Acessibilidade / Reportar erro

O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819

Por T. von Leithold e L. von Rango. Trad. e anotação de Joaquim de Sousa Leão Filho. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1966. 166 p. il.

Leithold e Rango, que eram parentes, vieram ao Brasil para tentar ganhar a vida. Depois de uma série de peripécias e desilusões, os dois voltam para a Alemanha, onde cada um deles escreve suas recordações sobre a vivência no Rio de Janeiro. A feliz idéia de publicar os relatos permitenos acentuar o conhecimento da capital do país e dos seus problemas sob D. João VI, além de revelar fatos não assinalados por outros autores. Apesar de rica em depoimentos - Watz, Chamberlin, Padre Perereca, Santos Marrocos, Maria Grahan - esta época ainda é mal estudada sob os aspectos sociais e econômicos em geral. E, obras da valia de Leithold revelam ao público uma série de facetas fundamentais: daí a sua utilização por Oliveira Lima, em seu D. João VI no Brasil. Porém, como diz o tradutor, a obra de Rango não era conhecida do nosso historiador, o que mostra que muita coisa está para ser aproveitada ainda.

De valor desigual, as memórias de Leithold são mais extensas e ricas em observações, apesar de notas duvidosas ou parciais. A sua estada breve leva muitas vezes o autor a certos exageros positivos ou negativos, mas os senões não desmerecem a obra. Assim, sua permanência de meses permitiu-lhe analisar, de maneira breve, não só a cidade do Rio de Janeiro, mas o seu comércio, suas classes sociais, o funcionamento da corte, as atividades dos estrangeiros, etc.

É verdade que outras obras de contemporâneos estrangeiros já nos revelaram certos traços fundamentais do problema de classe na época: Succok mostrara com mais minúcias e penetração estas questões, mas os dados fornecidos por Leithold ajudam a completar essa visão. O autor tem consciência do problema de classe e hierarquia, assinalando continuadamente os padrões diferenciais: "além dos escravos, poucos são os que andam a pé. Quem se respeita, mesmo de posses modestas, só sai a cavalo ou de carro" (p. 27). Outro traço, observado às vezes com exagero, é o do luxo: "há relativamente muito mais luxo aqui do que nas mais importantes cidades da Europa. Com dinheiro compram-se artigos da moda", franceses e ingleses; em suma, tudo. O mundo elegante veste-se, como entre nós, segundo os últimos modelos de Paris. Os homens, apesar do grande calor, usam casacas e capas das mais finas telas e meias brancas dé seda. Poucos comerciantes de recursos conheci que não fizessem suas casacas com panos pretos de uma qualidade por mim nunca vista, igual à seda. Também trazem as chamadas capas escocesas importadas da Inglaterra".

A descrição das roupagens faz parte do contexto maior sobre a vida da mulher, da corte e seu fausto, etc. O autor é rico em detalhes, que vão, do beija-mão até o comportamento dos indivíduos das classes dirigentes. A respeito do costume de reverenciar o Rei, Leithold faz uma descrição completa sobre o seu significado social na época: "para o beija-mão, enfileiraram-se do lado esquerdo da entrada: generais, ministros, conselheiros, sacerdotes, em suma, gente de todas as classes, pois todos têm o direito a participar, sem distinção, da cerimônia desde que apropriadamente vestidos. Quem não tem direito a uniforme, enverga casaca preta, colete branco, calções e sapatos pretos; traz um sabre recurvo e dourado, do comprimento de um pé, e chapeau à claque, sob o braço. Assim, sem diferença, apresentam-se todos, menos os que não são fidalgos, isto é, professores, artistas, negociantes e artesãos, etc, que não têm direito a espadim".

Outro complemento importante é o que dá sobre atividades produtivas, feitas por estrangeiros e nacionais: os primeiros exemplificam com nomes e profissões dos que exercem suas atividades na agricultura, no comércio e profissões liberais. É verdade que depois da publicação do Registro de estrangeiros, pelo Arquivo Nacional, muitas dúvidas deixam de subsistir; o que importa, porém é a sua sinalização ao vivo. Assim, vemos surgir pessoas conhecidas e ligadas às nossas atividades, como Louis Dominique Pharoux, dono de hotel e construtor do famoso cais, que tem o seu nome; ou o General Hogendorf, plantador de café nas redondezas do Rio de Janeiro, etc. Mais rica é a informação que dá sobre um grande negociante nacional, o que mostra a existência de forte segmento de uma burguesia comercial brasileira: "entre as personalidades dignas de nota do Rio de Janeiro, foi-me apresentado certo banqueiro de nome Roche, dos mais ricos negociantes da capital, que possui várias casas importantes na cidade e arrabaldes. É comendador da Ordem de Cristo e ainda tem outras condecorações. Vi-o trabalhando no escritório da cidade sempre a ostentálas todas. Tem mais ou menos cinqüenta anos... Sua grande fortuna proporciona-lhe uma vida confortável e agradável. As salas de sua casa são bem mobiliadas e decoradas e êle dá-se ao luxo de sustentar quatro a'mantes para seu prazer. Deve estar em estreitas relações de negócios com a corte, à vista dessas condecorações. O navio em que viajei de volta à Europa fora por êle fretado para levar 30.000 arrobas (dez mil quintais das nossas medidas) de mercadorias suas..." (o tradutor identifica esse personagem com Francisco da Rocha, 1. Barão de Itamarati e decano do Corpo do Comércio do seu tempo).

O problema dos escravos, do tráfico, do exército, dos capitães-do-mato, da alimentação e da descrição das casas, etc. são questões abordadas constantemente no livro. A obra de Rango, também desenvolve, de maneira mais imprecisa e breve, quase todas as questões assinaladas, o que torna as duas obras citadas, documentários importantes e imprescindíveis para o estudo político, econômico e social do Brasil no início do século XIX.

EDGARD CARONE

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1971
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rae@fgv.br