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Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização

Democracia e cidadania global

Liszt VIEIRA. Os argonautas da cidadania. A sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Record, 2001. 403 páginas.

Ilse Scherer-Warren

Os argonautas da cidadania representam os múltiplos atores e organizações da sociedade civil, navegando contra a corrente hegemônica de uma globalização nefasta, e reinventando novas formas de democratização e de construção da cidadania dos níveis local e nacional ao global. A virtualidade que busca nos atores está alicerçada numa ampla reflexão teórica, representativa das principais correntes contemporâneas sobre o tema da sociedade civil na globalização e temas correlatos, numa pesquisa empírica de fôlego e na apresentação de hipóteses teóricas inovadoras para uma projeção sobre as mudanças sociais neste novo milênio. É uma obra síntese de longos anos de pesquisa e de comprometimento com as lutas sociais. Liszt apresenta os resultados de seu trabalho de doutoramento, complementado por outros estudos mais recentes. Esta será, sem dúvida, uma obra de referência obrigatória tanto para os estudiosos como para os próprios atores preocupados com os novos rumos da cidadania.

Na primeira parte do livro, o autor faz uma revisão crítica de teorias fundantes das noções de cidadania, espaço público e sociedade civil. Consegue realizar um recorte analítico frutífero, na medida em que recupera não só os principais alicerces teóricos, mas também os referencia a contextos históricos que os ilustram. Desta forma, inicia com a visão clássica de cidadania de Marshall, apontando como, a partir da conexão que Habermas e Cohen/Arato estabelecem entre este conceito e os de sociedade civil e esfera pública, torna-se imperativo a relação entre teoria política e empiria, passando, assim, a comparar a teoria liberal com os regimes liberais, o comunitarismo com os regimes tradicionais e a teoria da democracia extensiva com a social-democracia. Não se detém na crítica aos limites destes modelos teóricos, mas busca neles as contribuições que permitem avançar na direção de um modelo mais complexo (proposta de sua tese): do liberalismo político de Rawls enfatiza a idéia de que este atribui às virtudes cooperativas dos cidadãos; da crítica comunitarista destaca a busca do bem comum, ou seja, de construção de uma comunidade baseada em valores centrais (identidade comum, solidariedade, participação, integração); da crítica social-democrática, seguindo Janoski, contempla a necessidade de expansão de direitos individuais ou coletivos a sujeitos historicamente discriminados por classe, gênero e etnia. Acrescenta, ainda, a crítica nacionalista, pela qual a cidadania moderna se associa a um senso de pertencer à comunidade nacional e de herança comum; a crítica multiculturalista que, segundo Kymlicka, propõe uma quarta geração de direitos, isto é, os direitos culturais de cidadania; a crítica feminista, que amplia a esfera pública ao politizar questões antes consideradas de ordem privada; e, finalmente, chegando à idéia de múltiplas cidadanias, traduzida pela defesa de várias gradações de cidadania, desde a sua realização na vida em pequenas comunidades, de sua reformulação em nível do Estado-nação, até seu apogeu em nível global, o que demonstrará empiricamente.

A seguir, compara as visões republicana (Arendt), liberal (Ackerman) e discursiva (Habermas) de espaço público. Neste confronto, valendo-se dos escritos de Benhabib, o autor inclina-se para o modelo discursivo, na medida em que o modelo agonístico republicano não daria conta da complexidade das relações sociais da modernidade e o modelo liberal tenderia a reduzir o debate político ao discurso jurídico. O modelo discursivo, por sua vez, ao introduzir a noção de esfera pública, amplia o espaço da emancipação como arena de debate público, de embate da pluralidade de atores, incluindo-se os novos movimentos sociais, e de formação de vontades coletivas. A partir de Janoski, Liszt apresenta dois diagramas bastante ilustrativos da porosidade entre as esferas estatal, pública, privada e do mercado, bem como da justaposição do público e do privado no conjunto dessas esferas e de suas implicações no desenvolvimento de uma teoria da sociedade civil, objeto do capítulo seguinte.

Resgata a partir daí os múltiplos atores da sociedade civil e suas formas de atuação no espaço público como construtores da democracia. Reconhecendo a relevância da cidadania republicana na formulação do status legal, universal da cidadania, questiona, todavia (cf. Mouffe), como combinar o ideal de direitos e o pluralismo com as idéias de espírito público e a preocupação ético-política a partir de uma nova concepção democrática moderna de cidadania e como veículo para a construção de uma hegemonia democrática radical. A resposta a esta indagação, o autor vai buscar na ação plural e intercruzada, por meio de redes, dos múltiplos atores da contemporaneidade. Inicia com o novo associativismo civil e suas redes, responsáveis pelas relações entre processos socioculturais e processos políticos, que implicaram novas dinâmicas na conquista de direitos e a democratização da esfera pública. Depois, examina a noção de esfera pública não-estatal, apontando o papel dos movimentos sociais para a democratização do sistema político pela mudança nas regras de procedimento, nas formas de participação e organização, na ampliação dos limites da política, politizando temas antes considerados da esfera privada, como as questões de gênero e outras. O público não-estatal como setor produtivo, ou também chamado terceiro setor, como instância de produção de bens e serviços sociais, diferentemente do mercado, atua num clima mais solidário e opera com a lógica da cooperação e por meio de uma racionalidade comunicativa, apesar dos riscos de mercantilização e de burocratização que enfrentam ao realizarem parcerias com o Estado. Enfim, em relação às organizações sociais não-estatais ou paraestatais, o autor visualiza certos riscos para o processo de democratização, pois na medida em que celebram contrato de gestão com o Estado, exigir-se-iam critérios públicos bem definidos para a avaliação do desempenho e que evitassem favoritismo burocrático e clientelismo político. Será por meio da governança, isto é, da criação de um conjunto de mecanismos e procedimentos para lidar com a dimensão participativa e plural da sociedade (câmaras setoriais, orçamento participativo, conselhos, mecanismos de consulta, referendo etc.), que os riscos serão administrados, reconquistando-se a legitimidade da governabilidade e dos mecanismos de representação política.

A segunda parte da obra refere-se ao debate e às reações coletivas à globalização. Numa síntese analítica, Liszt confronta as posições teóricas dos transformistas, segundo as quais a fase atual da globalização representa um corte radical com o passado, com a fase dos céticos, que buscam precedentes similares no desenvolvimento do capitalismo, reafirmando a continuidade do fenômeno e da autoridade do Estado-nação. Diante deste dilema é que o autor tenta trabalhar, demonstrando que a atual globalização desestabilizou as tradicionais identidades territoriais, baseadas na nação, tornando a identidade nacional apenas mais uma identidade ao lado de outras, como gênero, etnia, classe etc., que não estão enraizadas em um território específico. É a partir daí que passa a descrever as múltiplas forças sociais, representadas por ONGs de várias identidades, que se organizam numa ampla rede e em manifestações de resistência durante os encontros dos grupos hegemônicos da globalização. Arrola uma série de manifestações, destacando as de Seattle e o Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Como se trata de um fenômeno ainda pouco estudado, encontram-se aí algumas pistas que merecem pesquisas e análise em maior profundidade.

Nas duas partes seguintes o autor desenvolve a análise dos dados empíricos de sua pesquisa, objeto de sua tese de doutoramento. Analisa o papel da sociedade civil no sistema das Nações Unidas, em três capítulos, e a hipótese da ascensão da sociedade civil global, em outros cinco capítulos, examinando as relações que vêm sendo estabelecidas historicamente entre ONGs e os organismos da ONU (Comissão para o Desenvolvimento Sustentável, Conselho de Segurança, Banco Mundial) bem como suas resistências ao Acordo Multilateral de Investimentos (AMI). Deste amplo conjunto de dados, obtidos durante pesquisa que realizou junto a organismos internacionais, principalmente da ONU, resultou uma interpretação pioneira sobre o fenômeno. Por meio de uma detalhada demonstração da evolução histórica do fenômeno das ONGs, desde sua participação na própria fundação da ONU, em 1945, até seu crescente envolvimento na formulação de políticas pelos organismos internacionais, o autor vai construindo seu quadro interpretativo, do qual destaco as seguintes teses centrais: 1. Paralelamente à ampliação das dimensões da sociedade global, há um aumento da importância da sociedade civil, bem como do papel de suas organizações, intimamente relacionadas a novas interpretações das prioridades internacionais, do papel do Estado-nação, do equilíbrio e da interdependência das prioridades econômicas e sociais, da seguridade humana e dos imperativos da sustentabilidade (p. 125). 2. A grande variedade de estruturas e práticas cooperativas que emergiram em torno da ONU e suas organizações associadas (ONGs) aponta uma tendência em direção à descentralização e democratização da governança global (p. 132). 3. A emergência de uma rede global de ONGs ambientalistas transformou o quadro ambiental, oferecendo novos paradigmas e ressuscitando outros paradigmas tradicionais para orientar os valores de milhões de pessoas em todo o mundo, e empurrando os governos a uma ação coordenada internacional, quiçá criando possibilidades para uma governança ambiental global que os Estados não conseguiram constituir (pp. 136-137). 4. O papel das ONGs na governança global é uma forma de democracia participativa, de republicanismo em que os cidadãos ativos, por intermédio de ONGs internacionais, podem pressionar governos, doar dinheiro e participar de conferências globais (p. 204). 5. O surgimento de atores não-estatais no cenário internacional levou a uma redistribuição de papéis entre o Estado, o mercado e a sociedade civil e, para enfrentar os novos desafios e desempenhar novos papéis, as ONGs tiveram de se tornar menos paroquiais e mais aptas a operar em larga escala (pp. 215-216).

Apesar de ficar bastante evidente que o autor reserva o status de ONGs ao que entendo por ONGs cidadãs e de desenvolvimento, entre as quais destaca as ambientalistas, de desenvolvimento voltadas para valores, de mulheres, de direitos humanos, pela paz, de assistência humanitária, mereceria registro o fato de, atualmente, um grande número de entidades meramente filantrópicas ou de um terceiro setor ampliado e indefinido também se auto-denomina ONGs, mas se encontra bastante distante dos rumos políticos das organizações aqui analisadas. Em suma, pode-se concluir que, para o autor, as ONGs são atores típicos da constituição da sociedade civil, ao lado de redes, movimentos e outros grupos sem fins lucrativos que se organizam referenciados pelas idéias de bem comum, identidades e causas fora do âmbito das instituições políticas baseadas e controladas pelo Estado. Naturalmente, do ponto de vista conceitual, esta noção de sociedade civil é procedente. Porém, as relações de parcerias, especialmente entre ONGs e organizações intergovernamentais ou estatais, tornam a realidade porosa em relação ao poder de controle.

A última parte do livro retoma o conceito de cidadania e aprofunda a discussão sobre as relações entre Estado nacional e cidadania mundial. Se a cidadania é tradicionalmente protegida pelo Estado-nação e se este último se enfraquece com a globalização, qual o destino da cidadania? O conhecimento produzido em torno da parte empírica da pesquisa orienta as reflexões do autor na busca de respostas a este questionamento. Assim, ele vai tecendo, nos cinco capítulos conclusivos, uma teorização sobre as novas formas de democracia e cidadania global, que podem ser sintetizadas em torno dos seguintes pontos: 1. Atualmente, a solidariedade (base da cidadania) tem uma base cultural. Há novas formas de ativismo e militância política, como demonstram os novos movimentos sociais ligados a questões de gênero, raça, ecologia, paz etc., assim sendo, é a cultura que é considerada a base para a solidariedade, muito mais do que as identidades nacional ou de classe que se enfraqueceram. 2. Hoje, a globalização, o enfraquecimento do Estado-nação, as migrações, o multiculturalismo etc. estão criando a base de uma "nova cidadania" que não mais se define apenas por um conjunto de direitos e liberdades ­ definição política ­, mas pelos direitos-crédito, isto é, direitos econômicos e sociais que se tornam os verdadeiros direitos políticos. Assim como a cidadania foi historicamente estendida aos não-proprietários, aos trabalhadores, às mulheres, aos jovens, segundo esta concepção seria estendida também aos estrangeiros residentes no país e, até mesmo, à natureza e ao meio ambiente. Seguindo os teóricos da cidadania pós-nacional, Liszt destaca a proposta de um "contrato de cidadania", segundo o qual os direitos de cidadania seriam concedidos a estrangeiros, que guardariam sua própria cultura, mas se comprometeriam a aderir aos valores democráticos e às legislações nacionais de proteção aos direitos humanos (p. 244). Neste cenário, a partir da conexão entre raízes culturais locais e consciência global, da atuação de novos atores políticos e organizações transnacionais da sociedade civil, o autor aventa a possibilidade de emergência de uma esfera pública transnacional fertilizada pelos valores de uma democracia cosmopolita que se coloca como horizonte. 3. Ao confrontar os modelos de democracia global ­ liberal-internacionalista, radical democrático e cosmopolita ­, destacando os encontros e as divergências, o autor opta pelo modelo cosmopolita, na medida em que este combina aspectos positivos dos outros dois, como a centralidade atribuída ao autogoverno e à democracia direta e participativa e o respeito à abordagem constitucional-legal (cf. Gomez). Em relação a esta abordagem, prevê, seguindo Held, a necessidade de um direito democrático cosmopolita, o qual difere do direito internacional, mas atua como um complemento ao direito nacional e internacional com vistas à construção de um futuro direito público da humanidade. 4. Dessa forma, afastando-se da visão estatista tradicional para a qual a cidadania estaria indissoluvelmente ligada ao Estado-nação, bem como da visão kantiana clássica, apesar de seu apelo à solidariedade com os estrangeiros, Liszt opta pela perspectiva da democracia cosmopolita, a qual afirma que direitos e deveres concretos podem estar enraizados em dispositivos políticos transnacionais complexos como, por exemplo, a União Européia (p. 269). Admitindo todos os riscos inerentes a uma sociedade política e a incerteza na sociedade complexa, não se acovarda na direção de um "realismo político" que, pela mesma lógica, também não deixa de ser incerto. Visualiza, assim, a possibilidade de uma "política cívica mundial" voltada para a construção da democracia política, do desenvolvimento social, da proteção ambiental e da diversidade cultural em níveis local, nacional e global. Todavia, o autor constrói este retrato ancorado em bases empíricas, mas extrapola os limites de sua demonstração em direção a uma hipótese teórica sobre o devir como possibilidade sociológica, conforme justifica na Nota Metodológica final.

A obra se complementa com um amplo anexo, contendo uma lista das ONGs atuantes nos organismos do sistema das Nações Unidas e Declarações de Fóruns Globais da sociedade civil. Esta documentação, sem dúvida, será da maior relevância para pesquisadores da área, bem como para ativistas que buscam informações para a construção de suas redes de cidadania global.

Neste momento, em que proliferam manifestações mundiais de ONGs e movimentos antiglobalização, o presente estudo traz uma luz para a compreensão da gênese das redes cidadãs transnacionais que historicamente vêm sendo formadas. Pode, assim, ser lido como uma fonte para a interpretação dos processos políticos globais e como um horizonte para os construtores de uma democracia cosmopolita e de uma cidadania pós-nacional e multicultural.

ILSE SCHERER-WARREN é professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais (NPMS) da mesma universidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Fev 2003
  • Data do Fascículo
    Fev 2002
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