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Carnoy, Martin. Educação, economia e estado (base e superestrutura, relações e mediações)

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Afrânio Mendes Catani

Carnoy, Martin. Educação, economia e Estado (base e superestrutura, relações e mediações).

Trad. Dagmar M.L. Zibas. São Paulo, Cortez Autores Associados, 1984 88 p.

O presente livro de Martin Carnoy, publicado originalmente sob a forma de um longo artigo no livro de Michael W. Apple (Culturaland economic reproduction in education, Routledge & Kegan Paul, Boston, 1982), é o 13º volume da coleçlão Polêmicas do Nosso Tempo, que a Cortez Autores Associados vem publican-do já há algum tempo.

Valendo-se de uma bibliografia das mais estimulantes, onde se destacam, entre outros, os trabalhos de Althusser, Perry Anderson, Baudelot e Establet, Norberto Bobbio, Bourdieu e Passeron, Bowles e Gintis, Braverman, Marx e Engels, Gramsci, Lenin, Poulantzas e James O'Connor, o livro de Martin Carnoy (prefaciado por Ladislau Dowbor) se constitui num debate com as principais tendências contemporâneas da sociologia, da política, da economia e da educação - entendendo este último campo como um sistema de ensino estruturado, com normas e valores próprios, cuja função específica, conferida pela "sociedade", seria a de preparar os cidadãos para a vida (vida "produtiva", logicamente).

Nesta resenha pretendo, através de algumas considerações contindas na Introdução (p. 13-7) e em parte do último capítulo (Uma nova interpretação) do trabalho de Carnoy, destacar uma perspectiva de análise contemporânea que tem nas classes sociais e na organização social da produção (bem como em suas contradições), um campo fértil para o estudo do fenômeno educacional.

Carnoy destaca que os pontos de vista tradicionais acerca da educação e sociedade enfatizam o papel desempenhado pela educação na "alteração das características individuais e na posição do indivíduo na estrutura econômica, social e política", sendo o foco de tais perspectivas "fixado em uma instituição (a escola) e em suas relações com o indivíduo (...) Os indivíduos, em sua coletividade, estão imersos em um contexto universal e a ciência educacional e social tenta encontrar normas e regras universais através das quais possa entender a relação entre a instituição e o indivíduo naquele contexto" (p. 13). De acordo com esse padrão de análise, os indivíduos, sempre seprados, lutam uns contra os outros em embates que são resolvidos por regulamentos e regras universalmente aceitos. "Universalmente aceitos porque são imparciais e justos: os conflitos econômicos são resolvidos pelo sistema de mercado, particularmente pelo sistema de preços e salários e os confli tos sociais e políticos são resolvidos pelo sistema legal em vigor no Estado democrático. E as mudanças em tais sistemas são atingidas através do consenso democrático, o voto" (p. 13-4). Assim, é nesse sentido que a educação (igualmente um elemento do Estado e uma expressão da tônica social) também está sujeita a conflito; "mas um conflito que é trabalhado no contexto da escolha individual e da democrática decisão que cada um toma a respeito do tipo e da quantidade de educação e treinamento a receber" (p. 14).

A perspectiva marxista-leninista, evidentemnte, segue outras trilhas. Ou, nas palavras do autor, "é histórica e centrada nas classes sociais". Dessa maneira, "o comportamento individual é o produto de forças históricas, enraizadas em condições materiais" (p. 14). Alterando-se (através da lua de classes) as condições materiais, alteram-se, igualmente, as relações entre os indivíduos nas diferentes posições sociais. E tais posições sociais estão determinadas duplamente: "pela organização social da produção e pela relação de cada pessoa com a produção" (p. 14). Na produção capitalista, os capitalistas e os altos executivos controlam e acumulam capital, estando em luta constante com a classe trabalhadora. É por isso que nessa abordagem o conflito não se resolve através de regras universais - tais regras têm sua base em classes sociais, servindo a interesses particulares. O sistema de mercado e o Estado, "longe de serem consensuais, são produtos da denominação de classe e da luta de classes", sendo a única solução para o conflito inerente a esse sistema de produção, a sua substituição por outro sistema, "no qual a classe trabalhadora tenha o poder político para reorganizar a produção e desenvolver um diferente modo de vida" (p. 15).

Na continuidade de sua exposição, Carnoy discute o problema da reprodução e de seu contrário, a mudança social.

1. Do ponto de vista liberal (pluralismo), a reprodução ocorre "através da seleção dos líderes, os quais, de alguma forma, refletem as necessidades e desejos do eleitorado...". Segundo essa perspectiva, a democracia representativa é aceitável pare. a grande maioria dos cidadãos. A mudança, por sua vez, ocorreria "através da competição entre os grupos de elite que têm interpretações diferentes sobre corno alcançar o maior bem dentro de objetivos geralmente aceitos" (p. 16 - Carnoy se baseia, nessas considerações, no texto de Edward Greenberg. The American political system. New York, Winthrop, 1977).

2. Na abordagem marxista, por outro lado, este "consenso" sobre a estrutura da sociedade (pregada pelo ponto de vista liberal) não existe - embora o modo de produção capitalista prevaleça na maioria dos países. As teorias marxistas clássicas argumentam que "o Estado capitalista é o aparelho repressivo da burguesia, que mantém os trabalhadores em suas posições através de um sistema jurídico e do exército-polícia" (p. 16). Análises marxistas mais recentes, entretanto, dão grande ênfase à superestrutura no processo de produção. "É neste ponto que a escolarização é considerada, porque é nesse processo que a reprodução se reveste de sua forma organizada: as crianças, desde tenra idade, freqüentam a escola e são-lhes sistematicamente inculcadas as habilidades, os valores è a ideologia que se adaptam ao tipo de desenvolvimento econômico adequado a continuação do controle capitalista. Argumenta-se que, através da escola e de outras instituições superestruturais, a classe capitalista reproduz as forças de produção (mão-de-obra, divisão do trabalho e divisão do conhecimento) e as relações de produção - estas últimas predominantemente através da manutenão e do desenvolvimento de uma ideologia 'legitima' e de um conjunto de padrões de comportamentos (cultura)" (p. 16-7; grifos meus).

Carnoy conclui sua Introdução falando que a reprodução, no interesse de uma classe social particular., automaticamente implica a existência de antagonismo de classe e de potencial para a luta de classe. "É essa noção de luta de classe, inerente a todos os aspectos do desenvolvimento capitalista e das instituições capitalistas, estrutura e superestrutura, que forma a base de uma teoria marxista de mudança social". E conclui: A necessidade capitalista de organizar instituições para a reprodução significa que há resistêcia (grifo do autor) ao conceito capitalista de desenvolvimento e ao necessário controle capitalista desse desenvolvimento. Outra vez, uma análise marxista da escolarização neste contexto de transformação é fundamentada nesta permanente luta de classe" (p. 17).

No capítulo final do livro (Uma nova interpretação), Carnoy procura, à luz das contribuições de Poulantzas - o conceito de luta de classes deslocado da base para a superestrutura e a relação entre conflito de classe e as contradições criadas na superestrutura e a luta sempre presente na base -, discutir as contradições que surgem da luta de classe na base. Essas contradições são inerentes: "sob o capitalismo, o retorno ao capital deve provir do trabalho e este não possui capital nem controla seu investimento e alocação (...). A luta na base faz surgir tentativas capitalistas de 'mediação' dessa luta. Uma das formas de tal mediação se dá através do sistema de educação pública..." (p. 69; grifos do original).

No entanto, há duas contradições específicas à função de mediação da escola, de acordo com o autor, quais sejam:

1. A cada dia que passa, trabalhadores mais jovens e com alto nível de escolarização vão substituindo os trabalhadores mais velhos e menos escolarizados. Ao mesmo tempo, a grande maioria dos assalariados exige mais escolarização para seus filhos, porque acreditam que maior nível de educação significa maiores oportunidades econômicas (p. 77-8). "Tudo isso tem servido para o aumento rápido do nível médio de escolarização da força de trabalho dos países industriais avançados (e também daqueles de baixa renda). A contradição emerge desse rápido crescimento da 'supereducação' dos trabalhadores para os tipos de trabalho disponíveis para a grande maioria. Nos EUA, por exemplo, escolarização média relativa aos requisitos para emprego aumentou rapidamente entre 1965 e 1975 (...). 0 maior crescimento ocoreu para os trabalhos de nível inferior" (p. 78). Nesse sentido, "o treinamento e a socialização fornecidos pela escola em cada nível pareceu adequar-se relativamente bem às exigências eventuais do trabalho em nível ocupacional apropriado" (P. 78). Nos últimos anos, a taxa de crescimento econômico diminuiu, ao mesmo tempo em que muitas pessoas que ingressaram no mercado de trabalho já obtiveram alguma educação a nível universitário (p. 78-9). "A redução da taxa de expansão econômica e a maturação da estrutura da economia resultaram na incapacidade da economia em absorver o aumento do número de pessoas com educação universitária (...). Assim, parece que jovens com diploma universitário serão obrigados, cada vez mais, a aceitar trabalhos que tradicionalmente eram exercidos por pessoas com recursos educacionais bem mais baixos" (p. 79). Entretanto, como a educação representa uma das poucas esperanças de mobilidade social degeração a geração para a maioria das famílias e indivíduos, "o sistema educacional continuará a dar vazão a um contingente cada vez maior de pessoas educadas, a despeito da inabilidade da economia em absorvê-las" (p. 80). Além disso, muitos dos empregos existentes estão sendo transformados pela tecnologia e pelo investimento de capital em um conjunto de tarefas cada vez mais rotineiras. Estudos recentes sobre a automação sugerem (ver, por exemplo, Harry Braverman, Trabalho e capital monopolista) que "habilidades e julgamentos críticos, sempre associados com trabalhos especiais, estão sendo eliminados pelo maior uso de tecnologia e capital. Mesmo muitas profissões tradicionais têm-se tornado crescentemente proletarizadas à medida que a expansão das oportunidades profissionais se deslocou do auto-emprego para emprego em corporações ou junto a órgãos governamentais. Sob esta última forma de organização, uma função muito mais rotineira e especializada é dada ao profissional, que não mais escolhe seus clientes, suas práticas, métodos e períodos de trabalho" (p. 80-1).

As perspectivas a longo prazo para as pessoas de alta escolarização não são boas, pois tudo indica que as condições de trabalho continuarão a se deteriorar. A partir daí, pessoas jovens e escolarizadas acabarão sendo alocadas em empregos em que suas qualificações e expectativas excederão aquelas associadas aos trabalhos disponíveis. "Uma vez que a maior parte dos empregos não possuirá as características intrínsecas que poderiam manter tais pessoas envolvidas em suas atividades, a natureza inadequada das recompensas intrínsecas operarão de modo a tornar cada vez mais difícil a integração dessas pessoas à força de trabalho. Isto é, a falta de oportunidades de promoção e os limitados ganhos de salário em conjunto com a natureza relativamente rotineira da maior parte dos empregos tenderão a criar uma força de trabalho relativamente instável" (p. 81; grifos meus). Ou seja, o pedido de demissão ou o impacto da dispensa não representa mais uma poderosa sanção que leve ao conformismo (p. 81).

2. A segunda contradição especifica à função de mediação que a escola exerce deriva do fato segundo o qual ela - "como parte importante do aparelho ideológico do Estado - deve inculcar nos jovens a convicção de que vivem em uma democracia política e de que o sistema econòmico é justo" (p. 81). Entretanto, a escola mesma difunde aos alunos que a democracia é uma abstração, "de tal maneira que esses jovens passam a aceitar a natureza abstrata da democracia em suas vidas diárias e na pós-escola (...). É esse simbolismo (grifos do original) da democracia precisamente que a burguesia luta para promover. Por outro lado, mesmo o simbolismo cria perigo para a hegemonia burguesa, tanto para a reprodução das relações de produção como para o Estado. A inculcação dos ideais democráticos nos estudantes (...) promove uma ideologia dos direitos humanos e individuais. Essa ideologia de massa pode ser e é dirigida contra os grandes negócios do governo; pode e é dirigida contra um Estado que é abertamente repressivo e que tenta guerras externas em nome da proteção das opções imperiais do país; pode e é dirigida contra as hierarquias opressivas das empresas (p. 82; grifos meus - evidentemente, boa parte dessa argumentação, em especial quando Carnoy fala das "opções imperiais do país", refere-se aos países capitalistas desenvolvidos).

Mas em adição a essas duas contradições principais, há uma terceira, qual seja, "a necessidade de se legitimar a escola como reprodutora de força de trabalho (esse é o ponto levantado por Bourdieu e Passeron - em A reprodução)" (p. 82; grifos meus). E Carnoy acrescenta algo da mais extrema importância, um poderoso antídoto contra as interpretações marxistas apressadas, ao afirmar: "Essa exigência de legitimidade dá a escola uma autonomia formal com respeito à base e aos aparelhos hegemônicos particulares, e a autonomia (em teoria) permite que professores, administradores e estudantes sigam estratégicas educacionais independentes que não são compatíveis com as funções mediadoras requeridas para aliviar as contradições de base. Além disso, o próprio fato de se manter junto um grande número de jovens em uma mesma instituição promove o desenvolvimento de uma cultura jovem que pode ser incompatível com a reprodução social" (p. 82; grifos nosso).

Carnoy comenta que a importância dessas contradições como interferências no processo reprodutivo ainda não está de todo clara. Sabe-se apenas que os trabalhadores com maior escolarização do que aquela requerida para o desempenho de seu trabalho, têm menor probabilidade de estar satisfeitos em seus empregos, tendendo a ser menos produtivos. Além disso, podem criar ameaças à produtividade de diversas formas, tais como: absenteísmo, rotatividade, greves não-autorizadas pelos sindicatos, alcoolismo, uso de drogas e deterioração da qualidade do produto, etc. (p. 83).

Creio que já posso parar por aqui. Queria apenas lembrar que várias das considerações realizadas por Martin Carnoy - apesar de divergirem em uma série de aspectos - fizeram-me lembrar do livro de Cláudio Salm, Escola e trabalho (São Paulo, Brasiliense, 1980), principalmente aquelas em que Salm procura relativizar o papel da escola na reprodução das relações de produção capitalistas de uma dada sociedade. Para terminar, acrescentaria que a escola pouco ou quase nada nos ensina sobre a vida, sobre a realidade, sobre o "mundo do trabalhao", pois a defasagem entre o que se ensina e o que se vive é abissal. Não é por outra razão que o escritor Heinrich Boll (1917-85), nascido e morto em Colônia (Alemanha Federal), Prêmio Nobel de Lieratura em 1972, afirmou: "Talvez não seja na escola, mas no nosso caminho para a escola, que aprendemos as lições da vida" (O que vai ser desse rapaz? Rio de Janeiro, Marco Zero, 1985. p. 17).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1986
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