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Formação econômica da América Latina

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Formação econômica da América Latina

Por CELSO FURTADO. Rio de Janeiro, Lia Editôra, 1969.

Formação Econômica da América Latina é dedicado por C. FURTADO aos seus alunos da Universidade de Paris, e propõe-se a ser uma fonte de informações para o estudioso de fora da região; entenda-se então nesse sentido a primeira parte da obra, formando um conjunto de dados geo-econômicos e históricos sobre a área. Porém, a espinha dorsal do texto será encontrada na sistematização, proposta como interpretação da industrialização latino-americana, que é desdobrada então em três fases:

1. Industrialização induzida pela expansão das exportações - a formação de uma economia mundial, implicando na divisão internacional do trabalho, permitiu que a economia da região desempenhasse um importante papel como fonte supridora de produtos primários, o que resultou para ela num período de desenvolvimento e transformação; a especialização da produção elevou a produtividade e a renda, conduzindo à formação de um mercado interno e conseqüentemente à instalação de uma indústria de bens de consumo - isto aconteceu de forma cabal na Argentina, também no Brasil, enquanto a industrialização mexicana aproximou-se mais do modelo clássico, apoiando-se numa experiência artesanal. Não houve, contudo, possibilidade de formação de um sistema industrial, através de uma crescente diversificação, posto que aquela indústria de bens de consumo carecia de poder germinativo: "o crescimento da produção industrial assume (então) essencialmente a forma de adição de novas unidades de produção, similares às preexistentes, mediante a importação de equipamentos". Por isto mesmo esta primeira fase já havia esgotado suas possibilidades ainda antes de 1929.

2. Substituição de importações - a crise de 1929 evidenciou tendências anteriores, conduzindo ao esvaziamento do sistema de divisão internacional do trabalho; daí por diante será constante o declínio da demanda mundial de produtos primários, o que foi acompanhado de uma queda também constante nos seus preços.

A conseqüente e drástica redução da capacidade para importar permitiu então que o potencial instalado na fase anterior fôsse usado intensamente, o que aconteceu especialmente na Argentina, Brasil e México; no Chile a industrialização terá resultado menos da substituição de importações e mais da ação estatal no plano econômico. Ao mesmo tempo, as depreciações cambiais e a inflação, resultantes da mesma crise, elevaram a rentabilidade do setor ligado ao mercado interno, enquanto o Estado atuava de maneira a permitir uma expansão da renda monetária, anulando o efeito depressivo, da contração do setor exportador, sobre o nível de emprego. A industrialização com base na substituição de importações foi fenômeno típico dos anos trinta, encerrando-se com o final da Segunda Grande Guerra, a partir de então a sua continuidade, em novos moldes, exigindo a um só tempo o seu aprofundamento ("no período de após-guerra, o processo de industrialização dependeu muito mais da ação estatal visando a concentrar investimentos em setores básicos. . .") e a eliminação das tensões estruturais (ineslaticidade da oferta de produtos agrícolas, inadequações da infra-estrutura e do elemento humano utilizável a curto prazo, insuficiências das estruturas fiscais, aumento dos encargos financeiros, etc), que tomaram a forma de surtos inflacionários, impossíveis de serem eliminados pela simples aplicação dos esquemas clássicos do F.M.I.

3 . Chega-se então a uma terceira fase: crescimento, pela continuidade do processo, ou estagnação, como dualidade que marcou os anos sessenta e que se traduz na preocupação maior nesta obra de C. FURTADO; devem ser entendidas nesse sentido três das oito partes em que ela se divide: "O Quadro das Estruturas Tradicionais", "Crescimento e Estagnação no Período Recente", e "As Relações Internacionais".

É taxativa a afirmação de C. FURTADO de que "seria incorreto afirmar que a economia regional haja reunido o conjunto das condições necessárias para que o desenvolvimento tenda a assegurar sua própria continuidade. Pelo contrário, os dados evidenciam que o ritmo de crescimento da economia regional tendeu a debilitar-se e, o que é mais significativo, que êsse debilitamento se deve principalmente ao comportamento das economias em que o processo de industrialização mais avançou. No caso argentino, "cabe admitir que uma industrialização em maior profundidade teria requerido um decidido apoio financeiro dos poderes públicos e também investimentos simultâneos no setor agrícola, visando a liberar mão-de-obra. Tais objetivos somente poderiam ser alcançados mediante elevação da taxa de investimentos, o que requeria uma política salarial conservadora em condições de forte demanda de mão-de-obra. Na prática seguiu-se a linha de menor resistência que consistia numa política de altos salários e em concentração dos investimentos industriais ali onde era maior a rotação do capital, acarretando a insuficiência tanto de serviços infra-estruturais, como de capacidade para importar". Quanto à situação brasileira, anota-se que "o crescimento industrial faz-se apoiado em dois mercados quase sem comunicação um com o outro. O primeiro, formado pela grande massa da população, cresce vegetativamente, e inclina-se a perder velocidade com a aceleração do progresso tecnológico. O outro aumenta com grande dinamismo, mas, sendo de pequenas dimensões, o seu próprio dinamismo, ao traduzir-se em diferenciação, restringe as suas dimensões reais. O salário real, mesmo no setor em que a produtividade apresentou a mais alta taxa de crescimento, aumentou menos que a renda per capita do conjunto da população, isto é, menos que a produtividade média. Cabe, portanto, deduzir que o desenvolvimento se fêz com o declínio da participação da massa assalariada na renda global, particularmente se daquela se excluem os salários dos grupos de rendas médias. Parece fora de dúvida que o processo de industrialização brasileiro enfrenta presentemente sérios obstáculos de natureza estrutural, cuja causa básica está na insuficiência da difusão dos frutos dos incrementos de produtividade".

Encarada no seu todo, a economia latino-americana sofre as conseqüências de um processo regressivo: "o ritmo de crescimento da região vem declinando persistentemente, havendo passado de uma taxa de 2,2 por cento na primeira metade do decênio dos cinqüenta, para 1,8 na segunda metade, 1,7 na primeira metade do atual decênio dos sessenta, e 1,3 nos primeiros dois anos da segunda metade. Ainda que se tenha em conta que esses dados se referem ao conjunto regional, e que o problema das tensões sociais somente tenha significado real quando considerado no quadro de cada sociedade nacional, parece fora de dúvida que as forças tendentes à estagnação econômica estão levando a região aos limites de tolerância de suas estruturas sociais". Tais forças atuam desde logo no sentido de conservação das estruturas tradicionais, mantendo-se assim uma estrutura agrária que é base de toda organização social - a propriedade da terra servindo menos como base de organização da produção agrícola, que como meio para extrair-se o excedente de uma economia de produtividade extremamente baixa; a ineficiência econômica dos latifúndios; a incapacidade de a agricultura e pecuária atenderem a uma demanda originada da rápida urbanização e da elevação do poder de compra - e consolidando-se formas extremamente desiguais de distribuição da renda; a existência de grandes excedentes de mão-de-obra (caso típico do México e do Brasil) permitiram um constante declínio dos salários médios, de tal sorte que, ainda nos anos mais recentes, como resultado disso, 40% da população de níveis de renda mais baixo continuam totalmente excluídos dos benefícios do desenvolvimento.

A análise não se esgota de qualquer forma ao nível das distorções internas, mas conduz ainda à interpretação das relações internacionais como causadoras de condições que implicam igualmente na estagnação econômica da região, sendo neste plano e em resumo dois os pontos que merecem maior atenção: primeiro, o surgimento de novas formas de dependência externa - elas são decorrência tanto dos empréstimos como dos investimentos diretos estrangeiros: "o volume dos empréstimos alcançou uma média anual de mais de um e meio bilhão de dólares, no período 1960-63. Contudo, 80% desses recursos destinaram-se, em última instância, a pagar juros e a amortizar os empréstimos anteriores, (e) os lucros remetidos para o exterior foram superiores aos investimentos diretos líquidos. Tudo leva a crer que no próximo decênio a região estará não somente enviando para o exterior muito mais lucros do que recebe em investimentos diretos, mas também contraindo empréstimos em volume crescente para servir outros empréstimos realizados no passado". O mesmo C. FURTADO reconhece que a participação internacional não pode ser julgada apenas sob seu aspecto financeiro, lembrando que os investimentos diretos representaram a possibilidade de assimilação de tecnologia moderna; porém, através deles mesmos, reconhece o Autor, a indústria latino-americana submeteu-se a formas de controle externo, na medida em que os seus ramos mais dinâmicos foram ocupados por filiais de empresas estrangeiras. Segundo, a constante marginalização na economia mundial - ela representa uma redução também constante na capacidade para importar, sendo notado por C. FURTADO que "a compressão do coeficiente de importação abaixo de 15% parece criar sérios obstáculos ao desenvolvimento, e essa situação vem sendo alcançada antes que a participação do setor manufatureiro no PIB atinja 20%". Tal situação sugere, conforme o Autor, a necessidade de busca de uma estratégia global, objetivando-se basicamente a regularização do comércio internacional de produtos primários, e o acesso dos subdesenvolvidos ao mercado internacional de manufaturas - em suma, o conjunto de medidas que vêm sendo definido pela UNCTAD.

Na medida em que se aceita como válida a análise, a conclusão impõe-se necessariamente: "parece forz de dúvida que as possibilidades de desenvolvimento apoiadas na exportação de matérias-primas e na industrialização 'substitutiva de importações' e controlada no exterior alcançam, ou já alcançaram, os limites de suas possibilidades, ao mesmo tempo que o quadro institucional herdado do período colonial ou constituído imediatamente após a separação das metrópoles parece haver esgotado as suas possibilidades de adaptação às exigências do desenvolvimento. Compreende-se portanto que os problemas ligados à reconstrução estrutural hajam passado ao primeiro plano... " Reconhecem-se as tentativas já feitas nesse sentido, bem como seus resultados; C. FURTADO analisa-as, agrupando-as em: as reformas agrárias, a mexicana e a boliviana, nos quadros de antgonismos entre a fazenda e a comunidade, e aquelas outras, nas áreas do binômio latifundio-minifundio; e as políticas corretivas da dependência externa tradicional; a política do petróleo na Venezuela e no México, a do café no Brasil, a do cobre no Chile, e do controle das exportações na Argentina. Porém, e ainda que reconhecendo a validade e êxito de tais experiências, o Autor termina por apontar para alguns pontos mais relevantes, em seu entender, para uma efetiva reformulação das estruturas econômicas da região: 1. reinserção das economias regionais nas linhas de expansão da economia internacional; 2. reformulação das relações econômicas com os Estados Unidos e com os grandes consórcios internacionais; 3. reconstrução das estruturas internas, compreendendo: assimilação de tecnologia moderna em todos os setores, absorção da mão-de-obra disponível, aparelhamento do setor público, autonomia tecnológica, cooperação regional; por último, citase a necessidade de reintegração de Cuba na economia regional.

Formação Econômica na América Latina é complementada por dois estudos relativamente autônomos: um dêles sôbre as relações intraregionais (o processo de integração na América Central e a experiência da ALALC), o outro sobre os aspectos econômicos da revolução cubana. E a sua última afirmação será dificilmente refutada: "Como a estagnação econômica não proporciona estabilidade social, muito ao contrário, a defesa do status quo também tende a ser tarefa cada vez mais difícil. Na medida em que os problemas ganham em complexidade, as opções se restringem, aumentando a probabilidade de que todo passo adiante abra processos cumulativos nas direções que indicamos, ou provoque retrocessos que venham a deteriorar ainda mais a posição inicial. Em outras palavras, o custo do imobilismo social será crescente para aqueles que dêle se beneficiam."

JOSÉ SÉRGIO ROCHA DE CASTRO GONÇALVES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Jun 1970
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