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Escola, estado e sociedade

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Denise Barbara Catani

Escola, estado e sociedade.

Por Bárbara Freitag. São Paulo, Edart, 1977. 135 p.

Sob o argumento segundo o qual há raros bons estudos sobre a situação educacional brasileira, hoje qualquer esforço inovador no sentido de analisar histórica, sociológica ou didaticamente aspectos da educação tem sido bem recebido. O volume de publicações sobre o tema tem aumentado significativamente ainda que o mesmo não possa ser dito sobre a relevância dos esclarecimentos que esses estudos trazem.

Nessa paisagem não muito promissora surge o livro de Bárbara Freitag, com a pretensão de analisar a realidade educacional brasileira, esclarecendo questões do tipo: "por que na última década passa-se a valorizar a educação, desenvolvendo-se uma política em que ela é vista como um dos agentes de institucionalização e fortalecimento do modelo brasileiro? "; "Quais as causas mais profundas dessa valorização'? " e "Quais as intenções (explícitas e implícitas) que tal política persegue? " (p. 7) Contando a seu favor com uma bibliografia atualizada e simpática aos estudiosos da educação que são mais progressistas, pois inclui Gramsci, Bourdieu, Althusser, Establet, Poulantzas e outros, e tendo examinado uma documentação oficial rica relativa à situação educacional brasileira, a autora reuniu elementos para, no mínimo, produzir um trabalho que despertasse atenções. O interesse que o leitor investe na leitura do livro, contudo, não é totalmente bem recompensado e a obra promete muito mais do que em verdade realiza.

Logo no primeiro capítulo, tem-se a proposta de construção de um quadro teórico de referência para a análise da problemática educacional brasileira. Para isso e para justificar a posição por ela adotada, Bárbara propõe-se a "recapitular os limites e as vantagens das teorias mais conhecidas". Segue-se um resumo que prima pela simplificação exagerada das idéias de Durkheim, Parsons, Dewey e Mannheim que serão depois criticadas à base de objeções do tipo: "As teorias educacionais até agora revistas pecam por seu alto grau de generalidade e seu extremo formalismo.

Assim referem-se a indivíduos e sociedades históricas de características universais. Todos os indivíduos são sujeitos ao mesmo processo de socialização em uma sociedade dada, caracterizando-se esta por seu funcionamento global, sua harmonia e sua ordem interna" (p. 16). Como se vê, um dos defeitos desses teóricos é não levar em conta o modo pelo qual cada sociedade funciona e se mantém, e uma das insuficiências centrais dessas teorias, é, segundo a autora, encarar a instituição escolar apenas enquanto mecanismo de perpetuação da ordem social.

Ainda no mesmo capítulo, segue-se uma análise das proposições de teóricos mais recentes como Bourdieu e Parsons, e no trabalho desses teóricos, a autora parece ver um alcance maior do que no dos anteriores, mas ainda assim levantará questões em torno do modelo de análise de Bourdieu. Para ela, Bourdieu mostra que "a própria escola canaliza e aloca os indivíduos que a percorrem ou deixam de percorrer em suas respectivas classes, facilitando-lhe a justificação desse fato, através de sistemas de pensamento que ela mesma transmite. Assim a escola cumpre, simultaneamente, sua função de reprodução cultural e social, ou seja, reproduz as relações sociais de produção da sociedade capitalista" (p. 20). As questões que Bárbara levanta diante disso são: "Mas, seria ela (a escola) somente isto? Suas funções realmente se limitam à reprodução cultural e social das relações sociais? Se assim fosse, como se justificariam as investidas e interferências das empresas e do Estado na esfera educacional com a intenção de aprimorar recursos humanos e refuncionalizar o sistema educacional? " (p. 20).

A partir daí vai ser mostrado um outro tipo de análise da problemática educacional. É a que se vincula à economia e ao planejamento da educação, "novas disciplinas que hoje orientam as decisões de muitos governos na área educacional". Aproximando os estudos de Parsons das propostas de economistas como Becker e Schultz, a autora afirma que os "modelos teóricos sistêmicos" por eles elaborados ... descrevem, portanto, o aspecto exterior do funcionamento dos sistemas sociais. Não revelam os verdadeiros mecanismos que produzem e mantêm as estruturas de desigualdade, mas escondem-nas atrás de aparentes igualdades e equivalências. Somente uma análise radicalmente crítica pode desmascarar o caráter ideológico dessas teorias e da realidade que elas alegam descrever" (p. 26).

Esse tipo de análise eficiente Bárbara pretende encontrar nos estudos de Althusser, Poulantzas e Establet que, segundo ela: "...não analisa somente funções isoladas preenchidas pela educação, escola ou sistema escolar (como foi o caso dos teóricos até agora examinados), permanecendo em um nível meramente descritivo, mas tentam chegar à essência do fenômeno através de uma análise crítica da sociedade capitalista como um todo, nas instâncias econômica, política e social" (p. 26).

Afirmando a amplitude das posturas desses estudiosos, ela aponta, ainda, falhas nas proposições dos mesmos e é nas críticas que lhes tece que cria uma de suas afirmações ambíguas (não a única). Ao referir-se a Althusser lamenta a falta de visão histórica e dialética deste para a análise da questão dos aparelhos ideológicos de Estado e da escola, refere-se ao fato de que "uma teoria da educação realmente dialética teria que incluir em seu quadro teórico os elementos da prática que possibilitassem a superação de um determinado status quo. Essa teoria deveria mostrar o caminho para uma ação emancipatória da educação no contexto estrutural analisado", (p. 30). O que a autora entende por uma "teoria da educação realmente dialética", não se chega a saber, a expressão é vaga e não há maiores explicações.

A verdadeira e irrestrita referência para suas análises, ela encontrará nas proposições de Gramsci, a partir das quais acredita ser possível "pensar uma teoria dialética da educação". Efetua uma descrição razoável das idéias de Gramsci e expõe a conceituação de Estado, sociedade política e sociedade civil para esse teórico, reunindo os elementos que julga essenciais para examinar a política educacional estatal enquanto "meio de reprodução ampliada do capital e das relações de trabalho e de produção".

Os capítulos seguintes são dedicados ao exame da política educacional brasileira de 1965 a 1975. Para conduzir a análise desse período, Bárbara faz uma restrospectiva histórica da situação desde as origens de nosso sistema educacional, afirmando que num primeiro período, da colônia até 1930, a Igreja era quem desempenhava o papel hoje pertencente ao Estado, responsabilizava-se pela escola, e assim: "... auxiliou a classe dominante (latifundiários e representantes da Coroa portuguesa) da qual participava, a subjugar de forma pacífica as classes subalternas às relações de produção implantadas" (p- 41).

O que a autora considera um segundo período - os anos que vão de 1930 a 1945 - marca-se, a seu ver, pelo fortalecimento do Estado e por "uma tomada de consciência por parte da sociedade política, da importância estratégica do sistema educacional para assegurar e consolidar as mudanças estruturais ocorridas tanto na infra quanto na superestrutura", (p. 44-5). O período seguinte (1945-64) conhece o debate em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a Campanha da Escola Pública; o período constitui tempo suficiente para que a referida lei (LDB) torne-se obsoleta, já que só entrou em vigor em 1961. Para a autora, "a LDB não procura ser um corretivo de diferenças sociais, porque acha que não precisa sê-lo. Assim ela traduz no seu texto a estratégia típica da classe dominante que ao mesmo tempo que institucionaliza a desigualdade social, ao nível da ideologia, postula a sua inexistência" (p. 59). A isso seguem-se outras considerações semelhantes em que se constata inúmeras vezes (excessivas, aliás) que o sistema educacional esteve manipulado em função dos interesses da classe dominante, e que a classe subalterna esteve sendo constantemente alijada do terreno dos benefícios educacionais.

O terceiro capítulo é dedicado à análise da política educacional de 1964 a 1975, ao nível da legislação do planejamento e da realidade educacional. No que diz respeito à legislação, o exame é breve, mas pretende abranger todos os níveis do ensino e assim, a lei da reforma do ensino superior, a Lei n.º 5692/71 e os dispositivos relativos ao ensino supletivo são vistos como regulamentações destinadas a melhorar a eficácia da escola como "reprodutora das relações de classe, como agente a serviço da nova estrutura de dominação e como instrumento de reforço da própria base material, possibilitando a reprodução da força de trabalho" (p. 120).

Uma análise dos planos da política educacional tentará mostrar, a seguir, como a educação passa a ser considerada investimento e isso é explicado por Bárbara no seu liguajar rico em classes dominantes e dominadas, relações de produção e reprodução das relações de classe.

O exame da "política educacional em face da realidade" e as conclusões apresentadas pela autora não vão muito além, mas enfatizam que a educação ganha, ao período examinado, ênfase como human capital que promove o desenvolvimento e é meio de obter crescimento econômico. E "as intenções da política educacional brasileira ... consistem em assegurar, mediante maiores investimentos estatais em educação, taxas de lucro cada vez maiores para esta minoria, constituída das classes dominante e média alta" (p. 120). E finalmente, ao analisar a questão do ensino particular, ela chama a atenção para a forma pela qual esta atende e "assegura a função de reprodução das classes" formando profissionais mal qualificados que podem por isso ser mal remunerados. Também acentua nesse sentido o modo pelo qual a rede particular de ensino auxilia a política educacional, aliviando a procura na rede oficial.

O que se pode ainda afirmar com relação a Escola, estado e sociedade é que se trata de um livro sugestivo; aos interessados na utilização de autores como Gramsci e Bourdieu na análise da questão educacional o estudo de Bárbara Freitag pode chegar a ser estimulante. Aos que buscarem no livro o esclarecimento de questões vitais sobre a política educacional brasileira recente, o estudo provavelmente decepcionará. Em todo caso, vale dizer que ambos os leitores correrão o risco de se acharem engasgados na profusão de uma terminologia comprometida por jargões (relações de produção, classes dominantes e subalternas, reprodução das relações de classes, etc.) desnecessários ao texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1978
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