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Campos de concentração como organização burocrática: notas para estudo

NOTAS E COMENTÁRIOS

Campos de concentração como organização burocrática: notas para estudo

Milan Wohland

Mestrando na área de teoria e comportamento organizador

Insistir quanto à relevância dos campos de concentração, enquanto objeto de uma reflexão sobre as práticas sociais que levaram à sua constituição, parece ser uma tarefa desnecessária no presente momento. O confinamento e o extermínio de milhões de pessoas nas instalações desses campos inquietam tanto pela magnitude desse empreendimento, como também pelas novas formas de organização que assume, mais do que justificando a necessidade dessa reflexão.

Desde a segunda década deste século, as diversas siglas correspondentes aos campos passaram a se incorporar ao cotidiano de milhões de pessoas, em várias sociedades, compondo o seu universo de representações. Na Alemanha, no período de 1933-45, o KL ou KZ, a última foneticamente mais expressiva (Konzentrations-lager - campo de concentração), na URSS, o ITL (Ispravitelno-troudovyé Lagueri - campo de trabalho corretivo), representam marcos referenciais para os indivíduos e grupos sociais.1 1 Ver o livro de Gamm, H. J. Der Flüsterwitz im Dritten Reich. München, List Verlag, 1972. Nele o autor realiza uma coletânea de piadas, onde retém os ditos populares que circulavam na época, à respeito da situação social e política da Alemanha nazista. Sobre os campos de concentração, destacam-se as p. 26-7 e 105-15. Mesmo para as coletividades não abrangidas por esse universo concentracionário, outras siglas passaram a ter significado referindo-se aos órgãos responsáveis pela sua organização e funcionamento. A partir da Alemanha, despontam as SS (Schutzstaffeln - tropas de proteção), expostas e esmiuçadas pelo julgamento de Nuremberg; a partir da URSS, o Gulag (administração central dos campos), traduzido e divulgado na obra literária de Soltchenitzin.

Sinal de seu conteúdo, as siglas revelam a dimensão burocrática, forma racional de estruturação e funcionamento dos campos de concentração,, marca característica, eloqüente em sua simplicidade.

Hannah Arendt, ao analisar o processo contra Adolf Eichmann,2 2 Ver Arendt, Hannah. Eichmann in Jerusalem - Ein Bericht von der Banalität des Bösen. Hamburg, Rowohlt, 1978. procura caracterizar a natureza do delito que estava sendo julgado. E, ao fazê-lo, verifica a maior adequação da expressão inglesa administrative massacres, cm contraposição! noção genocid, criada na linguagem jurídica e como tal incorporada a diversos textos legais, definindo como crimes os atos inicialmente perpetrados nos campos de concentração nazistas. Isto porque a noção de genocídio mostra-se incapaz de situar a especificidade do problema, pois o extermínio de povos não é algo novo na História (existe .desde a antigüidade, manifestando-se no mundo contemporâneo por intermédio da colonização e do imperialismo). Na verdade, novo é o contexto e a forma do extermínio, enquanto procedimento burocrático sob a égide estatal.3 3 Id. ibid. p. 16-7.

A tarefa que está por ser feita, em relação a esse objeto de estudo, é a de desvendar a dinâmica interna de funcionamento dos campos de concentração, bem como levantar algumas hipóteses acerca dos determinantes de seu surgimento e de sua continuidade. Antes, no entanto, cabem algumas considerações relativas ao material empírico existente, enquanto substrato para qualquer análise que se deseja efetuar.

I

Os campos de concentração estão historicamente situados, dotados de uma materialidade que deve levar a uma análise do processo objetivo de sua criação e desenvolvimento. A essa proposta corresponde o levantamento do material empírico existente, vale dizer, dos dados históricos capazes de sustentar as afirmações mais abstratas formuladas sobre essa realidade.4 4 Ver Kosík, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. Em especial as p. 21-32, onde é discutida a questão da reprodução espiritual e racional da realidade, destacando método de investigação e método de exposição.

Portanto, antes de iniciar a apropriação dos estudos já efetuados, torna-se relevante uma apreciação crítica dos dados históricos disponíveis, que tanto podem estar circunscritos pelas explicações já elaboradas, como também apontar para outros caminhos, no sentido de estabelecimento de novas hipóteses, capazes de dar conta dos fenômenos constatados.

Nesse aspecto, existe uma diversidade quando são confrontados os casos da Alemanha e da URSS.

Para a Alemanha, existe uma quantidade significativa de dados acerca da organização dos campos de concentração e da estruturação dos aparelhos estatais, no período 1933-45.5 5 Arendt, Hannah. op. cit,; Broszat, Martin. Der Staat Hitlers. München, DTV, 1969; Buchheim, Hans. Anatomie des SS-Staates - I. München, DTV, 1979; Hüberg, Raul. Sonderzüge nach Auschwitz. Dumjahn, 1981; Höss, Rudolf, Kommandant in Auschwitz. München, DTV, 1978; Kogon, Eugen. Sociologia de los campos de concentraciün. Madrid, Taurus, 1965; Langbein, Hermann. Menschen in Auschwitz. Frankfurt/M. Ullstein, 1980; Speer, Albert. Erinnerungen, Frankfurt/M. Ullstein, 1969; ______. Der Sklavenstaat. DVA, 1981. No entanto, ocorre, muitas vezes, que essa documentação foi efetuada no sentido de subsidiar a acusação aos criminosos de guerra, sustentadas perante diversos tribunais especiais e regulares no período pós-guerra.

A partir daí, propiciam uma perspectiva mais acurada quanto aos fatos potencialmente puníveis, constituindo meios de prova para a condenação dos diversos agentes responsáveis pelo funcionamento desse aparato estatal. Como conseqüência, uma grande parcela de material relevante é negligenciada, apesar da sua I inquestionável contribuição para o entendimento desse fenômeno, que transcende a ação dos diversos agentes particulares.

Desse modo, torna-se necessário distinguir, no curso da análise, aqueles dados que dizem respeito à condição subjetiva do acusado e aqueles que são reveladores das características mais gerais do funcionamento desse sistema concentracionário. Como exemplo, a autobiografía de Höss,6 6 Höss, Rudolf, op. cit. comandante do maior campo de extermínio da Alemanha nazista - Auschwitz - revela ao mesmo tempo as distorções da personalidade do sujeito e as características mais gerais de sua trajetória social, ou seja, o conjunto de condições que fizeram com que ele fosse o mais indicado para ocupar postos de responsabilidade nesse sistema. Em outras palavras, as características do sujeito evidenciam traços fundamentais do sistema, quer na forma do recrutamento, quer na forma da ação e da percepção.

O que não pode ocorrer é uma análise circunscrita à personalidade, em que se procura apenas evidenciar os desvios psicológicos, segundo todo um conjunto de caracteres.7 7 Ver Dicks, Henry V. Les Meurtres coüectifs. Paris, Calmann-Lévy. 1973. Esta poderá até destacar elementos caracterizadores da conduta individual, enquanto um sistema de compensações que diversos atos propiciam em face da personalidade desequilibrada, mas, certamente, não poderá dar conta da dinâmica mais geral do sistema, que transcende essa conduta particularizada. A não ser que se assuma as categorias de uma irracionalidade ou demência coletiva, que, definitivamente, extrapolam o campo de competência da disciplina psiquiátrica.

Para a URSS, surge o problema a partir da quase inexistência de material empírico, especialmente no que se refere à dimensão particular dos campos de concentração.

A maior parte desse material é proveniente das denúncias oferecidas por elementos dissidentes, e aí aparece talvez a maior contribuição do Soltchenitzin, com seu Arquipélago Gulag8 8 Soltchenitzin, Alexander. Der Archipel Gulag. Hamburg, Rowohlt, 1978. 3 v. . Obra de denúncia, com forte conteúdo literário (conforme evidencia o próprio subtítulo da obra, colocado em termos de uma tentativa de dar conta da realidade artisticamente, estilisticamente), procura recuperar a história desse vasto contingente humano de prisioneiros e de desaparecidos. Obra para preservar a memória daqueles que sucumbiram constitui, nó dizer do próprio autor, um dever para com eles, no sentido do registro do funcionamento e das consequências desse sistema.

Outros dissidentes, como é o caso de ex-funcionários responsáveis pelo funcionamento de segmentos significativos do sistema concentracionário,9 9 Ver o depoimento do coronel Vladimir Andréiev, antigo inspetor dos campos soviéticos (1934-1941), em Bartön, PauL L'Institution concentrationnaire en Russie (1930-1957). Paris, Librairie Plön, 1959. p. 115-9. também permitem ampliar o leque de materiais existentes.

Mas, tanto em um como em outro, a informação chega necessariamente fragmentada, formando um quadro impressionista, situado ao nível das experiências dos relatores, necessariamente incompletas. As obras mais gerais, apresentando uma extensão maior, cobrindo outras áreas temáticas, levantando questões acerca das relações existentes entre os órgãos burocráticos, da estruturação do poder na URSS e assim por diante, acabam trabalhando com material empírico insuficiente ou necessariamente desencontrado.10 10 É o que acaba ocorrendo em vários textos, como é o caso de Araldi, Vinicio. URSS: médio siglo de repression. Madrid, Union Editorial, 1973. Apresenta, no entanto, tuna razoável perspectiva geral, a respeito dós principais períodos da repressão.

Muitas vezes, referem-se aos discursos de dirigentes ou às suas decisões como elementos determinantes do rumo dos acontecimentos* esquecendo-se de realizar a sua inserção na reprodução social da realidade, enquanto processo objetivo, onde tais ações representam apenas uma das instâncias.11 11 Ver a crítica efetuada por Bettelheim, Charles. Les Luttes de classes en URSS - première période 1917-1923. Maspero/Seuil, 1974. p. 47-52. Na verdade, é preciso dar início a um trabalho que procure decifrar, este é o termo mais apropriado, a partir dos discursos, dás análises e dos demais dados que existem, o funcionamento e a lógica de atuação dos órgãos responsáveis pelo regime concentracionário na URSS.

Dados relativos ao número de vítimas, à sua qualificação ou às relações existentes entre os órgãos burocráticos, destacando aí basicamente o Partido Comunista, os militares e direção dos campos, não aparecem de modo algum. Nesse ponto, cabe a pergunta sobre se realmente existe este material, não enquanto disponibilidade para os interessados, mas se essas informações são de algum modo armazenadas i ou se efetivamente a dinâmica do sistema não necessita deles para seu funcionamento.12 12 Para tal é interessante verificar o artigo de Besançon, Alain. A economia soviética. Jornal da Tarde, Caderno de Programas e Leituras, p. 4-5. Em especial, a discussão relativa à fidedignidade dos dados e estatísticas, dada a sua relevância política, num contexto burocrático. Ou, ainda, à medida que o tempo passa e a classe dirigente permanece, pelo menos em sua essência de funcionamento, não é de se esperar que exista algum interesse em tomar visíveis esses mecanismos internos de poder. Daí talvez o caráter dramático do relato de Soltchenitzin ou a sua ânsia para constituir a memória desses acontecimentos.13 13 Soltchenitzin, A. op. cit. v. 1, p. 10. Destaca exatamente a falta de acesso aos documentos e a dúvida a respeito da possibilidade de algum dia ocorrer a sua publicação.

O que vai marcar exatamente uma situação contrária àquela verificada no caso alemão, onde os dirigentes foram colocados em confissão, bem como os documentos foram devidamente recuperados e os sobreviventes relataram com todos os detalhes possíveis o acontecido.

II

A dinâmica interna dos campos de concentração, em termos do material empírico utilizável, apresenta-se com bastante detalhe nas obras de Kogon14 14 Kogon, Eugen. op. cit. Destaca o campo de concentração de Buchenwald. e Langbein,15 15 Langbein, Hermann, op. cit Destaca o campo de concentração de Auschwitz. no caso da Alemanha nazista, e Soltchenitzin,16 16 Soltchenitzin, A op. cit. no caso da URSS.

Quanto às análises efetivadas, podem ser destacadas as obras de Goffman17 17 Goffman, Erring. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Perspectiva, 1974. e Foucault,18 18 Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1977. em um primeiro momento. Para Foucault, o campo de concentração constitui a síntese da prisão, do manicômio e da fábrica, no sentido da afirmação do poder disciplinar em suas características: um tipo de organização do espaço, um controle do tempo, a vigilância como instrumento básico de controle e o registro contínuo do conhecimento.19 19 Id . ibid. p. 125-99.

São, desse modo, introduzidas categorias que permitem uma análise mais acabada dessa forma organizacional que é o campo de concentração, estruturando a sua lógica de funcionamento interno.

Contribuição similar é apresentada por Goffman quando procura descrever o funcionamento dos manicômios, prisões e conventos, elaborando para tal a categoria de instituição total, com a devida análise dos diversos processos que ocorrem em seu interior: mortificação do eu, os vários sistemas de privilégios, o sistema de ajuste secundário, os alinhamentos de adaptação, tudo isso em relação aos internos.20 20 Goffman, Erving. op. cit, p. 15-108. Uma versão resumida encontra-se em Etzioni, Amitai. Organizações complexas: estudo das organizações em face dos problemas sociais. São Paulo, Atlas, 1976. p. 303-31.

Vale ressaltar que essas características não são privativas dos campos de concentração, podendo ser encontradas em maior ou menor grau nas diversas organizações que existem nas sociedades industriais contemporâneas. Acontece que os campos levaram alguns desses traços ao seu limite, inclusive ao moralmente intolerável, para os próprios padrões dessas sociedades.

Em se tratando dessas organizações, verdadeiras burocracias voltadas ao confinamento e ao extermínio de indivíduos, talvez a questão mais importante diga respeito ao papel desempenhado pela autoridade nesse contexto.

Inicialmente, parece claro que as ações dos responsáveis por essas organizações não se orientam por inclinações particularmente sádicas. As aberrações, é claro, existiram e encontraram um clima bastante propício para realização. Entretanto, pretender explicar toda a dinâmica de funcionamento dos campos a partir dessas patologias individuais, parece ser tarefa que se destina ao fracasso.

A autobiografía de Höss fornece alguns elementos para elucidar essa questão. Nela, retrata o comandante a preocupação em manter o seu caráter íntegro, não corrompido pela tarefa degradante das execuções e dos montes de cadáveres, preocupação essa que caminha lado a lado com o extermínio de milhões de pessoas pelo sistema que nele encontra seu gerente. Procura retratar os seus sentimentos, a sua humanidade, como transparece do relato de sua vida familiar, tudo isso lado a lado com a minuciosa descrição das diversas etapas da história do extermínio de milhares de pessoas, como tarefa a ser desempenhada, desgastante, porém necessária. O próprio estilo da autobiografia assemelha-se a um relato burocrático, certamente não muito diverso daqueles por ele enviados aos seus superiores.21 21 Höss , Rudolf, op. cit. p. 14-22.

A mesma espécie de conduta transparece rio relato efetuado por Hannah Arendt acerca do julgamento de Eichmann,22 22 Arendt, Hannah, op. cit. p. 301-29. onde ela acaba formulando a concepção da banalidade do mal, evidenciando que o condenado se aproxima da média das pessoas, com toda a sua mediocridade, para assim revelar o papel das estruturas de podet anônimas.

Essa discussão também é retomada por Buchheim,23 23 Buchheim, Hans. op. cit. p. 215-318. quando a coloca nos termos de ordem, mandamento e obediência, no contexto do nacional-socialismo, evidenciando a profunda relação existente entre a visão de mundo encarnada no regime e as ordens expedidas para os diversos agentes. Além disso, inclui outros valores próprios da corporação SS (a fibra individual, a camaradagem), desenvolvidos ao longo de sua história, nos diversos momentos de sua constituição.

Nesse ponto parece claro que todas as contribuições até agora acolhidas apontam para a questão da autoridade, ou da sua contrapartida, a submissão dos indivíduos a uma estrutura impessoal e burocrática. Fica clara uma forma de poder que, a nível localizado, assume a feição disciplinar retratada por Foucault.

Evidencia-se a alienação do indivíduo, em termos de uma estrutura hierárquica, despojado que está de sua humanidade: torna-se um executante, onde as finalidades de sua ação já não se encontram no seu juízo particular, mas na racionalidade própria da estrutura.24 24 Para uma discussão filosófica desse tema, retomando a reflexão de Hannah Arendt, ver Lafer, Celso. Hannah Arendt - pensamento, persuasão e poder. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. p. 81-127. Ela acaba por determinar os critérios de valor e as direções a seguir, transformando o indivíduo de agente para objeto.

A questão do poder coloca-se agora mais claramente. Ao nível da organização particular, como é o caso do campo de concentração, os mecanismos desse poder já se encontram, nos seus traços essenciais, colocados e articulados. Fica, no entanto, a indagação mais geral: quais são as condições históricas, socialmente situadas, que propiciam o surgimento dessa realidade concentracionária? Como é possível entender a magnitude desse fenômeno na época contemporânea?

III

O referencial para essa discussão é encontrado na perspectiva da sociedade de classes,25 25 Ver Poulantzas, Nicos. As Classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro, Zahar (com destaque para a introdução). destacando os casos particulares da Alemanha e URSS. Em ambos os casos, a criação e a multiplicação dos campos de concentração não se referem a uma seqüência de determinações restritas, espacialmente localizadas. Isto significa que a rede estabelecida não se explica com referência a poderes locais cujo somatório de efeitos gerou as conseqüências na magnitude já apontada. Pelo contrário, todos os materiais coletados apontam para a existência de um órgão central responsável pela coordenação desses campos, vale dizer, uma burocracia especializada que encontra nos campos de concentração (ao lado de outras instituições) a base material de sua operação.

Desse modo, a questão dos campos refere-se diretamente à questão do fortalecimento de um segmento da burocracia, especializado nas ações de confinamento e de extermínio de indivíduos e grupos.26 26 Apesar de não ter sido feita uma distinção entre as várias modalidades de campos de concentração, torna-se necessário destacar que o termo compreende tanto os campos de concentração (aprisionamento) propriamente ditos, como os campos de extermínio. Nesse sentido, difere do entendimento de Etzioni, que usa o termo para caracterizar as organizações coercivas que servem de instrumento de assassinato em massa (ver Etzioni, Amitai. Análise comparativa de organizações complexas. Rio de Janeiro, Zahar, 1974. p. 57-62).

Quais seriam, então, as condições históricas que levaram ao surgimento dessa burocracia? Para a Alemanha, útil é a obra de Poulantzas acerca do fascismo.27 27 Poulantzas, Nicos. Fascismo e ditadura - a III Internacional face ao fascismo. Porto, Portucalense, 1972. 2 v. Em especial, merece atenção o v. 2, p. 93-159. Nela é discutido o campo de luta de classes durante o processo de fascização e o fascismo estabelecido, chegando-se às formas institucionais de que o Estado fascista se revestiu. Como característica final, ocorre uma reorganização no interior dos ramos do aparelho de Estado, assumindo progressivamente a polícia política o papel dominante, despertando o que Kogon denominou o "Estado SS". 28 28 Ver Kogon, Eugen. op. cit. p. 41-57, quando trata genericamente do "Estado SS"; Broszat, Martin, op. cit. p. 336-46, em termos do papel da SS e da polícia; Buchheim, Hans. op. cit. p. 15-212, quando trata da SS como instrumento de poder.

Isso não significa que os demais órgãos burocráticos não tivessem sua contribuição a dar na divisão do trabalho político, mas antes que essa participação ocorresse nos moldes desenvolvidos pelo órgão dominante. São, desse modo, incorporados ao projeto hegemônico, no campo específico de sua competência e especialidade.29 29 A título de exemplo, pode ser constatada na rede ferroviária alemã - órgão estatal - uma espécie de conduta similar àquela descrita no interior dos campos de concentração: racionalidade burocrática para atingir a finalidade do extermínio, no sentido da organização do transporte dos judeus até os campos (ver Hilberg, Raul. op. cit.).

Discute-se, nesse ponto, a questão da autonomia desse segmento burocrático, no sentido de que apresenta potencialidade para determinar seu próprio projeto econômico, político e social.

Parece claro que, apesar das suas determinações, de classe, esse segmento burocrático chegou a desenvolver, embrionariamente, um projeto econômico em contraposição à estrutura capitalista da economia alemã, calcado no trabalho forçado da população dos campos de concentração. Nesse sentido, o último livro de Speer,30 30 Speer, Albert. Der Sklavenstaat. DVA, 1981. que foi ministro dos armamentos no período 1942-45 e, como tal, fortemente ligado ao setor industrial, procura exatamente levantar material para fundamentar essa hipótese.

Outro aspecto relevante refere-se às condições efetivas que precisavam existir para se levar adiante o esforço de extermínio. O requisito mínimo é ter um contingente humano considerável à disposição da burocracia, para que ela possa desempenhar a sua tarefa.

Este contingente, na Alemanha, foi formado a partir de populações "marginais", encontrando-se aí os delinqüentes, os incapazes (idosos ou doentes mentais), os ciganos e, finalmente, os judeus. Se esse) desvio de "normalidade" serviu como parâmetro dentro das fronteiras nacionais, com a guerra e com o movimento de expansão da Alemanha, novas populações foram sendo abrangidas, englobando diversos grupos sociais incorporados aos Estados nacionais subjugados militarmente. Notadamente, no leste esse movimento é mais significativo, desmantelando-se os Estados criados no período posterior à I Guerra Mundial, como a Polônia e a Tchecoslováquia, deixando-se várias nacionalidades à mercê dos novos governantes, pela supressão das formas autônomas de organização política.

Assim, não se dá a escolha da Polônia ao mero acaso, enquanto campo de provas para a atuação da burocracia SS, sendo desmantelados o Estado polonês e todas as formas políticas e econômicas, reorientando-se de acordo com a própria estrutura econômica alemã, bem como ensaiando passos no sentido do projeto de colonização gerado no interior dos órgãos centrais da SS.31 31 Ver Broszat, Martin. Nationalsozialistische Polenpolitik 1939-1945. Hamburg, Fischer, 1965. Merecendo atenção especial o item relativo à esfera de atuação da SS e da polícia, p. 59-69. Isso sempre sob uma perspectiva predatória e opressiva, com múltiplos conflitos entre os vários segmentos burocráticos - Partido e Administração Pública, Polícia e Justiça Militares e SS.

Para a URSS, Bettelheim oferece indicações acerca da origem e da autonomização da burocracia especializada na repressão e no extermínio.32 32 Bettelheim, Charles, op. cit p. 252-7. Esta se encontra no próprio processo revolucionário quando é criada a Tchéka, incumbida de reprimir ações contra-revolucionárias, tendo seu poder aumentado no curso da guerra civil. Ainda no ano de 1919, são criados os primeiros "campos de trabalho corretivos", germe inicial da vasta rede posteriormente estabelecida. Também já é nessa etapa inicial que se firma a posição desse órgão perante os demais ramos burocráticos, especialmente pela sua ingerência no próprio partido bolchevique.

Outro dado importante é o da crescente autonomização dos aparelhos de Estado è a transformação do partido bolchevique, enquanto aparelho dirigente, em um processo de crescente burocratização.33 33 Id. ibid. p. 244-300.

Também no caso da URSS foi possível mobilizar um contingente populacional capaz de ser gerenciado e, eventualmente, exterminado, tanto em face dos demais segmentos burocráticos - por intermédio dos expurgos34 34 Araldi, Vinicio. op. cit. p. 107-52. - como em relação a outros grupos sociais, como os camponeses e minorias étnicas - pelas deportações.35 35 Id. ibid. p. 207-34.

Nesse ponto, aparece nitidamente a diferença entre o caso alemão e o caso soviético, em termos de inserção das burocracias responsáveis pelos campos de concentração. Apesar de sua relativa autonomia, diversa é a sua. posição em face dos grupos e classes sociais. Na Alemanha, essa burocracia tem como interlocutores representantes do capital, o que vai dificultar substancialmente á conquista de um espaço para elaborar e implementar um 1 projeto autônomo, reafirmando seu poder. Já na URSS, esses órgãos surgem no interior de um projeto revolucionário, competindo, no momento inicial, com várias modalidades de organização política (desde a burguesia contra-revolucionaria até as propostas anarquistas, autogestionárias) e, posteriormente, em face das burocracias que se vão instalando ao longo da consolidação do Estado soviético (basicamente a partidária e a estatal).

Assim, a proposta alemã acaba ocorrendo no interior de uma formação social capitalista, na fase de transição para uma sociedade industrial moderna, firmada a economia em sua etapa monopolista. A proposta soviética inscreve-se em um processo de ascensão de novos grupos sociais, sob a forma burocrática, o que deve merecer um estudo à parte, em que pesem às limitações já apontadas no início deste texto.

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  • ______. Erinnerungen, Frankfurt/M. Ullstein, 1969.
  • 1
    Ver o livro de Gamm, H. J.
    Der Flüsterwitz im Dritten Reich. München, List Verlag, 1972. Nele o autor realiza uma coletânea de piadas, onde retém os ditos populares que circulavam na época, à respeito da situação social e política da Alemanha nazista. Sobre os campos de concentração, destacam-se as p. 26-7 e 105-15.
  • 2
    Ver Arendt, Hannah.
    Eichmann in Jerusalem - Ein Bericht von der Banalität des Bösen. Hamburg, Rowohlt, 1978.
  • 3
    Id. ibid. p. 16-7.
  • 4
    Ver Kosík, Karel.
    Dialética do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. Em especial as p. 21-32, onde é discutida a questão da reprodução espiritual e racional da realidade, destacando método de investigação e método de exposição.
  • 5
    Arendt, Hannah. op. cit,; Broszat, Martin.
    Der Staat Hitlers. München, DTV, 1969; Buchheim, Hans.
    Anatomie des SS-Staates - I. München, DTV, 1979; Hüberg, Raul.
    Sonderzüge nach Auschwitz. Dumjahn, 1981; Höss, Rudolf,
    Kommandant in Auschwitz. München, DTV, 1978; Kogon, Eugen.
    Sociologia de los campos de concentraciün. Madrid, Taurus, 1965; Langbein, Hermann.
    Menschen in Auschwitz. Frankfurt/M. Ullstein, 1980; Speer, Albert.
    Erinnerungen, Frankfurt/M. Ullstein, 1969; ______.
    Der Sklavenstaat. DVA, 1981.
  • 6
    Höss, Rudolf, op. cit.
  • 7
    Ver Dicks, Henry V.
    Les Meurtres coüectifs. Paris, Calmann-Lévy. 1973.
  • 8
    Soltchenitzin, Alexander.
    Der Archipel Gulag. Hamburg, Rowohlt, 1978. 3 v.
  • 9
    Ver o depoimento do coronel Vladimir Andréiev, antigo inspetor dos campos soviéticos (1934-1941), em Bartön, PauL
    L'Institution concentrationnaire en Russie (1930-1957). Paris, Librairie Plön, 1959. p. 115-9.
  • 10
    É o que acaba ocorrendo em vários textos, como é o caso de Araldi, Vinicio.
    URSS: médio siglo de repression. Madrid, Union Editorial, 1973. Apresenta, no entanto, tuna razoável perspectiva geral, a respeito dós principais períodos da repressão.
  • 11
    Ver a crítica efetuada por Bettelheim, Charles.
    Les Luttes de classes en URSS - première période 1917-1923. Maspero/Seuil, 1974. p. 47-52.
  • 12
    Para tal é interessante verificar o artigo de Besançon, Alain. A economia soviética.
    Jornal da Tarde, Caderno de Programas e Leituras, p. 4-5. Em especial, a discussão relativa à fidedignidade dos dados e estatísticas, dada a sua relevância política, num contexto burocrático.
  • 13
    Soltchenitzin, A. op. cit. v. 1, p. 10. Destaca exatamente a falta de acesso aos documentos e a dúvida a respeito da possibilidade de algum dia ocorrer a sua publicação.
  • 14
    Kogon, Eugen. op. cit. Destaca o campo de concentração de Buchenwald.
  • 15
    Langbein, Hermann, op. cit Destaca o campo de concentração de Auschwitz.
  • 16
    Soltchenitzin, A op. cit.
  • 17
    Goffman, Erring.
    Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Perspectiva, 1974.
  • 18
    Foucault, Michel.
    Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1977.
  • 19
    Id . ibid. p. 125-99.
  • 20
    Goffman, Erving. op. cit, p. 15-108. Uma versão resumida encontra-se em Etzioni, Amitai.
    Organizações complexas: estudo das organizações em face dos problemas sociais. São Paulo, Atlas, 1976. p. 303-31.
  • 21
    Höss , Rudolf, op. cit. p. 14-22.
  • 22
    Arendt, Hannah, op. cit. p. 301-29.
  • 23
    Buchheim, Hans. op. cit. p. 215-318.
  • 24
    Para uma discussão filosófica desse tema, retomando a reflexão de Hannah Arendt, ver Lafer, Celso.
    Hannah Arendt - pensamento, persuasão e poder. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. p. 81-127.
  • 25
    Ver Poulantzas, Nicos.
    As Classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro, Zahar (com destaque para a introdução).
  • 26
    Apesar de não ter sido feita uma distinção entre as várias modalidades de campos de concentração, torna-se necessário destacar que o termo compreende tanto os campos de concentração (aprisionamento) propriamente ditos, como os campos de extermínio. Nesse sentido, difere do entendimento de Etzioni, que usa o termo para caracterizar as organizações coercivas que servem de instrumento de assassinato em massa (ver Etzioni, Amitai.
    Análise comparativa de organizações complexas. Rio de Janeiro, Zahar, 1974. p. 57-62).
  • 27
    Poulantzas, Nicos.
    Fascismo e ditadura - a III Internacional face ao fascismo. Porto, Portucalense, 1972. 2 v. Em especial, merece atenção o v. 2, p. 93-159.
  • 28
    Ver Kogon, Eugen. op. cit. p. 41-57, quando trata genericamente do "Estado
    SS"; Broszat, Martin, op. cit. p. 336-46, em termos do papel da
    SS e da polícia; Buchheim, Hans. op. cit. p. 15-212, quando trata da
    SS como instrumento de poder.
  • 29
    A título de exemplo, pode ser constatada na rede ferroviária alemã - órgão estatal - uma espécie de conduta similar àquela descrita no interior dos campos de concentração: racionalidade burocrática para atingir a finalidade do extermínio, no sentido da organização do transporte dos judeus até os campos (ver Hilberg, Raul. op. cit.).
  • 30
    Speer, Albert.
    Der Sklavenstaat. DVA, 1981.
  • 31
    Ver Broszat, Martin.
    Nationalsozialistische Polenpolitik 1939-1945. Hamburg, Fischer, 1965. Merecendo atenção especial o item relativo à esfera de atuação da
    SS e da polícia, p. 59-69.
  • 32
    Bettelheim, Charles, op. cit p. 252-7.
  • 33
    Id. ibid. p. 244-300.
  • 34
    Araldi, Vinicio. op. cit. p. 107-52.
  • 35
    Id. ibid. p. 207-34.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 1983
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