Resumo
O objetivo deste trabalho consiste em relacionar a concepção de sociologia como arma de libertação, desenvolvida entre acadêmicos(as) norte-americanos(as) da Escola de Atlanta, no início do século XX, e a concepção da sociologia como saber de salvação que emergiu entre os intelectuais do Teatro Experimental do Negro (TEN), especificamente entre 1948 e 1955. A metodologia consiste na reconstrução histórica dos contextos e teorias acima mencionados, cotejando os aspectos semelhantes e as diferenças de apropriação da sociologia pelas comunidades de intelectuais racializados nos Estados Unidos e no Brasil. Indicamos como a Escola de Atlanta (1897-1910) usou a Sociologia para demonstrar que as desigualdades eram resultado de mecanismos sociais e econômicos, e não de uma pretensa inferioridade atávica. Já o TEN recorreu à Sociologia primeiramente como meio de construção de um projeto de integração social da população negra, depois como ferramenta de desmascaramento das ideologias produzidas pelas Ciências Sociais. Assim, por um lado, as duas instituições trabalharam contra a dominação e a exploração feitas a partir da fixação de categorias raciais; e, por outro lado, construíram novas formas de racionalidade orientadas por propósitos emancipadores.
Palavras-chave: W. E. B. Du Bois; Alberto Guerreiro Ramos; Escola de Atlanta; Teatro Experimental do Negro; desracialização
Abstract
The objective of this paper is to relate the idea of sociology as a weapon of liberation, developed among American scholars of the Atlanta School at the beginning of the twentieth century, and the conception of sociology as knowledge of salvation that emerged among intellectuals of the Teatro Experimental do Negro (TEN), specifically between 1948 and 1955. Our methodology consists of the historical reconstruction of the contexts and theories, comparing the similarities and differences in the appropriation of sociology by racialized intellectual communities in the United States and Brazil. We indicate how the Atlanta School (1897-1910) used Sociology to demonstrate that inequalities were the result of social and economic mechanisms, and not of alleged atavistic inferiority. TEN, on the other hand, resorted to Sociology, first as a means of constructing a project for the social integration of the black population, and then as a tool to unmask the ideologies produced by the Social Sciences. Thus, on the one hand, these two institutions worked against domination and exploitation based on racial categories; and, on the other, they constructed new forms of rationality oriented by emancipatory purposes.
Keywords: W.E.B. Du Bois; Alberto Guerreiro Ramos; Atlanta Sociological School; Teatro Experimental do Negro; deracialization
O jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma obstinação simples: a transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente se fecha de novo em um movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do intransponível (Foucault, 2009, p. 32).
[...] celebro um ensino que permita as transgressões — um movimento contra as fronteiras e para além delas (hooks, 2013, p. 24).
1. Introdução2
Por volta da primeira década do século XX, a Europa já dominava 90% da África, 56% da Ásia e 99% das ilhas do Oceano Pacífico. Em meados do século XX, 90% da superfície terrestre do planeta já estava ocupada por potências imperialistas (Andersson, 2013; Young, 2001; Go, 2016). Desse modo, grande parte da população mundial foi, bem ou mal, formada e versada na racionalidade que servia de legitimação para essa exploração. Assim, a posição dessa racionalidade sobre a questão da colonização e da escravidão foi problemática nos três últimos séculos. Com muita frequência, o universalismo do pensamento europeu apresentou dois limites: a) um de ordem territorial, pois o humanismo europeu não costuma valer integralmente para além das metrópoles colonizadoras; e b) outro conceitual, pois o conceito de humano foi construído a partir das particularidades culturais dos povos europeus.
As consequências políticas dessas duas limitações são diversas. Uma delas é que o uso de categorias e características particulares em um discurso supostamente universal exclui os povos não europeus do gênero humano, legitimando sua exploração e extermínio. Outra consequência é que essa mesma racionalidade invisibiliza a exploração desses povos, bem como suas lutas por autonomia.
A partir do Iluminismo, localizamos um certo modo de pensar, ser e agir em certos pensadores europeus críticos que podemos chamar de ontologia do presente, trata-se de uma reflexão sobre o mundo atual como uma tarefa histórica (Foucault, 2010, 2005). Desta perspectiva, Foucault compartilha com Hegel, através de uma crítica da razão, o projeto iluminista de compreender a possibilidade de constituição de um sujeito autônomo. No entanto, ele inverte o projeto kantiano, visto que neste o respeito aos limites transcendentais garantiria a autonomia do sujeito. Para Foucault, é a transgressão constante dos limites históricos da racionalidade que garante esta autonomia, portanto os limites históricos da autonomia devem ser reconstituídos para serem transgredidos (Muldoon, 2014).
Da perspectiva dos povos desconsiderados como seres humanos por uma racionalidade imperialista e colonizadora, surge um problema de amplo alcance que é a questão de como construir projetos emancipatórios partindo dessa ontologia do presente e alargando a noção de humano para além dos seus limites. Em vista disto, abordaremos neste texto duas práticas intelectuais insurgentes, a da Escola de Atlanta e a do TEN, que se constituíram como projetos de expansão e transgressão da racionalidade sociológica. Constatamos que estas práticas se utilizaram da racionalidade europeia para contribuir para a libertação de povos racialmente subordinados, levando esta racionalidade mais adiante, de modo que ela possa considerar a diferença entre os grupos humanos e lhes permitir autonomia.
Em um determinado momento analítico, surge em alguns autores da diáspora africana o descontentamento da racionalidade europeia. William Edward Burghardt Du Bois (1868-1963) – W. E. B. Du Bois –, por exemplo, viveu boa parte de sua vida jovem crendo que era um negro superior aos brancos, ele passou sua infância e início da juventude sob a égide da cultura Vitoriana de New England, sendo exposto a uma formação educacional orientada nos cânones disciplinares da cultura ocidental, como Goethe, James Joyce e Shakespeare, por exemplo. É no sul dos Estados Unidos (EUA), em Nashville, Tennessee, que ele começou a vivenciar os elementos formais, estéticos e políticos do que Gilroy (1993) classificou como “cultura política negra”, a partir do Fisk Jubilee Singers, quando ele passou a estudar na Fisk University, uma Universidade Historicamente Negra (HBCU). É desta experiência que floresceu uma relação mais crítica do autor com a cultura ocidental que o formou. Disto resulta uma forma não convencional de lidar com o cânone disciplinar que o fez publicar textos como “The Souls of Black Folk” (1903), onde Du Bois aponta para uma tese sobre o papel da contribuição negra na construção dos EUA a partir das Sorrow Songs (cantos de lamento).
De maneira semelhante, porém no contexto das cidades de Salvador e Rio de Janeiro, Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), na sua juventude, construiu suas disposições intelectuais a partir dos cânones da cultura europeia e norte-americana, iniciando-se no tomismo, incorporando o existencialismo e a sociologia da Escola de Chicago (Oliveira, 1995). Foi somente no final da década de 1940 que ele se engajou, devido a reiterados convites de Abdias Nascimento, no Teatro Experimental do Negro, se envolvendo na “cultura política negra”. A partir deste envolvimento, construiu as diretrizes de sua teoria sociológica (Caldas, 2021), produzindo uma ampla crítica do paradigma dominante para pensar as relações raciais no Brasil (Caldas e Pallisser Silva, 2024) e desembocando numa atitude sociológica anticolonialista que ele denominou de redução sociológica (Ramos, 1996).
Tanto Du Bois quanto Ramos foram sociólogos formados em uma tradição de pensamento informada pelo cânone ocidental, tiveram uma formação educacional que os fidelizou aos pressupostos da Filosofia e da Ciências Sociais ocidentais. Entretanto, a importância da “cultura política negra” e o compromisso com a liberdade e autonomia da população negra os fizeram caminhar em outro sentido na forma de lidar com a “ontologia do presente” e com a pesquisa em Ciências Sociais.
É neste sentido que este texto investiga o caso empírico de duas organizações lideradas por dois sociólogos negros que, em contextos históricos distintos, enfrentaram este problema. A primeira foi a Escola Sociológica de Atlanta, que, liderada por Du Bois de 1897 a 1910, enfrentou o racismo científico3 que legitimava o regime de segregação racial do Jim Crow. A outra foi o Teatro Experimental do Negro, liderada por Abdias Nascimento e orientada, do ponto de vista sociológico, por Guerreiro Ramos, que, durante o pós-Segunda Guerra Mundial, se empenhou em desafiar os limites estabelecidos pelo pacto da democracia racial.
Em termos analíticos, os dois grupos e suas respectivas práticas intelectuais apresentam similaridades e diferenças que foram descritas por nós neste texto. Ambos contribuem com a formação de uma imaginação sociológica e, ao mesmo tempo, construíram projetos de luta pela liberdade e autonomia da população negra. No entanto, isto só foi possível devido a uma aposta que a comunidade negra fez na educação, em geral, e na sociologia, em especial, como “arma de libertação” – Escola de Atlanta – e “saber de salvação” – TEN. Mediante grandes esforços, os dois grupos se empenharam na formação de uma elite cultural negra (intelligentsia), construindo um conhecimento sobre a realidade social que fosse capaz de se tornar uma arma de luta contra a discriminação e a opressão pautada nas diferenças raciais.
Tendo isto em vista, nosso ponto nevrálgico é responder: de que maneira essas duas organizações fizeram avançar uma imaginação sociológica que dialogou, em certa medida, com a racionalidade ocidental e moderna, ao mesmo tempo em que combatiam as injustiças e desigualdades sociais que eram produzidas por ela? Neste sentido, transgrediram os limites etnocêntricos dessa racionalidade.
2. O contexto histórico da primeira geração da Escola de Atlanta (1897-1910)
A primeira passagem de Du Bois na Universidade de Atlanta começou em 1897, em um contexto histórico marcado pelos resultados da Guerra de Secessão (1861-1865), entre os quais estão o período da Reconstrução (1865-1877) e o processo de pós-abolição. Tais eventos e processos históricos marcaram o período caracterizado pelo historiador afro-americano Rayford Logan (1997) como o “Nadir das relações raciais” nos EUA, onde se pode observar a intensificação do conflito entre brancos e negros no Norte e no Sul, e a realização de uma unidade federativa nos EUA mediante a segregação juridicamente legitimada da população negra.
A palavra “Nadir” significa ponto baixo, em oposição ao “Zênite” que é a culminância. Durante o Nadir, a ideologia da maioria da população branca nos EUA e toda a sua compreensão do mundo social foi cada vez mais racista em relação às pessoas vindas da África e às nativas da América. Logan (1997) descreve este momento histórico como sendo marcado pela violência antinegro dos linchamentos e pelo aumento de organizações e expressões de supremacia branca. De acordo com Foner (2002, p. 602), “a partir do início do século XX [o racismo] ficou profundamente embebido na cultura e na política nacional, mais do que em qualquer momento do começo da cruzada antiescravagista e talvez da nossa história nacional”.4
O Nadir é marcado pela oscilação entre as promessas, realizações e interdições de um futuro que poderia ter sido melhor para a população negra nos EUA pós-emancipação. O período conhecido como Reconstrução, por um lado, significou um momento de esperança devido a algumas ações políticas práticas, como a aprovação das 14ª e 15ª Emendas Constitucionais,5 que, de certa forma, garantiram direitos à população negra recém-liberta. Por outro lado, a não aprovação da reforma agrária feita pelo Freedmen's Bureau em Washington D.C. impediu os negros de acessarem porções de terras das plantations em que eles já trabalhavam.6
As organizações de supremacia branca ganharam vida em 1875, uma década após a Guerra Civil, haja vista a formação de grupos paramilitares como a White League em Louisiana e os Red Shirts no Mississippi e nas Carolinas do Norte e Sul. Estes grupos racistas foram formados logo após os Massacres de Colfax e Coushatta, em Louisiana, em 1873. Eles trabalharam contra as organizações negras que lutavam pela emancipação da população escravizada e conseguiram suprimir o direito ao voto da população negra nos estados do Sul dos EUA.
Em 1896, um ano antes de Du Bois ir para a Universidade de Atlanta, a Suprema Corte aprovou, no emblemático caso Plessy versus Ferguson, a divisão da população norte-americana com base em critérios raciais por meio da legislação. Vale a pena ressaltar que a Corte que julgou o caso era composta quase inteiramente por juízes do Norte dos EUA. A Corte formalizou o Jim Crow no Sul dos EUA, em uma votação de 7 votos a favor e somente 1 contrário. Este caso é representativo por oficializar a segregação formal e institucional com o viés racial em qualquer local público do Sul dos EUA, sob a alegação de que os cidadãos eram “separados, mas iguais” (separate but equal).
Como afirmou Du Bois: “todo o ódio que os brancos sentiam uns pelos outros após a Guerra de Secessão foi, aos poucos, se concentrando [nos negros]” (Du Bois, [1935] 2013, p. 147), dando a entender o que eram as características das relações sociais entre negros(as) e brancos(as) durante este momento que marcou o pós-emancipação nos EUA. Conforme as informações do Tuskegee Institute Data, cerca de 3.438 negros foram linchados entre 1882 e 1951. Ainda, segundo o Museu do Jim Crow7 da Ferris State University, em 1892 pelo menos 161 negros foram linchados, provavelmente o maior número em um único ano.
As leis do Jim Crow sustentaram e legitimaram as injustiças sociais através das diferenças de cor nos EUA até 1964. Segundo Patricia Hill Collins (2005, p. 25), “tudo sob Jim Crow era sobre a cor — vê-la, medi-la, encontrar até uma gota dela e atribuir valor social a indivíduos e grupos de acordo com sua colocação em um sistema de apartheid racial”. No Sul, este regime rapidamente se espalhou, colocando a população negra nas piores posições dentro da ordem social, sujeito à exploração, à violência e à dominação. No Norte, tal condição só variava em grau. Além disso, a competição com os imigrantes — que incorporaram rapidamente as ideias acerca da inferioridade do negro, pois lhes garantiam privilégios raciais — só agravava este quadro.
3. W. E. B. Du Bois e a Escola de Atlanta
Neste contexto, a sociologia norte-americana nasceu intensamente preocupada com o problema racial e W. E. B. Du Bois foi uma das figuras principais para o seu desenvolvimento nos EUA. Du Bois teve sua infância marcada por experiências de rejeição devido à sua cor e, a partir destas, teorizou a respeito do véu que impede o (auto)rreconhecimento das pessoas racializadas, levando o indivíduo a se perceber como um estranho no mundo cultural em que vive. Além disso, o fato de viver sob o regime Jim Crow, e portanto testemunhá-lo de perto, influenciou todos os aspectos da sua vida (Collins, 2005), levando-o a se comprometer com a lutas dos negros.
Após a publicação de The Philadelphia Negro, Du Bois (1899) direcionou seus esforços no desenvolvimento de um programa coletivo de pesquisas em uma universidade que contemplasse trabalhos sobre a população negra nos EUA. Ele estava motivado a produzir um corpus científico para combater o racismo científico. Este é o contexto que marca sua chegada à Universidade negra de Atlanta, coração do black south. Du Bois estava convencido à época que as causas sociais da desigualdade racial poderiam ser comprovadas por meio de pesquisas sistemáticas. Segundo Morris (2015, p. 58), “a escola [de Atlanta] estava preocupada com a desigualdade racial porque seus cientistas sociais eram, em sua maioria, afro-americanos que, como todos os negros, sofreram uma opressão racial excruciante”.
A Escola de Atlanta, sob os auspícios de Du Bois, concebia a Sociologia como uma força libertadora das condições de opressão. Este modelo de Sociologia teve um papel fundamental na formação da primeira geração de sociólogos negros nos EUA, como Richard R. Wright Jr. (1878-1967), Monroe Work (1866-1945) e George Edmund Haynes (1880-1960), que, de acordo com Morris (2015), é a “geração oculta” de sociólogos negros. Trata-se de um grupo que foi apagado do registro sociológico dos EUA, em que as histórias típicas da sociologia negra se movem rapidamente para as décadas de 1920 e 1930, quando a conhecida trindade de sociólogos negros — Charles S. Johnson (1893-1956), E. Franklin Frazier (1894-1962) e Oliver Cox (1901-1974) — foram para a Universidade de Chicago sob a orientação de Robert Park, que geralmente recebe crédito por formar a primeira geração de sociólogos negros. De acordo com Morris, as gerações de sociólogos(as) formados pela Universidade de Atlanta:
idealizava[m] Du Bois como um role model e estudaram profundamente seu trabalho, internalizando sua metodologia e orientações teóricas. Eles também abraçaram o ativismo de Du Bois e as formas como ele utilizou sua carreira acadêmica para informar o trabalho de mudança social (Morris, 2015, p. 72).
Monroe Work, por exemplo, se tornou um membro importante da equipe de pesquisa de Du Bois, conduzindo estudos sobre raça e crime, igreja negra e política. Ele apresentou trabalhos acadêmicos nas conferências anuais da Universidade de Atlanta e seu trabalho foi publicado pela série Atlanta Studies. Já Richard Wright Jr., que foi da segunda geração dos sociólogos da Universidade de Atlanta, foi impulsionado a realizar estudos na área das Ciências Sociais por seu pai, Richard Wright Sênior, que admirava Du Bois e foi um dos membros das conferências da Universidade de Atlanta. Morris (2015, p. 64) argumenta que Richard Wright Jr. “cresceu lendo os trabalhos de Du Bois e queria se tornar um estudioso e estudar na Alemanha como seu herói. Depois de completar os estudos de graduação na universidade de seu pai”.
Já George Edmund Haynes foi amigo, admirador e se correspondeu com Du Bois, indicando a relação de conselheiro e orientador de Du Bois com Haynes. Em 1911, ele conquistou seu doutorado em Economia e Sociologia na Columbia University, se tornando o primeiro afro-americano a se doutorar na instituição com uma tese sobre migração e a situação da população negra no Norte dos EUA. Ao longo de sua carreira, Haynes produziu importantes artigos científicos e livros sobre os movimentos migratórios da população negra e conduziu pesquisas a respeito das oportunidades econômicas dos migrantes negros(as) nos EUA. Em 1913, ele se tornou coordenador do Departamento de Ciências Sociais da Universidade de Fisk.
A Universidade de Atlanta foi a primeira a desenvolver trabalhos empíricos sobre a população negra, preparando pesquisadores para isso desde meados da década 1880. Os resultados das pesquisas eram apresentados nas Conferências de Atlanta (Atlanta Conference of Negro Problems). Estas conferências eram anuais e começaram a ser realizadas dois anos antes da chegada de Du Bois, como parte central das atividades de pesquisa do Laboratório de Sociologia. Elas visavam discutir os resultados das pesquisas e formular resoluções almejando transformações sociais.
Os trabalhos desenvolvidos por esse grupo de sociólogos, que compuseram a Escola de Atlanta, tiveram grande impacto durante o século XX. Há de se lembrar especificamente a Conferência de Atlanta de 1906, que possibilitou um vínculo acadêmico e pessoal entre Du Bois e Franz Boas, que durou aproximadamente três décadas, permitindo a eles encampar uma luta contra o racismo científico, o paroquialismo cultural e os valores não democráticos das Ciências Sociais. De acordo com Liss (1998), o encontro de Du Bois e Boas na Conferência de 1906 contribuiu para o desenvolvimento da agenda do multiculturalismo nos EUA, assim como a discussão sobre raça em uma perspectiva modernista que desafiava as formas reducionistas, fixas e estreitas de pensar o pertencimento racial.
Na Conferência de 1906, Boas apresentou uma discussão que mudou a Antropologia de duas formas. Ele demonstrou que as civilizações africanas do passado eram avançadas, apontando para a participação das populações de descendência africana na construção da sociedade civilizada; ainda, mostrou que nenhuma raça (na perspectiva da cultura) era inferior a outra. O encontro entre Du Bois e Boas nos permite observar o início de uma agenda nas Ciências Sociais que demonstra a tensão e o conflito entre raça e identidade em uma perspectiva da cultura, e a contribuição do continente africano para a humanidade.
A Escola de Atlanta se popularizou nos EUA devido à publicação de alguns trabalhos de Du Bois (1898, 1899, 1902, [1903] 2007), respectivamente, como “The Negroes of Farmville, Virginia: A Social Study”, “The Philadelphia Negro”, “The Negro Artisan” e “The Souls of Black Folk”. Du Bois exerceu um certo tipo de liderança entre os(as) sociólogos(as) negros(as) que se formavam tanto em universidades brancas quanto nos black colleges, e também entre os seus estudantes e colaboradores de pesquisa em Atlanta. Esses(as) intelectuais conheciam sua obra, suas diretrizes metodológicas e seu uso do saber acadêmico para produzir transformações sociais. Desse modo, Du Bois não foi um intelectual isolado, ele incorporou uma extensa rede de pesquisa e construiu um método que formou a primeira Escola de Sociologia da América, em um momento em que os sociólogos ainda procuravam diretrizes intelectuais para a disciplina (Morris, 2015).
Em Atlanta, Du Bois assumiu as Conferências e as redesenhou como um projeto científico de várias décadas, em que, a cada ano, seria estudado um tema específico a partir de uma variedade de métodos (surveys, entrevistas, observação participante, etnografia e estatística). Para ele, os temas deveriam ser revisitados a cada década para uma compreensão longitudinal e as condições sociais seriam analisadas indutivamente visando construir dados para produzir generalizações sociológicas. Os temas eram relacionados a diferentes tópicos, como organização social, religião, classe, crime, saúde, ocupações profissionais, demografia, lazer, migração, família, urbanização e cultura. O conteúdo político das conferências decorria do seu enfrentamento ao racismo científico, amplamente difundido nas ciências.
4. Sociologia como arma de libertação
Inserida no contexto do Jim Crow, a Escola Sociológica de Atlanta buscou desenvolver conhecimentos capazes de libertar as pessoas negras da opressão racial, um deles foi a Sociologia. A discriminação e a segregação racial eram consideradas pela Escola de Atlanta como ignorância e estupidez, como o próprio Du Bois dizia: “o mundo estava pensando errado sobre raça porque não sabia. O mal supremo era a estupidez. A cura para isso era o conhecimento baseado na investigação científica” (Du Bois, [1962] 1968, p. 197). Desse modo, as apostas de Du Bois na capacidade da ciência em retirar o véu do racismo científico eram altas.
De acordo com Morris (2015), um novo fenômeno social surgiu no início do século XX, relacionado à formação de uma intelectualidade negra nos EUA associada à Sociologia. Nessa perspectiva, “os líderes de um povo oprimido, uma geração depois do fim da escravidão, abraçaram uma disciplina intelectual como arma de libertação” (Morris, 2015, p. 59, grifo nosso). A Sociologia era atrativa para esse grupo por ser uma possibilidade de confrontar a ideologia racialista do Jim Crow e, com isso, derrubar o suposto argumento sobre a inferioridade dos(as) negros(as). Eles acreditavam que ao derrubar as teorias racialistas estariam enfrentando também as estruturas de opressão.
Este empreendimento só foi possível devido à circulação, na comunidade negra, de um tipo muito específico de capital, denominado “capital de libertação” (Morris, 2015, p. 188). Este tipo de capital é construído por uma intelectualidade racialmente oprimida, cuja maioria dos integrantes possuem poucos capitais econômicos e simbólicos, mas compartilham uma preocupação em “desafiar os fundamentos intelectuais da opressão” (Morris, 2015, p. 187). Para a produção deste capital, se utilizam de disposições de libertação que circulam nos grupos oprimidos, por exemplo, o trabalho voluntário em pesquisa e o compartilhamento de capital cultural, material e social. Desse modo, a libertação do grupo racialmente oprimido se constitui em um bem capaz de produzir cooperação e trocas baseadas mais na solidariedade do que nos interesses do mercado simbólico. Com este capital, a intelectualidade pode enfrentar a falta de recursos materiais e simbólicos causada pela discriminação racial, além de criar linhas e escolas de pensamento influentes no debate público.
A origem deste capital decorreu da aposta que líderes e intelectuais negros e negras fizeram na educação como forma de superação da discriminação e da ciência racial dos séculos XIX e XX. O uso do capital de libertação começou durante a Guerra de Secessão, com as primeiras escolas filantrópicas dirigidas por negros e brancos, e com aquelas dirigidas por mulheres negras para pessoas negras (Franklin e Moss Jr., 1989). Este tipo de iniciativa deu origem a um capital de libertação produzido em redes de solidariedade e ajuda mútua entre intelectuais racialmente marginalizados(as), de modo a permitir a superação da raciologia e dar sustentação para o desenvolvimento de novas linhas de pensamento. O capital é usado para denunciar os fundamentos simbólicos da opressão, servindo como uma arma de emancipação dos grupos oprimidos.
A partir dos trabalhos de Gramsci e Bourdieu, Morris (2015) trabalha no sexto capítulo de “The Scholar Denied”, essa compreensão de um capital de libertação, argumentando que a Escola de Atlanta, representada pela figura de Du Bois, mesmo sendo sistematicamente excluída e não reconhecida pelo discurso intelectual convencional, fez uso de redes insurgentes a partir dessa modalidade de capital contra-hegemônico. Du Bois se utilizou desse capital para sua formação pessoal e para orientar a Escola de Atlanta. Enquanto estudante, na Fisk University e em Harvard, ele recebeu formação de lideranças e de organizações de mulheres negras. Já em Atlanta, contou com grande quantidade de capital intelectual incorporado em uma classe média negra. Deste meio, recrutou os pesquisadores e as pesquisadoras que trabalharam com ele em seu laboratório sociológico.8
O projeto sociológico de Du Bois agenciou o capital de libertação incorporado na comunidade negra, o transformando em uma arma de libertação e fazendo decolar na Sociologia uma iniciativa que vinha sendo desenvolvida na teologia e no ativismo político de seus mentores, Alexander Crummell, Richard Wright Sr. e Frederick Douglass, provando que as desigualdades entre negros e brancos eram econômicas e sociais, e não biológicas. Nesta perspectiva, a Escola Sociológica de Du Bois inovou ao considerar que as categorias raciais eram socialmente construídas; ao combinar métodos quantitativos e qualitativos; e ao promover discussões metodológicas apoiadas em uma preocupação com o rigor e com a quantificação das desigualdades. Desta forma, ele produziu uma sociologia capaz de minar as justificativas do sistema de opressão racial.
O Darwinismo Social e os pressupostos raciológicos se popularizaram na história das ciências modernas, em geral, e das Ciências Sociais, em particular, a partir das diversas leituras e descrições que estas ciências fizeram da categoria raça. Para Du Bois, o ponto de questionamento e crítica nesta discussão era que a ciência raciológica da época se preocupava com os traços e diferenças físicas, como o cabelo, nariz e cor de pele — embora fossem as diferenças mais tácitas, sutis e silenciosas que definitivamente separavam os seres humanos em grupos. De acordo com Appiah (2014, p. 91), “há algo importante na implicação de que as raças são importantes, pois pertencer a uma raça permite que as pessoas — as obriga — trabalhem juntas para propósitos comuns”. Ou seja, neste cenário de supremacia branca, a raça foi reforçada por Du Bois para supor identidade coletiva, não pela semelhança física e biológica, mas pelas expressões culturais e experiências históricas que poderiam formar um grupo racial.
Du Bois acreditava e se via como um herdeiro do caráter e do destino histórico da população negra, que transcorrem entre as gerações. Ele pensava ser dever dos(as) negros(as) trabalhar juntos à serviço do seu povo.9 A partir deste pensamento deriva sua tese do talented tenth e sua retórica providencial que transmitia a ideia de que o significado de sua raça se desdobraria por meio de um processo de interação social, participação e esforço coletivo – em suma, através da história de um determinado grupo, a saber o grupo negro.
É fato que a história do desenvolvimento social, econômico e cultural norte-americano está repleta de tensões e contradições raciais, por sua vez fundamentadas nas teorias raciológicas que deram sustentação científica e moral para a forma com que a experiência negra foi moldada no Novo Mundo a partir da colonização. Neste sentido, para Du Bois, a população negra era um elemento fundamental na formação social dos EUA. Portanto, a Sociologia produzida pela Escola de Atlanta, entre 1897 e 1910, trabalhava justamente na correspondência entre as demandas da população negra e os pressupostos de liberdade que os EUA tentaram estabelecer para reconstruir as suas bases democráticas durante o século XIX, após o fim da escravidão.
A iniciativa não tinha um fim em si, isto é, não era um mero projeto acadêmico, mas um projeto amplo de mudança das mentalidades de pessoas negras e brancas, como notou Morris (2015, p. 134): Du Bois desenvolveu sua sociologia para servir como uma arma de libertação para mudar as mentes brancas, despertar os negros para o poder da educação e remodelar a forma como os negros se viam”. Desse modo, o que estava em jogo na produção duboisiana era, sobretudo, a emancipação da população negra. Tal perspectiva fica evidente nas colocações feitas por ele ao retornar da Alemanha, em 1895: “volto pronto e ansioso para começar um trabalho de vida, levando à emancipação o negro americano. A História e as outras Ciências Sociais seriam minhas armas, aguçadas e aplicadas pela pesquisa e pela escrita” (Du Bois, [1962] 1968, p. 192, grifo nosso).
Veremos a seguir que um uso semelhante da Sociologia se fez presente nas práticas da comunidade negra no Brasil, nos anos 1940 e 1950. Tratamos especificamente do caso do Teatro Experimental do Negro (TEN), orientado pelas figuras de Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos.
5. A Sociologia como saber de salvação: o Teatro Experimental do Negro (1948-1955)
Diferente dos EUA, onde a Guerra de Secessão foi sucedida pelo Jim Crow e a legitimação do sistema de segregação racial se dava a partir de uma doutrina jurídica, no Brasil, em torno dos anos 1940, a segregação racial era legitimada pela ideologia da democracia racial. Desse modo, apesar das diferenças, tanto os EUA quanto o Brasil são exemplos de territórios em que a categoria raça é um componente fundamental da formação social, sendo, portanto, caracterizados de acordo com Hall (1980, p. 305) como “formações sociais racialmente estruturadas em dominância”.
No caso brasileiro, é possível afirmar, com Florestan Fernandes (1965a), que a noção de vigência de relações raciais harmônicas no país, difundida no pós-Abolição, estava atrelada aos interesses políticos dos grandes proprietários de terra. A partir da obra de Gilberto de Freyre, tal ideologia se tornou uma utopia conservadora que objetivou organizar e pensar a modernização brasileira a partir da categoria de mestiçagem (Paixão, 2014; Caldas e Pallisser Silva, 2022). Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2001) afirmou que a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial deu centralidade às ideias de democracia, povo e nação. Isto favoreceu que concepções diversas de democracia racial surgissem no contexto brasileiro.
O Teatro Experimental do Negro (TEN) apareceu neste contexto em que a democracia racial estava sendo mobilizada como ideologia que legitimava as desigualdades raciais da sociedade brasileira. Fundado em 13 de outubro de 1944, o TEN surgiu com o propósito de denunciar a discriminação racial e conscientizar o negro acerca de sua condição objetiva, além de resgatar a cultura e os valores africanos (Almada, 2009). Articulando arte e política, o grupo construiu uma identidade negra em oposição a uma identidade mestiça ancorada na associação entre brasilidade e mestiçagem (Nascimento, 2003).
Neste sentido, o TEN era uma organização que oferecia uma nova atitude aos seus membros e os fazia indagar sobre o espaço historicamente ocupado pela população negra no Brasil (Nascimento, 2003). O TEN organizou eventos como congressos e conferências nacionais no contexto do final da II Guerra Mundial, momento em que as ideias e o movimento da Négritude, com Aimé Césaire e Léopold Senghor, já haviam florescido no interior das dinâmicas e fluxos da diáspora africana.
Por um lado, o contexto posterior à II Guerra Mundial é fundamental do ponto de vista das mudanças e transformações das discussões em torno da categoria raça, e por outro há articulação política do que Fanon chamaria de “os condenados da terra”. Neste sentido, o TEN surgiu em um momento em que a raça se tornou uma categoria chave nas discussões das relações internacionais — tendo em vista a fundação da Organização das Nações Unidas e sua agência ligada à Educação Ciência e Cultura, a Unesco, em 1945. Nesta conjuntura, o Brasil e a ideologia da democracia racial passaram a ter uma posição estratégica no debate, como caso exemplar de como equacionar as tensões advindas do contato racial.
6. Capital de libertação no TEN
Assim como a Escola de Atlanta, o TEN também se formou a partir de um capital de libertação incorporado na comunidade negra e nos seus integrantes. De acordo com Fernandes (1965b), diferentes organizações, como a imprensa negra do começo do século XX e a Frente Negra Brasileira (FNB, 1931 a 1937),10 tiveram o êxito de conscientizar a população negra acerca da importância do conhecimento da realidade racial brasileira. Elas desenvolveram formas de mobilização e construíram pautas de reivindicação igualitárias, cujo resultado principal foi o protagonismo negro no processo histórico, “o que representava, em si mesmo, um acontecimento revolucionário” (Fernandes, 1965b, p.).11 Estes movimentos também estabeleceram conexões com o mundo africano e com a luta negra transnacional. Por exemplo, a FNB citava movimentos internacionais que ocorriam na época e o periódico Clarim d’Alvorada traduzia artigos de Marcus Garvey (Nascimento, 2003).
Devido à ditadura do Estado Novo (1937 e 1945), a imprensa negra teve que se calar, mas as associações e os terreiros continuaram como espaços de resistência. A partir dos anos 1940, as organizações negras começaram a se reestruturar: em 1941 surge a Associação José do Patrocínio, voltada para a questão das domésticas; em 1945, a Associação do Negro Brasileiro (ANB) — fundada por ex-membros da FNB — que editava o jornal Alvorada, tinha como pauta a legislação antidiscriminatória e a regulamentação da profissão de empregada doméstica; no Rio de Janeiro destacava-se a União dos Homens de Cor, que publicava o periódico Himalaia. Além disso, era muito comum a existência de grupos de alfabetização ligados a essas instituições (Nascimento, 2003).
As conquistas destes movimentos estavam incorporadas na trajetória de diversos integrantes do TEN. Por exemplo, o líder deste grupo, Abdias Nascimento, desde a infância, por inspiração de sua mãe, desenvolveu um sentimento de solidariedade com as pessoas negras (Nascimento e Semog, 2006). Este sentimento se ampliou com sua participação na FNB, em São Paulo. Ali esteve em diversas mobilizações políticas contra o racismo. Já no Rio de Janeiro, frequentou o terreiro de Joãozinho da Goméia, estabeleceu amizade com outros militantes antirracistas como Aguinaldo de Camargo e Geraldo Campos de Oliveira, e se integrou na classe artística da cidade (Almada, 2009). Além disso, Nascimento trabalhou no jornal Diário Trabalhista, de 1946 a 1948, assinando uma coluna sobre os problemas e aspirações do negro brasileiro, onde publicou 56 artigos nos quais entrevistava pessoas de relevo na comunidade negra (Guimarães e Macedo, 2008). A coluna buscava construir uma consciência objetiva da condição do negro, combater a discriminação, promover a alfabetização, quebrar estereótipos e divulgar eventos ligados à gente negra (Macedo, 2005).
A ideia de um teatro do negro surgiu a partir de uma experiência fundamental vivida por Abdias Nascimento, no Teatro Municipal de Lima, no Peru, quando ele assistiu à peça “O imperador Jones”, de Eugene O’Neill, e nela o ator branco, maquiado de negro, Hugo D'Eviéri, representava o protagonista. Isto desencadeou uma compreensão mais abrangente do fato de que os brancos impedem constantemente que as pessoas negras representem papeis de destaque no teatro e na vida (Almada, 2009). Desta experiência e usando o mencionado capital de libertação, Abdias levou adiante, diversificou e ampliou, pautas que já vinham sendo levantadas pela comunidade negra.
Este intelectual encontrou no Rio de Janeiro condições favoráveis à criação do TEN, sobretudo devido aos laços que ele estabeleceu com pessoas receptivas aos seus projetos políticos e estéticos, por exemplo, o advogado Aguinaldo de Oliveira Camargo, o então estudante de Direito Ironides Rodrigues, o pintor Wilson Tibério, o funcionário público Teodorico dos Santos e o contador José Herbel. Além destes homens, as mulheres tiveram uma atuação destacada no TEN desde a sua fundação: Arinda Serafim, criadora da Associação de Empregadas Domésticas Marina Gonçalves, Elza de Souza e Ruth de Souza estavam entre os primeiros quadros da organização; Ilena Teixeira, Mercedes Batista, Léa Garcia, a advogada Guiomar Ferreira de Mattos e Marietta Campos Damas também participaram do grupo (Nascimento, 2003). Logo depois, Sebastião Rodrigues Alves, Claudiano Filho, Oscar Araújo, José da Silva, Antonio Barbosa e Natalino Dionísio se uniram a estas integrantes, entre outros e outras (Almada, 2009).
Assim, agenciando o capital de libertação que circulava na comunidade negra, o TEN desenvolveu uma série de práticas que podem ser compreendidas como armas de libertação, sendo que uma das principais era a educação. Para o TEN a educação era uma questão fundamental na luta dos povos oprimidos. Tanto foi assim que suas atividades se iniciaram a partir de cursos de alfabetização, cultura geral e representação teatral. O objetivo era a integração social, política e cultural, a conscientização acerca das condições de vida da população negra, o desmascaramento do racismo e a luta por bolsas de estudos nos níveis básico e superior (Nascimento, 2003).
Enquanto as práticas educativas promovidas pelo TEN para as pessoas negras eram voltadas para a conquista da igualdade social e política e para o protagonismo, aquelas voltadas também para as pessoas brancas (que aconteciam por atividades culturais, como concursos de beleza e de artes plásticas, espetáculos teatrais, artigos de jornais etc.) visavam educar ideologicamente o branco para compreender os problemas reais da população negra, para ver a beleza da pessoa negra e retirar os seus estereótipos raciais. Com isso, se colocava o problema do negro como um problema também do branco, enfatizando-se o aspecto relacional do racismo (Nascimento, 2003).
Outra bandeira levada adiante pelo TEN era a questão das empregadas domésticas. O TEN ajudou a organizar a Associação das Empregadas Domésticas e o Conselho Nacional das Mulheres Negras. Estas organizações pressionaram os membros da Assembleia Constituinte de 1946 para que ela estabelecesse o registro profissional, entre outros direitos trabalhistas básicos (Almada, 2009; Nascimento, 2003).
Antes mesmo da criação do TEN, Abdias Nascimento já verificava a importância de conhecer mais profundamente a realidade do negro brasileiro, bem como expô-la ao público. Para isso, em sua coluna no jornal Diário Trabalhista, ele realizou entrevistas com diferentes intelectuais, políticos e outras personalidades acerca do tema das questões raciais (Guimarães e Macedo, 2008). Com ajuda de intelectuais como Guerreiro Ramos e Ironides Rodrigues, o criador do TEN fundou o jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, que contou com artigos assinados por mais de 56 intelectuais sensíveis à questão racial no Brasil (Macedo, 2005).
O TEN criou em seu interior uma série de outras instituições voltadas para o conhecimento objetivo das relações raciais no Brasil. O Instituto Nacional do Negro, dirigido por Guerreiro Ramos, e o Museu do Negro são duas dessas instituições. No entanto, foram os eventos políticos e científicos promovidos pelo TEN que tiveram maior repercussão. O principal desses eventos foi o I Congresso do Negro Brasileiro, realizado em 1950, que possuía um caráter científico e acadêmico, político e popular e objetivava construir um campo antirracista e multirracial, visando uma efetiva mobilidade ascensional da população negra (Barbosa, 2004). Como resultado deste I Congresso, verifica-se a reafirmação da educação como arma de libertação, pois o plenário do evento reafirmou “a necessidade de ‘ampliação da facilidade de instrução e de educação técnica, profissional e artística’ para resolução dos problemas da população negra” (Pallisser Silva e Medeiros, 2022, p. 65).
Nas suas práticas teatrais, o TEN representava as questões existenciais ligadas à subjetividade das pessoas negras, deixando evidente que o Brasil não poderia ser compreendido e vivido autenticamente sem a apreensão do papel da população afro-diaspórica na sua história. Dessa forma, em um contexto de grande influência da ideologia da democracia racial, as produções artísticas do TEN, enquanto recuperavam as heranças de lutas anteriores, disputavam a hegemonia da diferença no imaginário nacional (Nascimento, 2003).
7. Sociologia: saber de salvação
Alberto Guerreiro Ramos, nascido na Bahia em 1915, migrou para o Rio de Janeiro em 1939 e bacharelou-se na primeira turma de Ciências Sociais da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, em 1942. Desde o início da criação do TEN, foi convidado por Abdias Nascimento para integrar a instituição, aproximação que se deu somente após 1948 (Caldas, 2021). Esta experiência representou um giro na sua maneira de pensar as relações raciais no Brasil, conforme ele mesmo relatou:
O T.E.N. me deu uma oportunidade de viver o problema do negro, em vez de ler ou escrever coisas doutorais sobre ele [...], e a partir de uma situação concretamente vivida, comecei a estudar a fundo o problema do negro no Brasil. O meu engagement representou, inicialmente, uma fase de liquidação de certas fixações mentais de que era vítima até aquele momento, e, em seguida, conferiu-me a capacidade de ver as relações de raça, desde uma perspectiva que não suspeitava existir (Ramos, 1953a, p. 2).
Como para muitas das lideranças das comunidades negras estadunidenses, que viam a sociologia como uma “religião secular”, que carregava uma “promessa de transformação social” para essas comunidades (Morris, 2015, p. 59), também para Ramos (1947, p. 122) as Ciências Sociais eram “instrumentos de salvação secular”, profundamente comprometidas com a vida comunitária, como fica evidente nas seguintes palavras:
A essência de toda sociologia autêntica é, direta ou indiretamente, um propósito de salvação e de reconstrução social. Por isso, inspira-se ela numa experiência comunitária vivida pelo sociólogo, em função da qual adquire sentido (Ramos, 1953b, p. 4).
No entanto, há uma diferença de ênfase no uso da Sociologia pela Escola de Atlanta e pelo TEN. Enquanto a primeira enfatizava mais a necessidade de construir dados empíricos capazes de desmascarar o racismo científico, o TEN se preocupava mais em tratar as subjetividades violentadas pela estruturação racista da sociedade, sem descuidar do fato de que somente uma mudança na organização social poderia dar cabo às patologias engendradas pelo racismo. Esta é uma diferença apenas de ênfase, já que há trabalhos de Du Bois que valorizam a subjetividade do povo negro, quanto há interpretações da estrutura social e do racismo na obra de Guerreiro Ramos.
Entre 1948 e 1950, aprofundando sociologicamente a reivindicação dos movimentos negros anteriores por uma “Segunda Abolição” (ou seja, uma abolição também das condições de miséria e injustiça), Guerreiro Ramos notou que a igualdade formal, sem a respectiva igualdade social e política, engendrava profundas tensões psíquicas na pessoa negra que vivia em uma ordem competitiva, pois ela se via como igual, porém não tinha condições sociais de competir com igualdade (Ramos, 1966).
Essa condição foi fruto da inércia social do Estado brasileiro diante da população negra no pós-Abolição. Para o autor, essa falta intencional de planejamento agravou a situação psicológica da gente negra levando-a a um forte ressentimento contra a estrutura social, pois, embora em aparente igualdade jurídica com a população branca, a falta de igualdade econômica e cultural a levava a perder a competição por bens sociais (Ramos, 1950).
A apropriação do Estado pelas elites outrora escravocratas e o abandono da população liberta, produziu uma ampla carga de ressentimento. Assim, Ramos (1950, p. 44) afirmou que “o ressentimento é uma das matrizes psicológicas mais decisivas do caráter do homem de cor brasileiro”, de modo que produz tensões que se manifestam não apenas nas relações entre pessoas negras e brancas, mas também nas relações entre “o negro de status inferior contra o negro de status superior, do negro contra o mulato e deste contra o negro” (Ramos, 1950, p. 44). Nestas circunstâncias, o ressentimento impedia a formação de grupos políticos entre as pessoas negras.
Sendo um dado a existência do ressentimento nas relações cotidianas, a questão sociológica relevante consiste em saber que elementos da estrutura social produziram essa condição psicológica. Para responder a esta questão, Guerreiro Ramos se utilizou da teoria fenomenológica do ressentimento, formulada por Max Scheler, que argumentava que o ressentimento surgia não na relação entre grupos de status diferentes, mas sim entre grupos de status formalmente iguais (Scheler, 2012).
Apoiado nesta teoria, Ramos (1950, p. 44) defendeu a tese de que o ressentimento dos negros e mulatos “é um precipitado emocional da estrutura da sociedade republicana brasileira, [...] da ordem daquela dinamite psíquica que na Revolução Francesa impulsionou a plebe contra a nobreza espúria”. O que é interessante nesta tese é que ela nem culpa os grupos oprimidos pelo ressentimento de que são possivelmente portadores, nem coloca a causa no escravismo, pois é a estrutura social pós-abolição que produziu o ressentimento nas populações marginalizadas.
Diante destas conclusões, a atuação de Ramos no TEN se deu por meio das práticas de grupo terapia e sociodrama, que constituíam “um campo de polaridade psicológica, onde o homem[sic] encontra oportunidade de eliminar as suas tensões e os recalques” (Ramos, 1949, p. 7).12 De fato, para Ramos, todas as práticas estéticas, educativas e científicas do TEN constituíam legítimas terapêuticas para o problema racial no Brasil. Em especial, as pessoas negras podem expurgar o sentimento de inferioridade, reencontrar a “autenticidade de sua condição racial”, tornando-se “livres da ambivalência interior, ou da autoflagelação” (Ramos, 1953a, p. 2).
Já após 1950, os horizontes se ampliam. Por um lado, Ramos destaca as relações entre colonialismo, imperialismo e racismo na construção da estética e dos valores dos povos colonizados, portanto, da subjetividade destes últimos:
Povos brancos, graças a uma conjunção de fatores históricos e naturais, que não vem ao caso examinar aqui, vieram a imperar no planeta e, em consequência, impuseram àqueles que dominam uma concepção do mundo feita à sua imagem e semelhança. Num país como o Brasil, colonizado por europeus, os valores mais prestigiados e, portanto, aceitos, são os do colonizador. Entre estes valores está o da brancura como símbolo do excelso, do sublime, do belo. Deus é concebido em branco e em branco são pensadas todas as perfeições. Na cor negra, ao contrário, está investida uma carga milenária de significados pejorativos. Se se reduzisse a axiologia do mundo ocidental a uma escala cromática, a cor negra representaria o polo negativo (Ramos, [1954] 1995, p. 241).
Por outro lado, para tratar essa subjetividade colonizada, Ramos propõe a afirmação existencial e teórica da negritude, o niger sum, “um processo de libertação existencial e psicológico” (Barbosa, 2004, p. 120), que livra a pessoa do medo e da vergonha associada à sua condição racial, que para Barbosa se trata de:
uma prática pela qual o indivíduo pudesse se libertar das amarras da ordenação social, em um processo contínuo de conquista da capacidade mais humana, [...] um processo de experimentação da luta contínua e cotidiana pela humanização do homem [sic], enquanto realização da expressão livre e plena do indivíduo no mundo das pessoas (Barbosa, 2004, p. 142).
Deste modo, o TEN, por meio de distintas práticas estéticas, psicológicas, sociológicas e políticas, elaborou uma práxis que, afirmando a condição existencial da pessoa negra, almejou um humanismo universalista capaz de superar os traumas e estigmas produzidos pelo processo de racialização no Brasil. Podemos ver nesse projeto uma nova forma do sujeito afro-diaspórico enunciar sua existência (Flor et al., 2020) de uma perspectiva cosmopolita.
8. Considerações finais
Começamos este texto argumentando à respeito da ação de um povo colonizado em se apropriar das formas de pensamento dos povos colonizadores para promover sua própria libertação em termos políticos e sociopsíquicos. Os dois casos empíricos aqui investigados, a Escola de Atlanta e o TEN, mostram alguns aspectos de como este processo pode acontecer. Discutimos o processo a partir das práticas intelectuais de organizações diferentes, que se constituíram desfavorecidas em um contexto racializado e hegemonicamente marcado por uma sociologia herdeira da racionalidade ocidental que, em certa medida, retardava os projetos de liberdade dos povos negro-diaspóricos. Tais práticas podem ser lidas na chave interpretativa do “capital da libertação”, que, para nós, reposiciona a discussão sociológica sobre ação e estrutura em um sentido de olhar para apropriação e reformulação deliberada de intelectuais negros do instrumental e do sistema de pensamento do projeto iluminista.
Há dois pontos que precisam ser reafirmados. Primeiro, estes processos são sempre múltiplos, apontando que os povos colonizados contribuem para a transgressão dos limites etnocêntricos da racionalidade ocidental em diferentes frentes e de diferentes formas. Esta racionalidade se fragmenta e se multiplica em um conjunto de novos estilos de pensamento. No caso específico da Sociologia, a Escola de Atlanta a desenvolveu no sentido de compreender com mais acurácia os fatores objetivos que produziam as desigualdades entre brancos e negros nos Estados Unidos, no contexto do Jim Crow. Já o TEN forçou a racionalidade sociológica brasileira a compreender as formas de subjetividade produzidas pelas estruturas racistas justificadas pela democracia racial.
Segundo, estamos tratando de processos coletivos de emancipação e liberdade, que envolvem mais agentes do que as pessoas que produziram diretamente os estilos sociológicos mencionados. A comunidade negra, tanto nos EUA, quanto no Brasil, participou de diversas formas desta produção sociológica: a) através do capital de libertação acumulado por gerações, essas comunidades, em maior ou menor medida, deram condições materiais para uma produção sociológica visando a emancipação. Com isso, foi possível a manutenção dos dispositivos de produção cultural, bem como das posições ocupadas por pessoas negras em seu interior. Isto foi muito importante para garantir a autonomia intelectual desses empreendimentos, já que a agenda de pesquisa pôde ser estabelecida por meio da auscultação constante dos problemas da população negra dos dois países; b) isto remete ao segundo ponto: estas comunidades deram sentido — indicativo e existencial — a essa produção sociológica, visto que indicaram os problemas que eram realmente importantes para estes grupos, e (re)significaram o próprio fazer sociológico e os seus artefatos em uma perspectiva emancipatória.
Portanto, nos parece razoável argumentar que ao buscar modelar e transgredir os limites etnocêntricos das formas de pensamento dos povos colonizadores, tanto a Escola de Atlanta quanto o TEN produziram uma nova imaginação sociológica. Tal imaginação implicou no questionamento da racionalidade ocidental, pois não era possível pensar a história e as experiências de desumanização dos povos colonizados sem questionar os seus fundamentos discursivos e, em larga medida, recriá-los.
Como vimos, Du Bois e os integrantes da Escola Sociológica de Atlanta são herdeiros dos amplos esforços empreendidos pela comunidade negra após a Guerra de Secessão. No início do século XX, uma parte significativa desses esforços se concentraram no domínio das novas formas de racionalidade científica emergente, em especial, a Sociologia. Partindo deste capital de libertação, esse centro de pesquisas sociológicas transformou a Sociologia em uma arma de libertação, construindo uma grande quantidade de dados objetivos capazes de provar que a raça era uma categoria social e política e não uma resultante de forças biológicas. Assim, Du Bois almejava transformar a subjetividade de negros(as) e brancos(as), visando construir meios para a emancipação da população negra.
De modo semelhante, no Brasil do final dos anos de 1940 e início de 1950, em um contexto diferente, aparece também a ideia da Sociologia como um saber capaz de levar à emancipação, isto é, como um saber de salvação. Este saber foi construído a partir de um capital incorporado nos movimentos culturais, políticos e religiosos da comunidade negra no Brasil. Em ambos os contextos, a educação aparece como uma das prioridades da comunidade afro-diaspórica na sua luta por emancipação, prioridade essa que se revelou na preocupação com a alfabetização, com a sensibilização e a valorização estética, bem como com a compreensão científica das condições dos povos negros da diáspora.
Enquanto a Escola de Atlanta procurava transformar as subjetividades mais por meio da divulgação de dados objetivos acerca da realidade da população negra nos EUA, o TEN agia mais esteticamente sobre essas subjetividades. Isto é, embora partisse também de dados objetivos acerca da população negra no Brasil, sua ação focava na capacidade das artes em transformar as subjetividades racializadas pela formação social brasileira e, assim, liberar seu potencial político e estético. Isto decorria, de um lado, da função central do TEN, que era a representação cênica da referência ao movimento estético e literário da négritude, mas também do diagnóstico sociológico de que a formação e organização da sociedade brasileira em uma perspectiva racializada produzia amplas cargas de ressentimento que precisavam ser sublimadas a partir das artes e da política de modo a promover transformações sociais. Disso resultaram diversas atividades estéticas, sociológica e psicologicamente orientadas como a grupo terapia e o sociodrama.
Após o 1º Congresso do Negro Brasileiro em 1950, a crítica de Guerreiro Ramos ao racismo e seus efeitos subjetivos é ampliada, indo além do contexto da sociedade brasileira e procurando pensar a dominação imperialista/colonial dos povos europeus. Em grande medida, esta mudança de diagnóstico decorreu da ruptura no pacto da democracia racial e da aproximação do TEN aos movimentos internacionais, sobretudo do movimento da négritude (Barbosa, 2004; Caldas e Pallisser Silva, 2024). Neste momento, Ramos viu a negritude como um novo humanismo capaz de inserir os povos negros como sujeitos fundamentais da história mundial.
Se o processo de racialização pode ser pensado como a epidermização, a fixação da raça sob o sujeito, almejando definir os lugares sociais, as oportunidades e, de modo geral, as experiências que ele ou ela viverá (Fanon, 2008), isto é, restringindo as potencialidades humanas criativas desse sujeito, podemos compreender que a Escola de Atlanta e o TEN, ao retomarem criticamente os discursos universalistas e humanistas das ciências e das artes, agiram buscando tanto a superação dos pressupostos da raciologia dos séculos XIX e XX, quanto o processo de desracialização objetivo e subjetivo da experiência de sujeitos racializados.
A conclusão que chegamos ao analisar os casos empíricos da Escola de Atlanta durante as primeiras décadas do século XX e o TEN após a II Guerra Mundial é de que tanto os EUA quanto o Brasil possuem a história de suas respectivas formações sociais ligadas à raça, elemento saliente no tocante às relações sociais e organização das instituições. Neste sentido, raça e todo o arcabouço discursivo da raciologia estiveram e estão presentes no desenvolvimento do aspecto narrativo da formação de ambas as sociedades, vinculadas à formação dos grupos branco e negro dispostos na sociedade de forma diametralmente oposta.
Du Bois e a Escola de Atlanta encamparam uma longa batalha contra a raciologia de sua época. Não à toa credita-se a Du Bois o primeiro movimento nas Ciências Sociais de deslocar raça de sua perspectiva biológica para a cultural (Appiah, 1986; Outlaw Jr., 2000; Silvério et al., 2020). Outro importante aspecto é a contribuição da Escola de Atlanta para a produção de dados sobre as condições de vida da população negra nos EUA, com gráficos e tabelas que pudessem traduzir em termos quantitativos o que era ser negro(a) nos EUA no alvorecer do século XX (Battle-Baptiste e Rusert, 2018). Tais informações foram centrais para a formulação e produção de políticas públicas naquele contexto.
Já o TEN, por sua vez, estava situado em outro momento chave no que se refere à discussão sobre raça e suas implicações políticas. Como já foi dito, o período posterior à II Guerra Mundial é o momento em que as grandes organizações culturais e transnacionais, como a ONU e a Unesco, estão sendo formadas, tendo em vista o holocausto judeu. Neste contexto, o Brasil se apresentava como um Estado-Nação cuja alternativa aos conflitos do contato racial poderiam ser encontrados na ideologia da democracia racial. O TEN encampou uma batalha no interior desta ideologia e produziu outra estética a partir da conexão entre negro e África em suas produções artísticas, algo que definitivamente produzia outra forma de subjetividade nos(as) negros(as) brasileiros(as).
Assim, a partir das configurações históricas analisadas, podemos sintetizar o seguinte quadro tipológico comparativo: dentro de suas respectivas comunidades, Du Bois e a Escola de Atlanta e Guerreiro Ramos e o TEN enfrentaram uma opressão racial semelhante, porém legitimada de modos distintos. O regime de segregação norte-americano se legitimava na racionalidade legal, enquanto no caso brasileiro o regime racial se justificava na tradição patrimonialista das frações agrárias. Desse modo, a resistência e a luta se desenvolveram por meandros distintos: Du Bois e a Escola de Atlanta investiram na construção de dados empíricos-estatísticos capazes de provar quantitativamente que as desigualdades eram resultantes das relações de poder; enquanto Guerreiro Ramos e o TEN investiram suas forças na produção estética, uma vez que a dominação patrimonialista se apoia mais nas dimensões inconscientes da vida humana.
Por fim, destacamos que estas experiências de transgressão das formas de racionalidade ocidentais tiveram como condições de possibilidade uma ciência e arte profundamente ligadas ao mundo da experiência vivida, quer dizer, às lutas por emancipação social e política travadas pelas comunidades oprimidas da diáspora africana. Assim, para usar uma linguagem da comunidade universitária contemporânea, percebemos nestas experiências uma integralidade e uma organicidade entre ensino, pesquisa e extensão, agenciados na luta a favor da desracialização, isto é, contra a dominação e a exploração a partir da fixação de categorias raciais e na produção de uma subjetividade em que a relação com a África fosse valorada positivamente.
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1
A pesquisa foi realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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A primeira versão deste trabalho foi apresentada no GT 17 - Política Cultural Negra e Processos de Racialização, do 12º Seminário Nacional Sociologia e Política. A segunda versão foi apresentada no ST08 - Ciências Sociais e Descolonização, do 46º Encontro Anual da ANPOCS. Agradecemos às contribuições recebidas nos respectivos eventos.
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E, mais profundamente, aquilo que Gilroy (2007) chamou de raciologia. Por raciologia compreendemos um conjunto de disciplinas que desenvolveu técnicas de investigação e mensuração do corpo humano, objetivando, portanto, a divisão da humanidade em categorias racializadas.
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4
Traduções da língua inglesa feitas por Hasani Elioterio dos Santos.
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A 14ª Emenda dispunha cidadania e proteção das leis sem qualquer distinção, assim como garantia o direito de voto, excluindo a população nativa e as mulheres. A 15ª Emenda proibia negar o voto sob pretexto de raça, cor e/ou condição servil.
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O Freedman’s Bureau foi criado em 1865 pelo Congresso dos EUA e operou em termos da distribuição de alimentos; auxílio de moradia e assistência médica; educação; e assistência jurídica no contexto da reconstrução.
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7
Disponível em https://www.ferris.edu/HTMLS/news/jimcrow/timeline/jimcrow.htm, consultado em 12/01/2023.
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Por exemplo, ele recrutou seu colega em Fisk, Procto. Este era reverendo em uma grande Igreja de Atlanta, podia mobilizar pessoas para ajudá-lo nas pesquisas, e acreditava no papel da Sociologia na luta contra o racismo (Morris, 2015).
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Especialmente dos(as) mais talentosos(as).
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O primeiro partido de massas a representar essa população.
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A imprensa negra paulista surgiu, até o ponto em que podemos investigar, em Campinas, com o jornal O Bandeirante, de 1910. Já na cidade de São Paulo, o periódico Menelik, de 1915, foi o primeiro de que se tem notícia (Bastide, 1973).
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12
A grupoterapia tinha o objetivo de despertar o negro para sua condição racial e ajudá-lo a enfrentar os desafios postos por ela (Nascimento, 2003).
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DOI: 10.1590/3811036/2023.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
01 Maio 2023 -
Aceito
16 Out 2023