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Educar - para quê?

ARTIGOS

Educar - para quê?

Raimar Richers

Professor-adjunto e Chefe do Departamento de Mercadologia da Escola de Admlnistração de Emprêsas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas

Quando os economistas conseguiram provar aos planejadores que os gastos com a educação não eram apenas despesas de consumo, mas também investimentos indispensáveis ao crescimento de uma nação, uma onda de euforia educacional invadiu muitos órgãos governamentais de vários PMDs (países menos desenvolvidos). Ao que parecia, uma solução incisiva tinha sido encontrada para a problemática do subdesenvolvimento.

Isso aconteceu ao longo da década de 60. Mas a fase heróica da educação foi de pouca duração. Logo mais, cedeu lugar a um estado espiritual de profundo ceticismo. Com êle vivemos hoje. Alguns de seus sintomas são:

- A constatação de que as verbas orçamentárias alocadas à educação em muitos PMOs têm sido bastante elevadas, por vêzes próximas ou até superiores, em têrmos relativos, às despesas a ela destinadas nos países avançados, sem que isso, aparentemente, tenha causado aumentos sensíveis da produtividade.

- A verificação de que os coeficientes de correlação entre indicadores do grau de educação (como o número de matrículas escolares, população letrada, etc.) e do desenvolvimento dos PMDs (em função da renda percapita) não são particularmente elevados, sendo, portanto, pouco representativos de uma possível relação causal entre educação e desenvolvimento.

- O reconhecimento de que a educação em si não contribui para a criação de empregos, mas apenas prepara os homens para exercerem melhor as suas funções quando empregados.

- O crescimento do número de desempregados profissionalmente qualificados (formados em escolas superiores e técnicas) em alguns PMDs (como na índia e em diversos países africanos).

2. HÁ SUPERINVESTIMENTO NA EDUCAÇÃO?

Face a êsses indícios decepcionantes é comum falar-se hoje em "superinvestimento na educação", inclusive entre peritos que se contavam antes entre os principais protagonistas dos movimentos pró-educação nos PMDs.

Vejamos: em importante conclave realizado pela UNESCO em 1968: R. L. Thomas afirmou: "Nos primórdios, eu compartilhava do sentimento da maioria de então - e que muitos ainda mantêm - de que a educação era que nem oxigênio. Era bom para os homens e animais e não havia limites para o seu suprimento. Agora, as coisas parecem ser algo diferentes, pelo menos na esfera onerosa da educação primária."1 1 UNESCO. Manpower aspects of educational planning. Paris, 1968. p, 80. Harbison secundou essa opinião: "Hoje sabemos que a educação pode tanto impedir o crescimento econômico como pode acelerá-lo." 2 2 Op. cit. p. 81. Erder foi além, ao constatar: "A educação muda a qualidade do desemprêgo ao transformar os desempregados não educados em desempregados educados." 3 3 Ibid. p. 28. Mais tarde, em outro simpósio, H. L. Elvin resumiu êsse estado de espírito com a drástica afirmação de que "o feliz casamento" entre educação e desenvolvimento, prometido pelos economistas aos políticos, "está sendo pôsto a pique''.4 4 Beeby, C. E., coord. Qualitative aspects of educational planning. Paris, UNESCO, 1969. p. 89.

Será mesmo? A situação não é tão dramática assim. O que aparentemente aconteceu foi um êrro de avaliação. Alguns governos de PMDs interpretaram as mensagens de alguns pioneiros (como Theodore Schultz, Harbison e Myers) num sentido excessivamente simplista e radical. Aumentaram suas verbas orçamentárias de educação na expectativa de que um investimento incrementai gerasse, automàticamente, um retôrno mais do que proporcional da produtividade da mão-de-obra. E se esqueceram de erradicar as falhas inerentes aos sistemas de ensino em vigor.

Educar para o desenvolvimento requer minuciosas análises, planejamento rigoroso e a implementação de reformas consecutivas baseadas em projetos prioritários parciais mutuamente adaptáveis. Além da ampliação da infra-estrutura educacional (mais escolas, mais professôres, mais "vagas"), é preciso projetar as necessidades da mão-de-obra (por ramo e funções), dosar as matrículas dos diversos níveis de ensino, combater a evasão e reprovação escolar, incentivar o treinamento extra-escolar, adaptar os currículos e programas letivos às necessidades sociais e econômicas previstas, formar professôres com antecedência dentro dos padrões preferenciais de ensino e criar (ou adaptar) material de ensino visando ao seu máximo aproveitamento no tempo e no espaço - tudo isso dentro de orçamentos restritos.

Por vêzes, no planejamento, considerações de qualidade devem prevalacer sôbre os aspectos diretamente quantificáveis, mormente quando os sistemas e métodos de ensino redundam em resultados insatisfatórios. Não obstante, o órgão planejador deve empenhar- se em traduzir todos os insumos e seus resultados esperados em metas e datas, isto é, em expressões numéricas, declarações de princípios, padrões e cronogramas.

Poucos são os PMDs que se dedicam com rigor à programação educacional e muitos desperdiçam esforços por essa razão, aparentemente não tanto porque lhes faltem os recursos humanos e técnicos para o planejamento integrado, nem tampouco porque não depositem fé nos benefícios sociais e econômicos da educação, mas sobretudo porque carecem de uma filosofia clara e concisa capaz de nortear suas reformas de ensino em prol do incentivo ao desenvolvimento.

3. UMA ESTRATÉGIA EDUCACIONAL PARA A AMÉRICA LATINA

O presente artigo propõe-se a fazer uma contribuição a essa filosofia. Procuraremos delinear e justificar alguns objetivos e princípios de uma estratégia educacional que visa a conciliar preceitos da mudança social com os requisitos do desenvolvimento econômico de um país imaginário da América Latina que logrou dar início ao processo de crescimento, mas cuja população, em sua maioria, ainda vive à margem dêsse processo.

Tracemos um rápido perfil dêsse país imaginário. Êle iniciou o seu programa de substituição da importação com razoável sucesso e está, aos poucos, aumentando a sua cota de exportação, sobretudo de produtos manufaturados. É menos atrasado do que a maioria das nações novas da Africa ou das pequenas nações da América Central, mas não tão progressivo quanto a Austrália ou o Canadá. O seu deficit educacional reflete-se em dados comuns a muitos países latinoamericanos, tais como: cêrca da metade da população é iletrada; não há vagas em número suficiente em todos os níveis escolares (principalmente para o ensino gratuito), para atender à demanda de uma população de jovens em rápido crescimento; as taxas de evasão escolar são elevadas; todos os níveis educacionais sofrem de deficiências instituciona is: da fôrça de trabalho, cêrca de 80 a 90% têm apenas uma escolaridade primária (na maioria incompleta), enquanto que um máximo de 2% tem diploma universitário; a futura demanda de mão-de-obra (sobretudo a qualificada de nível técnico e secundário) excede a oferta prevista dos alunos em fase de preparação, seja nas escolas ou em cursos extraescolares (emprêsas, serviços militares, etc.).

A partir da interpretação dêsses e de outros dados (analisados, em maior minúcia, em outro trabalho 5 5 Capitulo dedicado à educação a ser integrado num livro, em preparação, sôbre Teoria econômica e o desenvolvimento da América Latina. ), discutiremos, primeiro, duas alternativas controvertidas do planejamento educacional, para depois defender uma tese que visa a orientar a estratégia do ensino para a modernização.

4. A ESTRUTURA CONCEITUAL DA ESTRATÉGIA

Antes, porém, será preciso esclarecer alguns conceitos. São êles:

- Educação: usamos a definição de Durkheim, qual seja: "A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sôbre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem o objetivo de suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destina." E acrescenta: "Conclui-se que a educação consiste numa socialização metódica das novas gerações." 6 6 Durkheim, E. A educação como processo socializador: função homogenizadora e função diferenciadora. In: Pereira, L. & Foracchi, M. M., coord. Educação e sociedade 4. ed. São Paulo, Companhia Editôra Nacional, 1969. p, 42 e 43. (Nosso grifo.)

- Socialização: "É um processo interacional por meio do qual o comportamento de uma pessoa é modificado para se conformar com expectativas tidas por membros dos grupos aos quais ela pertence." 7 7 Secord, P. F. & Backman, C. S. Social psychology. New York, McGraw-Hill, 1964. p, 525. Confrontando as duas definições, podemos afirmar: a socialização é mais ampla do que a educação por abranger qualquer forma de mudança comportamental de uma pessoa em decorrência da interação social. Ela pode afetar pessoas de qualquer idade, se bem que sempre envolva um processo de aprendizagem que resulta na modificação de atitudes, induzida conscientemente ou não. A educação, por sua vez, se restringe àqueles aspectos da socialização que são metodicamente inculcados às novas gerações.

- Por modernização entendemos "o processo de assimilação de conhecimentos e atitudes dirigidas ao futuro". 8 8 Richers, R. Desenvolvimento: um desafio social. Revista de Administração de Emprêsas, 10(2):49 nota 14, 1970. NB: por um lapso, nesse texto, saiu impresso "mobilização" ao invés de "modernização". Wilbert Moore qualifica: "A modernização pode ser política e social, bem como econômica. Significa, essencialmente, tornar-se um membro do todo comum do conhecimento mundial e de (suas) técnicas úteis, talvez retirando muito e acrescentando pouco, mas sempre sacrificando muitos hábitos incrustados pelo tempo em favor de benefícios reais ou visionários". 9 9 Moore, W. E. The impact of industry. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1965. p. 6. Dentro do contexto da educação (e da socialização) o conceito da modernização se coloca como um de dois parâmetros da estratégia educacional de um PMD: ou o país molda os seus programas de ensino com o propósito de induzir a sua juventude à modernização, ou os orienta no sentido de absorver valôres e atitudes conservadoras, antimodernizantes e conformes com o passado e os "hábitos incrustados" na tradição. Esta segunda posição denominaremos conservativismo.

- Entre as múltiplas definições de atitude adotamos a seguinte de Alport: "Uma atitude é um estado mental e neural de prontidão, organizado por meio da experiência que desempenha uma diretiva ou influência dinâmica sôbre a reação de um indivíduo a todos os objetos e tôdas as situações com as quais mantém relações." 10 10 Allport, G. W. Attitudes, citado por Newcomb, T. M. em On the Definition of Attitude: In: Jahoda, M. Warren, N., coord. Attitudes, selected readings. Middlesex, Penguin, 1966. p, 23. Para efeito do presente estudo, distinguimos entre atitudes antecipantes e retrogradentes. As atitudes antecipantes caracterizam- se pela disposição da pessoa de submeter-se ao processo de modernização, enquanto que as atitudes retrogradentes são aquelas que rejeitam êsse processo.

- Sob outro ângulo, as atitudes são "a tendência de indivíduos reagirem, positiva ou negativamente, a um dado valor social". O valor social, por sua vez, é "qualquer dado ou informação que tenha um conteúdo empírico acessível aos membros de algum grupo social e um significado que é ou pode ser objeto de atividade". "O valor é a contrapartida objetiva da atitude." 11 11 As três definições são de W. I. Thomas e F., Znaniecki, extraídas de Newcomb. op. cit. p. 23. Da mesma maneira como as atitudes, também os valôres podem ser antecipantes e retrogradentes.

Utilizamos essa dicotomia entre atitudes e valôres antecipantes e retrogradentes como conceitos abstratos e delimitativos de dois estados opostos de prontidão comportamental que um indivíduo e um grupo social podem assumir ao enfrentar situações que os convidem a se manifestar e a agir a favor ou contra a modernização ou o conservativismo. De propósito, evitamos identificar a atitude antecipante com o estado de prontidão freqüentemente denominado "industrial", assim como igualar atitudes retrogradentes com atitudes "tradicionais".12 12 Para uma anãlise dos dois tipos opostos de sociedade - as industriais e tradicionais - ver, por exemplo: Germani, G. Polltica y sociedad en una época de transición. Buenos Aires, Paidós, 1966, sobretudo parte 2. Isto pela seguinte razão: subentende-se que as sociedades dos PMDs são norteadas por valôres e atitudes primordialmente retrogradentes e tradicionais, o que, no entanto, não significa que tôdas as atitudes tradicionais sejam forçosamente retrogradentes e vice-versa. É, ao menos conceitualmente, concebível que alguns valôres das sociedades tradicionais não conflitem com valôres antecipantes. Essa diferenciação, sutil que seja, nos parece ser importante para evitar a conotação (tão freqüentemente encontrada na literatura sociológica) de que as sociedades tradicionais são ex definitione impermeáveis à inovação modernizante.

5. OS DOIS CAMINHOS DA EDUCAÇÃO

Implícito na própria abordagem dêsses conceitos está o que pode ser considerado o problema crucial do planejamento educacional nos PMDs, qual seja a pergunta: para que tipo de sociedade devem as escolas preparar os seus alunos? Em última instância, as respostas a tôdas as outras perguntas do planejamento dependem, direta ou indiretamente, da maneira como um país procura solucionar essa questão.

Enfoquemos a questão sob dois ângulos. Um dêles visa apenas a descrever as duas alternativas abertas em tese para o planejador. O outro tomará partido ao analisar os prós e contras de cada uma das duas posições.

O primeiro enfoque é sistêmico, conforme exposto no diagrama 1, que parte da nomenclatura básica de Opner, 13 13 Optner, S. L. Systems analysis for business and industrial problem solving. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1965. p. 26 e seg. adaptando-a à terminologia acima exposta.

O sistema é aberto e nutrido por uma sociedade tradicional em transição que deve optar por uma de duas alternativas de socialização a serem transmitidas à sua juventude, como insumo, por meio da educação. Um dos caminhos consiste em incutir nos alunos valôres e atitudes retrogradentes que, provàvelmente, os conduzirão ao conservativismo desejado pela maioria de seus membros (linhas pontilhadas). O outro caminho é o que visa à modernização por intermédio de insumos de valôres e atitudes antecipantes (linhas sólidas).

Para uma sociedade preponderantemente tradicional, a escolha entre êsses dois extremos constitui uma decisão penosa, cujo dilema se resume, em última instância, na seguinte proposição: ou ela educa seus jovens em máxima conformidade com os valôres que lhe são "sagrados" e pràticamente barra os canais da inovação, ou ela se arrisca a forçar uma ruptura entre as gerações com a possibilidade de acelerar o processo de modernização. No primeiro caso, o retôrno social ou feedback da educação tende a ser conformista mas regressivo; no segundo, é antes conflitivo mas progressista.

Até certo ponto, é claro, podese optar por uma posição intermediária na programação educacional; por exemplo, "dosando" os insumos por nível educacional, por critérios regionais ou por um sistema pro rata temporis predeterminado. Mas uma opção deve ser tomada a favor de uma ou outra alternativa, pois cada um dos sistemas requer seus próprios meios de implementação e contrôle, em boa parte mutuamente exclusivos.

6. A TESE LIBERAL E A AMÉRICA LATINA

O principal argumento em favor de uma filosofia educacional conservadora é o fato de que ela não "mexe" com o sistema de valôres em vigor. São sobretudo os sociólogos que nos advertem, desde Rousseau aos tempos modernos, afirmando que "a educação não molda o homem em abstrato, mas em uma dada sociedade". 14 14 Mannheim, J. A educação como técnica social. In: Pereira & Foracchl. op. cit. p. 89. É a sociedade, pois, que deve determinar, livremente, os moldes da socialização educacional para a sua juventude.

Visto sob êsse prisma, o principal objeto da educação consistiria em assegurar a máxima liberdade de escolha aos alunos quanto aos valôres e às opções profissionais que desejam adotar. Implica isto, acima de tudo, o abandono de quaisquer normas ou processos educacionais que imponham freios à formação de ambições pessoais da juventude de um país, na expectativa de que se abram as comportas para a mudança social, graças a essa liberdade de pensamento e ação.

C. A. Anderson resumiu essa posição da seguinte maneira: "Para preparar os indivíduos para viver numa sociedade nova, mais aberta e em vias de mudança, não se deve impregná- los, sistemàticamente, de certos valôres, mas permitir que adquiram as aptidões que os façam continuar a aprender por iniciativa própria."15 15 Anderson, C. A. Le contexte social de la planification de l'education. Paris, UNESCO,1968. p. 36.

Simpática que seja essa posição à índole latino-americana e à sua tradição educacional, ela não deixa de ser algo ingênua ao pressupor que a livre iniciativa do aprendizado conduza os jovens, automàticamente, a adotarem comportamentos frutíferos à mudança social. A experiência, ao menos, não parece confirmar êsse otimismo. Pelo contrário: quanto mais voltada a valôres retrogradentes fôr a sociedade o sistema educacional nos PMDs, tanto mais provàvel é que a maioria da juventude assimile êsses valôres, seja por hábito ou inércia, seja porque nem seus pais, nem seus professôres lhe abram as perspectivas de alternativas novas.

A maioria das escolas latinoamericanas ainda é um antro de pregação de valôres retrogradentes, do tipo patriótico passivo, muito em voga na Europa até o nosso século, em que o líder histórico, combatente, "salvador da pátria", ao invés do homem dedicado à sua nação pelo esfôrço pessoal e pelo trabalho de equipe, constitui o modêlo de ideal humano a ser idolatrado e imitado. Alhures, êsse sistema foi denominado "fundamentalista ... (onde) os valôres são considerados fixos; não pode nem deve mudar em sua essência. A correção de tôda ação social e de todo o pensamento é medida em sua função. Define sociedade, e ao mesmo tempo, anti-sociedade".16 16 ECLA. Education, human resources and development in Latin America. New York, United Natlons, 1968. p. 82.

Em conformidade com essa filosofia fundamentalista são moldados, também, os currículos escolares, com sua ênfase em disciplinas "patrióticas" (como história, vernáculo e geografia do país), geralmente transmitidas por uma didática discursiva, que não deixa margem ao diálogo e muito menos à contestação, obrigando os alunos a decorarem a "sabedoria" pré-en latada de professôres freqüentemente mal preparados e de reproduzi-la ipsis litteris em provas e exames que apenas testam a capacidade de memorização passageira.

Como supremo ideal, o fundamentalismo prega a formação do homem "culto", versado em múltiplos assuntos, conhecedor de línguas e hábil orador que, por "estar acima" da especialização, merece privilégios de mando e retôrno social incomparàvelmente superiores aos do tecnocrata. Entre nós, sobretudo as escolas superiores ainda são moldadas, em boa parte, por padrões que visam à formação dêssetipo de líder, em conflito direto com as idéias de uma minoria ascendente que aceita a tecnologia como condição do desenvolvimento e que, por conseguinte, exige um maior número de especialistas capazes de enfrentar os problemas do processo de modernização.

Mas os padrões rígidos do fundamentalismo ainda predominam na escola latinoamericana, o que torna difícil imaginar que uma filosofia de ensino, como o liberalismo, consiga levar a população aos caminhos da modernização sem uma boa dose de interferência coerciva nos sistemas de socialização em vigor.

Em nosso entender, essa interferência é fatal, podendo partir de dois campos de ação: de uma minoria rebelde de alunos e do Estado. Para interferir no status quo, cada um dêsses grupos certamente escolherá meios e armas diferentes.

A ação de ambos envolve alguns perigos associados à ruptura social, mas o risco da ação estatal nos parece ser bem menor, contanto que essa ação seja cautelosamente planejada.

7. OS RISCOS DO INCONFORMISMO ESTUDANTIL

Se a partir de alunos, a ação revisionista certamente será caracterizada por fortes impulsos de rebeldia. Quando inconformado e disposto a agir contra o sistema em vigor, o jovem, por ser jovem, tende a assumir posição de extremismo impermeáveis ao diálogo racional. Fatôres de instabilidade emocional, como a natural imaturidade, frustrações e o isolamento social auto-imposto transformam-se fàcilmente em agressividade, que necessita de uma compensação psíquica e o apoio moral em algo supostamente inabalável, como uma ideologia ou uma doutrina radical. O aluno inconformado, portanto, tende a ser altamente receptivo ao radicalismo e, quando o absorve como forma de pensamento e convicção, procurará exterminá-lo, a fim de conquistar partidários. Se tiver qualidades de lider, poderá transformar uma minoria inconformada, mas passiva, em minoria ou até maioria abertamente rebelde.

A nosso ver, os sistemas educacionais da América Latina são altamente vulneráveis a êsse tipo de rebeldia. Por várias razões interdependentes; em primeiro lugar, devido à permanência do sistema fundamentalista, inadequado para solucionar os problemas de sociedades cada vez mais voltadas a certas formas de modernização, como o desejo de industrializar. Um número crescente de alunos, sobretudo estudantes universitários, não apenas sente êsse contra-senso, mas contra êle está começando a se impor. O avanço dos sistemas de comunicação não só lhes facilita os contatos entre êles, mas fornece-lhes também valiosas informações, como mensagens de inovações modernizantes e notícias sôbre os movimentos estudantis nas nações avançadas.

O principal motivo, porém, que torna o sistema educacional latino-americano particularmente vulnerável à ação estudantil inconformista é o seu caráter ainda excessivamente seletivo. As críticas que se têm feito nesse sentido costumam concentrar-se nas privações das camadas populacionais pobres e nas barreiras econômicas impostas ao seu ingresso no sistema escolar. 17 17 Ver, por exemplo: Teixeira, A. A educação escolar no Brasil. In: Pereira & Foracchi. op, cito p. 388-419, e Garcia Werebe, M. J. Educação hoje. São Paulo, Editôra Brasiliense. v. 2, p. 37. O problema, contudo, é mais amplo. Mesmo ao conseguir matricular-se na escola, o jovem representante das classes marginalizadas é submetido a um processo educacional pouco útil para o tipo de vida que está predestinado a viver em sociedades que resistem à mobilidade vertical. Desconfiamos que a reação dos alunos e de seus pais, provocada por essa falta de adequação da estrutura de ensino às necessidades econômicas e condições humanas de aprendizagem das crianças, seja um dos motivos mais fortes do grau assustador de reprovações e de abandono escolar que caracteriza o ensino, sobretudo primário, da América Latina.

Assim, a própria resistência do sistema fundamentalista contra os movimentos de modernização pode, na América Latina, provocar reações de oposição e rebeldia no próprio seio da classe estudantil. Se e quando isto acontecer, as reações tenderão a assumir um forte condão de intransigência ou até de radicalismo destrutivo, por mais justas que sejam as reivindicações que nutrem essas reações. Portanto, os riscos do inconformismo potencial da juventude não provêm da sua inquietude (sadia e natural), mas da incapacidade de transformar seus impulsos de renovação em ações produtivas, face às barreiras que a sociedade lhe impõe e que fàcilmente provocam frustrações, por vêzes externadas em atitudes anárquicas e subversivas.

Por outro lado, ao encontrar não só um eco de receptividade às suas reivindicações, como também um campo de experimentação inovadora nas instituições de ensino e junto à própria sociedade, a juventude pode tornar-se um aliado da reforma educacional construtiva ao invés de seu inimigo. Certamente, ao menos os mais bem dotados entre os "rebeldes" perceberão que transformar conceitos ideológicos abstratos em ação socialmente utilitária, requer bem mais do que o protesto e só se consegue à base de dedicação, do esfôrço e nunca sem uma boa dose de flexibilidade e adaptação. Daí, iniciativas educacionais, moldadas por um espírito de cooptação produtiva (como a Operação Rondon), costumam reverter em benefícios tanto educativos quanto sociais.

8. O ESTADO E O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO

Colocado e definido o problema da filosofia educacional, como o de suas oportunidades e de seus riscos, cabe-nos responder a pergunta: quem deve assumir a iniciativa e a responsabilidade de preparo e implementação da reforma educacional?

Não temos dúvida de que, nos PMDs ainda largamente presos a modelos tradicionais de ensino, essas duas incumbências devam ser de alçada prioritária, se não exclusiva, do Estado. Nesses países, nem a estrutura familiar, nem tampouco a sociedade em geral se prontificará a tomar a iniciativa de mudança social enquanto permanecem imbuídos de valôres antimodernizantes.

Para o Estado, o sistema educacional, em todos os seus níveis, constitui o único meio institucional moralmente defensável, para incutir mensagens de socialização modernizante à população em larga escala. Nas famílias não deve o Estado interferir diretamente, nem tampouco nos locais de trabalho. Mesmo assim, os governantes dos PMDs enfrentam um delicado problema de ordem ética ao se dedicarem a reformas educacionais que não correspondem aos ideais preferenciais dos habitantes. Na maioria das vêzes, essas reformas implicam na adoção de uma certa dose de "coerção valorativa", não só junto à juventude, mas indiretamente também junto aos pais, que são submetidos a um processo de "reeducação", provocado pelos comportamentos divergentes de seus filhos. Êsse processo envolve os riscos de uma crescente instabilidade valorativa da sociedade que pode provocar conflitos entre as gerações e entre posições adversas dentro das próprias gerações e classes sociais.

Entretanto, onde há riscos, há também oportunidades. Para o Estado, essas oportunidades consistem, em última instância, no desafio de ordenação do processo de mudança social que visa a "impregnar" as diversas classes sociais com um sistema de valôres, se não comum para essas classes, ao menos conciliável, face a um alvo ou ideal que seus membros possam abraçar com um mínimo de choques diretos.

Na América Latina, está-se delineando um processo nesse sentido que está abrindo uma perspectiva de conciliação entre as classes e gerações com alguma possibilidade de se transformar numa ação progressiva conjunta de um número crescente de representantes dos vários grupos de populações. Por enquanto, êsse processo é excessivamente vago e disperso para poder ser rubricado por um nome, símbolo ou ideologia específica. Êle está, contudo, nitidamente ligado ao desejo de desenvolvimento e - o que nos parece mais significativo - à crença de que o desenvolvimento possa ser realizado de "dentro para fora", com os próprios recursos humanos e materiais à disposição, e não mais sob um regime de hegemonia internacional, em que o "nativo" exerce a função de servidor de interêsses alheios de grupos nacionais ou estrangeiros,

Caso essa tendência de emancipação prevaleça, ao menos alguns dos países latino-americanos poderão contar com a esperança de entrar na última etapa da "descolonização". Essencial para essa etapa é que se vençam as barreiras de submissão inconsciente à primazia do que vem de fora, historicamente incutida ao latino-americano ao longo de quatro séculos. A principal ameaça à essa emancipação não mais é, hoje, a inferioridade econômica e social efetiva da era colonial e pós-colonial, mas o nacionalismo isolacionista de muitos latino-americanos que imagina poder inverter o processo histórico pela negação total, ou quase que integral, de tudo que não seja exclusivamente "próprio".

Não há mais país que possa atingir um rápido índice de crescimento sem integrar-se no concêrto internacional das nações. Para citar apenas um exemplo, em escala crescente, tanto os países avançados quanto os PDMs dependerão, para o seu progresso, da tecnologia, e cada vez mais também dos capitais das emprêsas multinacionais. Portanto, o isolacionalismo é uma política econômica suicida. É preciso não confundi-la com a emancipação e seu intuito central de ativar recursos internos, a fim de fortalecer um país, social e econômicamente, para que êste possa participar no concêrto das nações como parceiro, não como mero "observador", mas respeitado, possivelmente até cobiçado, graças ao poderio econômico que soube desenvolver. Certamente, a condição essencial para que um país atinja êsse nível de "parceria" internacional consiste em aproveitar- se dos recursos à sua disposição, não só para impulsionar sua própria economia, como também para poder negociar com outros países avançados em bases de igualdade.

Dentro dessa perspectiva, a formação dos recursos para a modernização constitui a chavemestra do processo de emancipação. Daí, a vital importância da educação. Mas para que ela possa tomar os rumos mais apropriados em direção à autonomia econômica e social, é preciso dirigi-la, o que equivale dizer: alguém, com podêres amplos e dispostos a agir, deve não só programar os escassos recursos disponíveis à educação nos PMDs, como também orientar a maneira como êsses recursos podem ser melhor aplicados face a dados objetivos econômicos e sociais. Em que pêsem os riscos de uma interferência valorativa e política de órgãos nem . sempre qualificados para comandar os processos da reforma educacional, os PMDs só dispõem de uma entidade potencialmente capaz de incumbir-se dessa tarefa: o Estado.

9. CONCLUSÕES

Não resta a menor dúvida de que a educação é um poderoso instrumento propulsor do crescimento de uma nação. Seus podêres, porém, não são ilimitados. Por exemplo: ela gera condições humanas para o estímulo à produtividade, mas não cria empregos; ou então: ela é um meio eficaz (se não indispensável) para a mudança social de um PMD, mas pode contribuir para o conflito entre gerações e classes sociais. Portanto, para um PMD que deseja tratar a educação como um insumo do processo de crescimento, o planejamento que leve em conta as faculdades e limitações do ensino oficiai e extra-escolar é um condicionante vital para a utilização racional dos recursos disponíveis à educação.

Há hoje uma rica literatura sôbre o planejamento da educação, cuja ênfase se concentra nos aspectos de análise e programação quantitativa. 18 18 Ver Educação e desenvolvimento uma seleção bibliográfica. RAE 10(4)19-22, dez. 1970.

O enfoque do presente artigo é algo diferente. Partimos do pressuposto de que os órgãos responsáveis pelo planejamento nos PMDs devem, antes de se dedicarem à quantificação das prioridades educacionais, formular a sua própria filosofia de ensino, derivada das diretrizes e dos objetivos que norteiam o seu planejamento econômico geral e das suas expectativas de mudança social.

Partindo de um país imaginário "relativamente" avançado da América Latina, propusemo-nos a "pensar" o problema da filosofia educacional adequada a êsse país, em função de duas alternativas de planejamento e implementação. Procuramos demonstrar que um sistema educacional "livre", conduzido sem qualquer interferência valorativa por alguma autoridade capaz de dar-lhe uma direção, equivale, na prática, a um endôsso das normas de socialização predominantes na sociedade. Quando essas normas estão calcadas em atitudes e valôres retogradentes, como na maioria dos PMDs, a contribuição da educação ao processo de modernização tende a ser diminuta. Por êsse motivo defendemos uma tese favorável à orientação do sistema educacional por parte do Estado que se propõe a, gradativamente, incutir na juventude valôres antecipantes, condizentes com as metas de modernização que o país deseja alcançar.

Todavia, o simples enunciado de de uma filosofia educacional - como o fizemos neste ensaio - não é o suficiente para que essa filosofia venha a "funcionar" num determinado PMD. É preciso, ademais, transformar idéias em ação, o que equivale a dizer: necessário se faz planejar e criar condições ínstltucionais condizentes com as metas de implementação de um sistema educacional. Por outro lado: que benefícios operacionais podemos esperar de um planejamento que não esteja firmemente arraigado em alguma convicção pessoal que possa servir de estímulo e guia de conduta para o planejamento e a ação?

  • 1 UNESCO. Manpower aspects of educational planning. Paris, 1968. p, 80.
  • 4 Beeby, C. E., coord. Qualitative aspects of educational planning. Paris, UNESCO, 1969. p. 89.
  • 7 Secord, P. F. & Backman, C. S. Social psychology. New York, McGraw-Hill, 1964. p, 525.
  • 8 Richers, R. Desenvolvimento: um desafio social. Revista de Administração de Emprêsas, 10(2):49 nota 14, 1970.
  • 9 Moore, W. E. The impact of industry. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1965. p. 6.
  • 10 Allport, G. W. Attitudes, citado por Newcomb, T. M. em On the Definition of Attitude: In: Jahoda, M. Warren, N., coord. Attitudes, selected readings. Middlesex, Penguin, 1966. p, 23.
  • 12 Para uma anãlise dos dois tipos opostos de sociedade - as industriais e tradicionais - ver, por exemplo: Germani, G. Polltica y sociedad en una época de transición. Buenos Aires, Paidós, 1966,
  • 13 Optner, S. L. Systems analysis for business and industrial problem solving. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1965. p. 26 e seg.
  • 15 Anderson, C. A. Le contexte social de la planification de l'education. Paris, UNESCO,1968. p. 36.
  • 16 ECLA. Education, human resources and development in Latin America. New York, United Natlons, 1968. p. 82.
  • 18 Ver Educação e desenvolvimento uma seleção bibliográfica. RAE 10(4)19-22, dez. 1970.
  • 1
    UNESCO.
    Manpower aspects of educational planning. Paris, 1968. p, 80.
  • 2
    Op. cit. p. 81.
  • 3
    Ibid. p. 28.
  • 4
    Beeby, C. E., coord.
    Qualitative aspects of educational planning. Paris, UNESCO, 1969. p. 89.
  • 5
    Capitulo dedicado à educação a ser integrado num livro, em preparação, sôbre
    Teoria econômica e o desenvolvimento da América Latina.
  • 6
    Durkheim, E. A educação como processo socializador: função homogenizadora e função diferenciadora. In: Pereira, L. & Foracchi, M. M., coord.
    Educação e sociedade 4. ed. São Paulo, Companhia Editôra Nacional, 1969. p, 42 e 43.
  • 7
    Secord, P. F. & Backman, C. S.
    Social psychology. New York, McGraw-Hill, 1964. p, 525.
  • 8
    Richers, R. Desenvolvimento: um desafio social.
    Revista de Administração de Emprêsas, 10(2):49 nota 14, 1970. NB: por um lapso, nesse texto, saiu impresso "mobilização" ao invés de "modernização".
  • 9
    Moore, W. E.
    The impact of industry. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1965. p. 6.
  • 10
    Allport, G. W. Attitudes, citado por Newcomb, T. M. em On the Definition of Attitude: In: Jahoda, M. Warren, N., coord.
    Attitudes, selected readings. Middlesex, Penguin, 1966. p, 23.
  • 11
    As três definições são de W. I. Thomas e F., Znaniecki, extraídas de Newcomb. op. cit. p. 23.
  • 12
    Para uma anãlise dos dois tipos opostos de sociedade - as industriais e tradicionais - ver, por exemplo: Germani, G.
    Polltica y sociedad en una época de transición. Buenos Aires, Paidós, 1966, sobretudo parte 2.
  • 13
    Optner, S. L.
    Systems analysis for business and industrial problem solving. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1965. p. 26 e seg.
  • 14
    Mannheim, J. A educação como técnica social. In: Pereira & Foracchl. op. cit. p. 89.
  • 15
    Anderson, C. A.
    Le contexte social de la planification de l'education. Paris, UNESCO,1968. p. 36.
  • 16
    ECLA.
    Education, human resources and development in Latin America. New York, United Natlons, 1968. p. 82.
  • 17
    Ver, por exemplo: Teixeira, A. A educação escolar no Brasil. In: Pereira & Foracchi. op, cito p. 388-419, e Garcia Werebe, M. J.
    Educação hoje. São Paulo, Editôra Brasiliense. v. 2, p. 37.
  • 18
    Ver Educação e desenvolvimento uma seleção bibliográfica.
    RAE 10(4)19-22, dez. 1970.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Maio 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1971
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