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As Ações Diretas de Inconstitucionalidade no controle constitucional brasileiro: uma análise dos atores, temas e frequências de acionamentos ao STF entre 2012 e 2021

Actions of Unconstitutionality in Brazilian constitutional control: an analysis of the actors, themes and frequency of actions before the Supreme Court between 2012 and 2021

Resumos

Resumo

Este artigo propõe uma aproximação da literatura do Direito Constitucional e das Políticas Públicas, em especial dos estudos de formação da agenda, ao analisar a dinâmica das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) como instrumento de atenção e de veto de agenda dos atores legitimados a propô-la perante o Supremo Tribunal Federal. O estudo inova ao analisar a dinâmica do processo pré-decisório, adotando a proposição da ação inicial como objeto de análise, independente de seu resultado. A partir de um referencial teórico e metodológico próprio do campo de Políticas Públicas e baseado na estrutura internacional de dados do Comparative Agendas Project, este artigo categoriza todas as ADI contestadas entre os anos de 2012 e 2021 de acordo com o tipo de política setorial a que elas se referem, ampliando a capacidade analítica dos dados, demonstrando, consequentemente, a frequência de acionamento ao longo dos anos e informando quem são os atores propositores. Como resultado, demonstramos que dentre as 2.300 ações analisadas, três grandes temas se destacam, representando 66% do total das ADI propostas no período analisado, são eles: Governo e Administração Pública; Judicário, Justiça e Violência; e Macroeconomia. Para além destes resultados, demonstramos o ápice da utilização desse instrumento (ADI) durante a pandemia de COVID-19.

Palavras-chave:
STF; controle de constitucionalidade; agenda-setting; atenção governamental; Ações Diretas de Inconstitucionalidade


Abstract

This paper proposes an approach to the literature of Constitutional Law and Public Policy, especially agenda-setting studies, by examining the dynamics of Direct Actions of Unconstitutionality as an instrument of attention and veto of the agenda of the actors holding legitimacy to propose it before the Federal Supreme Court. The study innovates by analyzing the dynamics of the pre-decisional process, adopting the proposal of the action as the object of analysis, regardless of its outcome. Using a theoretical and methodological framework specific to the field of Public Policy, based on the international data structure of the Comparative Agendas Project, this article categorizes all the contested actions between 2012 and 2021, according to the type of sectoral policy to which they refer, expanding the analytical capacity of the data, consequently demonstrating the frequency of actions over the years and the proposing actors. As a result, this article demonstrates that among the 2.300 actions analyzed, three major themes, representing 66% of the total ADI proposed, stood out: Government and Public Administration; Judiciary, Justice and Violence; and Macroeconomic. In addition to these results, we demonstrate the peak use of this instrument during the COVID-19 pandemic.

Keywords:
Brazilian Supreme Court; abstract control; agenda setting; governmental attention; proposing actors


1. Introdução

A promulgação da Constituição Federal em 1988 conferiu diversas atribuições ao Supremo Tribunal Federal (STF), instituído como órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro. Dentre elas, cabe destacar a atribuição sobre o julgamento das ações do controle de constitucionalidade das normas produzidas, principalmente pelos poderes Executivo e Legislativo, tornando o STF uma instituição altamente relevante para o sistema político brasileiro contemporâneo, por se tratar de uma instituição reguladora da constitucionalidade das ações dos demais poderes (Taylor e Da Ros, 2008TAYLOR, Matthew; DA ROS, Luciano. (2008), “Os Partidos Dentro e Fora do Poder: A Judicialização como Resultado Contingente da Estratégia Política”. Revista de Ciências Sociais, 51, 4:825-864. DOI: 10.1590/S0011-52582008000400002.
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).

A literatura recente a respeito das ações do controle concentrado de constitucionalidade, especificamente quanto à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), tem se debruçado em trabalhos voltados para a análise das decisões da Suprema Corte brasileira, sobretudo, embora não somente, para a proteção de direitos e garantias fundamentais e na consequente judicialização desses temas pela via da ADI (Lopes, 2011LOPES, Ana Paula de Almeida. (2011) “A judicialização do processo político e a politização do poder judiciário: uma análise da intervenção do Supremo Tribunal Federal no processo político partidário”. Revista Brasileira de Políticas Públicas, 1, 2:149-177. DOI: 10.5102/rbpp.v1i2.1272.
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; Madeira e Oliveira, 2021MADEIRA, Lígia Mori; OLIVEIRA, Vanessa Elias. (2021), “Judicialização da política no enfrentamento à Covid-193: um novo padrão decisório do STF?” Revista Brasileira de Ciência Política, 35:1-44, e247055. DOI: 10.1590/0103-3352.2021.35.247055.
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; Sá e Bonfim, 2015SÁ, Mariana Oliveira de; BONFIM, Vinícius Silva. (2015), “A atuação do Supremo Tribunal Federal frente aos fenômenos da judicialização da política e do ativismo judicial. Revista Brasileira de Políticas Públicas, 5, 2:169-189. DOI: 10.5102/rbpp.v5i2.3126.
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).

Para além da função contramajoritária clássica que uma Corte Constitucional pode assumir, qual seja a de resguardar de forma abrangente uma ampla gama de interesses minoritários, o STF, ao processar e julgar uma ADI, tem o poder de afastar a aplicabilidade de uma lei editada pelos demais Poderes, oferecer interpretação da lei conforme a Constituição, determinar no espaço temporal quando suas decisões devem produzir efeito, além de alcançar atos normativos dos níveis estaduais e federais e de todos os ramos de poder, atuais ou passados, corrigindo aqueles que ferem os princípios e normas constitucionais originárias estabelecidas pelo Constituinte de 1988 (Alberts et al., 2012ALBERTS, Susan; WARSHAW, Chris; WEINGAST, Barry. (2012), “Democratization and countermajoritarian institutions: power and constitutional design in self-enforcing democracy”, in T. Ginsburg. (org.), Comparative constitutional design, Cambridge, Cambridge University Press.; Arantes, 2021ARANTES, Rogério Bastos. (2021), “STF e Constituição policy-oriented”. Suprema: revista de estudos constitucionais, 1, 1:299-342. DOI: 10.53798/suprema.2021.v1.n1.a26.
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).

Dada a capacidade que este tipo de ação possui ao invalidar ou limitar edições de leis e atos normativos dos demais Poderes, impondo limites, regulando e até vetando agendas de policymakers do Executivo e do Legislativo, neste artigo temos como principal objetivo entender qual a dinâmica de acionamentos ao Supremo Tribunal Federal via Ação Direta de Inconstitucionalidade. Quem aciona o STF? Com que frequência? Quais assuntos são questionados? É possível identificar um padrão nos acionamentos à Suprema Corte via ADI nos últimos 10 anos?

A partir destas perguntas, mapeamos e analisamos a dinâmica de acionamentos ao Supremo Tribunal Federal a partir das Ações Diretas de Inconstitucionalidade entre os anos de 2012 e 2021, tanto na esfera federal quanto nas estaduais. Para esta pesquisa, “analisar a dinâmica” significa: 1) mapear a frequência de acionamentos ao longo do tempo, destacando, ano a ano, o número de proposituras levadas à Suprema Corte, identificando o padrão de comportamento em relação ao contexto político, econômico e social; 2) mapear os temas das políticas públicas presentes nas normas contestadas, analisando os principais setores questionados no STF; e 3) mapear os atores propositores das ADI, investigando o perfil de atuação dentre aqueles institucionalmente encarregados de questionar e acionar o STF acerca da inconstitucionalidade de normas produzidas.

Considerando que analisar a ADI pelos seus resultados não é uma nova forma de abordar o tema (Carvalho, 2009CARVALHO, Ernani. (2009), “Judicialização da política no Brasil: controlo de constitucionalidade e racionalidade política”. Análise social, 44, 191:315-335.; Vianna et al., 2007VIANNA, Werneck Luiz; BURGOS, Baumann Marcelo; SALLES, Paula Martins. (2007), “Dezessete anos de Judicialização da Política”. Tempo Social, 19, 2:39-85. DOI: 10.1590/S0103-20702007000200002.
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), nesta pesquisa propomos estudar a ADI a partir da sua autuação, independentemente de seu resultado e impacto futuro em análises de casos isolados. O presente estudo inova ao apresentar um grande mapa sobre a dinâmica inicial de atuação dos atores a partir do uso das ADI, seus temas e momentos.

Inova, também, ao categorizar os acionamentos a partir de uma estrutura metodológica internacionalmente reconhecida e comparável, proposta pelo Comparative Agendas Project, adaptada e conduzida no Brasil pelo Brazilian Policy Agendas Project. Esta estrutura metodológica se propõe a setorizar e quantificar a atenção dos atores governamentais a partir da análise de diversos tipos de documentos oficiais que sejam capazes de indicar prioridades, ações e intenções.

Para este trabalho, foi criado um banco de dados com base nas 2.300 ADI propostas no período analisado, no qual foram definidas diferentes variáveis analíticas, tais como o tipo de política setorial, o ator proponente, o ano da proposição, ampliando as variáveis e as possibilidades analíticas dos dados fornecidos pelo próprio STF em sua página oficial (Brasil, 2023BRASIL (2023). Supremo Tribunal Federal. Portal da Transparência STF. Disponivel em <https://portal.stf.jus.br/transparencia>. Acesso em 18 jan. 2023.
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). Dessa forma, este artigo dialoga com os preceitos fundamentais da teoria de agenda ao analisar o momento pré-decisório, iluminando a proposição inicial que embasa o questionamento ao STF via ADI.

O artigo está estruturado em cinco partes para além desta introdução. A primeira é dedicada a analisar os aspectos teóricos fundamentais relacionados à ADI, estabelecendo uma revisão crítica dos seus conceitos e a importância deste instrumento constitucional não apenas para o sistema jurídico, mas, também, para o sistema político brasileiro e para a manutenção da democracia e da regulação entre os Poderes. Em seguida, abordamos a metodologia do Comparative Agendas Project (CAP) sob a qual se fundam a coleta dos dados e as consequentes análises. Nestas análises, evidenciamos as fontes, os instrumentos e os tipos de dados coletados, as ferramentas metodológicas de análise de conteúdo e de codificação de dados utilizadas, assim como as variáveis selecionadas para a análise. Na sequência, demonstramos os resultados encontrados sobre a dinâmica dos acionamentos, os atores propositores e os tipos de políticas questionadas. Por fim, o artigo apresenta as conclusões encontradas e novas agendas de pesquisa na área.

2. A Ação Direta de Inconstitucionalidade no sistema constitucional brasileiro

Com o objetivo de estudar a dinâmica dos acionamentos dos atores propositores no Supremo Tribunal Federal ao longo do tempo, apontando a frequência em números de acionamentos a este Tribunal pela via da ADI, a preponderância dos atores que o acionaram e os temas questionados, esta seção busca recuperar e compreender no que consiste esta ação pertencente ao controle de constitucionalidade, sua trajetória e espaço ocupado na ordem constitucional brasileira, até assumir a posição de destaque dentro do sistema jurídico e político nacional.

A ADI, ao lado das outras ações pertencentes ao controle de constitucionalidade,1 1 As demais ações pertencentes ao controle de constitucionalidade são: a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). busca manter a posição de hierarquia e de superioridade que a Constituição Federal assume no sistema normativo brasileiro frente às demais leis, garantindo a segurança das relações jurídicas que não podem ser baseadas em normas inconstitucionais (Silva, 2021SILVA, Virgílio Afonso da. (2021), Direito Constitucional Brasileiro. 1 ed. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo.; Moraes, 2019MORAES, Alexandre. (2019), Direito Constitucional. Curitiba, Editora Atlas.). Assim, neste controle, os atores que acionam a Suprema Corte buscam proteger a ordem jurídica objetiva, portanto “não alegam interesses próprios ou alheios, atuam como representantes do interesse público” (Mendes, 2007, pMENDES, Gilmar Ferreira. (2007), Jurisdição constitucional. O controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5a edição, São Paulo, Saraiva.. 162).

No Brasil, a atribuição de julgar e processar esta ação foi dada ao STF, que por meio de uma escolha política externalizada pela edição da Emenda Constitucional nº16/1965, o legislador constituinte inseriu no ordenamento jurídico pátrio o controle judicial concentrado de constitucionalidade. Esta ação previa a fiscalização abstrata de constitucionalidade, atribuindo ao STF a competência originária de apreciar “a representação contra a inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador Geral da República” (Dutra, 2012, pDUTRA, Carlos Roberto de Alckmin. (2012), A evolução histórica do controle de constitucionalidade de leis e seu papel no século XXI. Disponível em https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/470_arquivo.pdf, consultado em 03/03/2023.
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. 17).

Hoje, com a ADI institucionalizada pela Constituição Federal de 1988, o rol dos atores propositores foi consideravelmente ampliado, passando da exclusividade do Procurador Geral da República para diferentes órgãos e autoridades, tais como: o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador do Estado ou do Distrito Federal, o Procurador Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partidos políticos com representação no Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.2 2 Art. 103, I a IX, da Constituição Federal.

Além disso, houve a instituição de outras ações do controle concentrado, tais como a arguição de descumprimento de preceito constitucional, prevista no texto original da Constituição Federal de 1988 e regulamentada pela Lei nº 9.882/99, a ação direta de constitucionalidade, inserida pela Emenda Constitucional nº 03/1993 e ação direta de inconstitucionalidade por omissão, prevista no texto original da Constituição Federal de 1988 e disciplinada pela Lei nº 12.063/2009. Todas essas ações, ao lado da ADI, buscam determinar os contornos da produção legislativa brasileira, moldando-a aos limites constitucionais.

O objetivo primordial da ADI foi mantido: o de expurgar da ordem jurídica leis ou atos normativos, federais e estaduais, que estejam em desconformidade com as diretrizes da Constituição Federal. É neste sentido, que o artigo 102, I, a, da Constituição Federal de 1988 estabeleceu que cabe ao STF o julgamento da ADI de Lei ou Ato Normativo, federal ou estadual.

Desde então, ao longo dos anos, o STF foi retratado como um dos atores responsáveis pelos principais avanços nos temas dos direitos fundamentais, sobretudo a partir do começo dos anos 2000. Essa percepção se deve muito à atribuição conferida a esta Corte de processar e julgar as ações do controle concentrado de constitucionalidade, em especial as ADI que validaram diversos temas em prol dos direitos e das liberdades individuais em suas decisões (Mendes, 2019MENDES, Conrado Hübner. (2019) “O Supremo Tribunal Federal e a Judicialização de Políticas Públicas”, in V.E. Oliveira. (org.), Judicialização de Políticas Públicas No Brasil, Rio de Janeiro, Editora FIOCRUZ. DOI: https://doi.org/10.7476/9786557080733.
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).

A posição institucional assumida pelo STF não partiu de uma escolha do próprio órgão, mas muito em razão da arquitetura do modelo institucional vigente, no qual o Supremo Tribunal Federal é provocado a decidir e o faz, geralmente, nos limites dos pedidos formulados pelas partes que o acionam pela via da ADI (Mendes, 2019MENDES, Conrado Hübner. (2019) “O Supremo Tribunal Federal e a Judicialização de Políticas Públicas”, in V.E. Oliveira. (org.), Judicialização de Políticas Públicas No Brasil, Rio de Janeiro, Editora FIOCRUZ. DOI: https://doi.org/10.7476/9786557080733.
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).

Deste poder de decisão, capaz de declarar a inconstitucionalidade das agendas implementadas pelos atores dos Poderes Legislativo e Executivo, deriva o que a literatura chama de judicialização da política, caracterizada pela expansão do escopo do Judiciário a assuntos que antes eram reservados ao tratamento dado pelo Legislativo ou pelo Executivo, e, também, pelo desmantelamento simbólico do mundo político, dada a inflação do ato de legislar e da falta de clareza dos textos legais e fracasso das instâncias de resolução de conflitos tradicionais (família, igreja etc.). Esta expansão deriva do que Ernani Carvalho e a literatura especializada denominam de policy-seeking approach, isto é, a “habilidade e disposição dos atores políticos que perderam no processo legislativo de provocarem decisões judiciais sobre a constitucionalidade das políticas aprovadas pela maioria parlamentar” (Carvalho, 2009, pCARVALHO, Ernani. (2009), “Judicialização da política no Brasil: controlo de constitucionalidade e racionalidade política”. Análise social, 44, 191:315-335.. 317). Neste sentido, os atores propositores de uma ADI trazem o STF “para dentro do processo legislativo”, o que é um comportamento esperado e irresistível especialmente para a oposição, considerando o fato do Poder Judiciário brasileiro, como um todo, ser independente e autônomo em relação aos demais Poderes da República, podendo decidir sem constrangimento. É a chamada unconstrained courts approach da decisão judicial (Carvalho, 2009CARVALHO, Ernani. (2009), “Judicialização da política no Brasil: controlo de constitucionalidade e racionalidade política”. Análise social, 44, 191:315-335.).

O cenário é complexo e tem implicado uma crescente institucionalização do Direito na vida social, invadindo espaços que antes eram inacessíveis a ele, publicizando a esfera privada e tirando o tema da justiça social das mãos da sociedade civil e do Parlamento (Vianna et al., 1999VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo Baummam. (1999), A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Revan.). O resultado deste movimento foi a jurisdicização das relações sociais, fazendo do Direito, dos seus procedimentos e dos órgãos jurisdicionais em um “espaço institucional onde se concentra a judicialização de maior envergadura e repercussão na democracia brasileira” (Mendes, 2019, pMENDES, Conrado Hübner. (2019) “O Supremo Tribunal Federal e a Judicialização de Políticas Públicas”, in V.E. Oliveira. (org.), Judicialização de Políticas Públicas No Brasil, Rio de Janeiro, Editora FIOCRUZ. DOI: https://doi.org/10.7476/9786557080733.
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. 80).

A esse respeito, alguns estudos vêm analisando e destacando o uso da ADI como forma de “judicialização da política e de politização da justiça”, como exemplificado por um estudo de caso tratado por Lopes (2011, pLOPES, Ana Paula de Almeida. (2011) “A judicialização do processo político e a politização do poder judiciário: uma análise da intervenção do Supremo Tribunal Federal no processo político partidário”. Revista Brasileira de Políticas Públicas, 1, 2:149-177. DOI: 10.5102/rbpp.v1i2.1272.
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. 149), no qual o controle de constitucionalidade exercido pelo STF declarou a inconstitucionalidade da vigência da cláusula de barreira, prevista no artigo 13 da Lei nº 9.096/95 - Lei dos Partidos Políticos (Lopes, 2011LOPES, Ana Paula de Almeida. (2011) “A judicialização do processo político e a politização do poder judiciário: uma análise da intervenção do Supremo Tribunal Federal no processo político partidário”. Revista Brasileira de Políticas Públicas, 1, 2:149-177. DOI: 10.5102/rbpp.v1i2.1272.
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). Em Sá e Bonfim (2015)SÁ, Mariana Oliveira de; BONFIM, Vinícius Silva. (2015), “A atuação do Supremo Tribunal Federal frente aos fenômenos da judicialização da política e do ativismo judicial. Revista Brasileira de Políticas Públicas, 5, 2:169-189. DOI: 10.5102/rbpp.v5i2.3126.
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, os autores analisaram a atuação do STF quando, ao ser chamado a se pronunciar sobre o reconhecimento da união estável para casais do mesmo sexo, julgaram a ADI 4277/2009 e a ADPF 132/132 no sentido de proibir a discriminação das pessoas em razão do sexo, “seja no plano da dicotomia homem/mulher (gênero), seja no plano da orientação sexual de cada qual deles” (STF, ADI 132/DF. Ministro Relator Ayres de Britto). Nos estudos de Madeira e Oliveira (2021)MADEIRA, Lígia Mori; OLIVEIRA, Vanessa Elias. (2021), “Judicialização da política no enfrentamento à Covid-193: um novo padrão decisório do STF?” Revista Brasileira de Ciência Política, 35:1-44, e247055. DOI: 10.1590/0103-3352.2021.35.247055.
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, mais um exemplo é retratado sobre a judicialização da política e das políticas públicas em temas relevantes para a sociedade perante o STF. No caso, as ações do controle concentrado de constitucionalidade serviram como instrumentos para a contestação das medidas impostas pelo governo federal à época da pandemia.

Assim, os estudos a respeito da ADI e das demais ações do controle concentrado que vêm sendo desenvolvidos pela literatura nacional são majoritariamente focados em decisões do STF sobre estudos de casos setoriais, destacando o papel da ADI e da Suprema Corte brasileira na proteção de direitos e garantias fundamentais e na consequente judicialização desses temas (Arantes, 1997ARANTES, Rogério Bastos. (1997), Judiciário e Política no Brasil, São Paulo, Idesp: Editora Sumaré., 2007ARANTES, Rogério Bastos. (2007), “Judiciário: entre a Justiça e a Política”, in L. Avelar; A.O. Cintra. (org.), Sistema Político Brasileiro: uma introdução. 2 ed. Rio de Janeiro, São Paulo, Editora UNESP.; Oliveira e Carvalho, 2006OLIVEIRA, Vanessa Elias; CARVALHO, Ernani. (2006), “A judicialização da política: um tema em aberto”, Revista Política Hoje, 1, 15:1-21.; Veríssimo, 2008VERÍSSIMO, Marcos Paulo. (2008), “Constituição de 1988, 20 anos depois: Suprema Corte e ativismo judicial à brasileira”. Revista Direito GV, 4, 2:404-440. DOI: 10.1590/S1808-24322008000200004.
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; Taylor, 2007TAYLOR, Matthew. (2007), “O judiciário e as políticas públicas no Brasil”. Dados, 50, 2:229-257. DOI: 10.1590/S0011-52582007000200001.
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).

No presente trabalho, que se soma aos esforços anteriores do campo, o destaque se desloca para um mapeamento macro e amplo, que apresenta e discute a frequência, a dinâmica e a relevância que esta ação do controle concentrado de constitucionalidade assume como um indicador de atenção dos atores propositores no cenário brasileiro da última década. Aqui, buscamos compreender que, a partir do pedido de declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou de um ato normativo, os atores institucionalmente autorizados a isso têm a clara intenção de questionar decisões já tomadas e de manter vivo o processo decisório até o seu limite. A intenção, potencialmente, seria de ganhar uma disputa previamente perdida em outras arenas e instâncias, ao propor a invalidação de uma norma e, consequentemente, a não implementação de uma agenda específica aprovada pelos atores dos poderes Legislativo ou Executivo em instâncias anteriores.

Assim, este estudo foca no processo de escolha de qual política substantiva o autor propositor se propõe a contestar pela via da ADI, partindo da hipótese de que a mensuração desta predileção em oposição ao que o STF decide como inconstitucional ou não, se revela um importante indicador da atenção política e de como as partes legitimadas podem angariar, em torno de si, “considerável atenção pública, decorrente em especial da visibilidade que os meios de comunicação dedicam a esses episódios” (Taylor e Da Ros, 2008, pTAYLOR, Matthew; DA ROS, Luciano. (2008), “Os Partidos Dentro e Fora do Poder: A Judicialização como Resultado Contingente da Estratégia Política”. Revista de Ciências Sociais, 51, 4:825-864. DOI: 10.1590/S0011-52582008000400002.
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. 827). Partindo da percepção segundo a qual a propositura de uma ADI tem como objetivo primordial vetar, invalidar, ou redirecionar para o processo político-jurídico correto, independente da avaliação e do resultado desta ação, buscamos, neste trabalho, olhar para o momento pré-decisório, ou seja, para o tema, o ator e o conteúdo das propostas de ADI ao longo dos últimos 10 anos.

3. Metodologia

Este artigo utiliza de um amplo repertório, com diferentes instrumentos para cumprir seus objetivos. Inicialmente, a busca e coleta de dados se deu a partir do banco de dados mantido no site oficial do STF. Uma dificuldade inicial observada diz respeito ao número exato de Ações Direitas de Inconstitucionalidade propostas no período de 2012 a 2021. Isto se deu porque havia diferentes abas para a organização dos dados nos bancos disponibilizados pelo site de estatísticas do STF, denominadas de “decisões” e de “acervo”. Na primeira, constam todos os processos com decisões finais, isto é, que já não estão mais em tramitação, enquanto na aba “acervo” constam todos os processos que ainda estão em tramitação, com e sem decisões, sejam elas intermediárias, finais ou liminares. Ambos os arquivos são relevantes para o nosso estudo, visto que buscamos analisar a lógica de acionamento, independentemente do resultado. Após uma checagem sobre possíveis duplicidades nos dados - que não ocorreram -, foi realizada a compilação entre os bancos via planilha de Excel. Esta ação foi fundamental para assegurar o total de ADI propostas no período analisado (2012-2021), resultando no universo de 2.300 ações.

Para uma análise apurada de cada uma dessas ADI, este estudo levou em consideração a aplicação de algumas premissas e recortes metodológicos que consideramos fundamentais para que pudéssemos cumprir com os objetivos propostos. Primeiramente, a escolha da ADI como o objeto principal deste trabalho se justifica pela relevância quantitativa desta ação frente às demais ações do controle concentrado. Considerando o período analisado, dentre todas as ações, 77% foram ADI. Em relação às demais ações deste controle, 20% representam a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), 2% a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e 1% representa a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO).

Outra escolha metodológica reside na seleção e justificativa dos anos analisados. Considerando a massiva quantidade de ações propostas mapeadas e apresentadas pelo portal do STF nos últimos 20 anos,3 3 Ao todo, foram 4.011 ADI propostas entre 2002 e 2021. optamos por um recorte inicial que considerasse os anos de 2012 a 2021, para que fosse viável apresentar as análises para este trabalho, respeitando princípios teóricos e metodológicos da pesquisa em políticas públicas, conforme Sabatier (1999)SABATIER, Paul. (1999), Theories of the Policy Process. Boulder, Westview Press.. Além disso, o estudo da última década (2012-2021) abrange períodos de crises e fricções institucionais significativas vivenciadas pelo Brasil e que são relevantes para nossas análises. Este quadro temporal abrange as legislaturas de Dilma Rousseff (2011-2016), Michel Temer (2016-2018) e Jair Messias Bolsonaro (2019-2021). Neste último caso, a despeito do último ano de sua gestão, isto é, o ano de 2022, não ter sido incluído nesta pesquisa, destacamos que os grandes temas ocorridos em sua gestão, especialmente os relacionados à pandemia, foram considerados em nossas análises.

Com o universo de ações propostas mapeadas e baixadas do site oficial do STF, o banco de dados foi construído a partir de algumas variáveis e categorias, conforme demonstrado na Tabela 1, sendo eles: ano da proposição; classe de processo; status do processo; esfera; código de política setorial; subcódigo de política setorial; ator requerente e descrição CAP.

Tabela 1
Variáveis mobilizadas

As variáveis de ano, classe, status, esfera e ator foram retiradas automaticamente do sistema de organização de base de dados do STF. Portanto, a partir desses dados iniciais foi possível analisar as perguntas e responder aos dois primeiros objetivos propostos, a saber: a demonstração gráfica do comportamento dos acionamentos ao STF ao longo do tempo e a quantidade de acionamentos pelos diferentes atores.

A terceira análise proposta diz respeito ao conteúdo da proposição da ADI, ou seja, ao tipo de política pública ou área setorial questionada ao STF. Para essa categorização, o estudo se valeu da perspectiva metodológica do Comparative Agendas Project (CAP), método desenvolvido por Baumgartner e Jones (1993)BAUMGARTNER, Frank; JONES, Bryan. (1993), Agendas and Instability in American Politics. Chicago, University of Chicago Press. difundido em diversos países e adaptado para o contexto brasileiro pelo Brazilian Policy Agendas Project, voltado a quantificar e sistematizar a atenção governamental no Brasil de acordo com a política setorial substantiva da norma analisada.

Em termos práticos, a partir de uma tabela de variáveis universais que representam diferentes políticas públicas setoriais (Tabela 2), é possível seguir com um processo de codificação e de construção de banco de dados a respeito de diversos temas que reflitam a atenção do governo. A metodologia de codificação vem sendo aplicada por diversos países tanto para a análise da dinâmica doméstica das políticas públicas, quanto de forma comparada entre países. Tal feito só é possível pois todos os tipos de dados coletados pelos mais diversos pesquisadores no mundo seguem o mesmo processo de codificação de dados e o mesmo conjunto de variáveis demonstrado na sequência.

Tabela 2
Classificação das políticas setoriais

No Brasil, diversos trabalhos acadêmicos têm se utilizado dessa estrutura metodológica e analítica. É o caso, por exemplo, do trabalho de Brasil, Capella e Fagan (2020)BRASIL, Felipe Gonçalves; CAPELLA, Ana Claudia Niedhardt; FAGAN, Edward John. (2020), “Policy Change in Brazil: New Challenges for Policy Analysis in Latin America”. Latin American Policy, 11, 1:24-41. DOI: 10.1111/lamp.12178.
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em que os autores analisam e descrevem a dinâmica da atenção governamental para diferentes questões políticas ao longo do tempo. Já em Brasil e Bichir (2022)BRASIL, Felipe Gonçalves; BICHIR, Renata. (2022), “Policy Dynamics and Government Attention over Welfare Policies: An Analysis of the Brazilian Case”. Brazilian Political Science Review, 16, 1, e0007. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-3821202200010006.
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, os autores mapearam a dinâmica da atenção nos discursos de Presidentes da República, a fim de analisar a atenção governamental nas leis e normas sobre as políticas de bem-estar social e sobre a distribuição orçamentária. Já neste trabalho, apresentamos os primeiros resultados aplicados ao poder Judiciário e, em especial, às Ações Diretas de Inconstitucionalidade.

O modelo do CAP se utiliza de um livro de códigos chamado de Master Codebook, composto por 21 categorias de políticas setoriais distintas, permitindo o mapeamento e a análise da atenção sobre as políticas em diversos documentos. O objetivo central deste livro de códigos é transformar - via análise de conteúdo - normas, leis, discursos e outros tipos de documentos oficiais em códigos comuns, quantitativos, que permitam a mensuração e a análise da frequência com que cada variável aparece ao longo do tempo, identificando, assim, prioridades e mudanças na atenção governamental.

Seguindo o método do sistema CAP, adotamos como unidade de análise cada uma das duas mil e trezentas ADI, buscando em seu conteúdo a política pública substantiva à qual aquela contestação se refere.

A título de exemplo, a ADI 5595/2016, proposta pelo Procurador Geral da República, buscava a declaração de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 86/2015, artigo 2º e §3º, que prevê o financiamento federal para ações e serviços públicos de saúde. Tratando-se de uma norma que versa substancialmente do tema “saúde”, cuja referência se deu pelo código 3, conforme explicitado na Tabela 2. Na ADI 6401/2020, o Partido dos Trabalhadores desafiou a constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 47/2005, que concerne ao sistema remuneratório e aos benefícios do servidor público civil. Para esta ação, por se tratar de uma temática relacionada à administração púbica e seus funcionários, inserimos o código 20, referente ao “governo e administração pública”. Sucessivamente, o mesmo processo foi adotado em todas as ações analisadas no quadro temporal proposto.

Cada ADI foi analisada individualmente, nos termos dos exemplos citados acima, por dois pesquisadores diferentes. Para cada ação foi atribuído um único código referente à política setorial, de acordo com a Tabela 2. Ao final deste processo, após a compatibilidade do processo de codificação feito em double blind, o banco de dados foi concluído com a última variável analítica restante: o código referente ao tipo de política setorial de cada uma das ADI mapeadas.

Assim, para além da análise da quantidade de acionamentos via ADI ano a ano, do tipo de ator propositor e a esfera, o banco de dados também permite responder à última pergunta deste estudo que se refere aos temas setoriais questionados via ADI entre os anos de 2012 e 2021.

4. Resultados e discussões

Esta seção se dedica a apresentar e discutir os resultados deste estudo, apontando primeiramente, a distribuição do número de ADI propostas entre 2012 e 2021 perante o STF, demonstrando e comparando a frequência de acionamento ao longo desses anos, os atores propositores e a política substancial a que se refere a ação a partir da metodologia proposta.

O primeiro resultado apresentado mostra aquilo que a literatura especializada contemporânea já vem chamando a atenção. Isto é, destaca-se o crescente número de acionamentos ao STF para julgar ações de controle concentrado de constitucionalidade. Conforme evidenciado pelo Gráfico 1, nos últimos 10 anos o número de acionamentos ao STF, que apresentava um cenário de estabilidade e média de 230 ações por ano, cresceu 76% quando comparado com a média histórica neste período, atingindo um pico de acionamento no ano de 2021 com 405 processos encaminhados à Suprema Corte.

Gráfico 1
Pico de acionamento no STF nos últimos 10 anos

Destaques podem ser dados para dois momentos: o primeiro, iniciado em 2015 e mantido até 2017; e o segundo, entre os anos de 2019 e 2021.

Em uma primeira análise é possível identificar o crescimento repentino no número de ADI propostas entre 2019 e 2022. Este aumento nos acionamentos eleva a média geral do período para 230 ações propostas por ano, demonstrada pela reta de cor laranja no Gráfico 1. É importante, no entanto, verificar que os anos de 2015 e 2017 também apresentam pequenos picos de atenção, com significativo aumento no número de proposições de Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Desconsiderando o período de 2019 a 2022, os anos de 2015 e de 2017 são os que apresentam um maior número de processos dentro do período analisado. Este fato se explica, sobretudo, pelo alto número de questionamentos relacionados à tentativa de bloqueio da agenda presidencial e dos processos de afastamento e de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, no qual o Supremo Tribunal Federal foi chamado por diversas vezes para julgar a constitucionalidade de ações relacionadas ao caso.

O segundo momento em que houve um crescimento no número de acionamentos ao STV via ADI, de forma mais evidente e incontestável, abarca os anos de 2019 a 2021, que compreendem todo o período da pandemia de COVID-19, período em que a gestão vigente em nível Federal era a do ex-presidente Jair Bolsonaro. Ainda que os dados utilizados neste trabalho considerem as ações em nível federal e estadual, é imprescindível destacar os grandes problemas de coordenação federativa vividas no Brasil durante este período, sobretudo, mas não exclusivamente, relacionados aos temas ligados à pandemia, à vacinação e às ações de combate e de prevenção à COVID-19.

Juntos, os anos de 2019, 2020 e 2021 concentram 43% de todas as ADI propostas ao longo dos 10 anos analisados. A curva crescente, que se inicia ainda em 2019 no período pré-pandemia com o acionamento do STF para vetar agendas diversas do início das gestões dos chefes do executivo nacional e estaduais, toma novos rumos no final de 2019 e em 2020, ao apresentar uma grande distorção em termos de acionamento, superando em 54% a média de ações propostas. Foram 354 ADI acionadas perante o STF. Esse pico de atenção se destaca ainda mais em 2021, ano em que superou em 76% a média de ações propostas, com 405 acionamentos à Suprema Corte brasileira.

De forma longitudinal e comparada, os períodos de 2015-2017 e de 2019-2021 apresentam dois momentos de atenção com alto crescimento no número de acionamentos ao STF. Apesar dos eventos causadores desses picos de atenção serem diferentes, e as próprias pontuações no equilíbrio da dinâmica de acionamentos sejam distintas entre si, quer seja pela intensidade no número de propostas, quer seja sobre os temas abordados nos questionamentos ao STF, a hipótese que se evidencia neste cenário é de que momentos de instabilidades institucionais têm aumentado potencialmente os acionamentos ao STF como instância primordial e regulatória do jogo político, seja para afirmar ou para vetar agendas e decisões baseadas na constitucionalidade das propostas dos poderes Executivo e Legislativo.

Diante deste cenário que demonstra um abrupto crescimento nos acionamentos ao STF, outros indicadores se mostram de extrema relevância para uma melhor compreensão do momento histórico marcado por pontuações nos níveis de atenção. Isto é, quais atores mais acionaram a Suprema Corte brasileira e quais as políticas setoriais foram alvo destes questionamentos via ADI?

Na Tabela 3 abaixo, consolidamos todos os atores responsáveis por impugnar normas federais e estaduais entre os anos 2012 a 2021, pela via da Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Tabela 3
Natureza da norma impugnada pelos atores legitimados entre os anos 2012-2021

Ao analisar a Tabela acima, notamos que, dentre as 2.300 ADI, as associações e o Procurador Geral da República despontam como os principais postulantes de ADI, sendo que, conjuntamente, eles são os responsáveis pela fatia de 54% do total dos acionamentos. Os partidos políticos e as Confederações, juntos, representam 30% do total, enquanto os Governadores de Estado e a OAB correspondem a 15%. Outros atores legitimados, tais como o Presidente da República, sindicatos, Mesas da Câmara e do Senado Federal e Mesas de Assembleias Legislativas, não representam mais do que 3% da preponderância de propositura da ADI ao longo destes anos. O Gráfico 2 apresenta o percentual de acionamentos de cada um desses atores.

Gráfico 2
Preponderância de atores entre os anos de 2012 e 2021

No que concerne aos atores postulantes, esta análise se apoiou em estudo previamente desenvolvido por Vianna et al. (2007)VIANNA, Werneck Luiz; BURGOS, Baumann Marcelo; SALLES, Paula Martins. (2007), “Dezessete anos de Judicialização da Política”. Tempo Social, 19, 2:39-85. DOI: 10.1590/S0103-20702007000200002.
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para comparar seus resultados com as análises dos atores encontradas na Tabela 3. Os autores analisaram o período de 1988 até 2005 e destacaram que os quatro principais atores propositores de ADI foram: os governadores representando 26% do total, as associações (24,9%), os procuradores (22,2%) e os partidos políticos (19,8%). A despeito do hiato temporal entre o estudo acima com a pesquisa aqui proposta, destacamos as mudanças relativas com relação ao perfil dos atores e suas posições entre os que mais acionam o Supremo Tribunal Federal via Ações Diretas de Inconstitucionalidade.

Olhando para o PGR, seu papel institucional conferido pela Constituição Federal, de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis,4 4 Art. 127, caput, da Constituição Federal. pode ser um fator que justifica a sua preponderância ao longo dos anos. Grande parte das ADI promovidas por este ator, em consonância ao que fora estabelecido pela Constituição Federal, buscou resguardar os princípios constitucionais da isonomia, da liberdade religiosa e da laicidade estatal.

É o caso, por exemplo, da ADI 5258/2015, proposta com o intuito de vetar a manutenção de exemplar da bíblia em escolas e bibliotecas públicas estaduais. Já na ADI 4983/2013, o PGR atuou em defesa dos animais, pleiteando vetar as vaquejadas como atividade esportiva, considerando a crueldade que esta prática submete aos animais. Grandes temas como estes o mantiveram como um dos principais postulantes de ADI ao longo desses anos, ao lado das associações e dos partidos políticos.

Investigando a natureza dos objetos impugnados por esses quatro principais atores, a Tabela 4 indica para onde eles direcionaram suas impugnações, isto é, se para leis ou atos normativos federais ou estaduais.

Tabela 4
Natureza das normas impugnadas por atores entre 2012 e 2021

Em termos percentuais, extrai-se que do total das 2.300 ADI analisadas, 63% contestaram normas de caráter estadual e 38% de natureza federal. O alto índice de ADI contra normas da esfera estadual aponta, segundo a literatura, para a existência de problemas na formação da vontade política local, “seja porque o executivo não detém maioria nas assembleias estaduais, seja porque essas instâncias de poder, expostas às pressões de grupos de interesses particularistas, eventualmente produzem uma legislação casuística” (Vianna et al., 2007, pVIANNA, Werneck Luiz; BURGOS, Baumann Marcelo; SALLES, Paula Martins. (2007), “Dezessete anos de Judicialização da Política”. Tempo Social, 19, 2:39-85. DOI: 10.1590/S0103-20702007000200002.
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. 50), as quais, tal qual a legislação federal, devem observar às normas e princípios constitucionais.

Com exceção dos partidos políticos, o Procurador Geral da República, as associações e as confederações direcionaram a maioria das suas impugnações às normas produzidas pelas esferas estaduais, problematizando o que a literatura já havia levantado acerca da validade da hipótese da judicialização da política no que se refere aos temas mais importantes da vida nacional (Vianna et al., 2007VIANNA, Werneck Luiz; BURGOS, Baumann Marcelo; SALLES, Paula Martins. (2007), “Dezessete anos de Judicialização da Política”. Tempo Social, 19, 2:39-85. DOI: 10.1590/S0103-20702007000200002.
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). Todavia, estes mesmos atores rebatem esse argumento apontando que, a despeito dessa diferença quantitativa, a intervenção do STF em casos relevantes nos quais se posiciona contra decisões do Executivo e do Legislativo federais de fato interferem diretamente em toda a sociedade, justamente pela amplitude que uma norma federal possui quando comparada com a estadual.

No que concerne aos temas de políticas setoriais que se destacaram ao longo dos 10 anos, o Gráfico 3 abaixo compila os prinicipais temas de políticas setoriais contestados.

Gráfico 3
Comparação de políticas setoriais impugnadas entre 2012 e 2021

O Gráfico 3 compilou a concentração dos temas em sete principais setores entre os quais se encontram 87% das ações propostas. Em números absolutos, são 2.003 ações destinadas a contestar os mesmos sete assuntos de políticas setoriais, sendo eles: governo e administração pública, macroeconomia, saúde, sistema bancário, judiciário, trabalho e direitos civis.

Destes temas, destacamos três grandes políticas setoriais (Tabela 5) que, juntas, representam 66% de todas as ADI propostas entre 2012 e 2021, são elas: governo e administração pública (21); judicário, justiça e violência (12); e macroeconomia (1).

Tabela 5
Temas das principais políticas setoriais entre 2012 e 2021

Na metodologia adotada, “governo e administração pública”, representado pelo macrocódigo 20, incorpora diversos temas referentes à administração interna e ao aparelho governamental, suas estruturas e funcionamento. É o caso do direito à greve no funcionalismo público, tratado, por exemplo, na ADI 4838/2012. Esta ação, proposta pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, impugnou o Decreto nº 7.777/12 por entender que o Decreto teve por motivação principal impedir o direito de greve dos Auditores da Receita Federal do Brasil. Inclui também temas relacionados à autorização de inclusão de empresas estatais no plano de desestatização, temática abordada na ADI 6241/2019, na qual o Partido Democrático Trabalhista, pleiteou a inconstitucionalidade da Lei Federal nº 13.334/2016, que criou o Programa de Parcerias de Investimentos - PPI. As ADI propostas com o tema “Poder Judiciário” se destacam tanto durante o processo de afastamento e impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, quanto ao longo do governo Bolsonaro.

Quanto ao código 12, relacionado ao “judiciário, justiça, crimes e violência”, as ações abrangem temas relacionados ao combate ao crime, violência, sistema prisional, polícia, atuação do Poder Judiciário e das demais instituições essenciais ao funcionamento da Justiça, tais como o Ministério Público e a Defensoria Pública. A ADI 4424/2010 é um importante exemplo de ação encontrada neste setor, pois tratou do tema relacionado à violência doméstica e familiar contra a mulher. Nesta ação, a Suprema Corte declarou que o Ministério Público tem legitimidade para iniciar ação penal contra o agressor, sem necessidade de representação da vítima.

No tema relacionado à “macroeconomia”, representado pelo código 1, destacamos a manutenção e o processo incremental de como questões específicas de taxas, impostos e assuntos relacionados à aplicação de instrumentos macroeconômicos se mantêm em estabilidade ao longo do período analisado. Este tema incorpora diversos assuntos tais como o crescimento econômico, desenvolvimento econômico, política econômica, indicadores econômicos, recessão econômica, tributos, “guerras fiscais” entre Estados no que se refere ao ICMS etc.

Os demais assuntos, identificados como “outros” no Gráfico 4, incluem temas como transportes, meio ambiente, educação etc., os quais também seguem uma lógica incremental. Juntos, os temas denominados de “outros” representam 13% do total dos acionamentos. O Gráfico 4 abaixo detalha as políticas setoriais incluídas e quais delas mais se destacam.

Gráfico 4
Concentração de outros temas entre 2012 e 2021

Nestes temas, encontramos assuntos importantes como o veiculado pela ADI 491/2013, na qual o Procurador Geral da República, com o fim de resguardar a vegetação nativa, impugnou dispositivos do Código Florestal que fragilizava o regime de áreas de preservação permanente e de reserva legal. Já na ADI 5668/2017, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) pede que as escolas coíbam as discriminações por gênero, por identidade de gênero e por orientação sexual para que se respeitem as identidades das crianças e adolescentes LGBT. Na ADI 6971/2021, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) buscou garantir o acesso à internet a alunos e a professores da educação básica pública. Há, portanto, neste montante, políticas cuja visibilidade e relevância social são tamanhas que, a despeito do resultado dessas ações, os atores postulantes atraíram para si uma atenção pública e midiática.

4.1. STF e a temática da saúde durante a pandemia da COVID-19

Ainda como desdobramento das análises do Gráfico 3, a temática relacionada à “saúde” atinge um pico histórico de acionamentos no STF pela via da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Neste gráfico, ela se destaca como uma das políticas setoriais que sofreu um boom de acionamento, apresentando um relevante pico de atenção no ano de 2020, escapando da lógica incremental dos demais temas. Exemplo disto é que 19% de todas as ADI relacionadas à saúde estão concentradas no ano de 2020. As causas deste aumento estão relacionadas com os aspectos contextuais e institucionais derivados da pandemia da COVID-19, considerando que antes deste evento pandêmico, a saúde não era um tema de muita representatividade em termos de acionamento no STF.

A metodologia do CAP aloca o tema relacionado à saúde em questões que envolvem, por exemplo, políticas de saúde, Sistema Único de Saúde, regulamentação da indústria farmacêutica, saúde infantil, dentre outros temas. Muito embora a COVID-19 seja um tema diretamente ligado à saúde, vale ressaltar que diversas ações foram propostas com o fim de contestar outras políticas impactadas pela pandemia.

Neste sentido, ao mapearmos o tema das políticas setoriais contestadas no período da pandemia, utilizamos o indexador de busca “COVID-19”, disponibilizado pelo site do STF, o qual continha processos com decisões e processos ainda em andamento, isto é, pendentes de decisão. A partir desses dados, chegamos ao montante de 120 ADI, propostas entre março de 2020 e outubro de 2021, que têm como alvo principal a contestação do grande tema relacionado a COVID-19, de natureza federal e estadual.

Conforme o Gráfico 5, para além da saúde, os temas que foram objeto de ADI voltados a contestar políticas ao longo da pandemia estão apresentados abaixo.

Gráfico 5
Políticas setoriais contestadas na pandemia

Das 120 ADI propostas, 74 versaram sobre o tema da “saúde”, 13 sobre “governo e administração pública”, 11 sobre “macroeconomia”, 9 sobre “trabalho, emprego e previdência”, 6 sobre “educação”, 4 sobre “energia”, 3 sobre “direitos civis, políticos, liberdades e minorias”, 3 ADI sobre “judiciário, justiça, crimes e violência”, 2 sobre “ciência, tecnologia comunicações”, 2 sobre “sistema bancário, instituições financeiras e comércio interno” e, finalmente, 2 ADI sobre “território e recursos naturais”.

Há de se destacar um fato de extrema relevância para esta análise e para o contexto nacional. Durante toda a série histórica aqui analisada, conforme demonstrado na Tabela 4, o número de acionamentos ao STF via ADI sempre foi maior sobre as normas estaduais quando comparado aos números de contestação sobre normas federais. Esta constatação encontra diversas justificativas, sendo a “quantitativa” a mais simples e imediata visto que se trata de 27 unidades federativas (26 estados e o Distrito Federal) produzindo normas que podem ser contestadas, contra uma única entidade Federal. No entanto, ao analisarmos o número de acionamentos entre 2020 e 2021, em termos percentuais, 67% dessas leis e atos normativos contestados no período são de esfera federal, enquanto 33% dizem respeito a leis e atos normativos de natureza estadual (Gráfico 6).

Gráfico 6
Natureza das leis contestadas entre os anos de 2020 e 2021

Há um evidente momento de inflexão no ente contestado, nos mesmos momentos em que há um crescimento total no número de acionamentos via ADI. Os dados indicam que a pontuação no equilíbrio entre os anos de 2020 e 2021 reside, sobretudo, no significativo crescimento de contestações sobre o Governo Federal. Em especial, sobre a condução das políticas e ações sobre “saúde” no contexto da pandemia de COVID-19 durante o governo Jair Bolsonaro.

Apesar da aplicação desse atalho presente no site do STF, que evidenciou as questões diretamente relacionadas à COVID-19, a própria metodologia geral do CAP já mostrava uma pontuação precisa no equilíbrio da atenção sobre as políticas de saúde no período da pandemia, em especial no ano de 2020. Conforme a literatura vem trabalhando, é um grande desafio mapear setorialmente as ações e as consequências da pandemia uma vez que ela não se restringiu ao campo da saúde. Questões relacionadas às políticas sociais, fome, miséria, trabalho e emprego, estruturação do aparelho de estado, transporte e justiça são temáticas diretamente ligadas às mudanças necessárias para a sobrevivência da humanidade no período pandêmico. Esta pontuação, no entanto, se apresenta clara e de grande importância, nas duas metodologias aplicadas nesta pesquisa.

Com relação aos atores propositores, os destaques cabem aos partidos políticos e às associações que, juntos, representam 60% de todos os acionamentos em temas relacionados à pandemia (Gráfico 7).

Gráfico 7
Atores que propuseram ADI contra atos relacionados à pandemia de COVID-19

Diferentemente do que mapeamos e analisamos ao longo de todo o período analisado (2012-2021), cabe destacar a diminuição do papel do Procurador Geral da República na temática da pandemia, passando de ator com maior número de ADI, para o quinto ator, com menos de 10% de participação. Por outro lado, percebemos também o crescimento do papel dos partidos políticos na temática e no período da pandemia. Com 48 das 120 ações de ADI propostas ao julgamento do STF, os partidos se mostraram o ator mais atuante na contestação de ações via controle concentrado de constitucionalidade.

5. Considerações finais

O objetivo deste artigo foi o de contribuir com o debate que coloca o Supremo Tribunal Federal no centro da atenção do jogo político, sobretudo no seu papel de regulador constitucional via ações de controle concentrado de constitucionalidade.

Para além deste debate, nos propusemos a analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade como um indicador de atenção e de como as partes legitimadas a acionar o STF podem, ao propor esta ação, apontar as suas predileções nas agendas de políticas setoriais que se propõem a contestar. Para alcançarmos este objetivo, mapeamos todas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade propostas ao STF entre os anos de 2012 e 2021.

Destacamos quatro pontos importantes. No primeiro, evidenciamos a dinâmica dos acionamentos, demonstrando padrões no número de ações propostas ao longo do tempo e destacando os momentos em que houve uma ruptura desses padrões, chamadas de pontuação no equilíbrio. A análise demonstrou, assim, dois momentos de grande impacto no número de acionamentos ao STF: o primeiro entre os anos de 2015 e 2017, os quais representam 28% de todas as ações propostas entre 2012 a 2021. Neste triênio, notou-se um aumento no número de acionamentos ao STF, sobretudo como forma de controle do cenário de instabilidade política ocorrido com os processos de afastamento e impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff.

Um achado relevante da pesquisa diz respeito ao período de 2020 a 2021, durante a pandemia de COVID-19. Neste intervalo temporal, o STF obteve o maior índice de acionamento já registrado no país. Foram 999 ADI propostas, de modo que estes anos guardam 43% de todas as ADI na série dos dez anos analisados. Ainda sobre este ponto, o ano de 2021 se destacou por superar em 76% a média histórica de acionamentos. De forma correlata, o período da pandemia (2020-2021) apresentou uma inflexão no lócus dos acionamentos via ADI. Se na série histórica a esfera estadual superava a União no número de acionamentos, durante a pandemia no governo Jair Bolsonaro a esfera Federal obteve 67% do total de acionamentos ao STF, com destaque para os temas relacionados à “saúde” e “justiça”, refletidos pela catastrófica condução do ex-presidente à frente do combate à COVID-19 no Brasil.

O segundo ponto demostrou, para além do número de acionamentos, a agenda temática e setorial das ADI propostas no período. A análise foi feita considerando os anos de 2012 a 2021 e os temas mais acionados neste período a partir da metodologia do Comparative Agendas Project (CAP). A inovação neste quesito, diz respeito à possibilidade de se categorizar os acionamentos a partir desta metodologia internacionalmente reconhecida e comparável. Conforme descrito ao longo deste trabalho, nos propomos a setorizar e quantificar a atenção dos atores governamentais a partir da análise das ADI propostas perante o STF. Neste sentido, pudemos demonstrar a concentração dos temas levados à Suprema Corte nos últimos dez anos.

Destacamos que de todas as políticas analisadas, sete mereceram nossa atenção justamente por concentrar 87% de todas as ações propostas. Em números absolutos, são 2.003 ações destinadas a contestar os mesmos sete assuntos de políticas setoriais, sendo eles: “governo interno e administração pública”, “macroeconomia”, “saúde”, “sistema bancário”, “judiciário”, “trabalho” e “direitos civis”. Destes temas, aprofundamos em três grandes políticas setoriais que, juntas, representam 66% de todas as ADI propostas entre 2012 a 2021, sendo elas: “governo e administração pública”, “judicário, justiça e violência” e “macroeconomia”.

Ainda sobre o tema de políticas setoriais, a temática relacionada à saúde, a despeito de apresentar uma média de estabilidade ao longo dos anos, apresentou o maior percentual de atenção dos atores propositores entre os anos de 2020 e 2021, destacando-se com uma das políticas setoriais mais questionadas no período, pulando de uma média de acionamento de 5% para 53%, representando 10 vezes mais ações propostas com o tema “saúde” quando comparada ao restante do período da série histórica.

O terceiro ponto consolidou os principais postulantes de ADI já identificados pela literatura. Os quatro principais postulantes de ADI entre os anos de 1988 e 2005 eram governadores, associações, procuradores e partidos políticos. Identificamos que entre os anos de 2012 e 2021, temos como principais postulantes as associações, o PGR, os partidos políticos e as confederações. Conforme argumentamos, a despeito do lapso temporal entre os resultados acima, entendemos que esta comparação é relevante pois destaca as mudanças relativas com relação ao perfil dos atores e suas posições entre os que mais acionam o STF via ADI.

No entanto, a baixa atuação do Procurador durante o período da pandemia, entre 2020 e 2021, e o aumento da atuação dos partidos políticos neste processo merecem destaque. De forma geral, de acordo com os resultados apresentados é possível afirmar que a COVID-19 impactou diretamente nos padrões de acionamento, visto que antes de 2020 e 2021 os padrões apresentavam-se em linhas estáveis e previsíveis.

No caso dos partidos políticos, o aumento da quantidade de ADI propostas no auge da pandemia, no ano de 2020, representa 3 vezes mais ações quando comparamos com os anos anteriores. Esse boom de acionamento, causador da quebra de um padrão de acionamentos, em muito se deve à sua atuação na pandemia já que 54% desse montante são de ADI direcionadas a contestar atos relacionados à COVID-19. O ator com menor impacto no crescimento de acionamentos em razão da COVID-19 foi o PGR, o único das partes preponderantes que não se destacou por questionar ou impugnar atos do governo federal no auge da pandemia. Isto porque, conforme demonstramos, em 2020, das 68 ADI propostas, apenas 10% impugnaram atos relacionados à COVID-19, enquanto em 2021, dos 138 acionamentos apenas 2% desse montante são ADI contestando leis ou atos normativos editados no contexto da pandemia.

A falta de contestação desses atos - talvez com o fim de se adequar à política omissiva da Presidência da República à época, no combate à maior sanitária sem precedentes na história do Brasil recente - contraria uma de suas funções institucionais conferidas pela Constituição Federal,5 5 Art.127, caput, da Constituição Federal. qual seja a de sustentar o regime democrático e os interesses sociais e individuais, incluído, sobretudo, o direito fundamental à saúde da população brasileira.

Por fim, ressaltamos que este trabalho teve como finalidade deslocar o foco da análise do resultado, para o início da ação. Ou seja, não analisar a sentença, o desfecho e seus resultados, mas os temas, os atores e a frequência dos acionamentos iniciais. Indo além, apresentamos uma metodologia capaz de apresentar resultados inovadores ao categorizar todas as ADI contestadas entre os anos de 2012 e 2021 de acordo com o tipo de política setorial a que elas se referem, ampliando a capacidade analítica dos dados, demonstrando, consequentemente, a frequência de acionamento ao longo dos anos e os atores propositores. Trata-se, pois, de um estudo capaz de apontar a trajetória de diferentes políticas setorais na agenda de acionamentos da Suprema Corte brasileira.

Os resultados da pesquisa se destacam por apresentar indicadores capazes de revelar a frequência, dinâmica e atenção dos atores propositores nos temas de políticas setorais relevantes para o cenário da política brasileira da última década, além de contribuir para o interesse da comunidade acadêmica multidisciplinar, envolvida com a análise de políticas públicas, bem como da sociedade em geral e do governo uma vez que as informações a respeito do comportamento das agendas governamental e decisória são de interesse público.

  • 1
    As demais ações pertencentes ao controle de constitucionalidade são: a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
  • 2
    Art. 103, I a IX, da Constituição Federal.
  • 3
    Ao todo, foram 4.011 ADI propostas entre 2002 e 2021.
  • 4
    Art. 127, caput, da Constituição Federal.
  • 5
    Art.127, caput, da Constituição Federal.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2023
  • Aceito
    27 Nov 2023
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