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TRABALHANDO SEM A FORD1 1 O título é uma alusão ao livro “Trabalhando para a Ford – trabalhadores e sindicalistas na indústria automobilística” (Beynon, 1995). : política industrial e ação corporativa em São Bernardo do Campo

WORKING WITHOUT FORD: INDUSTRIAL POLICY AND CORPORATE ACTION IN SÃO BERNARDO DO CAMPO

TRAVAILLER SANS FORD: POLITIQUE INDUSTRIELLE ET ACTION D'ENTREPRISE À SÃO BERNARDO DO CAMPO

Resumo

Nosso objetivo foi compreender o fechamento da planta Ford de São Bernardo do Campo (SP) à luz das políticas industriais federais para o setor automobilístico. Analisamos os efeitos do Programa Inovar-Auto em termos de preservação do emprego na cadeia automotiva, relacionando-os às mudanças no mercado de trabalho industrial do município e ao fechamento da fábrica da Ford, em 2019. Operamos a partir de estatísticas do setor, dados de emprego (RAIS e CAGED), além de entrevistas, a fim de demonstrar que o Inovar-Auto, programa que objetivou premiar com incentivos fiscais as fabricantes que fizessem investimentos no Brasil, revelou-se incapaz de preservar ou expandir os empregos no setor, o que guarda alguma relação com a decisão da Ford. Assim, pretendemos também contribuir com as pesquisas sobre estratégias de lucro das corporações automotivas em cenários institucionais diversos, relacionadas à pesquisa sociológica sobre capitalismo comparado.

Palavras-chave:
Capitalismo Comparado; Empregos; Estratégias Corporativas; Ford; Inovar-Auto

Abstract

Our aim is to understand the closure of the Ford plant in São Bernardo do Campo (SP), in light of the federal industrial policies for the automotive sector. We have analysed the effects of the Inovar-Auto program in terms of labour preservation in the automotive chain. They were related them to the changes in the industrial labour market in the city, and to the closure of the Ford factory, in 2019. We have operated from the sector statistics, labour data (RAIS and CAGED), in addition to interviews, in order to demonstrate that the Inovar-Auto program, which aimed to award the manufactures with fiscal incentives if they would invest in Brazil, has revealed itself to be incapable of preserving or expanding the jobs in the sector. This has some relation to Ford’s decision. Therefore, we intend on also contribute to the research about profit strategies of the automotive corporations in various institutional scenarios, in relation to the sociological research about comparing capitalism.

Keywords:
Comparative Capitalism; Employment; Corporate Strategies; Ford; Inovar-Auto

Resume

Notre objectif était de comprendre la fermeture de la marque automobile Ford à São Bernardo do Campo (Brésil) dans le cadre des politiques industrielles fédérales pour le secteur automobile. On a analysé les effets du Programme “Inovar-Auto” en termes de préservation de l’emploi dans la chaîne automobile, en rapportant ces effets aux changements sur le marché du travail industriel et à la fermeture de l’usine Ford en 2019 dans la ville brésilienne précitée. On a donc travaillé à partir des statistiques du secteur, des données sur l’emploi (RAIS e CAGED) et aussi des interviews, afin de démontrer que “Inovar-Auto” - un programme qui récompensait par des incitations fiscales les constructeurs automobiles qu’investissent au Brésil - s’est avéré incapable de préserver ou même d’élargir les emplois dans le secteur, ce qui explique la décision de Ford de quitter le pays. De cette façon, on vise à contribuer aux recherches sur des stratégies de rentabilité des corporations automobiles dans divers scénarios institutionnels liées à la recherche sociologique sur le capitalisme comparé.

Mots clés:
Capitalisme Comparé; Emploi; Stratégies d'entreprise; Ford; Inovar-Auto

Introdução

Com marcante presença no país desde a década de 1950, a indústria automotiva espelha perfeitamente bem as mudanças vividas pelo Estado brasileiro nos últimos setenta anos. Tais modificações indicam também a forma segundo a qual as políticas industriais para o setor foram construídas, negociadas e recepcionadas, além do alcance que tiveram em termos de potencialização do desenvolvimento econômico e da criação de empregos diretos e indiretos. Historicamente, o volume de empregos nessa indústria sempre foi razão de favorecimento às multinacionais em seu esforço de convencimento do Estado e da opinião pública acerca da necessidade de apoio às demandas do setor. A despeito disso, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio indicam ter havido um decréscimo proporcional nos empregos gerados desde a década de 1960, quando foram percebidos os primeiros efeitos das ações empreendidas pelo Grupo de Estudo da Indústria Automobilística (Geia) (Shapiro, 1997SHAPIRO, Helen. (1997), “A Primeira Migração das Montadoras: 1956-1968”. In G. ARBIX e M. ZILBOVICIUS (org.), De JK a FHC – A Reinvenção dos Carros, São Paulo, Scritta.).

Contando apenas o período da Nova República, quatro iniciativas pontuais de incentivos ao setor automotivo foram elaboradas: a Câmara do Setor Automotivo, o Novo Regime Automotivo, o Inovar-Auto e, mais recentemente, o Rota 2030. Tais programas e pacotes de incentivos possuem como unidade certo grau de protecionismo à indústria instalada em solo nacional, visando principalmente as indústrias core, isto é, aquelas que finalizam a produção do veículo, em geral assumindo como marginal a situação e os efeitos dessas medidas sobre o universo imenso de empresas fornecedoras.

Diante do exposto, nosso objetivo é analisar os efeitos práticos do Programa Inovar-Auto em termos de preservação do emprego na cadeia automotiva, relacionando-os às mudanças no mercado de trabalho industrial de São Bernardo do Campo (SP), e, assim, interpretar a decisão da Ford Motor Company Brazil Ltda. (“Ford Brazil”) de fechar sua planta no município, o que acabou se concretizando em outubro de 2019. O Inovar-Auto foi lançado em abril de 2012, durante o governo de Dilma Rousseff (PT) e, após críticas por seu fraco resultado em termos de upgrading da parte da cadeia produtiva instalada no Brasil e uma condenação pela Organização Mundial do Comércio (OMC) por protecionismo, foi encerrado no final de 2017, já durante o governo de Michel Temer (MDB). Mais especificamente, o propósito é compreender a incapacidade desse programa de impedir as reestruturações de cunho defensivo em curso na indústria automotiva nacional, que vêm reduzindo seu quadro de trabalhadores. Para isso, será usada como unidade de análise a planta da Ford de São Bernardo do Campo que, até ser fechada, integrava, junto com a fábrica de motores em Taubaté (SP), a planta de Camaçari (BA) e a da Troller em Horizonte (CE), o conjunto de unidades produtivas da montadora no país.

Nossa hipótese principal é que o Inovar-Auto não representou avanços significativos na geração, ou mesmo na manutenção, de empregos no setor, em especial nas fábricas mais tradicionais. O programa tampouco trouxe vantagens para as empresas situadas no entorno das plantas principais (core), ou para a rede de fornecedoras locais, porque se converteu em dispositivo empregado pelas montadoras para assegurar isenções fiscais e outros benefícios sem, contudo, demandar rigidamente manutenção ou geração de postos de trabalho. Esses incentivos foram concedidos a partir de outros critérios inseridos no programa, tais como redução de emissões ou realização de investimentos em centros de pesquisa e desenvolvimento em território nacional. Portanto, os dados a serem apresentados visam corroborar a hipótese de que essa foi uma política industrial pouco efetiva em preservar empregos e assegurar contrapartidas das empresas. Essa evidência é forte, especialmente no caso de São Bernardo do Campo.

Outra hipótese é que o grupo Ford inaugura uma tendência que pode ser predominante nos próximos anos e com reflexos danosos à malha industrial brasileira, qual seja, a mudança radical no seu modelo de negócios. Aplicar-se-á aqui o termo movimento disruptivo, em voga para caracterizar todo o conjunto de transformações pelas quais o setor vem passando. A hipótese, portanto, sinaliza para o argumento de que o fechamento da planta responsável pela produção de caminhões e do modelo Fiesta tem relação com a concentração da produção em torno de modelos de maior valor agregado, como é o caso dos Sport Utility Vehicles (SUVs). Além disso, a Ford, seguindo uma tendência das montadoras norte-americanas ao menos desde o início dos anos 1980, mantém uma estratégia corporativa muito atrelada a uma concepção de controle orientada à maximização do valor para os acionistas (shareholder value) (Fligstein, 2001FLIGSTEIN, Neil. (2001), The architecture of markets. An economic sociology of twenty-first century capitalist societies. Princeton, Princeton University Press.), para a qual é pouco relevante se há contribuição de uma determinada unidade produtiva para o processo de desenvolvimento de um dado território.

Por fim, com a presente discussão, pretendemos contribuir com a agenda de pesquisa sociológica sobre as estratégias de lucro das corporações em cenários institucionais diversos, pesquisa esta fundamentalmente relacionada à perspectiva do capitalismo comparado. As instituições aqui são entendidas, conforme Morgan (2007)MORGAN, Glenn. (2007), “The theory of comparative capitalisms and the possibilities for local variation”. European Review, 15, 3: 353–371., como formas estabelecidas de se fazer coisas, definidas a partir de um compromisso entre os atores sociais, e isso não implica assumir as firmas como meras recipientes de constrangimentos institucionais e sim como participantes de uma relação dinâmica na qual se engajam a fim de sobreviver e mesmo desenvolver novas habilidades e capacidades (Morgan, 2007MORGAN, Glenn. (2007), “The theory of comparative capitalisms and the possibilities for local variation”. European Review, 15, 3: 353–371.). Isso posto, acompanhamos a literatura especializada (Freyssenet, 2009FREYSSENET, Michel. (2009), “Wrong Forecasts and Unexpected Changes: the World that Changed the Machine”. In M. FREYSSENET, The Second Automobile Revolution - Trajectories of the World Carmakers in the 21st Century. New York, Palgrave Macmillan.; Jetin, 2009JETIN, Bruno. (2009), “Strategies of Internationalisation of Automobile Firms in the New Century: a New Leap Forward?” In M. FREYSSENET, The Second Automobile Revolution - Trajectories of the World Carmakers in the 21st Century. New York, Palgrave Macmillan.) que afirma que as estratégias das firmas automotivas tendem a se coadunar aos contextos macroeconômicos e institucionais nos quais procuram se inserir. E, exatamente por esse ser um processo dinâmico, não é possível afirmar que as empresas do setor automotivo preservem uma única estratégia ao longo do tempo, o que exige investigações permanentes.

Tratamos, portanto, das estratégias de lucro (Boyer e Freyssenet, 2001BOYER, Robert & FREYSSENET, Michel. (2001), Los Modelos Productivos. Buenos Aires, Grupo Editorial Lumen.; Amable e Lung, 2008AMABLE, Bruno & LUNG, Yannick. (2008), “Varieties of Capitalism and Diversity of Productive Models – Main Conclusions of the GERPISA Research Prrogramme”. Actes du GERPISA - Réseau International, 41, 2008.) das corporações em mercados diversos como sendo definidas pelo cruzamento entre a capacidade de agência dessas firmas na condição de organizações dotadas de interesses (Nee e Swedberg, 2005NEE, Victor & SWEDBERG, Richard. (2005), The Economic Sociology of Capitalism. Princeton, Princeton University Press.) e esses arranjos institucionais distintos (Bandelj, 2002BANDELJ, Nina. (2002) “Embedded Economies: Social Relations as Determinants of Foreign Direct Investment in Central and Eastern Europe”. Social Forces, 81, 2: 411-444.; Thelen, 2004THELEN, Kethlen. (2004), How Institutions Evolve - The political economy of skills in Germany, Britain, The United States, and Japan. Nova York, Cambridge University Press.). Como as estratégias de lucro são, acima de tudo, estratégias de internacionalização (Pries e Schweer, 2004PRIES, Ludger & SCHWEER, Oliver. (2004), “The Product Development Process as a Measuring Tool for Company Internationalization? - The Case Studies of Daimler-Chrysler and Volkswagen”. International Journal of Automotive Technology and Management, 4, 1: 1-21.), significa dizer que, por exemplo, a política de produto definida para cada país, tem reflexos sobre a decisão de fazer ou não investimentos em novas plantas, em modernização de processos e em contratação de trabalhadores. Nesse sentido, refletir sobre as razões pelas quais a Ford decretou o fim de uma fábrica lucrativa e com boa produtividade, bem como discorrer sobre o desempenho de uma política industrial originalmente formulada com o propósito de evitar esse tipo de movimento de saída de um dado território, nos permite avançar no argumento de que quanto mais diversa a atuação das corporações multinacionais e de suas subsidiárias, maior a diversidade de estratégias que elas podem adotar (Morgan, 2007MORGAN, Glenn. (2007), “The theory of comparative capitalisms and the possibilities for local variation”. European Review, 15, 3: 353–371.).

Metodologia

Para o trabalho aqui proposto, que se trata de um estudo de caso, mobilizamos, além das informações da Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), dados da Secretaria de Trabalho do Ministério da Economia, através da Relação Anual de Indicadores Sociais (Rais/MTE) e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Os dados da Rais contemplam do primeiro ao último anos do Programa Inovar-Auto, e os do Caged, os meses seguintes. A conjugação dos dados de ambas as fontes se justifica por ser o setor automotivo extremamente formalizado. A Rais servirá mais utilmente para o período do Inovar-Auto, ao passo que o Caged auxiliará na análise do período posterior, jogando luz sobre o processo de fechamento da fábrica da Ford, em São Bernardo do Campo.

Para o mapeamento da cadeia automotiva brasileira, foram eleitas as seguintes classes de produção: automóveis, camionetas e utilitários; fabricação de caminhões e ônibus; fabricação de pneumáticos e de câmaras-de-ar; fabricação de cabines, carrocerias e reboques para veículos automotores; fabricação de peças e acessórios para o sistema de motor de veículos automotores; fabricação de peças e acessórios para os sistemas de marcha e transmissão de veículos automotores; fabricação de peças e acessórios para o sistema de freios de veículos automotores; fabricação de peças e acessórios para o sistema de direção e suspensão de veículos automotores; fabricação de material elétrico e eletrônico para veículos automotores, exceto baterias; fabricação de peças e acessórios para veículos automotores não especificados anteriormente (Classificação Nacional de Atividades Econômicas 2.0),2 2 A fabricação de pneumáticos e de todas as autopartes foi somada numa classificação chamada de “Autopeças”. A fabricação de cabines, carrocerias e reboques para veículos automotivos foi retirada, uma vez que é muito residual em São Bernardo do Campo. a partir da construção de Torres e Cário (2012)TORRES, Ricardo Lobato & CÁRIO, Sílvio Antônio Ferraz. (2012), “O mito da industrialização como desenvolvimento: o comando do excedente na cadeia mercantil da indústria automobilística brasileira”. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, 33: 39-71., adaptada em Dulci (2015)DULCI, João Assis. (2015), Desenvolvimento regional e mercado de trabalho em perspectiva comparada: Vale do Paraíba Fluminense e Camaçari (BA). Tese de doutorado, IESP/UERJ, Rio de Janeiro.. Não estão contemplados os setores de vendas, ou recondicionamento, embora se acredite que estejam inseridos na análise os grupos mais fundamentais da produção automotiva.3 3 A opção se deve ao fato de o primeiro grupo fazer parte da cadeia de comércio, ao passo que o segundo contempla negócios muito pequenos e pouco elásticos às vendas de automóveis novos. De forma a complementar as evidências levantadas pelos dados quantitativos, recorre-se também a entrevistas realizadas em março de 2020 com dois dirigentes do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (SMABC), também ex-trabalhadores da FORD, que atuaram na negociação para o não fechamento da planta de São Bernardo do Campo.

De maneira a ilustrar melhor os cenários do Inovar-Auto e o observado em São Bernardo do Campo, lança-se mão de comparações, no intuito de demonstrar que o programa, apesar de todas as suas ações de incentivo ao setor automotivo nacional, não logra impacto positivo observável em termos de geração ou manutenção de empregos. Por fim, é sabido que a planta da Ford no município paulista não apresentava situação crítica evidente, apesar de algumas teorias sobre fechamento de plantas industriais darem conta de que fábricas antigas, com baixa possibilidade de reestruturação, tenderem a ser alvo primordial do cessamento das operações (Aláez-Aller e Barneto-Carmona, 2008ALÁEZ-ALLER, Ricardo & BARNETO-CARMONA, Maite. (2008), “Evaluating the risk of plant closure in the automotive industry in Spain”. European Planning Studies, 16, 1: 61-80. DOI: 10.1080/09654310701747977
https://doi.org/10.1080/0965431070174797...
).

Propósitos e impactos do Inovar-Auto

O Programa Inovar-Auto vigorou até 2017 e atualizou uma importante premissa das políticas industriais brasileiras para o setor automotivo, qual seja, a de assegurar que desonerações, incentivos e renúncias fiscais fossem instrumentos de atração de novos investimentos. Durante o governo de Dilma Rousseff, as desonerações se disfarçaram de exigências orientadas pela busca por eficiência energética e pela capacitação de fornecedores nacionais, “subsidiando” as montadoras através de uma redução de até 30% no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Na sua essência, contudo, o programa mirava, através de isenções, a nacionalização da produção de componentes para veículos, com algum esforço de ampliação da captura de um nó importante da Cadeia Global de Valor (CGV) da indústria no Brasil, acompanhada da ampliação dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), assim como em inovação (Sturgeon et al., 2017STURGEON, Timothy J.; CHAGAS, Leonardo Lima; BARNES, Justin. (2017), “Inovar Auto: evaluating Brazil’s automotive industrial policy to meet the challenges of global value chains”. World Bank Group.).

Havia também a expectativa de que os incentivos oferecidos através do programa aumentassem exponencialmente a escala de produção no Brasil, uma vez que a previsão era atrair novas empresas e estimular as já estabelecidas a construir ou ampliar suas plantas. Essa onda de investimentos, por hipótese, poderia reverter a inflexão negativa apontada por Comin (2006)COMIN, Alexandre. (2006), “A nova onda de desenvolvimento da indústria automobilística brasileira”, In A. CARDOSO e A. COVARRUBIAS (org.). A indústria automobilística nas Américas, Belo Horizonte, Ed. UFMG. ao indicar que os anos 2000 consolidaram a tendência iniciada a partir de 1987, último ano a apresentar uma forte similaridade das curvas de emprego e de produção na indústria automotiva. Desde 1991, assegura o autor, passou a prevalecer a estabilidade na criação de empregos e, em 1992, houve um rápido crescimento da produção e da produtividade dos empregados.

O Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores – Inovar-Auto foi implementado no segundo mandato de Dilma Rousseff, já durante um contexto de desaceleração econômica e de declínio da produção industrial brasileira. Assim como as políticas industriais antecessoras, partiu da premissa de premiar com incentivos fiscais as fabricantes que investissem na abertura de novas plantas, na modernização de antigas e na criação de centros de pesquisa, inovação e desenvolvimento. Acima de tudo, essa política, que entrou em vigor em janeiro de 2013 por meio da Medida Provisória 563/2012, tinha como pressuposto oficial o fortalecimento da produção automotiva nacional via aumento da nacionalização dos veículos.

O programa estipulava que as atividades de fabricação no Brasil deveriam corresponder a pelo menos 80% dos veículos produzidos por uma determinada empresa e vir acompanhadas de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, engenharia e capacitação de fornecedores (Pascoal et al., 2017PASCOAL, Erik Telles; IBUSUKI, Ugo; DELAMARO, Maurício César; TSUKADA, Osamu; ROCHA, Henrique Martins (2017), “The new Brazilian automotive policy and its impact on the competitiveness of multinational automobile and auto parts manufacturers”. International Journal of Automotive Technology and Management, 17: 225-247.). Tal critério de nacionalização associou-se a uma nova política de benefícios fiscais cuja redução da alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) passou a se orientar por um princípio de crédito presumido em pontos percentuais de acordo com o aumento do conteúdo nacional na produção, entre outras exigências. Por outro lado, aumentava em 30% a taxa de IPI para veículos importados de fabricantes que não ingressassem no programa, o que foi caracterizado como uma penalização às montadoras (notadamente, chinesas e coreanas) pela não nacionalização da produção e, consequentemente, por não contribuírem com a geração de empregos na produção automotiva brasileira.

Fabricantes tradicionais como Ford, General Motors (GM), Volkswagen e Fiat, controladoras de aproximadamente 70% do mercado nacional (Comin, 2006COMIN, Alexandre. (2006), “A nova onda de desenvolvimento da indústria automobilística brasileira”, In A. CARDOSO e A. COVARRUBIAS (org.). A indústria automobilística nas Américas, Belo Horizonte, Ed. UFMG.), otimistas acerca do anúncio de mais um pacote de proteções, exerceram um papel bastante proativo junto ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC),4 4 Atual Secretaria de Desenvolvimento da Indústria, Comércio, Serviços e Inovação (SDIC), vinculada ao Ministério da Economia. principal elaborador da proposta. Ao mesmo tempo, entidades de representação dos trabalhadores, como o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista (SMABC), em defesa dos empregos, corroboraram essa política industrial que teria sido sugerida pelo próprio sindicato antes mesmo da primeira eleição do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.

A questão do Inovar (Auto) é importante porque você não desequilibra a importação e a exportação, e essa proposta é daqui da casa, do nosso sindicato. Ela sai da nossa casa aqui (a proposta) e nós jogamos para o governo federal e, quando o Lula ganha, o mais importante é que a política industrial é um dos carros-chefes do Brasil. As indústrias têm uma discussão muito grande de política industrial e isso faz gerar emprego pra caramba. Aqui, só pegando 2007, 2011, 2012 a Volks pegando (trabalhadores), Mercedes pegando, toda a cadeia começou a produzir porque você tem que fazer o carro aqui no Brasil também. (Alexandre Colombo, dirigente do SMABC)5 5 Os entrevistados citados neste texto concordaram com a utilização de suas entrevistas em trabalhos acadêmicos, bem como com a citação de seus nomes e suas filiações institucionais.

Entre os investimentos que mais se destacaram nesse período, podemos citar as plantas da BMW em Araquari (SC) (2014), da Nissan em Resende (RJ) (2014), da Fiat Chrysler Automobile (FCA) em Goiana (PE) (2015), da Honda em Itipirana (SP) (2015), da Jaguar Land Rover em Itatiaia (RJ) (2016), da Mercedes-Benz em Iracemápolis (SP) (2016), além dos investimentos da Ford no Nordeste com a construção de uma fábrica de motores e de um laboratório de polímeros em Camaçari (BA) (2014) e de um centro de distribuição de peças em Simões Filho (BA) (2016).

Chama a atenção que, a despeito das reestruturações produtivas, incluindo os processos de automação, o número de unidades industriais associadas à Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) subiu de apenas um punhado, na década de 1960, para 65, em 2018. São fabricantes de automóveis, máquinas de transporte, caminhões e ônibus, localizadas em território nacional (Anfavea, 2018ANFAVEA. (2018), Anuário estatístico da indústria automobilística brasileira.). Em 1969, as fábricas associadas à Anfavea respondiam por 3,1% dos empregos industriais brasileiros, e 3,14% dos empregos das indústrias de transformação. Esse índice atingiu seu maior patamar em 1994, quando chegou a 3,4%, contrastando com o aumento do desemprego na indústria nacional e aumentando a importância relativa, mas não a absoluta, da indústria automotiva. Porém, em 2016, a participação declinou para 1,6% da mão de obra empregada em toda a indústria brasileira (PNAD/IBGE, 1969-2016, anos selecionados; Anfavea, 2018ANFAVEA. (2018), Anuário estatístico da indústria automobilística brasileira.).

A estratégia do Governo Federal para o Inovar-Auto, via MDIC, foi tentar conciliar ganhos em produção e produtividade com o aumento na geração de empregos ou, na pior das hipóteses, com a manutenção das vagas já criadas. Tal movimento só poderia funcionar a partir de uma política literalmente protecionista capaz de fechar o mercado nacional para os importados e elevar as exportações. Dados de Sturgeon, Chagas e Barnes (2017)STURGEON, Timothy J.; CHAGAS, Leonardo Lima; BARNES, Justin. (2017), “Inovar Auto: evaluating Brazil’s automotive industrial policy to meet the challenges of global value chains”. World Bank Group. indicam, contudo, que o Inovar-Auto conseguiu reduzir a entrada dos importados sem obter êxitos satisfatórios nas outras metas igualmente estratégicas na sua configuração.

Porém, o exercício de prática protecionista foi identificado por diversos países e pela Organização Mundial do Comércio (OMC) por favorecer algumas montadoras em operação no país, como a Ford, em detrimento dos produtos importados. Ao alavancar uma política industrial pautada no aumento do conteúdo nacional e no estabelecimento de alíquotas variáveis para as firmas, o Brasil repetiu uma igualmente mal sucedida e questionada estratégia de indução da produção nacional de 1995, ao definir tarifas de importação que variavam de 20% a 70% (Freyssenet e Lung, 2004FREYSSENET, Michel & LUNG, Yannick. (2004), “Multinational Carmakers’ Regional Strategies”. In J. CARRILLO; Y. LUNG; R. VAN TULDER. Cars, carriers of regionalism? London, New York, Palgrave.). Vale lembrar que a criação de barreiras para a importação de veículos ou componentes é uma estratégia empregada na América Latina desde a década de 1950 como política de substituição de importações a fim de superar o déficit de industrialização dessa região (Dicken, 2010DICKEN, Peter. (2010), Mudança Global - mapeando as novas fronteiras da economia mundial. 5ª edição, Porto Alegre, Bookman.). Só que, ao longo do tempo, tal prática contribuiu diretamente para estabelecer mercados estáveis pautados no predomínio e na proteção pelo Estado de certos grupos econômicos (Fligstein, 2001FLIGSTEIN, Neil. (2001), The architecture of markets. An economic sociology of twenty-first century capitalist societies. Princeton, Princeton University Press.). No caso em questão, os grupos automotivos há mais tempo em mercados como o brasileiro.

Balanços dos empregos na indústria automotiva de São Bernardo do Campo (SP)

Nesta seção, apresentaremos alguns dados sobre a cadeia automotiva brasileira em comparação com a situação específica de São Bernardo do Campo, com dois intuitos: o de reforçar o argumento aqui defendido de que o Inovar-Auto não foi capaz de consolidar, como resultado, as principais contrapartidas sociais por ele definidas – a geração, ou mesmo, manutenção de empregos, preferencialmente de melhor qualidade, apostando nos segmentos de pesquisa e desenvolvimento; e o de que São Bernardo do Campo, salvo especificidades compartilhadas por todos os municípios do Grande ABC Paulista, não apresentou comportamento desviante em sentido negativo em relação ao restante da indústria automotiva nacional. Ao contrário, em alguns momentos nota-se a manutenção da força de trabalho, o que de forma alguma corrobora uma decisão eventual de fechamento gradual de planta automotiva, ou mesmo um planejamento antecipado da situação. O que os dados demonstram, ao contrário, é haver uma tendência de contração continuada do emprego desde 2013, no Brasil, com efeito um tanto tardio no município paulista.

Não se pode negar o efeito do cenário crítico por que passou o país, com instabilidade política e reflexos na situação econômica, esses mais observáveis nos indicadores macroeconômicos a partir de 2015. No entanto, se a vigência do Inovar-Auto foi de 2012 a 2017, seus resultados em termos de empregos são decrescentes já a partir de 2013 e não é possível defender de forma objetiva a contra-hipótese de que o programa foi bem-sucedido em um de seus principais pilares para a sociedade brasileira.

Entre 2012 e 2017, a variação do número de pessoas ocupadas em toda a cadeia automotiva oscilou com tendência negativa, salvo entre os anos de 2012 e 2013 (Gráfico 1). No Brasil, desde 2014, o número de pessoas ocupadas representa percentual menor do que os dados de 2012, chegando em 2017 a 77,7% do valor de 2012. Em São Bernardo do Campo, onde cinco montadoras operavam até o fechamento da Ford, foi apenas em 2016 que o total de ocupações regrediu em relação a 2012, representando 88,0% da mão de obra daquele ano e atingindo 86,0% em 2017.

Gráfico 1
– Variação percentual de pessoas ocupadas na cadeia automotiva em relação a 2012, São Bernardo do Campo e Brasil, 2012 a 2018

Quando são abertos os dados por setores de atividades econômicas, de acordo com a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (Cnae 2.0), mantendo-se a comparação proposta, percebe-se mais nitidamente o salto em São Bernardo do Campo no primeiro ano do Programa Inovar-Auto, particularmente no setor de fabricação de automóveis, camionetas e utilitários, que aumenta em 140% o número de pessoas ocupadas, variando de 7,2 mil para 17,4 mil a força de trabalho (Gráfico 2). Esse número, porém, não se sustenta, chegando a 11,9 mil no final do período em análise. Os números referentes à fabricação de caminhões e ônibus possuem evolução mais modesta. Em 2012, eram 15,9 mil postos formais de trabalho; em 2017, 11,5 mil, iniciando sua trajetória declinante já no ano de 2013 (15,7 mil).

Gráfico 2
- Variação percentual do número de ocupações da cadeia automotiva, por setores econômicos selecionados, Brasil e São Bernardo do Campo (SP), 2012 a 2018.

Para os dados sobre ocupação, optamos por uma apresentação individual de cada unidade de análise (Gráfico 3). Considerando apenas as médias nacionais, observa-se uma relativa estabilidade de rendimentos entre praticamente todas as ocupações, com perdas da ordem de 5,1% entre os técnicos de nível médio e 3,8% entre os trabalhadores de serviços administrativos e vendedores. Os maiores reveses se dão nos postos mais elevados nas hierarquias corporativas: 10,0% entre os dirigentes e 10,4% entre os profissionais de nível superior.

Gráfico 3
- Rendimento médio dos trabalhadores da cadeia automotiva, por ocupação, Brasil, 2012 a 20186 6 Valores deflacionados pelo IPCA, 2012=100. O mesmo procedimento se repete em todos os gráficos que tratam de rendimentos.

Ainda analisando os números nacionais, como os dados apresentados acima corroboram, o declínio no número de pessoas ocupadas, de acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), inicia-se na virada de 2014 para o ano de 2015 (Gráfico 4). Em alguns casos, ele é muito acentuado, como entre os trabalhadores diretamente ligados à produção (-25,7% entre 2012 e 2017), trabalhadores dos serviços administrativos (-20,0%) e dos profissionais de nível superior (-17,6%). A média nacional de pessoas ocupadas na cadeia automotiva registra uma perda de 22,2%.

Gráfico 4
- Variação percentual do número de pessoas ocupadas na cadeia automotiva, por ocupação, Brasil, 2012 a 2018

Já em relação ao município de São Bernardo do Campo, em termos de rendimento médio mensal à luz de suas ocupações, apenas os trabalhadores da linha de produção não observam perda real de seus ingressos (alta de 1,0%). Os trabalhadores de cargos diretivos e os profissionais de nível superior foram os mais afetados (-17,8% e -17,1%, respectivamente), seguidos dos técnicos de nível médio (perdas de 14,3%). Na média geral, as perdas foram de 6,7% (Gráfico 5).

Gráfico 5
- Rendimento médio dos trabalhadores da cadeia automotiva, por ocupação, São Bernardo do Campo, 2012 a 2018

Por fim, os dados sobre variação percentual em relação ao ano base de 2012 em São Bernardo do Campo (Gráfico 6) dão conta de que apenas os cargos diretivos foram poupados dos cortes de empregos na região. O mesmo grupo que observou as maiores perdas em seus rendimentos foi aquele que conseguiu aumentar em 9,8% o número de postos de trabalho, o que indica um decréscimo do valor médio dos ingressos nessas ocupações. Em contraste, os postos para profissionais de nível superior foram os mais atingidos, com perdas de 17,1% dos ocupados, ao passo que os trabalhadores da linha de produção, que mantiveram sua estabilidade salarial, perderam 16,6% dos seus empregos. Na média geral, o município perdeu 14,0%, número puxado pelo maior contingente de desempregados, justamente no grupo das atividades de produção.

Gráfico 6
- Variação percentual do número de pessoas ocupadas na cadeia automotiva, por ocupação, São Bernardo do Campo, 2012 a 2018

Os dados que contemplam o período de vigência do Programa Inovar-Auto demonstram que o objetivo de manutenção de postos de trabalho não foi atingido. Além disso, os rendimentos médios dos cargos superiores na hierarquia também sofreram reveses, embora, de modo geral, tenham sido mais poupados dos cortes. O município de São Bernardo do Campo teve comportamento análogo, embora com algumas especificidades, como o tardio início de cortes mais severos de postos de trabalho, quando comparados aos números nacionais, o que não indicaria, portanto, um quadro crítico mais grave do que no restante do país. Argumentos como o “custo ABC”, expressão muito usada nos anos 1990 para designar as dificuldades corporativas para se lidar com os sindicatos da região e os direitos incorporados à realidade laboral, se revelam datados para explicar o município, já que o todo da cadeia automotiva com corte regional manteve-se mais estável do que quando analisamos os dados brasileiros. Ou seja, nada aponta para uma crise em São Bernardo do Campo, mas sim para um cenário condizente com o restante do país em termos de manutenção de empregos e para a estabilidade em patamares mais altos com relação ao nível de renda média.

O comportamento do emprego no setor automotivo de São Bernardo do Campo após o Inovar-Auto

O período de vigência do Programa Inovar-Auto é de oscilações de diversos indicadores que foram mobilizados pela análise. No entanto, a tendência dos números é negativa. De modo geral, os indicadores macroeconômicos demoraram um pouco a refletir a crise mundial de 2008, em função de uma série de medidas anticíclicas. A crise, que se iniciou sem grande alarde (Dulci e Lima, 2020DULCI, João Assis & LIMA, Raphael Jonathas da Costa. (2020), “Atuação pública no setor automotivo: o programa Inovar-Auto e a crise do emprego industrial brasileiro”. In F. Perlatto; J. A. Dulci e J. Chaloub (org.). A Nova República em Crise, Curitiba, Editora Appris (No prelo).; Harvey, 2011HARVEY, David. (2011), O enigma do capital. São Paulo, Boitempo.), ganhou contornos graves quando o combustível político foi adicionado. O Brasil de 2012 a 2014 observou crescimento econômico médio de 1,4%, com uma taxa de desemprego quase sempre abaixo dos 6% (IBGE, vários anos). Com relação à indústria automotiva, a utilização da capacidade instalada de janeiro de 2012 a dezembro de 2014 teve média de 82,8%, resultando, por consequência, em capacidade ociosa de 17,2%, um pouco abaixo da média histórica de 19,4% (Confederação Nacional da Indústria, 2003 a 2019).

Embora tenha havido aumentos nas taxas de inflação e no desemprego no início de 2015, o índice só atingiu dois dígitos em fevereiro de 2016, quando a crise política já dominava o país, resultando em uma situação de ingovernabilidade para a então mandatária Dilma Rousseff. Foi, porém, a partir de 2015 que o PIB brasileiro entrou em recessão, acompanhado de aumento de desemprego, subida da inflação e – especificamente com relação ao uso de capacidade instalada nas plantas automotivas – da ociosidade industrial que, desde junho de 2015, iniciou uma trajetória ascendente, só freada ao final de 2017, embora ainda pior do que o pré-crise.

Esse ambiente crítico se refletiu nos dados levantados pela Anfavea, que compila anualmente informações sobre todas as montadoras de veículos automotores e produtores de autopeças associados. O faturamento líquido das empresas produtoras de automóveis, caminhões, ônibus e máquinas agrícolas decresceu de US$ 93,9 milhões em 2012 para US$ 59,2 milhões em 2017. No setor de autopeças, a queda foi de US$ 40,6 milhões para US$ 27,1 milhões entre 2012 e 2017. Além disso, os dados sobre balança comercial e empregos também foram negativos ao longo do período (Anfavea, 2018ANFAVEA. (2018), Anuário estatístico da indústria automobilística brasileira.).

No tocante ao Programa Inovar-Auto, se não é possível afirmar que sua influência no comportamento do emprego no setor automotivo é nula, uma vez que não é possível mensurar o que aconteceria com a cadeia automotiva brasileira sem a vigência do Programa, é difícil afirmar que seus resultados representem impacto positivo. Diante do cenário crítico brasileiro exposto no tópico anterior, a manutenção dos rendimentos de algumas ocupações representou, como consequência, a perda de postos de trabalho.

De modo a complementar os dados da Rais após o ano de 2017, lançamos mão de informações do Caged para completar os objetivos do presente texto. Tratando especificamente de São Bernardo do Campo, encerramos a análise do período de vigência do Programa Inovar-Auto e passamos a observar o que ocorreu no município de onde a Ford decidiu sair. De maneira geral, diferente do que ocorre em produções menos complexas, o pico de contratações da indústria automotiva ocorre no início de cada ano, de modo que o trabalhador possa ser treinado e esteja apto a produzir nos meses seguintes. Os dados do Gráfico 7 mostram as três principais atividades econômicas da cadeia automotiva presentes no município de São Bernardo do Campo. Tem-se aí o saldo entre contratados e demitidos no período de dezembro de 2017 a junho de 2019, último mês disponível para análise.

Gráfico 7
- Saldo de empregos por atividade econômica, São Bernardo do Campo, dezembro de 2017 a junho de 2019.

O que se percebe são três comportamentos distintos. Com relação à produção de automóveis, camionetas e utilitários, o saldo é quase sempre negativo, com forte retração entre os meses de junho e julho de 2018, repetindo-se com mais intensidade no mês de junho de 2019. Por se tratar de um saldo, o gráfico abaixo não representa o volume agregado de empregos perdidos, como apresentado no tópico anterior, mas uma soma entre admitidos e demitidos, mês a mês. Ao todo, a fabricação de automóveis, camionetas e utilitários apresenta um saldo acumulado de menos 1.017 postos de trabalho. O setor de autopeças, que só contratou mais do que demitiu entre janeiro e março de 2018, acumula um saldo negativo de 633. Curiosamente, o setor de fabricação de caminhões e ônibus, no qual atuava a planta da Ford que foi fechada, acumulou saldo positivo de 935. Entretanto, chama muito a atenção o fato de ser também o que mais oscila ao longo do período analisado, o que pode representar um otimismo frustrado, ou mesmo uma incongruência no planejamento da planta brasileira com os planos da matriz norte-americana.

A trajetória da Ford em São Bernardo do Campo

A presença da Ford no Brasil remete ao ano de 1919, quando iniciou a importação do veículo de luxo Lincoln, inaugurando depois, em 1922, uma pequena linha de produção em Recife (PE).7 7 Fonte: Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Mas a produção em escala no Brasil só começou a ganhar projeção com a abertura, em 1952, da sua fábrica de automóveis, caminhões, tratores e chassis no Ipiranga, em São Paulo (SP), onde teve início, em 1957, a produção do F-600, caminhão com um índice de 40% de nacionalização.

Em 1967, a Ford adquiriu a montadora norte-americana Willys-Overland, cuja fábrica localizava-se em São Bernardo do Campo, e criou duas divisões, a Ford Automotiva, composta em geral por milhares de trabalhadores remanescentes da própria Willys-Overland e a Ford Tratores, criada em 1977 e com apenas 400 trabalhadores no início dos anos 1980. A Ford Automotiva era uma continuidade da linha de produção da Willys-Overland, empresa conhecida pela organização dos seus trabalhadores, em especial os da ferramentaria,8 8 Humphrey (1982) observou que os ferramenteiros eram os trabalhadores com maior tempo de fábrica e maior estabilidade profissional, os mais sindicalizados e considerados como a base de sustentação do sindicato na indústria automotiva. muitos deles ligados ao Partido Comunista do Brasil (PCB), enquanto os trabalhadores da Ford Tratores, menos numerosos e mais novos na empresa, apresentavam-se como pouco organizados politicamente (Eulálio e Passos, 2016EULÁLIO, Alberto & PASSOS, João Ferreira. (2016), A História de Luta dos Trabalhadores na Ford – São Bernardo do Campo 1981 a 2016. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo.).

Os trabalhadores da Willys-Overland iniciaram, em 1964, um movimento no interior da fábrica pela criação de uma comissão de fábrica e organizaram, em 1966, uma greve de fome, seguida por outra, em 1967, com o envolvimento de 30% do efetivo. A greve de 1967 teve como saldo positivo a oficialização da comissão de fábrica e, com a planta já sob o controle da Ford, foi seguida de outras paralisações pontuais até a greve de 1981, quando a demissão de 450 trabalhadores motivou uma greve de seis dias (Brito, 1983BRITO, José Carlos Aguiar. (1983), A Tomada da Ford – o nascimento de um sindicato livre. Petrópolis, Vozes.). Outras greves sucederam-se ao longo dos anos 1980, como a Greve Pipoca pelo abono de emergência e a Greve Vaca Brava pela redução da jornada para 40 horas semanais (Eulálio e Passos, 2016EULÁLIO, Alberto & PASSOS, João Ferreira. (2016), A História de Luta dos Trabalhadores na Ford – São Bernardo do Campo 1981 a 2016. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo.). Porém, a mais emblemática mobilização foi a Greve dos Golas Vermelhas (referência ao uniforme dos trabalhadores da ferramentaria e da manutenção da Ford), entre junho e julho de 1990, quando 900 operários da ferramentaria e da manutenção pararam a fábrica por 50 dias.9 9 https://www.cut.org.br/noticias/ha-25-anos-greve-dos-golas-vermelhas-na-ford-mudava-patamar-de-lutas-9199. Consultado em 08/04/2020.

Sou do Senai, entrei em 1980 e, na época que entrei na Ford, o movimento sindical era muito forte, era muito intenso, muitas lutas, muitas greves e muitas reivindicações. (...) Eu via as injustiças que aconteciam dentro das fábricas e comecei a emplacar no movimento sindical. Até então, não tinha interesse em ser dirigente, eu não sabia de cargo nenhum. Eu participava muito das lutas, participei talvez da greve mais radical que eu já vi, a mais extrema talvez, que foi a dos Golas Vermelhas. Foram 50 dias de greve. Essa foi uma greve que ficou marcada dentro da Ford, a história dos carros, uma longa história essa greve. (Alexandre Colombo, 10/03/2020)

A Greve dos Golas Vermelhas aconteceu no contexto de vigência da Autolatina, holding criada em 1987 para unificar as operações da Ford às da Volkswagen e que perdurou até 1994. Em 1995, disposta a voltar a ter competitividade, a Ford iniciou a produção do Fiesta e, em 1997, a produção do Ford Ka. Em 2003, desativou a fábrica do Ipiranga e transferiu a produção de caminhões para São Bernardo do Campo. Desde então, essa passou a ser uma das únicas plantas da montadora dedicadas a produzir caminhões – ao lado da fábrica de Inönü,10 10 De propriedade da Ford Otomotiv Sanayi A.S., também conhecida por FORD OTOSAN, 2020. Fonte: https://www.fordotosan.com.tr/en/operations/production/plants. Consultado em 08/04/2020. na Turquia –, tratando-se de uma unidade lucrativa, conforme aponta o dirigente sindical Alexandre Colombo.

(...) o novo presidente que veio também não soube gerenciar essa fábrica. Porque essa fábrica aqui podia fazer uma SUV que tem um valor agregado maior com menos trabalhadores.... ‘Caminhões’ só dava lucro, então não dá pra entender. Não dá pra entender! ‘Caminhões’ é só lucro! A fábrica de caminhões da Ford chegou a produzir 42.300 caminhões no ano. (...) ela estava aumentando a linha para poder aumentar a produção de caminhões. Ela trabalhava com mais ou menos oitocentas, novecentas pessoas para fazer 42 mil caminhões bons e que vendiam pra caramba. Ela não tinha muita tecnologia pra importar, vendia mais no mercado nacional por causa do câmbio dela. Ela tinha problema no câmbio, mas, se fizesse investimento, levava pra fora. Você pega a Mercedes, ela faz caminhões, tem sete mil empregados, pega a Scania, ela faz caminhões e tem quatro mil empregados. Então, quer dizer, não dá pra entender... (Alexandre Colombo, diretor executivo do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC - SMABC. Entrevista concedida em 10/03/2020)

Quando, no início de 2019, a montadora anuncia o fechamento da planta de São Bernardo do Campo por motivos de “reestruturação do seu negócio local”, os cerca de 2,8 mil funcionários que trabalhavam na fábrica11 11 Fonte: “Ford decide fechar a fábrica de São Bernardo do Campo”. AUTOMOTIVE BUSINESS, 2019; “Ford vai demitir 750 trabalhadores da fábrica de São Bernardo do Campo”. VEJA, 2019. Consultado em: 10/08/2019. foram comunicados de que as atividades seriam encerradas em outubro daquele mesmo ano. Embora o SMABC já tratasse como provável o encerramento das atividades, o anúncio teve uma repercussão bastante negativa junto à opinião pública,12 12 “O fechamento da emblemática fábrica da Ford em São Bernardo do Campo é um marco histórico.” – “Ford vai fechar fábrica em São Bernardo do Campo’ – VALOR ECONÔMICO, 2019. Consultado em 10/09/2020. sobretudo em função da relevância que a empresa conquistou no ABC Paulista, ao lado de Mercedes-Benz, Volkswagen, Toyota e Scania.

Diante do enorme simbolismo da Ford no conjunto da produção industrial do ABC, cabe a nós levantarmos algumas possíveis interpretações para o fechamento da planta. Em primeiro lugar, conforme apontam Freyssenet e Lung (2004)FREYSSENET, Michel & LUNG, Yannick. (2004), “Multinational Carmakers’ Regional Strategies”. In J. CARRILLO; Y. LUNG; R. VAN TULDER. Cars, carriers of regionalism? London, New York, Palgrave., o acirramento da competição, nas últimas décadas, fez as montadoras avançarem no processo de internacionalização e fragmentação global da produção com progressiva concentração das atividades intensivas em trabalho em regiões e países periféricos (Freyssenet e Lung, 2004FREYSSENET, Michel & LUNG, Yannick. (2004), “Multinational Carmakers’ Regional Strategies”. In J. CARRILLO; Y. LUNG; R. VAN TULDER. Cars, carriers of regionalism? London, New York, Palgrave.). No esteio dessa desconcentração, o México e diversos países das Europas Central e Oriental, como a República Tcheca, a Eslováquia e a Polônia, se beneficiaram de uma forte expansão industrial e se constituíram em “novas” regiões automotivas (Van Tulder e Ruigrok, 1998VAN TULDER, Rob & RUIGROK, Winfried. (1998), “European cross-national production networks in the auto industry: Eastern Europe as the low end of European car complex”. Berkeley roundtable on the international economy.; Covarrubias, 1998COVARRUBIAS, Alex. (1998), “Subsistema de empleo em México y Brasil: un modelo analítico y dos estudios de caso en la industria automotriz”. Revista latino-americana de estudos do trabalho, 4, 8: 29-58.; Druck, 1999DRUCK, Maria da Graça. (1999), Terceirização: (dês)fordizando a fábrica – um estudo do complexo petroquímico. São Paulo, Boitempo Editorial., dentre outros).

Ao lado desses deslocamentos geográficos, pelo menos desde o final dos anos 1990, vêm ocorrendo mudanças frequentes nas estratégias corporativas das montadoras no que diz respeito às suas plantas, indicando uma alternância entre intensificação da produtividade, mudanças técnicas e racionalização, confirmando análises já testadas sobre gerenciamento e plantas (MacLachlan, 1992MACLACHLAN, Ian. (1992), “Plant Closure and Market Dynamics : Competitive Strategy and Rationalization”. Economic Geography, 68, 2: 128-145. DOI: 10.2307/144198
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). Desses três movimentos, a racionalização poderia explicar o movimento das montadoras, mais especificamente o fechamento de plantas tradicionais, algo que seria provocado, sobretudo, pela perda de market share em função da intensificação da competição.

Por outro lado, diferentemente de outros tipos de indústria (calçados e vestuário, por exemplo), o setor automotivo tem como especificidade um forte controle pela firma líder (isto é, a montadora) das unidades de montagem (assembly plants) (Sturgeon et al., 2017STURGEON, Timothy J.; CHAGAS, Leonardo Lima; BARNES, Justin. (2017), “Inovar Auto: evaluating Brazil’s automotive industrial policy to meet the challenges of global value chains”. World Bank Group.), a despeito de os fornecedores de primeiro, segundo e terceiro nível (tiers 1, 2 e 3) assumirem crescente relevância no funcionamento da cadeia automotiva com serviços que chegam a corresponder a 70% do custo total de um automóvel (Freyssenet e Lung, 2004FREYSSENET, Michel & LUNG, Yannick. (2004), “Multinational Carmakers’ Regional Strategies”. In J. CARRILLO; Y. LUNG; R. VAN TULDER. Cars, carriers of regionalism? London, New York, Palgrave.). Isso sugere, portanto, que o cenário menos corriqueiro tem sido o da decisão de fechamento de fábricas em situações de redução da demanda provocada pelo aumento da concorrência (Sturgeon et al., 2017STURGEON, Timothy J.; CHAGAS, Leonardo Lima; BARNES, Justin. (2017), “Inovar Auto: evaluating Brazil’s automotive industrial policy to meet the challenges of global value chains”. World Bank Group.). O mais comum, apontam os autores, é a desaceleração da produção ou a mudança para outro tipo de produto, especialmente em países como o Brasil, onde a economia é oscilante e as montadoras atendem majoritariamente ao mercado doméstico e ao Mercosul.

Assim, considerando que, mesmo diante de cenários negativos, o fechamento de uma planta é algo raro, resta a dúvida acerca das reais razões que levaram a matriz da Ford a optar pelo encerramento das atividades de uma fábrica com alto volume de produção de caminhões e de automóveis do modelo Fiesta (que acabou saindo de linha um pouco antes do fechamento da planta). E, conforme os dados apresentados nas seções anteriores sugerem, a despeito da inquestionável relevância de uma política industrial que suporte a expansão do parque automotivo, parece existir um descompasso entre os fins e os resultados do Inovar-Auto, ao menos em se tratando de uma região como o ABC, que congrega plantas de montadoras da magnitude de Scania, Volkswagen, Mercedes-Benz e General Motors. Nesse sentido, mesmo beneficiada pela redução na alíquota de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) proposta pelo Inovar-Auto e apesar dos investimentos que realizou no estado da Bahia, a Ford optou por fechar sua histórica fábrica de São Bernardo do Campo (Lima, 2019LIMA, Raphael Jonathas da Costa. (2019), “Disrupção e Transformação no Setor Automotivo: um balanço do fechamento da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo (SP)”. Democracia e Mundo do Trabalho em Debate, 12 mar.). A resposta para essa decisão precisa passar pelo entendimento do modelo de estratégia corporativa assumido pela empresa nos últimos anos, em especial no que tange à sua atuação no Brasil.

O mercado brasileiro de caminhões tem uma importante especificidade, qual seja, continua a ser um dos mais pujantes do setor automotivo do país, mesmo num cenário de retração econômica. Isso porque as vendas – sobretudo no segmento de caminhões pesados com PBT13 13 Peso Total Bruto – Definido pela combinação entre peso do veículo + peso da carroceria + peso da carga. acima de 15 toneladas – são impulsionadas pelo desempenho positivo do agronegócio. Apesar da surpresa do dirigente sindical entrevistado, antes de encerrar suas atividades, a participação da Ford – produzia caminhões dos modelos Cargo, F-4000 e F-350 – já havia caído de 13,74% do total de emplacamentos em 2016 para 11,99% em 2017 (Fenabrave, 2016FENABRAVE. (2016). Anuário 2016. O Desempenho da Distribuição Automotiva no Brasil. Disponível em: <http://www.fenabrave.org.br/Portal/conteudo/conteudo/anuarios>. Consultado em: 10.09.2020.
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; 2017FENABRAVE. (2017). Anuário 2017. O Desempenho da Distribuição Automotiva no Brasil. Disponível em: <http://www.fenabrave.org.br/Portal/conteudo/conteudo/anuarios>. Consultado em: 10.09.2020.
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; Lima, 2019LIMA, Raphael Jonathas da Costa. (2019), “Disrupção e Transformação no Setor Automotivo: um balanço do fechamento da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo (SP)”. Democracia e Mundo do Trabalho em Debate, 12 mar.), indicando assim uma queda no seu market share, razão central para o anúncio feito no dia 19 de fevereiro de 2019 de fechamento da fábrica.

Somadas a esta explicação estritamente neoclássica, isto é, a queda no market share provocada pela redução da demanda, há outras razões que apontam em duas direções. A primeira delas é de caráter institucional, haja vista a crescente dificuldade das montadoras no Brasil e no mundo em lidar com os mecanismos regulatórios, a exemplo do escândalo Dieselgate nos Estados Unidos.14 14 Escândalo no qual a Volkswagen AG se envolveu em 2015 ao comercializar veículos com motorização 2.0 a diesel integrado por um dispositivo especialmente criado para burlar a emissão de Óxidos de Nitrogênio (NOx) (Santos, 2015). Para a Ford, o negócio de caminhões no Brasil demandaria um alto volume de investimentos necessários para atender às necessidades do mercado e para cobrir os crescentes custos com itens regulatórios, como as novas exigências do Proconve P8 ou o Euro 6, este último previsto para o Brasil a partir de 2023.15 15 Fonte: AUTOMOTIVE BUSINESS, 2019. Consultado em 08/04/2020. Em seu relatório anual (Ford Motor Company Annual Report), a Ford já considerava que os marcos regulatórios adotados pelo Brasil eram rigorosos para seus padrões (FORD MOTOR COMPANY, 2019).FORD MOTOR COMPANY. (2019), Ford Motor Company Annual Report on form 10-K for the fiscal year ended December 31, 2018. Dearborn. Como as marcas mais fortes e tradicionais (Scania e Volvo) têm lugar garantido no mercado, especialmente no segmento de caminhões premium, do qual são líderes, a Ford vinha disputando posição com outros fabricantes, como MAN Latin America, Mercedes-Benz e Iveco, igualmente competitivos em segmentos de caminhões inferiores. No entanto, encerrou a produção alegando não haver garantias de um caminho viável para um negócio lucrativo e sustentável.

Quando eu falo em gerenciamento da fábrica, tem a ver com isso. Ela tomou muitas decisões equivocadas. Por exemplo, na hora que ela estava crescendo junto com a Autolatina, ela separou. Aí, o carro que ela trouxe pra cá não era o ‘top’ também da época, o Fiesta. Ela me tira uma picape que vendia pra caramba no mercado (...). Então, os investimentos, o gerenciamento, o custo da fábrica aqui em São Bernardo... E as decisões dela afetam globalmente porque ela fecha fábrica de motores na França, fecha fábrica na Alemanha, e vai indo. Tanto que as ações da Ford, as ações da GM estavam R$ 32,00 (...). Então, foi muita decisão equivocada no planejamento. Ela não precisava ter quinze, vinte por cento do mercado, o que ela precisava era ter uma fatia do mercado, mas trabalhar com um produto mais caro do que fazer mais carros. Uma das decisões que ela tomou de 2000 pra cá, ela queria fazer menos carros, mas vender com um custo maior. Então, ela achava que essa era a nova metodologia, o novo caminho pra ela. Mas ela teve várias decisões globais que a gente conhece como erros estratégicos, desde a matriz até aqui embaixo. Aqui em São Bernardo ela só errou, tirou a Ranger, a F Séries, que era uma picape que vendia (...). (Alexandre Colombo, 10/03/2020)

É importante destacar que as firmas do setor automotivo constroem e operam suas próprias estratégias de lucro, inclusive com variações segundo os contextos nos quais atuam e de acordo com as instituições econômicas com as quais interagem e se tensionam (Boyer e Freyssenet, 2001BOYER, Robert & FREYSSENET, Michel. (2001), Los Modelos Productivos. Buenos Aires, Grupo Editorial Lumen.; Amable e Lung, 2008AMABLE, Bruno & LUNG, Yannick. (2008), “Varieties of Capitalism and Diversity of Productive Models – Main Conclusions of the GERPISA Research Prrogramme”. Actes du GERPISA - Réseau International, 41, 2008.; Nölke, 2019NÖLKE, Andreas. (2019), “In search of institutional complementarities: Comparative Capitalism and economic policy reform”. Journal of Economic Policy Reform. DOI: 10.1080/17487870.2019.1637582
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). Assim, mesmo proveniente dos Estados Unidos, a atuação em realidades institucionais diversas, a exemplo da brasileira, força a escolha e a definição de práticas de investimento bastante específicas por parte dessa montadora.

Desde os anos 1980, a Ford vem se conformando como uma companhia transregional, isto é, pautada numa estratégia de divisão de trabalho entre regiões, atuando de modo articulado sob um rígido controle hierárquico da empresa e da sua rede de alianças estratégicas (Bélis-Bergouignan e Lung, 2000BÉLIS-BERGOUIGNAN, Marie-Claude & LUNG, Yannick. (2000), “Global Strategies in the Automobile Industries”. Regional Studies, 34: 41-73.). São produtos dessa postura a aliança com a Mazda, na Ásia e na América do Norte, e com a Volkswagen (Autolatina), no Brasil, com o intuito de compartilhar design e manufatura de produtos, e ambas as parcerias constituídas em 1987 (Cardoso, 2015CARDOSO, Adalberto. (2015), Globalização e relações industriais na indústria automobilística brasileira: quadro global e um estudo de caso. Rio de Janeiro, Edição do Autor.). Dessa estratégia transregional também resultou o Ford 2000,16 16 Concebido pelo então presidente da Ford, Alex Trotman, em 1993, o Ford 2000 previa um arrojado processo de desburocratização da empresa (AUTOMOTIVE NEWS, 2003). Acessado em: 04/05/2020. plano estratégico lançado em 1993 com o propósito de gerar maior integração entre as divisões globais da empresa e unificar seus departamentos de manufatura, marketing e desenvolvimento de produto.

A segunda razão alternativa à explicação estritamente neoclássica, porém não menos racional, é que há muito tempo vem se desenhando uma radical transformação na concepção de controle dos negócios da empresa, cada vez mais orientada a subordinar os resultados da firma à possibilidade de oferecer melhores condições de retorno aos seus acionistas (shareholder value) (Fligstein, 2001FLIGSTEIN, Neil. (2001), The architecture of markets. An economic sociology of twenty-first century capitalist societies. Princeton, Princeton University Press.; Aguilera e Jackson, 2010AGUILERA, Ruth V. & JACKSON, Gregory. (2010), “Comparative and International Corporate Governance”. The Academy of Management Annals, 4, 1: 485-556. DOI: 10.5465/19416520.2010.495525
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). Assim, entendemos que é com base em fatores como performance e retorno oferecido pelo mercado de capitais, geralmente com forte tendência de realização de acordos de financiamento de curto prazo, que as decisões estratégicas dessa corporação têm se orientado (Carmo et al., 2018CARMO, Marcelo José do; SACOMANO NETO, Mário; DONADONE, Júlio César. (2018), “Análise da financeirização no setor automotivo: o caso da Ford Motor Company”. Nova Economia (UFMG), 28: 549-577. Disponível em: https://revistas.face.ufmg.br/index.php/novaeconomia/article/view/3469. Consultado em 17/11/19.
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; Thelen, 2004THELEN, Kethlen. (2004), How Institutions Evolve - The political economy of skills in Germany, Britain, The United States, and Japan. Nova York, Cambridge University Press.). Diante dessa tendência, fica indicado que o processo de financeirização da empresa com a expectativa de retornos de curto prazo vem orientando as suas estratégias corporativas, implicando fechamentos de plantas industriais, encerramento de produtos e lançamento de outros (como as SUVs elétricas Escape e Territory) que não partem de uma definição coletiva com trabalhadores, tampouco da percepção de mercado e da coerção de instituições, o que minimiza o efeito regulador de leis e políticas industriais diversas.

A Ford hoje investe mais da metade dos recursos disponíveis em carro autônomo, nas SUVs e nas picapes. A Ford é líder de mercado nos Estados Unidos em picapes. (...) Porque, em 2017, a gente estava negociando com a direção da empresa o investimento dos novos carros aqui na planta de São Bernardo, que é a nova linha que vai substituir o Ford Ka, que é feito em Camaçari. No final do ano, eles interrompem essa negociação, porque muda a cúpula da empresa… Então, de 1997 pra cá são 22 anos, foi um período muito ruim, o grande acerto foi na construção de caminhões, que veio pra São Bernardo, deixou a planta competitiva com dois segmentos diferentes de produção, ficou muito competitiva a planta. E eles começaram a estragar essa planta quando tiraram a Série F de linha, em 2011, pra ficar só com carro – com oposição muito grande da rede de distribuidores, que não aceitava a decisão. (...) Eu acho que a Ford, de fato, é sem estratégia. (...) Aqui na minha sala, teve um grupo de companheiros que falou “Rafael, como é que você não percebeu que a Ford ia fechar?” Aí, eu olhei pros caras e falei “cara, eu não tinha como captar, porque o que fez a Ford fechar não foi nada de análise operacional, foi outra coisa, foi o mercado financeiro”. (Rafael Marques, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (SMABC), em entrevista aos autores, 10/03/2020).

Considerações finais

O fechamento da planta da Ford assumiu um enorme simbolismo para a tradicional indústria automotiva brasileira. Ainda que o Brasil não conte com grupos nacionais no setor, a produção automotiva nacional historicamente destacou-se como uma das mais relevantes do mundo, fazendo do país, inclusive, um dos dez maiores fabricantes em volume de produção. Ao longo das três últimas décadas, essa produção vem demonstrando tendência de estagnação (se não, de declínio) com insistente ociosidade em sua capacidade produtiva instalada, ano após ano (Comin, 2006COMIN, Alexandre. (2006), “A nova onda de desenvolvimento da indústria automobilística brasileira”, In A. CARDOSO e A. COVARRUBIAS (org.). A indústria automobilística nas Américas, Belo Horizonte, Ed. UFMG.). Variadas são as razões para essa obsolescência como, por exemplo, a ausência de políticas industriais contínuas.

O Inovar-Auto voltou-se para a indução da nacionalização da produção, sobretudo de componentes automotivos e, a despeito de inconsistências como não considerar que a produção automotiva emprega cada vez menos no mundo e está cada vez mais fragmentada em função do frequente reordenamento da cadeia global de valor, teve o mérito de estimular o investimento das montadoras em novas plantas ou na modernização de antigas. Concluímos aqui, contudo, que o fechamento da Ford ocorreu em 2019, isto é, dois anos após a finalização do programa e deve ser associado à incapacidade estatal em criar regras e estabelecer compromissos das empresas.

Nosso argumento neste artigo é que, a despeito das evidentes limitações do Inovar-Auto enquanto política industrial, pesou menos a sua incapacidade em preservar ou expandir os empregos e mais o movimento de reorientação estratégica da Ford enquanto corporação cada vez mais inclinada a redefinir o seu modelo de negócios, o que passa por considerar excessivamente dispendioso permanecer atuando num mercado bastante competitivo como o de caminhões no Brasil. Embora esta pareça uma interpretação mais neoclássica do que propriamente sociológica, revela-se por trás desse movimento uma clara tensão entre a agência da corporação e a pressão das instituições reguladoras, havendo, no caso aqui tratado, uma vantagem da empresa sobre qualquer política pública capaz, por exemplo, de reverter a decisão de fechamento. Isso fica ainda mais claro quando se observa no Relatório Anual da própria Ford, de 2019, o montante financeiro já separado para o encerramento da fábrica paulista, considerando dívidas com fornecedores, ações trabalhistas, amortizações e custos de depreciação, da ordem de US$460 milhões, acrescido aos alertas de questionamentos de unidades da federação brasileira sobre os incentivos recebidos pela planta Ford de Camaçari (Ford, 2019).

Cabe assinalar não ser possível estabelecer uma relação automática de causalidade direta entre o Inovar-Auto e a decisão da Ford, uma vez que: a) não é possível analisar o período sem a presença desse conjunto de políticas para o setor; e b) embora a Ford tenha se valido de incentivos e isenções do programa, sua decisão parece jogar mais luz sobre a fragilidade institucional do diálogo montadora-poder público do que propriamente sobre fragilidades do Inovar-Auto (não que elas não existam, como buscamos também demonstrar). Ainda assim, nos resta destacar, conforme sugerem Sturgeon, Chagas e Barnes (2017)STURGEON, Timothy J.; CHAGAS, Leonardo Lima; BARNES, Justin. (2017), “Inovar Auto: evaluating Brazil’s automotive industrial policy to meet the challenges of global value chains”. World Bank Group. e Lima (2018)LIMA, Raphael Jonathas da Costa. (2018) Forjando a Política Automotiva Brasileira: incumbentes e desafiadores na construção do programa Inovar-Auto. Trabalho apresentado no 42º Encontro Anual da ANPOCS., que às empresas com atividades produtivas já consolidadas no Brasil, caso notório da Ford, foram estabelecidas diversas exigências como condições para participar do Inovar-Auto, a exemplo de investimento em pesquisa e desenvolvimento, o aumento da eficiência energética e, especialmente, a definição de um percentual mínimo de atividades de manufatura no país, número este que variava segundo o tipo de veículo produzido e o período (2013 a 2017), e a Ford aderiu ao jogo a partir dessas regras.

Os dados de emprego referentes à cadeia automotiva nacional e a São Bernardo do Campo não são meramente complementares. A principal conclusão extraída do caso Ford é que a representação e o poder de barganha das montadoras se movem de forma independente ao seu impacto em termos de geração de empregos e desenvolvimento local, conforme já apontavam os dados sobre a cadeia automotiva mapeados por recentes análises como as de Torres e Cário (2012)TORRES, Ricardo Lobato & CÁRIO, Sílvio Antônio Ferraz. (2012), “O mito da industrialização como desenvolvimento: o comando do excedente na cadeia mercantil da indústria automobilística brasileira”. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, 33: 39-71. e Dulci (2015)DULCI, João Assis. (2015), Desenvolvimento regional e mercado de trabalho em perspectiva comparada: Vale do Paraíba Fluminense e Camaçari (BA). Tese de doutorado, IESP/UERJ, Rio de Janeiro.. Isso coloca um sério desafio aos aparatos institucionais aos quais cabe atuar na configuração da indústria nas mais diversas realidades, constituindo diferentes tipos de ordem industrial cujo efeito mais imediato, em tese, é influenciar o modelo de governança da cadeia (Herrigel e Wittke, 2005HERRIGEL, Gary & WITTKE, Volker. (2005), “Varieties of Vertical Disintegration : The Global Trend Toward Heterogeneous Supply Relations and the Reproduction of Difference in US and German Manufacturing”. In G. MORGAN; E. MOEN e R. WHITLEY (org.). Changing Capitalisms: Internationalisation, Institutional Change and Systems of Economic Organization, New York, Oxford University Press.). É nesse sentido que o Inovar-Auto deveria ser capaz não só de orientar a Ford, mas de impedir o seu fechamento e o corte de milhares de postos de trabalho. Assim, conclui-se que as estratégias das multinacionais do setor automotivo possuem também uma certa imprevisibilidade, e que o caso da Ford no Brasil, empiricamente, é profícuo para pensar o comportamento das firmas em realidades diversas e para a compreensão das instituições em operação no capitalismo brasileiro.

Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pelo apoio financeiro que permitiu a realização desta pesquisa.

  • 1
    O título é uma alusão ao livro “Trabalhando para a Ford – trabalhadores e sindicalistas na indústria automobilística” (Beynon, 1995BEYNON, Huw. (1995), Trabalhando para a Ford – trabalhadores e sindicalistas na indústria automobilística. Rio de Janeiro, Paz e Terra.).
  • 2
    A fabricação de pneumáticos e de todas as autopartes foi somada numa classificação chamada de “Autopeças”. A fabricação de cabines, carrocerias e reboques para veículos automotivos foi retirada, uma vez que é muito residual em São Bernardo do Campo.
  • 3
    A opção se deve ao fato de o primeiro grupo fazer parte da cadeia de comércio, ao passo que o segundo contempla negócios muito pequenos e pouco elásticos às vendas de automóveis novos.
  • 4
    Atual Secretaria de Desenvolvimento da Indústria, Comércio, Serviços e Inovação (SDIC), vinculada ao Ministério da Economia.
  • 5
    Os entrevistados citados neste texto concordaram com a utilização de suas entrevistas em trabalhos acadêmicos, bem como com a citação de seus nomes e suas filiações institucionais.
  • 6
    Valores deflacionados pelo IPCA, 2012=100. O mesmo procedimento se repete em todos os gráficos que tratam de rendimentos.
  • 7
    Fonte: Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).
  • 8
    Humphrey (1982)HUMPHREY, John. (1982), Fazendo o “Milagre”: controle capitalista e luta operária na indústria automobilística brasileira. Petrópolis, Editora Vozes. observou que os ferramenteiros eram os trabalhadores com maior tempo de fábrica e maior estabilidade profissional, os mais sindicalizados e considerados como a base de sustentação do sindicato na indústria automotiva.
  • 9
  • 10
    De propriedade da Ford Otomotiv Sanayi A.S., também conhecida por FORD OTOSAN, 2020Ford Otosan - https://www.fordotosan.com.tr/en/operations/production/plants Consultado em 08/04/2020
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    . Fonte: https://www.fordotosan.com.tr/en/operations/production/plants. Consultado em 08/04/2020.
  • 11
    Fonte: “Ford decide fechar a fábrica de São Bernardo do Campo”. AUTOMOTIVE BUSINESS, 2019AUTOMOTIVE BUSINESS. “Ford decide fechar a fábrica de São Bernardo do Campo”. Automotive Business, 19/02/2019 – http://www.automotivebusiness.com.br/noticia/28758/ford-decide-fechar-a-fabrica-de-sao-bernardo Consultado em: 10/08/2019.
    http://www.automotivebusiness.com.br/not...
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    https://veja.abril.com.br/economia/ford-...
    . Consultado em: 10/08/2019.
  • 12
    “O fechamento da emblemática fábrica da Ford em São Bernardo do Campo é um marco histórico.” – “Ford vai fechar fábrica em São Bernardo do Campo’ – VALOR ECONÔMICO, 2019. Consultado em 10/09/2020.
  • 13
    Peso Total Bruto – Definido pela combinação entre peso do veículo + peso da carroceria + peso da carga.
  • 14
    Escândalo no qual a Volkswagen AG se envolveu em 2015 ao comercializar veículos com motorização 2.0 a diesel integrado por um dispositivo especialmente criado para burlar a emissão de Óxidos de Nitrogênio (NOx) (Santos, 2015SANTOS, Rodrigo Salles P. dos. (2015), “Volkswagen: 'você conhece, você confia!' Racionalidade econômica e fraude como estratégia corporativa”. Democracia e Mundo do Trabalho em Debate (DMT), 02 out. Consultado em: 19/09/2020.).
  • 15
    Fonte: AUTOMOTIVE BUSINESS, 2019AUTOMOTIVE BUSINESS. “Ford decide fechar a fábrica de São Bernardo do Campo”. Automotive Business, 19/02/2019 – http://www.automotivebusiness.com.br/noticia/28758/ford-decide-fechar-a-fabrica-de-sao-bernardo Consultado em: 10/08/2019.
    http://www.automotivebusiness.com.br/not...
    . Consultado em 08/04/2020.
  • 16
    Concebido pelo então presidente da Ford, Alex Trotman, em 1993, o Ford 2000 previa um arrojado processo de desburocratização da empresa (AUTOMOTIVE NEWS, 2003AUTOMOTIVE NEWS. “Ford 2000: a global program that failed”. Automotive News, 16/06/2003 – https://www.autonews.com/article/20030616/SUB/306160819/ford-2000-a-global-program-that-failed Consultado em: 04/05/2020.
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  • Rafael Marques, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (SMABC). Entrevista aos autores. 10/03/2020, São Bernardo do Campo (SP).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2020
  • Aceito
    01 Fev 2021
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