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Mortalidade infantil e salário mínimo uma análise de intervenção para o município de São Paulo

COMENTÁRIOS

Mortalidade infantil e salário mínimo uma análise de intervenção para o município de São Paulo* * Este artigo está baseado em um trabalho apresentado pelo autor à III Conferência de Engenharia Biomédica, realizada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em dezembro de 1975. O autor gostaria de expressar seu agradecimento a Eduardo Matarazzo Suplicy, pelo estímulo, críticas e sugestões durante a elaboração deste trabalho.

João Luiz Maurity Sabóia

Professor de engenharia de produção da COPPE - Universidade Federal do Rio de Janeiro

1. INTRODUÇÃO

O índice de mortalidade infantil (IMI) é um dos principais indicadores do nível de vida de uma população. Segundo Paul Singer (4) "a mortalidade infantil é antes um indicador de padrão de vida do que de saúde, pois a sobrevivência de crianças menores de um ano depende mais de condições gerais de higiene e nutrição do que de cuidados médicos".

Um estudo da evolução do IMI para o Brasil fica bastante dificultado não apenas devido à escassez de dados disponíveis, como também devido à pouca confiabilidade dos mesmos. João Yunes e Vera Ronchezel, em artigo recente (8), levantaram dados anuais do IMI para as diversas capitais brasileiras nos últimos 30 anos. Estes dados mostram que, em geral, houve uma queda acentuada do IMI no período 1940-1960. A partir de então, o IMI apresentou diminuições percentuais bastante reduzidas, sendo que em outras regiões passou a aumentar.

Entre 1962 e 1970 o IMI para o Brasil como um todo apresentou um aumento de 15% (94,6 para 108,7 óbitos de menores de um ano em cada 1.000 nascidos vivos). O caso mais alarmante verificou-se na cidade de Recife cujo IMI foi 125,6 em 1964 e 205,7 em 1970 (um aumento percentual de 64%). Convém notar que alguns países subdesenvolvidos possuem IMI entre 20 e 30 (por exemplo: Jamaica, Porto Rico, Cingapura, Hong Kong), e que diversos países desenvolvidos apresentam índices entre 11 e 13 (por exemplo: Finlândia, Japão, Holanda, Noruega, Suécia, Suíça) (7).

O Município de São Paulo constitui uma exceção quanto à disponibilidade de dados do IMI, pois eles existem a partir do início do século e são relativamente confiáveis (8). Um exame destes dados nos mostra duas fases bem distintas da evolução do IMI no município de São Paulo. Entre 1920 e 1961 há um decréscimo acentuado do índice, atingindo, no final do período, valores aproximadamente iguais a 1/3 do índice no início do período. A partir de 1962 esta tendência se inverte, e o IMI passa a crescer, atingindo em 1973 um valor 55% superior ao índice em 1961 (ver figura 1). É interessante notar que 1962 é exatamente o ano em que começa o processo de deterioração do salário mínimo real (SMR) (ver figura 2). O gráfico do SMR nos mostra quatro fases bem distintas. Entre 1952 e 1967 o SMR apresentou um aumento considerável. Entre 1957 e 1961 ele se manteve relativamente estável. A partir de 1962 o SMR sofreu uma queda, inicialmente devido à forte aceleração inflacionária, e, a partir de 1964, em virtude da política oficial de controle da inflação e dos salários implantada pelo novo governo. Somente a partir de 1971 é que se inicia um lento processo de recuperação do SMR, o qual ainda se encontra em níveis bem inferiores aos do início da década passada (o SMR diminuiu 33% entre 1961 e 1974).



Apesar de o IMI não estar separado por classe social é de se esperar que grande parte dos óbitos de crianças menores de um ano se verifique em famílias de baixo poder aquisitivo, ou seja, aquelas dependentes do salário mínimo. Segundo pesquisa recente (10), realizada na cidade de São Paulo, a diarréia e a desnutrição são responsáveis, direta ou indiretamente, por 42,9% e 28,0% respectivamente da mortalidade infantil. Estas são causas típicas de mortes de crianças com alimentação deficiente, ou seja, provenientes de famílias de baixo poder aquisitivo. "Como os acordos coletivos na Justiça do Trabalho têm seguido taxas de reajuste semelhantes, ou moderadamente acima das que são usadas para reajustar o salário mínimo, segue-se que os salários regulados por esses dissídios, mesmo dos trabalhadores que ganham acima do mínimo, tiveram uma evolução semelhante: em geral, no período 1962 e 1970 mal acompanharam os aumentos no custo de vida; de 1971 a 1974 aumentaram em termos reais, mas aquém dos incrementos de produtividade; em 1975 os aumentos salariais levaram em conta a inflação mais os aumentos em produtividade (6)."O DIEESE, estudando (11) a evolução dos salários de 60 categorias de trabalhadores, em São Paulo, no período de 1964 a 1974, observou um comportamento semelhante ao do SMR. Portanto, uma hipótese razoável seria supor que a diminuição do SMR, indicador da deterioração do padrão de vida dos trabalhadores brasileiros, é um dos fatores responsáveis pelo aumento do IMI no Município de São Paulo. (Está hipótese não é nova e já foi levantada por outros autores (12).)

É claro que o decréscimo dos salários reais seria apenas uma das causas do aumento do IMI. Existem outros fatores que também influem no aumento da mortalidade infantil tais como, falta de saneamento básico, de água potável, de rede de esgotos, e aumento dos índices de poluição. É sabido que estes fatores não têm apresentado melhores padrões nos últimos anos na Cidade de São Paulo. Segundo O Estado de São Paulo (8) - "A falta de saneamento básico - mais de 30% da população de São Paulo retiram água do poço e outros 61% utilizam fossas - é uma das causas associadas da elevada taxa de mortalidade infantil. (...). O crescimento vegetativo da população da capital exige a construção anual de 400 quilômetros de rede de água e uma extensão igual de rede de esgoto. Mas, nos últimos anos, este índice mínimo não tem sido cumprido: em 1971 foram implantados em São Paulo apenas 46 quilômetros de rede de esgoto; em 1972, 310 quilômetros; e em 1973, 162 quilômetros." A situação do abastecimento de água é um pouco melhor, porém ainda muito longe do ideal. Quanto aos índices de poluição, a situação é bastante crítica, sendo que no ano de 1975 o índice máximo de poluição atmosférica, segundo os padrões internacionais, foi atingido e superado durante vários dias.

Os dados apresentados não devem constituir uma surpresa, pois são o reflexo natural da política de "crescimento econômico" implantada pelo Governo a partir de 1964. Estes dados refletem a piora do nível de vida de boa parte da população brasileira, nível de vida este que em nosso estudo é simbolizado pelo salário mínimo real. A proporção dos trabalhadores que ganham salário mínimo, ou pouco mais, vem diminuindo, o que é de se esperar, como conseqüência de, simultaneamente, ter havido aumento de produtividade e queda do SMR; em 1973, segundo o levantamento da lei dos 2/3, aproximadamente 30% da força de trabalho recebiam até 1,5 salários mínimos, e pouco mais de 50% recebiam até dois salários mínimos.

Com a finalidade de se testar o efeito da queda do nível de vida (decréscimo do SMR) no índice de mortalidade infantil no Município de São Paulo, será identificado e estimado, a seguir um modelo Arima (autegressive integrated moving average) de Box e Jenkins (1) para o IMI no período 1920-1961, o qual será utilizado em seguida para se fazer previsões para o período 1962-1975. Uma comparação entre os valores do IMI no período 1962-1975 e as previsões encontradas para este período, utilizando-se o modelo Arima, mostra que dificilmente poderíamos aceitar os dados do IMI para este período (1962-1975) como provenientes do modelo Arima estimado para o período 1920-1961. Isto significa que, provavelmente, houve uma mudança no processo que descreve a evolução do IMI no Município de São Paulo a partir de 1962. Para se verificar tal mudança utilizamos a técnica de análise de intervenção (intervention analysis) de Box e Tiao (2). Este estudo nos indica que a partir de 1962 há um aumento anual de aproximadamente 5% no IMI do Município de São Paulo, que provavelmente está relacionado com a piora do nível de vida da população ocorrida durante o mesmo período.

2. O MODELO ARIMA

Utilizando-se as técnicas sugeridas por Box e Jenkins (1) foi identificado e estimado para o IMI do Município de São Paulo durante o período 1920-1961 o modelo a seguir:

onde zt, t = 0,1, ..., representa o IMI no tempo t; wt = log zt - log zt-1, t = 1,2 ...; at é uma seqüência de variáveis aleatórias independentes com distribuição normal, de média zero e variância σ; e os números entre parênteses são os correspondentes desvios-padrão dos coeficientes estimados do modelo Arima. Um teste qu-quadrado foi utilizado e verificou-se que o modelo é adequado. Foi utilizada a transformação logarítmica, pois neste caso a série wt, t = 1,2, ..., é interpretada como taxa de variação percentual do IMI, a qual é estacionária no período 1920-1961 (3).

O modelo (1) foi utilizado para se fazer previsões com respectivos intervalos de confiança para o IMI durante o período 1962-1975. Uma comparação de tais previsões com os valores do IMI observados durante o mesmo período nos indica que dificilmente poderíamos aceitar que estas observações fossem provenientes do modelo (1) (ver figura 1). Como o teste qu-quadrado indicou que o modelo é adequado para o período 1920-1961, a alternativa que nos resta é testar a hipótese de que o processo que descreve a evolução do IMI sofreu alguma modificação após 1961. Com esta finalidade faremos uma análise de intervenção (2).

3. ANÁLISE DE INTERVENÇÃO

A equação (1) pode ser representada por:

onde B é o operador diferença, tal que, aplicado à série no tempo t fornece o valor da série no tempo t-1, isto é, Bwt = wt-1, Bat = at-1.

A equação (2) pode ser invertida de forma a obter-se:

Para se testar se houve mudança no processo após 1961 utilizamos uma variável auxiliar ut que é considerada nula até 1961 e unitária a partir de 1962, isto é.

Um estudo cuidadoso do gráfico do IMI (ver figura 1) nos sugere que a partir de 1962 há um aumento percentual anual aproximadamente constante, em relação ao IMI no período 1920-1961. Isto pode ser testado através do mo delo que segue:

onde β mede a variação anual percentual do IMI a partir de 1962, devido à "intervenção" ocorrida a partir do mesmo ano (piora do nível de vida da população simbolizada pela redução do SMR)(2).

Manipulando-se a equação (4) obtemos:

onde w e u podem ser calculadas utilizando-se:

A equação (5) é uma regressão linear simples cujos parâmetros podem ser estimados obtendo-se:

O valor estimado β = .050 é significativamente diferente de zero, indicando que o efeito da "intervenção" foi um aumento anual de 5% no IMI a partir de 1962.

4. CONCLUSÃO

O estudo apresentado nos sugere que uma parcela considerável do aumento do IMI verificado no Brasil, especialmente no Município de São Paulo, pode ser explicada pela piora do nível e vida de grande parte da população verificada nos últimos anos (em nossa análise, representada pelo decréscimo do SMR). Este declínio do nível de vida é uma conseqüência natural da política salarial implantada pelo Governo a partir de 1964, responsável pela concentração de renda verificada no País. O IMI, que já era alto mesmo em comparação com outros países subdesenvolvidos, apresentou um aumento sensível nos últimos anos. A única forma de se baixar o IMI será através de uma política de melhoria do padrão de vida da população, que só poderá ser obtida invertendo-se o processo de concentração de renda que vem ocorrendo no Brasil e melhorando-se substancialmente as condições de saneamento básico das cidades brasileiras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Box, G.E.P. & Jenkins, G.M. Times series analysis - forecasting and control. San Francisco, Holden-Day, 1970.

2. ______ & Tiao, G.C. Intervention analysis with applications to economic and environmental problems. Journal of the American Statistical Association, v. 70, n. 349, p. 70-9, Mar. 1975.

3. Nelson, C.R. Applied time series analysis to managerial forecasting. San Francisco, Holden-Day, 1973.

4. Singer, P. A economia brasileira depois de 1964. Debate e Crítica, p. 1-21 nov. 1974.

5. Suplicy, E. M. Alguns aspectos da política salarial. Revista de Administração de Empresas, v. 14, n. 5, p. 32-45; set./out. 1974; e Análise da política salarial brasileira. Trabalho apresentado à Conferência sobre Planejamento e Política Macroeconômica na América Latina, organizada pelo Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social, Panamá, outubro de 1975.

6. ______. Correspondência com o autor, jan. 1976.

7. United Nations. The world population situation in 1970/1975. Population Studies, New York, 1974, n. 56.

8. Yunes, J. & Ronchezel, V.S.C. Evolução da mortalidade infantil e proporcional no Brasil. Revista de Saúde Pública, p. 3-48, jun. 1974.

9. Dias, L.R. Falta esgoto, cresce a mortalidade infantil. O Estado de São Paulo, 23 abr. 1974, p. 23.

10. Puffer, R. R. & Serrano, C. V. Patterns of mortality in childhood. Washington, D.C., Pan American Health Organization, 1973. (Scientific Publication, n. 262. )

11. DIEESE. Dez anos de política salarial. Estudos Socioeconômicos, n. 3, ago. 1975.

12. Leser, W. Crescimento da população da cidade de São Paulo, entre 1950 e 1970, e seu reflexo nas condições de saúde pública. Ciência e Cultura, v. 27, n. 3, p. 244-56, mar. 1975.

  • 1. Box, G.E.P. & Jenkins, G.M. Times series analysis - forecasting and control. San Francisco, Holden-Day, 1970.
  • 2. ______ & Tiao, G.C. Intervention analysis with applications to economic and environmental problems. Journal of the American Statistical Association, v. 70, n. 349, p. 70-9, Mar. 1975.
  • 3. Nelson, C.R. Applied time series analysis to managerial forecasting. San Francisco, Holden-Day, 1973.
  • 4. Singer, P. A economia brasileira depois de 1964. Debate e Crítica, p. 1-21 nov. 1974.
  • 5. Suplicy, E. M. Alguns aspectos da política salarial. Revista de Administração de Empresas, v. 14, n. 5, p. 32-45; set./out. 1974;
  • e Análise da política salarial brasileira Trabalho apresentado à Conferência sobre Planejamento e Política Macroeconômica na América Latina, organizada pelo Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social, Panamá, outubro de 1975.
  • 6. ______. Correspondência com o autor, jan. 1976.
  • 7. United Nations. The world population situation in 1970/1975. Population Studies, New York, 1974, n. 56.
  • 8. Yunes, J. & Ronchezel, V.S.C. Evolução da mortalidade infantil e proporcional no Brasil. Revista de Saúde Pública, p. 3-48, jun. 1974.
  • 9. Dias, L.R. Falta esgoto, cresce a mortalidade infantil. O Estado de São Paulo, 23 abr. 1974, p. 23.
  • 10. Puffer, R. R. & Serrano, C. V. Patterns of mortality in childhood Washington, D.C., Pan American Health Organization, 1973. (Scientific Publication, n. 262.
  • 11. DIEESE. Dez anos de política salarial. Estudos Socioeconômicos, n. 3, ago. 1975.
  • 12. Leser, W. Crescimento da população da cidade de São Paulo, entre 1950 e 1970, e seu reflexo nas condições de saúde pública. Ciência e Cultura, v. 27, n. 3, p. 244-56, mar. 1975.
  • *
    Este artigo está baseado em um trabalho apresentado pelo autor à III Conferência de Engenharia Biomédica, realizada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em dezembro de 1975. O autor gostaria de expressar seu agradecimento a Eduardo Matarazzo Suplicy, pelo estímulo, críticas e sugestões durante a elaboração deste trabalho.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 1976
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