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Emprego e estabilidade: o trabalhador urbano em Araraquara

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

José Hajj

Ferrante, Vera Lúcia Botta. Emprego e estabilidade: o trabalhador urbano em Araraquara* * Resenha elaborada para o seminário Emprego e Mercado de Trabalho do CMAAPV, ministrado pelo Prof. Henrique Rattner, no primeiro semestre de 1977. . Tese de doutoramento apresentada junto à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. São Paulo, 1973.

A tese de doutoramento da Prof.ª Vera Lúcia Botta Ferrante é uma valiosa contribuição no estudo de um campo que ainda não mereceu a suficiente atenção dos nossos pesquisadores: a sociologia da legislação trabalhista. O trabalho pioneiro da autora, aborda os fundamentos, econômicos, políticos e sociais, da promulgação da CLT. Os trabalhos anteriores sobre a CLT, limitavam-se a abordagens casuísticas.

Adotando a análise marxista, Vera B. Ferrante sustenta que a CLT, "como item institucional da superestrutura, é amplamente determinada pela infra-estrutura, por estar referida à necessidade de preservação das relações de produção, correspondentes ao modo de produção capitalista".

Desta forma, a autora examina a evolução das relações de produção no Brasil e lhe contrapõe a evolução da legislação trabalhista. Estuda particularmente a instituição da estabilidade e a posterior criação do FGTS, determinando seus fundamentos econômicos e sociais.

Para alcançar seu objetivo, Vera Ferrante reconstitui o processo histórico de industrialização brasileira e a evolução do processo político, classificando-os em três períodos:

a) 1900- 1930

b) 1930- 1964

c) 1964 - até o presente.

Na pesquisa dos dois primeiros períodos, a autora recorre a fontes bibliográficas. Para o terceiro período, vale-se, além das fontes bibliográficas, de uma pesquisa de campo entre trabalhadores e empresários de Araraquara, avaliando o impacto da instituição do FGTS, sobre estas duas categorias.

Sustenta ainda que no primeiro período da industrialização brasileira (1900/30) o operariado possuía uma consciência de classe desenvolvida, haja vista os movimentos trabalhistas e ;anarquistas da época. Estas ma' nifestações, provocadas principalmente por imigrantes operários, não vingaram. O reduzido número de atividades urbanas, o elevado número de estrangeiros sem direito a voto, o alto contingente de mulheres e crianças no meio trabalhador e a irrelevância econômica da atividade industrial foram motivos do insucesso do movimento operário e da não-promulgação de uma legislação trabalhista sistemática, na época.

No segundo período o Estado Novo introduz a pol ítíca do pacto social. Como nenhuma fração da classe dominante reunia condições para validar sua supremacia, recorria-se às massas populares urbanas como elemento de legitimação da autoridade do Estado. Em troca do apoio popular, era oferecida a promulgação do código de legislação trabalhista, a legalização da atividade sindical e o estabelecimento do salário mínimo. Com estas "regalias" oferecidas, o Estado antecipava-se às reivindicações operárias, afastando da percepção destes, o conflito capital-trabalho.

Os operários, ao invés de terem uma atitude reivindicativa, apreendem as garantias trabalhistas como uma concessão paternalista.

Por sua vez, a classe capitalista tomou consciência da possibilidade de um conflito capital-trabalho, o que a levou a aceitar a CLT, como instrumento mediador.

Nesta fase da promulgação, a estabilidade respondia às necessidades da estrutura econômica. Além de a estabilidade ser mais um tópico da política populista, "havia a necessidade de adequar a mão-de-obra à expansão do processo de industrialização brasileira". Na ausência de operários qualificados no mercado de trabalho, em número suficiente, os empresários tinham que treinar a mão-de-obra nas fábricas e oferecer-lhe alguns atrativos para permanecer.

Vera B. Ferrante adentra-se na sua pesquisa, fazendo um balanço das diversas correntes teóricas favoráveis e contrárias à estabilidade.

Por um lado os defensores da estabilidade, como Cesarino Júnior, que sustentam que a antigüidade, ao oferecer segurança ao trabalhador, cria nele o espírito de lealdade e favorece o aperfeiçoamento no trabalho.

A corrente contrária sustenta que a estabilidade nunca representou uma garantia real ao trabalhador, pois, na prática, ou o empregador dispensava o empregado antes que este completasse o período de 10 anos para adquirir aquele direito, ou o próprio empregado forçava sua demissão para receber a indenização que lhe era devida; assim a estabilidade protegia os maus empregados, ao invés dos bons. Sustenta também esta corrente, que a estabilidade ao fixar o empregado estaria obstando uma possível chance de mobilidade profissional e social.

Contra o primeiro argumento, sustenta a autora que a estabilidade, na prática, foi obstada ao trabalhador, não por ser um sistema de difícil aplicação ou controle, mas sim porque não existia um conjunto de mecanismos institucionais que impedissem práticas fraudulentas.

Contra o segundo argumento, de que a estabilidade impedia a mobilidade social do trabalhador, a autora aponta o problema social da dificuldade do trabalhador acima de 40 anos arranjar emprego. A alegação empresarial para o fato é de que o trabalhador, acima de 40 anos, não dispõe de treinamento "moderno" nem de conhecimentos necessários para ser chefe; tampouco será aceito como subordinado, por ser um empregado "viciado" e necessitar de salário maior. Desta forma a demissão de um empregado de 40 anos representa a queda de seu padrão social. Terá de aceitar uma nova função com salário inferior, repercutindo na sua aposentadoria, que é calculada com base nas 36 últimas contribuições. Como se vê, de fato a estabilidade impedia a mobilidade social do trabalhador, mas para baixo!

Vera Botta Ferrante analisa a instituição do FGTS, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Inicialmente argumenta que o FGTS não representou um ônus significativo para a empresa. "Na verdade, os 8% do FGTS representam somente 2,8% sobre a folha de pagamento, uma vez que foram eliminadas contribuições no valor de 5,2% dos salários" (p. 331).

Do ponto de vista financeiro, o FGTS foi vantajoso às empresas. Permitiu uma mobilidade de mão-de-obra, sem o desembolso de indenização.

Ultrapassando a controvérsia a nível ideológico pró e contra da estabilidade, a autora pesquisa as mudanças da infra-estrutura econômica que levaram à modificação do regime trabalhista; identifica os mecanismos ideológicos de legitimação do FGTS.

Segundo sua tese, a eliminação da estabilidade reporta-se ao papel do Brasil, a partir de 1964, no cenário da nova divisão internacional do trabalho. Os discursos do Pres. Castello Branco, reproduzidos na obra, mostram claramente a abertura do País ao capitalismo internacional.

Os passivos trabalhistas relacionados ao sistema de estabilidade representavam um impecilho às fusões e incorporações ao capital estrangeiro. A instalação de investimentos/capital intensivos, característica das empresas multinacionais, era dificultada pela falta de liberdade ao empresário em dispensar a mão-de-obra, substituindo-a por capital fixo. A nova estrutura econômica brasileira na sua reintegração à divisão internacional do trabalho exigia a troca da legislação trabalhista (superestrutura) referente ao modelo anterior - de substituição de importação e política populista - por uma outra mais adequada, que veio a ser o FGTS.

Para legitimar a instituição do FGTS, foram postos em prática vários mecanismos ideológicos. O FGTS foi apresentado aos trabalhadores como uma correção técnica, supostamente "neutra", já que a estabilidade seria ineficaz por permitir burla por parte da classe patronal. Concomitantemente, acenava-se aos trabalhadores com o fato de que o FGTS permitia-lhes a formação de um pecúlio, ou aquisição de casa própria.

A percepção do FGTS por parte dos trabalhadores e dos empresários foi alvo de uma pesquisa de campo da autora. Os trabalhadores pesquisados não apresentavam uma consciência social crítica. O FGTS era aceito por ser instituído pelo Governo. Os empresários, por sua vez, só viam no FGTS seus interesses imediatos. Os pequenos empresários encaravam o FGTS como fator de descapitalização de suas empresas, na medida em que representava mais um ônus financeiro. Nas empresas de portes médio e grande, mais seguras financeiramente, os empresários viam com simpatia o FGTS, pois lhes possibilitava uma rápida mudança da combinação capital fixo/capital variável. Os empresários não mostravam, ou não quiseram mostrar, o papel principal do FGTS na nova ordem econômica brasileira.

No último tópico a autora discute a relação entre FGTS/ estabilidade e a assimilação tecnológica.

Para ela, o desenvolvimento tecnológico não implica necessariamente a mudança da estabilidade para o FGTS, desde que este desenvolvimento seja mão-de-obra intensiva. Vera Ferrante atribui o problema à dependência da formação econômica brasileira ao sistema capitalista internacional, que utiliza tecnologia poupadora de mão-de-obra.

Arrematando, a autora alerta contra a visão fracionada que os empresários têm da realidade. Se de um lado a mecanização pode ser a solução mais racional do ponto de vista microeconômico, do ponto de vista social a mecanização vai agravar a situação do trabalhador, inibindo-lhe a iniciativa e aumentando a população desempregada. Para a autora, o sistema vence esta contradição por dois meios. Primeiramente, desenvolvendo um aparelho repressivo, utilizado para estabilizar situações de instabilidade política e, por último, o sistema tem no setor terciário de baixa produtividade, uma capacidade de absorção da mão-de-obra excedente, aliviando assim as tensões sociais latentes.

A tese da Prof.ª Vera Ferrante abarca, num mesmo trabalho, desde a gênese do movimento trabalhista, até questões polêmicas como o uso de tecnologia mais adequada ao desenvolvimento. A ambiciosa tese fornece ao leitor uma esplêndida visão de conjunto da evolução das relações de produção no Brasil. Em contrapartida, a amplitude de seu trabalho esmaece algumas de suas conclusões que exigem maior aprofundamento empírico. É o caso, por exemplo, de caracterizar-se a tecnologia empregada no "modelo de substituição de importações", levantar o perfil de mão-de-obra que ela demandava, e, mostrar como o regime de estabilidade atendia ao funcionamento deste modelo.

Outra conseqüência da grande amplitude da tese da autora é que ela termina simplesmente debitando ao capitalismo internacional a responsabilidade pela adoção, pelo Brasil, de técnicas capital-intensivas que degradam o fator trabalho e geram o FGTS, responsável pela alta rotatividade de mão-de-obra. De 1973 para cá, data da publicação da tese de Ferrante, diversos autores, tais como, Stephen Marglin1 1 Marglin, Stephen. Origens e funções do parcelamento do trabalho. Divisão social do trabalho, ciência, técnica e modo de produção capitalista. Porto, Publicações Escorpião, 1974. , André Gorz2 2 Gorz, Andre. Caracteres de classe da ciência e dos trabalhadores científicos, ibidem. e Harry Braverman3 3 Braverman, Harry. Labor and the monopoly capital; the degradation of work in the twentieth century. New York-London, The Monthly Review Press, 1974. , aprofundaram-se no estudo de tecnologia e trabalho. Eles concluem que o caráter degradante do trabalho presente sob o capitalismo, é conseqüência da divisão do trabalho em manual e intelectual; o caráter degradante não seria privilégio do capitalismo, mas sim de todos os regimes econômicos que adotam a divisão do trabalho. Estas considerações em nada diminuem a grande envergadura da tese apresentada por Vera Ferrante, que representa um marco inicial, um estímulo para futuros estudos das relações de trabalho no Brasil.

  • 1 Marglin, Stephen. Origens e funções do parcelamento do trabalho. Divisão social do trabalho, ciência, técnica e modo de produção capitalista. Porto, Publicações Escorpião, 1974.
  • 3 Braverman, Harry. Labor and the monopoly capital; the degradation of work in the twentieth century. New York-London, The Monthly Review Press, 1974.
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    Resenha elaborada para o seminário Emprego e Mercado de Trabalho do CMAAPV, ministrado pelo Prof. Henrique Rattner, no primeiro semestre de 1977.
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    Marglin, Stephen. Origens e funções do parcelamento do trabalho.
    Divisão social do trabalho, ciência, técnica e modo de produção capitalista. Porto, Publicações Escorpião, 1974.
  • 2
    Gorz, Andre. Caracteres de classe da ciência e dos trabalhadores científicos, ibidem.
  • 3
    Braverman, Harry.
    Labor and the monopoly capital; the degradation of work in the twentieth century. New York-London, The Monthly Review Press, 1974.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 1977
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