverar sem sucumbir a ele. Não há modo de enfrentá-lo sem conhecê-lo, e para conhecê-lo é preciso se movimentar por ele. Com o movimento se adquirem competências, como mostraram Rodica, Emilia e Ariane, e com saberes se estendem vínculos no tempo e no espaço. De certa forma, a casa e a terra se movimentam pelo mundo, que por sua vez nelas penetra, circula, ameaça e renova. Pois não há como capturá-lo sem ser capturado em alguma medida. O mundo se impõe, implacável, e sua recusa é perecimento à partida. O movimento pelo mundo se revela condição de permanência e enraizamento das casas e dos modos de ser, ainda que comporte sempre o risco da dispersão e da perda, que porventura antecipam novos enraizamentos (ver Comerford et al ., 2015COMERFORD, John; CARNEIRO, Ana & DAINESE, Graziele. 2015. Giros etnográficos em Minas Gerais. Casa, comida, prosa, festa, política, briga e o diabo. Rio de Janeiro, 7Letras: Faperj. ).

O movimento envolve um deslocamento no espaço, mas também no tempo. Uma abertura para a instabilidade e o incerto, ao mesmo tempo que condição de permanência, retorno e consolidação. Nessa perspectiva, o movimento presume memória na conjugação entre futuro e passado e comporta o perigo de seu descolamento, com o esquecimento, a perda ou o abandono. Ainda que alguma medida de abandono, perda, esquecimento na abertura para o mundo e o futuro seja condição de retorno, recuperação e resistência. A exposição ao perigo é necessária a seu enfrentamento. Novamente nos colocamos diante do contraditório implicado, assim como do outro intrínseco. Talvez resida aí a essência do cuidado, na dupla acepção do cuidar de e do ter cuidado com – o corpo, a terra, o eu, o outro – ressaltada nas etnografias que embasaram os debates do Encontro. Todo cuidado invoca risco, pois traduz o ensejo de evitá-lo, enfrentá-lo ou transformá-lo. Qualquer cuidado consiste em agenciamento, captura e ministração de diferença.

Para recapitular e formular alguma síntese, ainda que parcial e preliminar, por diferentes caminhos e materiais, as análises dos processos domésticos problematizam seu equacionamento à formação dos indivíduos e à reprodução social, ao dar a perceber como aquilo que considerávamos dado precisa ser continuamente feito, refeito e desfeito, com desfechos imprevisíveis. Em sua própria materialidade, a casa costuma espelhar as transformações sucessivas e contínuas das pessoas que nela e por ela se criam, e não apenas no interior das suas quatro paredes. Alternadamente confundida e distinguível de seus habitantes, a casa forma e conforma a si mesma e às pessoas em agenciamentos que a extrapolam, ao mesmo tempo que a compõem sob permanente risco de sua decomposição.

Casa e domesticidade convergem, sem esgotar, agenciamentos femininos de socialidade. Identificadas a campos e a processos sociais, também proporcionam uma sorte de interseção ou zona de cruzamento entre relações de gênero e terra, esta última definida enquanto produção territorial, conforme seus usos, significados e atributos. O ponto de vista da casa permite explorar relações de gênero para além e de forma distinta da atribuição de papéis femininos e masculinos, bem como de sua complementaridade, conforme observou Ana Carneiro durante o Seminário. Por sua vez, assim desdobradas entre aquelas e aqueles que se engajam em ligações com a terra e seus viventes que são irredutíveis ao modo de expropriação capitalista dos recursos naturais e dos meios de produção – em socialidades específicas dos povos da terra, para lembrar uma formulação de Marcela Coelho –, as relacionalidades de gênero tal como descritas nas etnografias das sociedades camponesas, das populações tradicionais e ameríndias escapam um tanto desajustadas aos debates de gênero na antropologia, conforme sublinhou Graziela Dainese, na mesma oportunidade. A liberação de ideias e imagens de gênero nas etnografias do campesinato e dos ameríndios motivou as organizadoras do evento, mais que a pretensão de alguma teoria alternativa de gênero.

Com minhas anfitriãs compartilho o máximo interesse na aproximação das províncias etnográficas pelas quais se divide a antropologia brasileira, a partir de problemas colocados por essas mesmas etnografias. Como elas me deparo com as dificuldades advindas dessa ordenação disciplinar e acadêmica na construção dos diálogos etnográficos e teóricos. O descompasso se evidenciou às participantes, que decidiram lidar com ele, em vez de obscurecê-lo. Algumas hipóteses e encaminhamentos foram esboçados na reunião de encerramento do encontro, aos quais quero aludir antes de interromper meus comentários.

A centralidade que a etnologia brasileira concedeu à construção da pessoa, ao corpo e à corporalidade (Seeger, Da Matta & Viveiros de Castro, 1979SEEGER, Anthony; Da MATTA, Roberto & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1979. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional, 32: 2-19. ; Viveiros de Castro, 1979VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1979. “A fabricação do corpo na sociedade xinguana”. Boletim do Museu Nacional, 32: 40-9. ), com a consequente diluição da distinção entre público e privado, decerto contribuiu para uma requalificação e dimensionamento dos processos por antecipação identificados à reprodução social – noção que se revela não menos problemática. No campo dos estudos camponeses, por outro lado, como bem sublinhou Emilia Pietrafesa durante o simpósio, o impacto do sistema mundial e do modelo capitalista de produção e expropriação por muito tempo orientou o debate intelectual para as condições de sobrevivência e reprodução do campesinato. Pouco a pouco, esse enfoque deu lugar às formas de resistência e diferenciação nesse segmento. Quilombolas, ribeirinhos, faxinaleiros, pescadores artesanais e demais segmentos identificados a “populações tradicionais” não conformam, a exemplo dos indígenas, um sujeito genérico. De qualquer forma, as agendas da etnologia indígena e da outrora chamada antropologia das sociedades complexas não se fizeram as mesmas, nem simultâneas.

Os ruídos e equívocos atrapalham, sem dúvida nenhuma, a conformação de denominadores comuns a serem extraídos das etnografias associadas a essas tradições díspares. Conceitos, linguagens e planos de análise incongruentes sobressaem às semelhanças aparentes. Decerto essas condições desencorajam sínteses conclusivas, às quais renuncio, como fizeram minhas colegas. Mas não impedem a fecundação heterodoxa de ideias, a aproximação de diferenças, as comparações desconexas, que essas companheiras se propuseram com criatividade e ousadia. Apenas me congratulo ao me juntar a elas.

Referências bibliográficas

  • ALVES, Yara de Cassia. 2016. A casa raiz e o voo de suas folhas: Família, movimento e casa entre os moradores de Pinheiro-MG. São Paulo, Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo.
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  • MARQUES, Ana Claudia; LEAL, Natacha Simei. 2018. Alquimias do parentesco: casas, gentes, papéis, territórios. Rio de Janeiro, Ed. Gramma; São Paulo, Terceiro Nome.
  • SEEGER, Anthony; Da MATTA, Roberto & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1979. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional, 32: 2-19.
  • STRATHERN, Marilyn. 1992a. After nature: English kinship in the late twentieth century. Cambridge, Cambridge University Press.
  • STRATHERN, Marilyn. 1992b. Reproducing the future: essays on anthropology, kinship and the new reproductive technologies. Manchester, Manchester University Press.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1979. “A fabricação do corpo na sociedade xinguana”. Boletim do Museu Nacional, 32: 40-9.
  • Financiamento:

    projeto temático Fapesp (Processo 2020/07886-8).
  • O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024
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