Acessibilidade / Reportar erro

Distribuição da renda e desenvolvimento econômico no Brasil: um comentário

COMENTÁRIOS

Distribuição da renda e desenvolvimento econômico no Brasil: um comentário

Martin Carnoy

Professor do Departamento de Educação da Universidade de Stanford, Califórnia

Foi somente nos anos recentes que os economistas neoclássicos se interessaram pela distribuição dos benefícios do crescimento. Trabalhos anteriores de economia do desenvolvimento concentravam-se na "eficiência" da política do investimento apenas em termos de crescimento econômico.

Recentemente, um economista neoclássico escreveu um livro sobre distribuição da refida e desenvolvimento no Brasil. Para o mérito dé Langoni, ele usa imaginosamente os dados do censo para avaliar as causas do grande aumento da desigualdade no Brasil na década de 60. Para o descrédito de Langoni, muitas das suas afirmações sobre distribuição da renda e desenvolvimento pouco têm a ver com seus extensivos resultados empíricos. Entretanto, suas especulações tiveram um efeito positivo; elas trouxeram à luz um importante debate sobre a questão distribuição/desenvolvimento. Apareceram três artigos contestando o uso e a interpretação que Langoni faz dos dados de Venda do censo.1 1 Fihlow, Albert. Brazilian Income size distribution - another look. Berkeley, Universidade da Califórnia, 1973. miemogr. ; Wells, John. The distribution of earnings in Brazil. Cambridge, 1973. mimeogr. ; Malan, Pedro & Wells, John. Distribuição da renda e desenvolvimento econômico do Brasil. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 3, n. 4, dez. 1973. Com o risco de aborrecer os seguidores deste debate, gostaria de acrescentar meu comentário tanto sobre o trabalho de Langoni como sobre os críticos de suas interpretações da política econômica.

A análise de Langoni pode ser resumida da seguinte maneira:

1. A distribuição da renda no Brasil tornou-se mais desigual entre 1960 e 1970. Por exemplo, o coeficiente de concentração de Gini aumentou de 0,50 para 0,57 quando a renda zero é excluída da distribuição, e de 0,56 para 0,60 quando a renda zero é incluída (quadro 3.6).

2. A razão principal para essa distribuição desigual, segundo Langoni, está em que a estrutura da força de trabalho mudou nesses 10 anosj A distribuição dos anos de escolaridade na força; de trabalho tornou-se mais desigual, e houve um deslocamento da força de trabalho de um setor (rural) marcado por uma baixa desigualdade de renda, para um setor (urbano) marcado por alta desigualdade; e de regiões de baixa desigualdade e baixo crescimento para regiões de maior desigualdade e maior crescimento.

3. Além disso, ocorreram também mudanças na estrutura da renda, o que contribuiu para uma maior desigualdade. Essas mudanças pedem ser atribuídas em grande parte - argumenta Langoni - a mudanças na remuneração dos diferentes níveis de escolaridade nesses 10 anos: o aumento na renda para as pessoas com mais alta escolaridade foi muito maior do que para aqueles com menos escolaridade.

4. Langoni interpreta a mudança na estrutura da força de trabalho com uma conseqüência "inevitável" do desenvolvimento. A força dej trabalho desfoca-se para indústrias que são marcadas por uma maior "diferenciação" nos níveis de qualificação devido a uma tecnologia mais "sofisticada''. Assim, o capital humano distribui-se menos igualmente na medida em que o nível: médio da renda aumenta em uma economia (p. 52), pelo menos nesta fase do desenvolvimento brasileiro.

5. Langoni é muito mais ambíguo nas suas explicações sobre a mudança da estrutura da renda: por um lado, ele argumenta que o aumento nos salários do trabalho das pessoas mais escolarizadas em relação ao trabalho dos menos escolarizados é o resultado do aumento relativo da produtividade do trabalho dos mais escolarizados. O aumento relativo ocorreu, por sua vez, por causa de um maior aumento relativo na demanda por pessoas mais qualificadas, devido ao progresso tecnológico que emprega mão-de-obra qualificada de forma intensiva que caracteriza o desenvolvimento brasileiro nos anos 60 (p. 88 e 121). Essa análise enfatiza novamente os efeitos "natural" e "necessário" do crescimento econômico e da modernização sobre a distribuição da renda. Por outro lado, ele argumenta que, em períodos de rápido crescimento, é razoável que se espere que ocorram desequilíbrios no mercado de trabalho, e que a expansão de demanda por trabalho beneficie apenas aquelas categorias de trabalho altamente qualificado, cuja oferta é relativamente inelástica a médio prazo (p. 116). Langoni prossegue argumentando que, embora os salários temporariamente mais altos que o produto marginal (quase-rendas) sejam conseqüência "natural" do desenvolvimento, tais desequilíbrios podem desaparecer a longo prazo através da expansão apropriada da oferta de trabalho qualificado.

Neste pequeno artigo pretendo rever esses pontos, procurando não repetir os argumentos de Fishlow, Malan e Wells, exceto onde a minha abordagem contradiga ou reforce as suas. Tentarei mostrar que Langoni interpreta mal seus próprios dados e que as contradições óbvias da sua análise podem ser resolvidas através de uma visão diferente do desenvolvimento brasileiro na última década.

1. A DISTRIBUIÇAO DA ESCOLARIDADE NO BRASIL TORNOU-SE MAIS DESIGUAL?

Uma das chaves da análise de Langoni é a de que a distribuição da força de trabalho por educação, idade, sexo, atividade e região no Brasil tornou-se mais desigual entre 1960 e 1970, e que este aumento na desigualdade aumenta substancialmente a desigualdade de renda (quadro 5.4). Embora ele não separe o efeito das mudanças na distribuição da educação (medida através de anos de escolaridade), a inferência que traçamos acerca das mudanças na distribuição da escolaridade torna-se crucial para o resto de sua análise.

Langoni mede a educação em sua regressão (quadro 5.1) por uma variável qualitativa que indica se um indivíduo recebeu ou não um nível particular de escolaridade. A mudança na porcentagem de indivíduos na força de trabalho que se enquadram nas diferentes categorias de escolaridade em 1960 e 1970 determina mudanças na distribuição de escolaridade na força de trabalho. Langoni interpreta os coeficientes das variáveis escolaridade como a renda relativa paga para os diferentes níveis de escolaridade nos dois anos. Estas estimativas da renda relativa são, entretanto, tendenciosas, se o valor de reposição da escolaridade incorporada no indivíduo se modifica com o tempo. Assim, o coeficiente que Langoni interpreta como rendas relativas é, de fato, igual à renda relativa multiplicada pelos custos relativos de escolarização. É esta última interpretação que é coerente com a teoria do capital humano.

De fato, segundo o próprio Langoni,2 2 Langoni, Carlos. A study in economic growth: the Brazilian case. Dissertação de Ph. D. inédita. Universidade de Chicago, 1970. os custos relativos dos diferentes níveis de escolaridade modificaram-se substancialmente entre 1960 e 1969, tornando-se relativamente mais iguais (ver quadro 1).


Os custos relativamente mais baixos da educação universitária tendem a equalizar a distribuição da escolaridade formal durante esse período de 10 anos; em verdade, essa equalização nos custos contrabalança a distribuição mais desigual em anos de escolaridade em 1970, comparada com 1960. O resultado - novamente usando os dados de Langoni sobre a distribuição da educação na força de trabalho (A study in economic growth. p. 83.) - é uma inalterada distribuição de investimento em escolarização no Brasil entre 1960 e 1970. Os coeficientes de Gini para recursos usados para escolaridade nos dois anos, baseados nas cifras de Langoni sobre custos e distribuição da escolaridade entre os auferidores de renda, são os seguintes:

Assim, pelo menos o componente educacional da estrutura da força de trabalho de Langoni não se modificou nos anos 60. Embora não se possa dizer a partir dos cálculos de Langoni quanto isto reduz a distribuição da mudança estrutural com relação à mudança na renda, sabe-se com certeza que o efeito de incluir mudanças no custo da escolarização como parte da variável educação realmente reduz a contribuição de mudanças estruturais e aumenta a contribuição da mudança na renda para a variação na distribuição da renda.

2. QUAIS FORAM OS EFEITOS DAS ALTERAÇÕES RELATIVAS NA RENDA SOBRE A DISTRIBUIÇÃO DA RENDA?

O resultado de nossa discussão do capítulo anterior é o de que Langoni subestima seriamente o que ele chama de "efeito redistributivista puro" (p. 121) das alterações relativas na renda sobre a distribuição da renda. A mais importante alteração relativa na renda que Langoni pode explicar com seu modelo de capital humano é aquela associada com os diferentes níveis de escolarização. Mais da metade da mudança prognosticada na distribuição da renda devido à mudança no coeficiente de regressão resulta da alteração no coeficiente de educação (quadro 5.6). Nós argumentamos que as estimativas de Langoni da alteração dos coeficientes da renda relativa da educação são muito baixas: uma vez que os custos de escolarização tenderam a se equalizar durante a década no Brasil, os coeficientes que Langoni denomina de valor da renda da escolarização são subestimados para os altos níveis de escolaridade em 1970 com relação a 1960. Se ele tivesse usado o valor do investimento das diferentes quantidades de escolaridade na força de trabalho para suas variáveis independentes, ele teria estimado maiores coeficientes para os graus mais altos de escolaridade em relação aos níveis mais baixos em 1970 que em 1960. Em outras palavras, a remuneração para os níveis mais altos de escolaridade aumentou muito mais do que o indicado pelas diferenças nos coeficientes apresentados no quadro 5.1 de Langoni. Portanto, o ΔWe apresentado e seria muito maior com relação a ΔXe se ΔXe fosse considerado como a distribuição do investimento em escolaridade, em vez da distribuição dos anos de escolaridade.3 3 Ver Carney, Martin. Schooling, income, the distribution of income, and unemployment: a critical appraisal. Stanford University, 1973. mimeogr. Quadro 10.

Pode-se confrontar essa maneira de abordar o problema através da estimativa da taxa de retorno ponderada pela distribuição do investimento em escolaridade para 1960 e 1969. Novamente, usamos os dados sobre as taxas sociais de retorno da dissertação de Langoni: a partir de suas taxas marginais sociais, aproximamos taxas médias, que medem a taxa média de retorno para toda a escolaridade obtida até um determinado ano (ver quadro 2).4 4 A fórmula usada para aproximar as taxas sociais médias é a seguinte:


Multiplicando essa taxa média social pelo investimento total em escolarização do nosso quadro 1, e ponderando a distribuição dos anos de escolaridade da força de trabalho por esse produto, obtemos um coeficiente de Gini de 0,54 em 1960 e de 0,70 em 1969. Assim, podemos ver, desse exercício particular, que o aumento na desigualdade de renda não é, de maneira alguma, explicado pelo aumento na desigualdade do investimento em educação (não houve tal aumento), mas está relacionado com a alteração no retorno do investimento em diferentes níveis de escolarização entre 1960 e 1970 no Brasil.5 5 Mas esta não é a história toda. Usando sua estimativa de regressão, Langoni previ um coeficiente de Gini em 1970 que é 23% mais baixo do que o observado (0,43 vs. 0,57). Perguntaríamos: qual é o coeficiente previsto versus o observado em 1960? Se o intervalo entre o previsto e o observado aumentou, não se poderia argumentar que o aumento residual inexpliçado pudesse ser um efeito "distributivo puro" adicional nas alterações da renda?

Nosso argumento mostra que, se Langoni tivesse separado (corretamente) as alterações no retorno dos gastos em escolaridade, dos gastos propriamente ditos, ele teria encontrado maior contribuição para uma distribuição mais desigual da renda nas alterações na estrutura da renda do que nas alterações na distribuição das características da força de trabalho.

A correção da tendenciosidade necessariamente forçaria Langoni a abandonar pelo menos parte de sua lógica empírica da teoria da "inevitabilidade" de uma distribuição de renda mais desigual.

3. AUMENTOS NA DEMANDA VERSUS QUASE-RENDAS

As razões para o deslocamento na estrutura da renda são portanto de suma importância na determinação das alterações na distribuição da renda. Como já apontamos, Langoni é um tanto ambivalente em sua explicação, por vezes baseando-se em um modelo "natural" de aumentos na demanda - resultado de uma alteração tecnológica que favorece os mais escolarizados em detrimento dos menos escolarizados - e por vezes fundamentando-se em restrições da oferta de trabalho qualificado associado a esse modelo de aumento na demanda. A primeira explicação apresenta uma estrutura de renda que é coerente com um "novo" padrão de produtividade para os diferentes níveis de escolarização, enquanto que a segunda explicação apresenta uma estrutura de renda com uma quase-renda temporária sendo auferida pelos mais escolarizados. Como Fishlow sugere, suas quase-rendas poderiam ser taxadas sem afetar a alocação de recursos. Langoni argumenta que um aumento no número de pessoas com formação universitária eliminará de algum modo essas quase-rendas na próxima década e portanto a distribuição de renda tenderá a equalizar-se.

No caso de não haver restrições na oferta, mesmo a médio prazo, teríamos de concluir - nos termos de Langoni - que a menos que o modelo de mudança tecnológica e os tipos de bens produzidos no Brasil se alterem significativamente na próxima década, não há razão para se acreditar que a distribuição de renda melhorará. No caso de haver restrições na oferta de trabalho altamente qualificado, teremos que admitir que os aumentos na oferta relativa reduzirão significativamente a renda relativa dos indivíduos altamente escolarizados.

Sem acreditar necessariamente que o aumento na renda dos membros mais escolarizados da força de trabalho brasileira foi devido, quer ao padrão de aumento na demanda, quer a um aumento na demanda associado a restrições na oferta, examinemos a probabilidade de que ambos os argumentos possam ter levado Langoni a ser otimista acerca da equalização da distribuição da renda no Brasil na próxima década.

Em essência, Langoni está afirmando que as forças do mercado - associadas a um rápido crescimento econômico - são responsáveis pela alteração do padrão de renda associado a diferentes níveis de escolaridade entre 1960 e 1970. Baseandose no argumento da "quase-renda", ele conclui que essas mesmas forças de mercado corrigirão o desequilíbrio temporário e produzirão uma distribuição mais igual da renda se o Governo investir mais em educação superior.

Os dados sobre Os quais Langoni baseia esta análise estão no quadro 3.


Pode-se observar no quadro que a renda dos Indivíduos de nível universitário cresceu mais rapidamente, mas o número desses Indivíduos não aumentou tão rapidamente quanto o número de indivíduos de nível colegial. Quando o número de universitários crescer mais rapidamente, Langoni afirma, o aumento relativo na renda será mais baixo. Embora nada saibamos acerca da elasticidade-preço da demanda por universitários, pode-se acreditar que no período 1960-1970 um maior crescimento no número de indivíduos de nível universitário poderia ter diminuído o aumento relativo da renda desses mesmos indivíduos e portanto reduzido a concentração de rendas. Entretanto, essa afirmação somente pode ser feita na base do modelo de aumento na demanda por indivíduos qualificados, nesse mesmo período. No período 1970-80 o padrão de aumento na demanda poderia ser tal que o aumento da taxa de crescimento de graduados em universidades acima da taxa de 1960-70 não reduziria o crescimento relativo da sua renda. Em verdade, pode-se esperar que o futuro crescimento econômico no Brasil, baseado no modelo de 1964-70 poderia favorecer os indivíduos com formação universitária ainda mais do que no passado, na medida em que as indústrias comecem a substituir empregados com formação secundária por outros com formação universitária. Pode-se ilustrar esse processo com dados dos EUA.

Dados dos Estados Unidos sobre o crescimento da renda e do emprego por um período de 20 anos para indivíduos brancos do sexo masculino com diferentes níveis de escolarização também indicam um aumento relativo na demanda para os mais escolarizados (quadro 4). 6 6 Admitimos, no momento, que embora a renda não necessariamente iguale o produto marginal, a relação entre renda e produto marginal para aqueles com diferentes níveis de escolaridade, nos EUA, não se alterou significativamente entre 1959 e 1969. Não obstante um maior aumento na oferta de Indivíduos com educação secundária em relação àqueles com educação primária, a renda média para indivíduos brancos do sexo masculino com idades entre 35-44 anos com educação secundária aumentou quase tanto quanto para aqueles com educação primária; de maneira semelhante, a renda daqueles com educação universitária aumentou quase tão rapidamente quanto para aqueles com educação secundária a despeito de um aumento maior no crescimento de empregos. Embora esse padrão de renda provavelmente tenha sido afetado por outras variáveis, tais como salários mínimos, ele indica com certeza que uma razão pela qual o crescimento da renda ocorreu dessa maneira pode ter sido o padrão de aumentos na demanda entre 1949-69.


O modelo, porém, deixa-nos muito menos otimistas do que os dados do Brasil na medida em que se usa a expansão da educação superior como um meio para a equalização da renda. Não obstante um aumento a longo prazo de indivíduos com educação superior em relação àqueles com educação secundária, nos EUA, as rendas médias daqueles decresceram muito pouco ou quase nada em relação àquele com educação secundária. Há ainda mais fortes evidências nos EUA para sè refutar o otimismo de Langoni: as taxas sociais médias do retorno do investimento em educação secundária para as pessoas do sexo masculino (para o investimento de 12 anos completos requeridos para o nível secundário) decaiu de cerca de 14% em 1949 para 9% em 1969.

As taxas médias para o investimento em educação universitária (num total de 16 anos de escolarização) permaneceram quase constantes, caindo de 11 para 10% em 20 anos, enquanto a taxa pára a pós-graduação para o ensino superior para indivíduos do sexo masculino aumentou entre 1959 e 1969 (só há dados disponíveis para esses anos) de 6,5 para 9,0%.7 7 Ver Carncy, Martin, op. cit. Quadro 8.

Os dados de Langoni para o Brasil indicam que a taxa social média de retorno para a educação primária decaiu bruscamente entre 1960 e T970; a taxa para a educação ginasial também decaiu um pouco, enquanto a taxa média para o colegial permaneceu estável e para a educação superior subiu significativamente (ver quadro 2) . Langoni propõe que o padrão de mudança nas taxas pode ser devido a um desequilíbrio temporário no mercado de trabalho, e que através de maior investimento em educação superior o modelo de alterações das taxas seria radicalmente alterado. Mas os dados dos EUA indicam que a estratégia de crescimento que o Brasil está seguindo pode, em verdade - como Langoni também argumentou - continuar inevitavelmente a favorecer os mais escolarizados em detrimento dos menos escolarizados no mercado de trabalho, e dessa forma continuar a pressionar a distribuição da renda no sentido de uma maior desigualdade.

É importante que se entenda como esse processo acontece. Langoni deixa-nos a impressão de que o crescimento econômico deve ocorrer de maneira que favoreça os mais qualificados em detrimento dos menos qualificados no mercado de trabalho. Entretanto deveria ser evidente que existe muita flexibilidade nos tipos de bens produzidos por uma economia em processo de crescimento e no tipo de tecnologia usado na sua produção. Bens produzidos e tecnologia usada afetam a demanda por diferentes níveis de qualificação. O Brasil poderia ter produzido um crescimento econômico que usasse uma tecnologia de menos qualificação-intensiva e poderia ter produzido bens que requeressem, como média, menos mão-de-obra qualificada produzida em escolas. Tudo isso implica, é evidente, que há até mesmo uma conexão entre produtividade e escolarização, uma suposição que Langoni toma como verdade sem discutir a literatura que refuta esse ponto de vista.8 8 Ver, por exemplo, Berg, Ivar. Education and jobs: the greet training robbary. New York, Praeger, 1970.

Se há, de fato, padrões de demanda no modelo brasileiro de crescimento econômico capitalista que favorecem os trabalhadores mais escolarizados em relação aos menos escolarizados, isso tenderá a desigualar a renda mesmo com um aumento mais rápido no número de pessoas com nível superior do que o que ocorreu na década passada. Langoni parece esquecer que trabalhadores com nível superior podem substituir outros com menor escolaridade na medida em que o número de indivíduos mais escolarizados aumenta em relação aos menos escolarizados. Em verdade foi isso que ocorreu nos EUA: pessoas de nível universitário hoje executam trabalhos anteriormente feitos por indivíduos com formação colegial apenas. Enquanto isso tenderia a reduzir os aumentos nos salários daqueles com formação universitária, reduziria ainda mais os salários daqueles com formação colegial, na medida em que estes teriam menos opções. Como vimos, este processo ocorreu nos EUA (e aparentemente no Brasil também) de maneira a aumentar as taxas de retorno para os níveis mais altos de educação em relação aos níveis mais baixos.

É importante notar aqui que o argumento de Langoni sobre o crescimento diferencial da demanda como causa básica das alterações na estrutura da renda pressupõe que alterações no produto marginal sejam refletidas nas alterações da renda. Não existem sólidas evidências que suportem essa hipótese. De fato, a pequena evidência que se tem indica que os salários de muitos trabalhadores estão abaixo do produto marginal.9 9 Thurow, Lester. Investiment in human capital. Belmont, Califórnia, Wadsworth Publishing, 1970. Os trabalhadores dos setores econômicos onde os trabalhadores estão mais organizados parecem ser aqueles cujos salários estão mais próximos do produto marginal.10 10 Ver Gordon, David. Theories of poverty and unemployment. Lexington, Massachusetts, D. C. Heath, 1972. Nos EUA não se tem evidência, entretanto, que a relação entre salário e produtividade tenha-se alterado nos últimos 20 anos (1949-69). Os sindicatos cresceram pouco, e as porcentagens de trabalhadores em diferentes setores não se alterou significativamente. Mas no Brasil, onde o direito de greve foi abolido desde 1964, há toda razão para se acreditar que a relação entre salários e produto marginal realmente se alterou entre 1960 e 1970. Presumimos que os salários dos trabalhadores urbanos de renda mais baixa caíram muito abaixo do produto, enquanto que os salários daquelas ocupações profissionais, politicamente mais favorecidas, permaneceram iguais ou cresceram em relação ao produto.

Concluímos, então, que pode ter havido padrões de aumento na demanda que favoreceram, no Brasil, os mais escolarizados em detrimento dos menos escolarizados, mas esses padrões não são necessariamente parte do processo de crescimento econômico, nem são eles, necessariamente, a razão básica da alteração na estrutura da renda. Eles estão, entretanto, geralmente associados com a produção de bens por e para os indivíduos mais escolarizados, de maior renda, e particularmente os proprietários e diretores do capital físico, tudo operando com o apoio do aparato estatal que claramente favorece o setor capital-intensivo em detrimento do trabalho-intensivo e apoia a produção de certos tipos de bens em detrimento de outros.11 11 Furtado, Celso. Análise do "modelo" brasileiro. Rio de Janeiro, 1972.

De maneira alguma estamos convencidos que, com o aumento da oferta de pessoal com nível universitário no futuro, a renda relativa dos grupos de renda mais altos declinará. Ao contrário, o aumento da oferta de pessoal mais qualificado e absorvido às custas daqueles menos qualificados, reduz a taxa de retorno para níveis mais baixos de escolarização enquanto permite que a taxa de retorno para os níveis mais altos se mantenha constante ou até mesmo aumente. A renda relativa dos mais qualificados nos EUA não declinou, não obstante um rápido aumento relativo, a longo prazo, no número de universitários na força de trabalho.

É muito mais provável que a tecnologia e os produtos associados ao crescimento brasileiro não se alterem durante a próxima década; portanto, continuarão as pressões da demanda do mercado de trabalho que mantém a estrutura salarial desigual, ou fazem com que esta fique mais desigual.

4. ANÁLISES CONTRÁRIAS QUE LANGONI NÃO DISCUTE

Até agora temos abordado apenas problemas internos à análise de Langoni. Já argumentamos que ele atenua o papel da alteração da estrutura da renda em relação à altt.ação da estrutura do trabalho e que, embora ele possa estar correto quanto ao fato de que o desenvolvimento brasileiro gera padrões de aumento de renda que favoreçam os trabalhadores altamente qualificados, há pouca evidência de que o aumento no número de universitários na força de trabalho reduzirá a renda relativa dos indivíduos com esse nível de escolarização, nem mesmo que o padrão de crescimento da demanda tenha muita relação com a alteração na renda relativa.

Langoni ignora modelos mais recentes de competição do trabalho que enfatizam menos a oferta de trabalho na determinação do salário. Por exemplo, Thurow e Lucas12 12 Thurow, Lester & Lucas, Robert. The American distribution of incomome: a structural problem. Washington, D. C, Joint Economic Committee, U. S. Government Printing Office, 1972. propõem hipóteses de que a. produtividade marginal é um atributo dos cargos, e não dos ocupantes.

Cargos onde os trabalhadores operam com muito capital moderno são de alta produtividade marginal. Os trabalhadores procuram avidamente tais oportunidades. Uma vez empregado, a capacidade cognitiva para aumentar sua produtividade até a produtividade marginal do trabalho é alcançada através de programas de treinamento formal e informal. O critério principal, pois, que os empregadores usam ná seleção dos trabalhadores é a "treinabilidade". Os trabalhadores que tenham características específicas que os empregadores percebem que reduzirão os custos de treinamento serão selecionados e receberão os "melhores" trabalhos. Uma vez que um trabalhador conseguiu um bom emprego e recebeu o treinamento necessário para igualar a sua produtividade à do trabalho, o critério de treinabilidade significa que ele está numa posição favorável para ser sele' cionado para cargos mais altos.

Se, de fato, a formulação de Thurow e Lucas13 13 Não concordo necessariamente com o modelo de Thurow-Lucas. Ele traz alguns elementos importantes para a compreensão do mercado de trabalho, mas também não trata das razoes pelas quais existem grandes diferenças de pagamentos para diferentes tipos de trabalho, nem das partes do mercado de trabalho onde não ocorre nenhum treinamento. Para análise deste último ponto, o leitor deve consultar Gordon, David. op. cit. for um modelo preciso no que diz respeito pelo menos à parte "moderna" do mercado de trabalho no Brasil, muitos dos argumentos de Langoni acerca da natureza temporária das rendas altas para os mais escolarizados vão por água abaixo. A análise de Thurow-Lucas concluiu que programas para alterar as características de treinabilidade dos trabalhadores terão pouco efeito na distribuição da renda: a estrutura salarial é determinada por fatores exógenos à oferta e demanda de trabalho. Isso explica a constância dos salários face ao excesso de oferta de trabalho, a existência de mercados de trabalho internos altamente estruturados e o aumento secular e onipresente das exigências educacionais para o trabalho. O modelo nos leva a prestar atenção aos efeitos exógenos da estrutura da renda em lugar das alterações da renda devidas à oferta e demanda de trabalho.

Wells e Fishlow sustentam que o modelo de aumentos na demanda pouco ou nada teve a ver com as alterações na distribuição da renda. Ao contrário, eles argumentam que o aumento na renda das pessoas mais escolarizadas era o resultado de uma política de rendas particular e que esta política é a principal explicação para a distribuição mais desigual da renda durante a década. A política de rendas nenhuma relação tinha com os tipos de bens produzidos, ou mesmo com a tecnologia ou com a maneira pela qual os bens eram produzidos. Wells mostra que o maior aumento na desigualdade da renda urbana ocorreu em 1965-66 durante a recessão econômica e o programa de estabilização do Governo, enquanto a renda Industrial se equalizou durante o período de rápido desenvolvimento nos fins dos anos 60 e começo da década de 70.

O argumento de Wells é o de que a política de rendas do governo era o fator básico da distribuição mais desigual da renda, e não alterações estruturais na qualificação, locação da força de trabalho, ou as alterações no pagamento de diferentes qualificações devidas a algum padrão "natural" de crescimento.

Fishlow argumenta, além disso, que há um número de padrões alternativos de investimento no capital humano que podem produzir a mesma taxa de crescimento econômico e que também acarretarão uma distribuição mais igual da renda do que aquela obtida pelo maior investimento em educação universitária. Os resultados desse modelo de simulação são uma refutação importante da implicação contida no livro de Langoni, de que um aumento na desigualdade da renda é um mal necessário para se atingir uma taxa rápida de crescimento econômico.

Embora o argumento de Fishlow seja bastante claro, ele abstém-se de levá-lo um passo à frente: se existem várias maneiras de aumentar o crescimento econômico, por que o Brasil escolheu, na segunda metade da década de 60, uma maneira que desloca os recursos dos grupos de baixa renda para os de alta renda? Os argumentos de Fishlow admitem intencionalmente que as razões são mais ou menos tecnocráticas. Seu modelo tem por objetivo mostrar a um órgão de planejamento com orientação tecnocrática que se poderia atingir a mesma taxa de crescimento de modo mais equitativo. Mas seria a política governamental brasileira no passado e as soluções futuras de Langoni para o problema crescimento/distribuição da renda baseadas em decisões técnicas ou primordialmente políticas?

Os argumentos de Langoni são fundamentados em um modelo implícito - e eu afirmaria ideológico - de desenvolvimento: para se obter o crescimento econômico é necessário (não apenas suficiente) deslocar recursos para a moderna burguesia. Estes são - está implícito - os empresários dinâmicos numa economia que reinvestirão uma alta porcentagem do rendimento. E supostamente também farão investimentos com o mais alto retorno.

Mais importante, entretanto, este deslocamento de recursos beneficia convenientemente os grupos de rendas mais altas. A intervenção do Estado para garantir esta transferência - no caso brasileiro através do enforcamento de controle salarial e inflação - tem óbvias implicações políticas. Aqueles que controlam o aparato estatal devem crer que suá continuação no poder é favorecida e promovida não apenas pelo crescimento econômico (como Fishlow assume) mas também pelo padrão da distribuição desse crescimento. Se o deslocamento do produto para os grupos de renda mais alta ocorreu através de política de rendas em meados dos anos 60, como quer Wells, então a sugestão de Fishlow para se investir maciçamente nos níveis mais baixos de escolarização somente seria levada a efeito pelo aparato estatal brasileiro, se seus interesses políticos fossem favorecidos e promovidos por tal padrão de investimento. Em outras palavras, assegurar ao Estado de que o crescimento econômico não seria impedido pelo investimento nos níveis mais baixos de escolarização ao invés de nos níveis mais altos provavelmente é muito menos importante do que saber quem ficará com a nova produção.

Se Wells está correto, o argumento de Langoni faz pouco sentido. Mostramos que as alterações na remuneração daqueles com diferentes níveis de escolaridade são muito mais importantes para explicar as alterações na distribuição da renda entre 1960 e 1970 do que as alterações na força de trabalho. Como Malan e Wells indicam, a escolarização não é distribuída aleatoriamente pela população: os que conseguem obter maior escolarização provêm de famílias de maior renda do que aqueles que obtêm pouca escolarização. Assim, o aumento da renda relativa daqueles com maior escolaridade significa melhor remuneração para as famílias já com melhor posição e claramente fortalece o poder econômico dos ricos e poderosos. Já mostramos que o argumento de Langoni da natureza temporária da "quase-renda" surgindo da necessidade temporária de trabalhadores mais escolarizados é, no mínimo, fraco. Seu exemplo de que o desenvolvimento capitalista é caracterizado por um tipo de produção cuja expansão favorece os mais escolarizados em detrimento dos menos escolarizados tem muito mais suporte empírico. Não podemos, porém, concordar com Langoni quando afirma que os mais escolarizados devem ser favorecidos no processo de crescimento, especialmente da maneira extrema como pode ter ocorrido no Brasil.

Finalmente, Langoni tem de se confrontar com o argumento de que as alterações reais na distribuição da renda ocorreram através de política governamental em meados dos anos 60. Neste caso, as "quase-rendas" são remunerações políticas, que somente podem ser eliminadas se o Estado acreditar que nesta década outros devem recebê-las. Se o Governo brasileiro continuar a ver seus interesses ligados com os grupos de mais alta renda e puder continuar mantendo a ordem na classe trabalhadora, sem grandes aumentos na renda, não há razão para se acreditar que a distribuição da renda na próxima década tenderá a ficar mais equilibrada.

Há muitas indicações de que, nos países onde a distribuição da renda tem-se tornado mais equilibrada (como a Holanda ou a Noruega), a maior igualdade tem sido resultado de atividades políticas organizadas pelos grupos de menor renda, e não por forças automáticas de mercado.14 14 Malan e Wells também apontam esse fato. Ver op. cit. p. 1 119. Como já discutimos, a luta dos trabalhadores nos casos desses países mais avançados pode ter sido simplesmente para conseguir salários iguais ao seu produto marginal, equalizando dessa forma a estrutura da renda. De qualquer modo, são essas questões mais interessantes que Langoni deixa de lado ao invés de estudá-las; temos esperança de que pesquisas futuras questionarão a relação entre distribuição e desenvolvimento de uma forma mais profunda.

O autor agradece à Fundação Spencer pelos subsídios concedidos para a realização da análise empírica referida neste trabalho. Também agradece a Jacques Velloso por suas sugestões e comentários valiosos. Não obstante é do autor a inteira responsabilidade pelo trabalho.

  • 1 Fihlow, Albert. Brazilian Income size distribution - another look. Berkeley, Universidade da Califórnia, 1973. miemogr.
  • ; Wells, John. The distribution of earnings in Brazil Cambridge, 1973. mimeogr.
  • ; Malan, Pedro & Wells, John. Distribuição da renda e desenvolvimento econômico do Brasil. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 3, n. 4, dez. 1973.
  • 2 Langoni, Carlos. A study in economic growth: the Brazilian case. Dissertação de Ph. D. inédita. Universidade de Chicago, 1970.
  • 9 Thurow, Lester. Investiment in human capital. Belmont, Califórnia, Wadsworth Publishing, 1970.
  • 11 Furtado, Celso. Análise do "modelo" brasileiro. Rio de Janeiro, 1972.
  • 12 Thurow, Lester & Lucas, Robert. The American distribution of incomome: a structural problem. Washington, D. C, Joint Economic Committee, U. S. Government Printing Office, 1972.
  • 1
    Fihlow, Albert.
    Brazilian Income size distribution - another look. Berkeley, Universidade da Califórnia, 1973. miemogr. ; Wells, John.
    The distribution of earnings in Brazil. Cambridge, 1973. mimeogr. ; Malan, Pedro & Wells, John. Distribuição da renda e desenvolvimento econômico do Brasil.
    Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 3, n. 4, dez. 1973.
  • 2
    Langoni, Carlos.
    A study in economic growth: the Brazilian case. Dissertação de Ph. D. inédita. Universidade de Chicago, 1970.
  • 3
    Ver Carney, Martin.
    Schooling, income, the distribution of income, and unemployment: a critical appraisal. Stanford University, 1973. mimeogr. Quadro 10.
  • 4
    A fórmula usada para aproximar as taxas sociais médias é a seguinte:
  • 5
    Mas esta não é a história toda. Usando sua estimativa de regressão, Langoni previ um coeficiente de Gini em 1970 que é 23% mais baixo do que o observado (0,43 vs. 0,57). Perguntaríamos: qual é o coeficiente previsto versus o observado em 1960? Se o intervalo entre o previsto e o observado aumentou, não se poderia argumentar que o aumento residual inexpliçado pudesse ser um efeito "distributivo puro" adicional nas alterações da renda?
  • 6
    Admitimos, no momento, que embora a renda não necessariamente iguale o produto marginal, a relação entre renda e produto marginal para aqueles com diferentes níveis de escolaridade, nos EUA, não se alterou significativamente entre 1959 e 1969.
  • 7
    Ver Carncy, Martin, op. cit. Quadro 8.
  • 8
    Ver, por exemplo, Berg, Ivar.
    Education and jobs: the greet training robbary. New York, Praeger, 1970.
  • 9
    Thurow, Lester.
    Investiment in human capital. Belmont, Califórnia, Wadsworth Publishing, 1970.
  • 10
    Ver Gordon, David.
    Theories of poverty and unemployment. Lexington, Massachusetts, D. C. Heath, 1972.
  • 11
    Furtado, Celso.
    Análise do "modelo" brasileiro. Rio de Janeiro, 1972.
  • 12
    Thurow, Lester & Lucas, Robert.
    The American distribution of incomome: a structural problem. Washington, D. C, Joint Economic Committee, U. S. Government Printing Office, 1972.
  • 13
    Não concordo necessariamente com o modelo de Thurow-Lucas. Ele traz alguns elementos importantes para a compreensão do mercado de trabalho, mas também não trata das razoes pelas quais existem grandes diferenças de pagamentos para diferentes tipos de trabalho, nem das partes do mercado de trabalho onde não ocorre nenhum treinamento. Para análise deste último ponto, o leitor deve consultar Gordon, David. op. cit.
  • 14
    Malan e Wells também apontam esse fato. Ver op. cit. p. 1 119.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 1974
    Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: rae@fgv.br