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Conseqüências de uma decisão unilateral para a dívida externa: notas baseadas na experiência recente do Brasil

ESPECIAL

Conseqüências de uma decisão unilateral para a dívida externa. Notas baseadas na experiência recente do Brasil

Paulo Nogueira Batista Júnior

Chefe do Centro de Estudos Monetários e de Economia Internacional do Instituto Brasileiro de Economia da FGV

RESUMO

Este trabalho discute uma série de questões suscitadas pela suspensão unilateral do serviço da dívida externa com base na experiência recente do Brasil. Começa examinando brevemente alguns dos fatores que podem levar um pais à moratória e argumenta que uma suspensão de pagamentos pode ser eficaz como forma de proteger as reservas cambiais de um país e de criar as condições necessárias para. uma solução duradoura dos problemas de endividamento externo que emergiram na década de 80. Em seguida, apresentam-se os elementos básicos de uma estratégia de securitização unilateral da dívida externa e uma discussão dos possíveis efeitos de ações unilaterais por parte de um país devedor como o Brasil. O texto também discute as razões que tornam pouco provável um cenário de retaliação maciça dos credores e algumas das medidas que um país devedor poderá adotar para reduzir os riscos associados à ação unilateral.

Palavras-chave: Moratória unilateral, redução da dívida, retaliação, transferência de recursos.

ABSTRACT

This paper discusses a number of issues arising from the unilateral suspension of external debt service with special reference to the recent experience of Brazil. It begins by briefly examining some of the factors that may lead a country to default and by arguing that a suspension of payments may be instrumental in protecting the level of a country's foreign exchange reserves, as well as in creating the necessary conditions for a lasting solution to the debt servicing problems that have emerged in the 1980's. It goes on to outline a strategy for unilateral debt securitization and to discuss the possible effects of unilateral actions on the part of a debtor country such as Brazil. This paper also discusses the reasons that make massive creditor retalation unlikely and some of the measures that a defaulting debtor may take in order to reduce the risk of disruption associated with unilateral action.

Key words: Unilateral moratorium, debt reduction, retaliation, resource transfers.

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REVISÃO DOS MOTIVOS QUE ACONSELHAM EVENTUAL SUSPENSÃO UNILATERAL DO PAGAMENTO DA DÍVIDA

Considerações políticas à parte , há basicamente dois motivos que podem, em determinadas circunstâncias, justificar a suspensão unilateral do serviço da dívida externa:

1. a necessidade de proteger ou recompor o nível das reservas internacionais do país; e

2. a necessidade de abrir caminho para uma redefinição do padrão de renegociação da dívida.

Se, por algum motivo, o superávit comercial se torna inferior ao nível requerido pelas transferências líquidas associadas ao serviço da dívida e a outros pagamentos, ocorre evidentemente uma perda de reservas. Na impossibilidade de restabelecer prontamente o superávit comercial ou de obter financiamento externo compensatório em condições adequadas, a alternativa mais indicada pode ser a suspensão do serviço da dívida externa. Neste caso, é preferível decretar a suspensão antes que as reservas caiam abaixo de um determinado nível, não permitindo, por exemplo, que elas se reduzam a menos de três meses de importações. Isto é necessário para perversar o poder de barganha do país no processo de renegociação que se realiza após a suspensão dos pagamentos.

É possível distinguir moratórias defensivas, destinadas exclusivamente à proteção das reservas, de moratórias ativas que têm a função de servir como instrumento de negociação. O recurso à moratória como instrumento de negociação pode se tornar necessário em situações caracterizadas por intransigência dos credores ou quando não existem perspectivas de uma solução cooperativa. Neste contexto, a suspensão unilateral de pagamentos pode ser uma forma de desobstruir o caminho e de induzir os credores a reexaminarem as condições da negociação.

Para que a suspensão de pagamentos possa desempenhar esta função, ela precisa atender a dois requisitos básicos:

1. atingir, em princípio, todas as obrigações que o país devedor pretenda incluir no processo posterior de reestruturação da dívida;

2. ser decretada pela duração do processo de negociação.

Decretada a suspensão, a retomada dos pagamentos fica, nesse caso, expressamente condicionada à negociação de um acordo que atenda aos interesses das partes.

A moratória brasileira de fevereiro de 1987, por exemplo, teve a dupla função de proteger as reservas e de servir como instrumento de negociação. A drástica redução do superávit comercial a partir de setembro de 1986 vinha provocando, como se sabe, perigosa redução das reservas do país. O saldo anualizado e desestacionalizado da balança comercial brasileira sofrera forte declínio durante o ano de 1986, passando de US$ 14.964 milhões em março de 1986 para um valor negativo de US$ 2.172 milhões em dezembro do mesmo ano. (Ver tabela 1) Em fins de fevereiro de 1987, as reservas internacionais, no conceito de caixa, haviam se reduzido para apenas US$ 3.331 milhões, o que correspondia a menos de três meses de importações. (Ver tabela 2) Se não fosse tomada qualquer providência, as reservas estariam totalmente esgotadas em questão de mais alguns meses. A primeira função da moratória foi justamente evitar que o Brasil retornasse à situação de fins de 1982, quando fora obrigado a negociar com reservas reduzidas a zero.

A segunda e mais importante função da suspensão de pagamentos foi sinalizar a determinação do governo brasileiro de modificar a natureza do processo de negociação, de forma a obter uma solução duradoura para o problema da dívida externa. Para atender a este objetivo, a suspensão foi decretada por tempo indeterminado, mais especificamente pela duração do processo de negociação. A retomada de pagamentos só deveria ocorrer no momento em que se concluísse um acordo capaz de afastar definitivamente a ameaça de estrangulamento decorrente das pesadas transferências de recursos que a economia brasileira vinha sendo forçada a realizar desde início da década de 801 1 . Para uma análise das condições em que foi decretada a moratória brasileira de 1987, ver BATISTA JR., Paulo Nogueira. Da Crise Internacional à Moratória Brasileira. São Paulo, Paz e Terra, 1988, pp. 19-166. .

SECURITIZAÇÃO UNILATERAL

Consolida-se progressivamente a percepção de que uma solução efetiva para o problema da dívida dos países em desenvolvimento passa necessariamente por alguma forma de "securitização". Ressalte-se que esta percepção ganha terreno não apenas nos países devedores mas também nos centros financeiros internacionais, o que resulta do fracasso cada vez mais evidente dos métodos convencionais de reestruturação2 2 . Ver, por exemplo, ISLAM, Shafiqul. "Breaking the International Debt Deadlock". In: Critical Issues. Council on Foreign Relations, February, 1988 (mimeo); e DORNBUSCH, Rudiger. The World Debt Problem: Anatomy and Solutions. Massachusetts, Institute of Technology, August, 1987 (mimeo). .

Securitizar uma dívida significa, como se sabe, transformá-la em títulos (securities) facilmente negociáveis no mercado secundário e conversíveis em capital de risco. Nas circunstâncias atuais, o termo vem sendo usado, mais especificamente, para denotar a transformação de empréstimos bancários de médio prazo (a dívida "velha") em títulos de longo prazo (dívida "nova") com absorção pelo devedor de uma parte do deságio praticado no mercado secundário. No fundo, trata-se de uma maneira um tanto abstrusa de fazer referência a um tipo de operação que envolve essencialmente cancelamento parcial de dívida e/ou a negociação de taxas de juros inferiores às de mercado.

O que está em discussão é a melhor forma de adaptar o processo de reestruturação das dívidas dos países em desenvolvimento a uma realidade já reconhecida pelo mercado, qual seja, a de que estas dívidas não valem "cem centavos por dólar". Esta percepção generalizada se traduz nos deságios observados no mercado secundário, no valor de mercado das ações dos bancos comerciais expostos à crise da dívida e na própria política de formação de reservas seguida por estes últimos3 3 . SACHS, Jeffrey e HUIZINGA, Harry. "U.S. Commercial Banks and the Devoloping-Country Debt Crisis". In: Brookings Paper on Economic Activity. Vol. 2,1987, pp. 555-601. . Mas até agora os países devedores não têm se beneficiado desta situação; continuam, ao contrário, atrelados a métodos de reestruturação que só são compatíveis com a premissa de que os problemas atuais de pagamento são problemas de liquidez, de caráter temporário.

De qualquer forma, tudo parece indicar que as negociações relativas à reestruturação das dívidas externas dos países em desenvolvimento irão caminhar na direção de esquemas que envolvam algum tipo de securitização ou redução da dívida. Entretanto, nas circunstâncias atuais, para viabilizar uma securitização realmente abrangente, que conduza a uma solução duradoura do problema, talvez seja necessário antecedê-la da suspensão dos pagamentos referentes à dívida passível de reestruturação. Esta pode ser a única forma de criar as condições para a implementação de um acordo satisfatório.

Neste contexto, a securitização seria então a segunda iniciativa unilateral do país devedor. A essência desta segunda iniciativa pode ser explicada em poucas palavras4 4 . Para maiores detalhes, ver BATISTA JR., Paulo Nogueira. "A Transformação da Dívida Externa em Títulos de Longo Prazo". In: Revista de Economia Política. São Paulo, vol. 8, nº 3, jul-set., 1988, pp. 22-40. . Em determinado dia, o país devedor anunciaria aos credores externos a sua disposição de retomar pagamentos. No entanto, esta medida ficaria condicionada à novação da dívida, isto é, à transformação prévia da dívida externa existente (dívida "velha") em títulos de longo prazo (dívida "nova"). Na passagem da dívida velha para a dívida nova, o país devedor se apropriaria de uma parte do deságio praticado no mercado secundário. Isto pode ser feito por meio de:

a) um desconto em relação ao valor de face da dívida velha;

b) de taxas de juros inferiores às de mercado para a dívida nova; ou

c) de uma combinação das duas alternativas anteriores.

Os bancos dispostos a aderir à proposta da securitização teriam o benefício de passar a receber, em divisas, juros sobre a dívida nova. Paralelamente, o governo poderia conceder a esses bancos a vantagem adicional de permitir, dentro de certas condições e limites, a conversão da dívida nova em investimentos diretos. Os bancos intransigentes, que insistissem em desconsiderar a necessidade de ajustar o estoque da dívida e/ou os fluxos de juros à capacidade de pagamento do devedor, continuariam sem receber juros e sem poder ceder seus créditos para fins de conversão em capital de risco. Ao anunciar a proposta, o país poderia iniciar a formação de um fundo de amortização, de modo a garantir a capacidade de pagar integralmente a dívida nova no prazo que viesse a ser estabelecido.

A dívida nova apresentaria, portanto, três vantagens em relação à dívida velha:

a) renderia juros;

b) poderia ser convertida em capital de risco;

c) teria o seu pagamento garantido pela formação de um fundo de amortização que o país se comprometeria a constituir com recursos próprios.

Há diversas maneiras de operacionalizar este esquema. Uma possibilidade seria fixar de antemão as condições financeiras para a dívida nova, autorizar a novação de toda a dívida considerada reestruturável e fixar um prazo para a adesão. Mas a melhor alternativa talvez seja fazer a novação da dívida de forma gradual, testando aos poucos a reação do mercado. Isto porque o país devedor teria que garantir o pagamento integral dos juros da dívida nova sem ser forçado a gerar superávits comerciais excessivos e sem ameaçar o nível das reservas cambiais.

Para fixar as taxas de juros e os deságios dos diferentes tipos de bônus, talvez seja preferível recorrer a mecanismos de leilão. No início de um trimestre, por exemplo, o país anunciaria a disposição de iniciar a novação para até 20% da dívida "velha" reestruturável, declararia a disposição de aceitar adesões até o final do trimestre e fixaria um deságio mínimo (ou redução equivalente da taxa de juros) para a conversão da dívida velha nos novos títulos de longo prazo. Evidentemente, a preferência no acesso à novação seria dada aos credores que oferecessem as melhores condições de juros e/ou deságio; no caso de propostas iguais, a preferência seria da oferta mais antiga. O mecanismo repetir-se-ia nos trimestres seguintes sem que houvesse qualquer garantia de manutenção das condições mínimas de juros e deságio. O ideal seria beneficiar, em alguma medida, os bancos que aderissem ao primeiro leilão, apertando gradativamente as condições mínimas exigidas a cada trimestre.

CONSEQÜÊNCIAS OE MEDIDAS UNILATERAIS DO BRASIL

As repercussões negativas da adoção de medidas unilaterais sempre foram grosseiramente exageradas. A título de exemplo, veja-se o que dizia o então Ministro do Planejamento do Brasil, Antônio Delfim Neto, em junho de 1984:

"Houve uma ocasião em que foi moda no Brasil falar-se insistentemente na moratória. (...) Se tivéssemos cedido à pressão da gritaria pela moratória, o Brasil teria sido destruído (sic). Paralisaria toda a economia, não teríamos alimentos nem produção industrial, o desemprego se generalizaria . (...) Mesmo que já tivéssemos atingido a autosuficiencia (energética), mesmo quando a atingirmos, a moratória não será um bom negócio.

Por quê? Porque nós teríamos de nos encasular numa economia pobre e fechada e iríamos assistir à apreensão de nossos navios e cargas no exterior, os nossos aviões partiriam daqui e não retornariam. Qualquer tribunal no exterior aprovaria o arresto de nossos bens e mercadorias, até o pagamento total. (...)"5 5 . Debate na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, em 13 de junho de 1984. Reproduzido na Gazeta Mercantil, de 14.06.84, p. 05. .

A experiência brasileira de 1987 serviu para desacreditar este tipo de ameaça. Afinal, o Brasil suspendeu os pagamentos de juros de forma unilateral e por tempo indeterminado, utilizou durante algum tempo a moratória como instrumento de negociação, e as previsões de retaliação e catástrofe não se materializaram.

A verdade é que os credores costumam reagir de forma cautelosa em face de atos unilaterais por parte de um país devedor, especialmente quando se trata de um devedor de grande porte como o Brasil6 6 . Ver por exemplo, KALETSKY, Anatole. The Costs of Default. New York, Twentieth Century y Fund, 1985. . Isto porque não é do seu interesse responder a uma suspensão de pagamentos com retaliações pesadas. Eles sabem perfeitamente que ações deste tipo acarretariam redução adicional da capacidade de pagamento do país, queda no valor de mercado das ações e títulos dos bancos mais expostos, novo aumento do deságio praticado no mercado secundário e, em conseqüência, possível necessidade de injeção de recursos nos bancos mais afetados por parte dos bancos centrais. Por esses e outros motivos, os credores não recorrem, na prática, às represálias que tantos temiam e ainda temem. A sua reação típica parece ser a de continuar ameaçando com a possibilidade de represálias, ao mesmo tempo que procuram estimular divergências internas no país devedor com o objetivo de reverter a decisão adotada. Foi assim que procederam após a moratória brasileira de fevereiro de 1987.

Ainda que as possibilidades de retaliação sejam consideradas remotas cabe evidentemente anteceder a suspensão de pagamentos de medidas específicas de precaução. São duas as áreas de maior vulnerabilidade:

a) as reservas internacionais do país depositadas junto a bancos comerciais;

b) as linhas de curto prazo.

No que se refere às reservas internacionais, aconselha-se uma realocação de forma a mantê-las fora do alcance dos bancos comerciais. Em condições normais, os bancos centrais depositam parte de suas reservas junto a bancos comerciais estrangeiros. Uma suspensão dos pagamentos devidos a esses bancos cria o risco de que ocorram set-offs, isto é, confiscos para compensação de pagamentos não recebidos. Antes de decretar a suspensão de pagamentos, cabe transformar os depósitos bancários em depósitos nos bancos centrais, no BIS, em títulos governamentais ou em outros ativos não sujeitos a set-offs.

As linhas de curto prazo são utilizadas para financiar exportações e importações ou a operação de bancos do país no exterior. Na hipótese de ação unilateral, nunca se pode descartar inteiramente o risco de que reações negativas dos credores provoquem redução abrupta dessas linhas, o que poderia causar prejuízos ao comércio exterior e ao sistema bancário do país. Recomenda-se, portanto, anteceder a suspensão unilateral de pagamentos de um stand-still, isto é, de um "congelamento" das linhas de curto prazo. A moratória brasileira de fevereiro de 1987, por exemplo, foi acompanhada de um telex comunicando aos bancos credores que,na hipótese de não renovação das linhas de curto prazo ou mesmo de renovação com clean-up, o pagamento seria efetuado por intermédio de crédito ao banqueiro junto ao Banco Central. Ao credor oferecia-se a possibilidade de voltar a estender a linha de crédito ao tomador anterior, de transferi-la a outro tomador brasileiro ou de simplesmente deixar os recursos depositados no Banco Central. Criou-se, assim, um mecanismo de renovação automática da dívida de curto prazo, que eliminou os riscos associados a uma possível redução abrupta dessas linhas.

Adotadas essas medidas de proteção das reservas e das linhas de curto prazo, os riscos associados a uma ação unilateral ficam substancialmente diminuídos. Evidentemente, isto não quer dizer que a suspensão de pagamentos não tenha custos para o país que a prática. No que concerne às linhas de curto prazo, é provável que ocorra elevação dos spreads pagos e queda do prazo médio. Por ocasião da renovação dessas linhas, pode haver, em determinados casos, maior dificuldade em mantê-las. Mesmo que se decrete stand-still, na forma indicada acima, a dificuldade de renovação pode ocorrer em duas circunstâncias:

1) no caso das linhas voluntárias;

2) no caso da não confirmação de cartas de crédito.

De qualquer forma, estes custos costumam ser pequenos quando comparados ao impacto de caixa da suspensão dos pagamentos referentes à dívida de médio e longo prazos7 7 . Para uma avaliação do impacto da moratória brasileira sobre as reservas internacionais do país, ver BATISTA JR., Paulo Nogueira. Da Crise Internacional à Moratória Brasileira. Op. cit, pp. 125-134. .

As linhas de curto prazo são de dois tipos: voluntárias e involuntárias. No caso brasileiro, estabeleceu-se há alguns anos que cada banco manteria, no mínimo, o nível de créditos de curto prazo observado em 30.06.83. Alguns bancos trabalhavam acima desse mínimo; outros bancos, que não operavam com o Brasil no curto prazo em meados de 1983, passaram a fazê-lo posteriormente. Por ocasião da moratória, essas linhas voluntárias foram deliberadamente excluídas do congelamento e muitas delas acabaram não sendo renovadas quando do seu vencimento.

Como se sabe, o comércio exterior apoia-se, às vezes, na confirmação de cartas de crédito por parte dos bancos internacionais, que atuam assim como avalistas da operação. No caso de o país devedor suspender pagamentos, podem ocorrer perdas de linhas de curto prazo em função da decisão de alguns bancos de não confirmarem cartas de crédito. Nesse caso específico, o mecanismo de congelamento acima referido pode não ser eficaz. Deve-se observar, entretanto, que o interesse, por parte dos exportadores estrangeiros, na consumação da operação , pode servir como elemento de pressão para que os bancos continuem confirmando cartas de crédito.

No que diz respeito às possíveis reações dos governos de países credores, há duas áreas potencialmente problemáticas:

1) a possibilidade de que ocorram medidas protecionistas de caráter retaliatório;

2) a possibilidade de redução do fluxo de crédito de fontes oficiais (governamentais ou multilaterais).

Não escapará, entretanto, aos governos dos países credores que a adoção de medidas de retaliação comercial em resposta a uma ação unilateral de um país devedor conduziria imediatamente a uma diminuição da capacidade de pagamento do país. Ora, é justamente na limitada capacidade de pagamento que reside a base do problema. Uma reação irracional só faria agravar as dificuldades existentes, tornando mais remotas as chances de uma retomada sustentável do pagamento da dívida. De qualquer forma, só em condições extremas um país recorreria a retaliações comerciais para responder a prejuízos causados por um devedor a seus bancos comerciais, geralmente privados. Estes últimos teriam muita dificuldade em subordinar a seus interesses específicos a política comercial e a política externa dos governos dos seus países de origem. Em todo o caso, à retaliação, responde-se com retaliação. Não parece ser do interesse de nenhum governo permitir que as dificuldades enfrentadas por seus bancos comerciais no relacionamento com países soberanos ameacem os interesses comerciais de outros setores da economia.

Uma outra resposta possível dos governos seria cortar o acesso às linhas de crédito das agências oficiais (Eximbank dos EUA e instituições semelhantes de outros países) que financiam ou garantem o financiamento de exportações de bens de capital e outros produtos. Ao fazê-lo, entretanto, prejudicariam evidentemente as suas próprias exportações. Além disso, a suspensão do fluxo de operações novas pode acabar induzindo o devedor a reduzir, por sua vez, o fluxo de pagamentos a essas agências.

No caso das agências governamentais, a decisão de cortar ou reduzir os créditos novos é uma opção que cada governo pode em princípio tomar a qualquer momento. Já induzir bancos multilaterais, como o BIRD e o BID, a reduzirem o seu fluxo de empréstimos é uma questão mais delicada. Como justificar a subordinação da política de empréstimos do Banco Mundial ou do BID não a critérios técnicos mas aos interesses de bancos privados de certos países? Evidentemente, a pressão teria que ser velada e ficaria, portanto, vulnerável à contrapressão do país devedor. Se este último é um devedor de grande porte, as suas possibilidades de contrapressionar as entidades multilaterais não são desprezíveis. O Brasil, por exemplo, efetua pagamentos anuais de cerca de US$ 1,5 bilhão ao BIRD e responde por mais de 10% da carteira de RAE empréstimos do banco. A continuação de um bom relacionamento interessa tanto ao BIRD como ao Brasil.

PRÓS E CONTRAS DE UMA AÇÃO CONJUNTA DOS PRINCIPAIS DEVEDORES LATINO-AMERICANOS

Em teoria, uma ação conjunta dos devedores latino-americanos aumentaria o seu poder de barganha no processo de negociação da dívida. O problema é que, na prática, a viabilidade de uma ação dessa natureza é muito menor do que às vezes se imagina. Se em países como os nossos já é tão difícil garantir a coesão interna no caso de ação unilateral, o que dizer de propostas de ação conjunta com outros países devedores?

A despeito de alguns progressos nessa área a criação do Consenso de Cartagena em 1984 e a aproximação recente de alguns países - as negociações continuam sendo conduzidas caso a caso, como convém aos interesses dos credores. A experiência recente não autoriza prognósticos otimistas quanto à possibilidade de alterar este quadro. Nos últimos anos, a única tentativa séria de alterá-lo foi feita, sem qualquer sucesso, pela Argentina em 1984, logo no início do Governo Alfonsin. Naquele ano, a Argentina se recusou a negociar um acordo stand-by com o Fundo e começou a atrasar os pagamentos de juros aos bancos comerciais. A tentativa de obter apoio dos demais devedores fracassou e a Argentina acabou basicamente isolada. O México e o Brasil preferiram desempenhar o papel de devedores "bem-comportados" em troca de vantagens marginais na negociação.

A experiência brasileira em 1986/87 lembra até certo ponto a experiência da Argentina em 1984. Uma diferença é que não houve da parte do governo brasileiro qualquer tentativa de estimular uma ação conjunta dos principais devedores. Talvez equivocadamente, predominava no governo brasileiro, à época da decretação da moratória, um forte ceticismo quanto à possibilidade de contar com apoio efetivo ou ações semelhantes por parte dos demais devedores latino-americanos.

O ceticismo quanto à possibilidade real de uma ação conjunta parece justificado. Em primeiro lugar, pelo fato de existirem consideráveis diferenças entre a situação econômica de cada um dos principais devedores. De fato, o processo de endividamento e as raízes dos problemas de pagamento variam consideravelmente de país para país. Embora todos os países estejam enfrentando uma crise econômica de caráter estrutural, associada em grande medida à ruptura do padrão de financiamento externo estabelecido durante a década de 70, as situações conjunturais são freqüentemente bastante distintas nos diferentes países em cada momento do tempo. Do ponto de vista político, nunca é demais lembrar que em sociedades estruturalmente dependentes só em circunstâncias excepcionais surge a possibilidade de tomar iniciativas unilaterais no que diz respeito a aspectos cruciais das relações externas do país. Parece pouco provável que estas circunstâncias se produzam de forma sincronizada em diversos países.

POSSIBILIDADE DE SE SEPARAR, NO CASO DE AÇÃO UNILATERAL, OS CRÉDITOS CONCEDIDOS POR INSTITUIÇÕES MULTILATERAIS, GOVERNOS E CRÉDITOS DE CURTO PRAZO.

As moratórias são geralmente seletivas, isto é, não costumam atingir todas as obrigações externas ao mesmo tempo. A moratória brasileira de fevereiro de 1987, por exemplo, se restringiu aos juros referentes à dívida de médio e longo prazos com os bancos comerciais. Não foram afetados os juros relativos à dívida bancária de curto prazo e às dívidas de médio e longo prazos com credores não bancários (organismos multilaterais, agências governamentais e credores privados não bancários).

Existem basicamente dois argumentos favoráveis à diferenciação no tratamento dos credores:

a) como a ação unilateral tem um caráter necessariamente conflitivo, recomenda-se concentrar as tensões, evitando-se abrir várias frentes ao mesmo tempo; e

b) como os diferentes tipos de credores não apresentam comportamento uniforme, o tratamento deve variar de acordo com o grau de cooperação de cada grupo.

A título de exemplo, registre-se que o BIRD e o BID contribuíram de forma significativa para o financiamento da economia brasileira até 1987, ao passo que os bancos comerciais interromperam o fornecimento de créditos voluntários em fins de 1982 e vêm se recusando, desde 1985, a efetuar qualquer aporte de recursos novos.

Não faltam razões para que uma suspensão de pagamentos inclua as obrigações vis-à-vis dos bancos comerciais, que correspondem a aproximadamente 2/3 do total da dívida e representam a principal fonte de pressões externas sobre a economia brasileira. Observe-se, entretanto, que dada a importância das linhas de curto prazo para o financiamento das exportações, importações e operações de bancos brasileiros no exterior, cabe em princípio manter em dia os pagamentos de juros sobre essa parte da dívida com os bancos comerciais.

Embora o problema da dívida externa esteja relacionado em primeira instância às obrigações com os bancos comerciais, também é importante ter em conta possíveis dificuldades nas relações com o Clube de Paris. No caso do Brasil, o relacionamento com as agências governamentais (Eximbank dos EUA e instituições congêneres de outros países) tem sido bastante atribulado desde o final do Governo Figueiredo, inicialmente em função das dificuldades de execução do acordo com o FMI, depois por causa da inexistência de acordo entre o Brasil e aquela instituição. No período mais recente, mesmo tendo assumido, em dezembro de 1986, o compromisso formal de reabrir as linhas de crédito ao Brasil, as agências governamentais continuaram praticamente fechadas até meados de 1988. Isto apesar de o Brasil ter realizado, em 1987, pagamentos da ordem de US$ 1,7 bilhão a essas agências (incluindo a totalidade dos juros devidos a certos tipos de principal). Neste contexto, seria eventualmente justificável estender a moratória ao Clube de Paris, incluindo na suspensão de pagamentos todos os compromissos do serviço da dívida que o país pretenda submeter a um processo de reestruturação.

Versão atualizada de trabalho apresentado no Colóquio internacional sobre Estratégias de Desenvolvimento dos Países Latino-Americanos, Colégio de México, México, 18-21 de outubro de 1988.

  • 2. Ver, por exemplo, ISLAM, Shafiqul. "Breaking the International Debt Deadlock". In: Critical Issues. Council on Foreign Relations, February, 1988 (mimeo); e DORNBUSCH, Rudiger. The World Debt Problem: Anatomy and Solutions. Massachusetts, Institute of Technology, August, 1987 (mimeo).
  • 1
    . Para uma análise das condições em que foi decretada a moratória brasileira de 1987, ver BATISTA JR., Paulo Nogueira.
    Da Crise Internacional à Moratória Brasileira. São Paulo, Paz e Terra, 1988, pp. 19-166.
  • 2
    . Ver, por exemplo, ISLAM, Shafiqul. "Breaking the International Debt Deadlock". In:
    Critical Issues. Council on Foreign Relations, February, 1988 (mimeo); e DORNBUSCH, Rudiger.
    The World Debt Problem: Anatomy and Solutions. Massachusetts, Institute of Technology, August, 1987 (mimeo).
  • 3
    . SACHS, Jeffrey e HUIZINGA, Harry. "U.S. Commercial Banks and the Devoloping-Country Debt Crisis". In:
    Brookings Paper on Economic Activity. Vol. 2,1987, pp. 555-601.
  • 4
    . Para maiores detalhes, ver BATISTA JR., Paulo Nogueira. "A Transformação da Dívida Externa em Títulos de Longo Prazo". In:
    Revista de Economia Política. São Paulo, vol. 8, nº 3, jul-set., 1988, pp. 22-40.
  • 5
    . Debate na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, em 13 de junho de 1984. Reproduzido na
    Gazeta Mercantil, de 14.06.84, p. 05.
  • 6
    . Ver por exemplo, KALETSKY, Anatole.
    The Costs of Default. New York, Twentieth Century y Fund, 1985.
  • 7
    . Para uma avaliação do impacto da moratória brasileira sobre as reservas internacionais do país, ver BATISTA JR., Paulo Nogueira.
    Da Crise Internacional à Moratória Brasileira. Op. cit, pp. 125-134.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 1989
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