Resumo
Neste artigo, analiso a política editorial da Zahar Editores, empresa que ocupou um lugar central na publicação de livros de ciências sociais no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. Por meio da análise do catálogo de publicações da editora, entrevistas e documentos históricos, busco compreender como a adoção de uma política editorial de traduções foi fundamental para a configuração das ciências sociais no país, de forma a contribuir para a compreensão da história dessas disciplinas, ao chamar a atenção para as condições materiais de circulação de ideias. A publicação de manuais universitários e de livros monográficos de autores estrangeiros funcionou para a Zahar como estratégia de inserção no mercado emergente de livros para estudantes de ensino superior. A editora estabeleceu redes de interação significativas e viabilizou a publicação de obras e autores que passaram a ser referência em debates intelectuais e políticos.
Palavras-chave:
Sociologia da edição; História das ciências sociais; Zahar Editores; Sociologia da cultura; História intelectual
Abstract
In this article, I analyze the editorial policy of Zahar Editores, a company that occupied a central place in the publishing of social science books in Brazil between the 1960s and 1980s. Through the analysis of the publisher's catalog, interviews, and historical documents, I seek to understand how the adoption of a publishing translation policy was fundamental for the configuration of social sciences in the country, in order to contribute to the understanding of the history of those disciplines by drawing attention to the material conditions of the circulation of ideas. The publishing of university textbooks and monographic titles by foreign authors served for Zahar as a strategy for insertion in the emerging market for higher education books. The publisher established significant interaction networks and made it possible to publish works and authors that became a reference in intellectual and political debates.
Keywords:
Sociology of publishing; History of social sciences; Zahar Editores; Sociology of culture; Intellectual history
Resume
Dans cet article, j'analyse la politique éditoriale de Zahar Editores, une société qui a occupé une place centrale dans l'édition de livres de sciences sociales au Brésil entre les années 1960 et 1980. À travers l'analyse du catalogue de l'éditeur, des entretiens et des documents historiques, je cherche à comprendre en quoi l'adoption d'une politique de traduction éditoriale a été fondamentale pour la configuration des sciences sociales dans le pays, afin de contribuer à la compréhension de l'histoire de ceux-ci disciplines en attirant l'attention sur les conditions matérielles de circulation des idées. La publication de manuels universitaires et de titres monographiques d'auteurs étrangers a servi pour Zahar de stratégie d'insertion dans le marché émergent des livres d'enseignement supérieur. L'éditeur a établi d'importants réseaux d'interaction et a permis de publier des œuvres et des auteurs qui sont devenus une référence dans les débats intellectuels et politiques.
Mots-clés:
Sociologie de l'édition; Histoire des sciences sociales; Zahar Editores; Sociologie de la culture; Histoire intellectuelle
Introdução
A Zahar Editores (1957-1984) foi uma das mais importantes editoras brasileiras da segunda metade do século xx. Fundada por Jorge Zahar e seus irmãos Ernesto e Lucien, a editora construiu um catálogo com foco em ciências sociais e humanas. Inicialmente investiu na tradução de autores estrangeiros, privilegiando textos clássicos, livros de introdução e de divulgação, compilações e trabalhos monográficos. Mais tarde, e de forma paralela às traduções, passou a investir também na publicação de autores brasileiros, a maioria deles institucionalmente ligada às universidades e aos programas de pós-graduação que passaram a se expandir nos anos 1970.
Cada vez mais presentes em coleções editoriais diversas – sobretudo a partir dos anos 1940, como se deu no caso das coleções brasilianas (Silva, 2018SILVA. (2018), “As primeiras coleções de ciências sociais no Brasil: Elementos para a análise da emergência de um gênero”. Enfoques, 16:60-67., 2019SILVA. (2019), Editoras e ciências sociais no Brasil: a Zahar Editores e a emergência das ciências sociais como gênero editorial (1957-1984). Tese de doutorado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.) –, as ciências sociais passaram a ocupar um lugar de destaque no mercado editorial brasileiro e nos debates públicos da segunda metade do século xx. Tal configuração está diretamente relacionada à emergência de um conjunto de produtores especializados, formados nos cursos de ciências sociais, ao surgimento de editores com condições materiais que possibilitassem os investimentos necessários, e ao aparecimento de um público leitor suficientemente grande e com capacidade de compra para viabilizar tais publicações, o que se tornou possível tanto pela expansão do sistema educacional nacional quanto pelo desenvolvimento de um mercado consumidor interno.
Entre as décadas de 1950 e 1970, as ciências sociais brasileiras passaram por um período de expansão e consolidação, vindo a se estabelecer como referência fundamental nos debates políticos e intelectuais. Diversas pesquisas examinaram as condições institucionais desse processo, com ênfase na criação de cursos universitários, institutos de pesquisa e programas de pós-graduação (Carvalho, 2015CARVALHO, Lucas Correia. (2015), Projeto, conhecimento e reflexividade: estudos rurais e questão agrária no Brasil dos anos 1970. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Miceli, 1989MICELI, Sergio. (1989), História das ciências sociais no Brasil, vol. 1. São Paulo, Vértice/Idesp., 1995aMICELI, Sergio. (1995a), “A Fundação Ford e os cientistas sociais no Brasil, 1962-1992”, in S. Miceli (org.), História das ciências sociais no Brasil, vol. 2, São Paulo, Sumaré/Fapesp.; Trindade, 2007TRINDADE, Hélgio. (2007), As ciências sociais na América Latina em perspectiva comparada: fundação, consolidação e expansão. 2ª edição. Porto Alegre, UFRGS.), na trajetória dos intelectuais ou grupos de maior destaque (Arruda, 1995ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. (1995), “A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a ‘Escola Paulista’”, in S. Micelli (org.), História das ciências sociais no Brasil, vol. 2, São Paulo, Sumaré/Fapesp.; Bastos, 2002BASTOS, Elide Rugai. (2002), “Pensamento social da escola sociológica paulista”, in S. Miceli (org.), O que ler na ciência social brasileira, v. 4, São Paulo, ANPOCS/Sumaré.; Brasil Jr, 2013BRASIL JR, Antonio. (2013), Passagens para a teoria sociológica: Florestan Fernandes e Gino Germani. São Paulo, Hucitec.; Rodrigues, 2011RODRIGUES, Lidiane Soares. (2011), A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e ´um seminário’ (1958-1978). Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo.), nos mecanismos de financiamento (Miceli, 1995bMICELI, Sergio. (1995b), História das ciências sociais no Brasil, vol. 2, São Paulo, Vértice.), no engajamento nos debates públicos e na interpretação do país (Bom Jardim, 2013BOM JARDIM, Fernando Perlatto. (2013), Sociologia pública: imaginação sociológica brasileira e problemas públicos. Tese de doutorado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Villas Bôas, 2007VILLAS BÔAS, Glaucia. (2007), A vocação das ciências sociais no Brasil: um estudo da sua produção em livros no acervo da Biblioteca Nacional 1945-1966. Rio de Janeiro, Fundação Biblioteca Nacional.), nas revistas especializadas (Jackson, 2004JACKSON, Luiz Carlos. (2004), “A sociologia paulista nas revistas especializadas (1940-1965)”. Tempo Social, 16, 1:263-83. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702004000100013&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 14 mar. 2021.
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), entre outros aspectos.1
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Os estudos citados não compõem um inventário exaustivo, mas um recorte da diversidade de pesquisas que contribuíram para compreender a história das ciências sociais no Brasil. O objetivo era chamar a atenção para a insuficiência de pesquisas sobre edição, foco deste artigo.
Poucas pesquisas, entretanto, ocuparam-se das condições materiais de inscrição e circulação das ideias produzidas pelos cientistas sociais em livros, seja tratando da trajetória de editoras fundamentais para a consolidação desse processo, seja das interações estabelecidas entre intelectuais e empresas editoriais.
A pesquisa realizada por Heloísa Pontes (1989)PONTES, Heloísa. (1989), “Retratos do Brasil: editores, editoras e ‘coleções Brasiliana’ nas décadas de 30, 40 e 50”, in S. Miceli (org.), História das ciências sociais no Brasil, São Paulo, Vértice/Idesp. sobre as coleções brasilianas entre as décadas de 1930 a 1950 figura como uma das raras e inspiradoras iniciativas neste sentido, ao dar destaque à atuação das empresas editoriais no estabelecimento de um corpus textual vinculado a livros de interpretação do Brasil. Foi, entretanto, a partir dos anos 1950 que as ciências sociais passaram a atrair o interesse de editoras comerciais de forma mais sistemática. É o caso da França, com a editora Gallimard (Baert, 2015BAERT, Patrick. (2015), The Existentialist Moment: The Rise Os Sartre as a Public Intellectual. Cambridge, Polity Press.; Collins, 1998COLLINS, Randall. (1998), The Sociology of Philosophies: A Global Theory of Intellectual Change. Cambridge, Harvard University Press.), da Itália, com a Feltrinelli, e da Alemanha, com a Suhrkamp. No Brasil, isso se deu sobretudo com a Zahar Editores, que contribuiu para a inserção do país numa dinâmica internacional de circulação de ideias, e de práticas intelectuais e estratégias de consolidação disciplinar e institucional. Como sugere Sapiro (2018)SAPIRO, Gisèle. (2018), “Between National and International: The Historical Emergence of Sociology as a Field”. Sociedade e Estado, 33, 2:349-72., a concorrência no mundo acadêmico tem a capacidade de promover a circulação de um modelo organizacional. No caso da Zahar Editores isso fica claro com a elaboração de uma política de traduções de obras estrangeiras.
Este trabalho tem como objetivo compreender a dinâmica de tradução e publicação de livros de ciências sociais no Brasil tomando a trajetória da Zahar Editores como um caso privilegiado. Para isso, analisa dados sobre os cerca de 1200 livros publicados pela editora entre 1957 e 1984, período de seu funcionamento, além de entrevistas, dados biográficos e documentos históricos. A principal fonte utilizada nessa pesquisa foi o caderno de anotações deixado por Jorge Zahar e disponibilizado para consulta pela família do editor. O caderno contém detalhes sobre as publicações da editora. As informações serviram de ponto de partida para a reconstituição do catálogo da Zahar Editores, empreitada que envolveu também a consulta aos sistemas de busca de diversas bibliotecas, e o cotejo de alguns exemplares dos livros.
Somaram-se a esses esforços a realização de diversas entrevistas com editores e cientistas sociais, em especial Ana Cristina Zahar, Otávio Guilherme Velho e Moacir Palmeira; a pesquisa em jornais de grande circulação na segunda metade do século xx no Brasil, acessados por meio do portal online da Hemeroteca Nacional; e o acesso a documentos relacionados à atuação da editora, como as cartas do sociólogo norte-americano Irving Louis Horowitz, disponibilizadas no acervo da Pennsylvania State University Libraries.
Tendo como questão central compreender o papel da edição na configuração das ciências sociais no Brasil, busco identificar, na relação entre a produção de conhecimento especializado e sua publicação em livro, elementos explicativos para a emergência de agendas de pesquisa, temas, autores e a configuração de debates públicos. Neste contexto, e de forma distinta do que se enfatiza nos estudos focados no desenvolvimento institucional, as ciências sociais devem ser compreendidas aqui como um gênero editorial (Sorá, 2004SORÁ, Gustavo. (2004), “Editores y Editoriales de Ciencias Sociales: Un Capital Específico”, in Intelectuales y Expertos: La Constitución del Conocimiento Social en la Argentina, Buenos Aires, Paidos.), mais que como disciplina universitária. Isso implica pensar que o universo das ciências sociais em livro não é um simples reflexo do seu universo acadêmico, mas se configura a partir de uma lógica própria de funcionamento.
Busca-se, desta forma, observar o conjunto de práticas culturais que não se restringem à atividade universitária, mas cuja contribuição é essencial para o estabelecimento de esferas significativas de debate e ressonância pública. Ganham destaque, na análise da atuação da Zahar Editores no universo das ciências sociais no Brasil, as estratégias elaboradas pela editora para se inserir no campo editorial (Bourdieu, 2018BOURDIEU, Pierre. (2018), “Uma revolução conservadora na edição”, Política & Sociedade, 17, 39:198-249. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175-7984.2017v17n39p198. Acesso em: 14 mar. 2021.
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) diante de outras editoras concorrentes: as redes de interação forjadas com intelectuais brasileiros e estrangeiros, as linhas editoriais lançadas ao longo dos anos e os debates públicos nos quais ela teve atuação fundamental.
Este texto se divide em quatro tópicos, além desta introdução e das considerações finais. Em um primeiro momento, a trajetória biográfica de Jorge Zahar é recuperada, de forma a esclarecer como se deu a sua entrada no mercado editorial e que consequências isso apresentou para a sua atuação como editor. Em seguida, tem-se a análise da publicação do Manual de sociologia, o primeiro livro da editora e a obra que inaugurou a coleção Biblioteca de Ciências Sociais. A formatação de coleções voltadas a estudantes universitários se impôs como novo paradigma editorial, em substituição à lógica de atuação das coleções brasilianas, tema que é abordado no terceiro tópico. Por fim, discutem-se elementos vinculados à adoção de uma política editorial de tradução.
A partir desta análise, é possível argumentar que a Zahar Editores foi um agente central na configuração das ciências sociais brasileiras na segunda metade do século xx, contribuindo tanto para a difusão de ideias oriundas de países estrangeiros, por meio de uma política editorial voltada primordialmente à tradução, quanto com a conformação de uma comunidade intelectual nacional, na interação com intelectuais autóctones.
A entrada de Jorge Zahar no universo editorial
Filho de pai libanês e mãe francesa, Jorge Zahar nasceu em fevereiro de 1920, nos arredores da cidade de Campos dos Goytacazes, próximo do Rio de Janeiro – onde hoje está localizado o município de Santa Maria –, quase seis anos depois do primogênito, Ernesto. Após algumas mudanças de cidade, a transferência definitiva da família para o Rio de Janeiro, então capital federal, em 1936 – já então acrescida dos irmãos mais novos Lucien e Margot, que nasceram respectivamente seis e doze anos depois de Jorge, e desfalcada do pai, que ficara em Vitória, no Espírito Santo, após um divórcio bastante conflituoso –, marcou o início de uma trajetória árida, porém exitosa. Jorge trabalhou com distribuição de panfletos, vendeu amendoim torrado e fantasias de Carnaval nos trens da cidade, foi servente em uma relojoaria, auxiliar de caixa do Cassino da Urca e realizou diversas outras atividades de comércio informal.
Comprometido desde os doze anos com o trabalho, só chegou a cursar o ensino primário. Toda sua formação posterior se deu, portanto, como autodidata, embora se ancorasse em estímulos iniciais nada desprezíveis. Aprendeu desde cedo o francês com a mãe. O hábito de leitura, que não imperava em sua casa, desenvolveu inicialmente com os livros do pai de um amigo e, depois, frequentando a biblioteca pública de Vitória, no período em que a família viveu na cidade. Em 1940, aos 20 anos, a convite do seu irmão mais velho, foi trabalhar na empresa de Antonio Herrera, um imigrante anarquista de origem espanhola e sogro de Ernesto. A Herrera & Cia dedicava-se à importação e distribuição de livros técnicos, setor que estava em alta tanto pelo estímulo nacional à educação nos níveis básicos, superior e profissionalizante2 2 A criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (senai), em 1942, e do Serviço Social do Comércio (sesc), em 1946, são marcos significativos deste processo. quanto pelas dificuldades de importação de livros no contexto de guerra que assolava grande parte dos principais países exportadores de livros da Europa à época.
A empresa na qual os irmãos Zahar passaram a trabalhar ficava incialmente na rua Teófilo Otoni, sendo transferida mais tarde para a rua Rodrigo Silva, ambas no centro da cidade. O cenário do centro da então capital federal nos anos 1940 era de efervescência cultural e política, com diversas livrarias e cafés onde membros da elite empresarial, política e intelectual se encontravam. O Rio de Janeiro, que ao final do século xix era o centro cultural incontestável do país, no início do século xx perdia essa posição, por conta da ascensão paulista. A vitória de Getúlio Vargas em 1930, entretanto, fez voltarem as atenções à capital federal, onde se estabeleceu um projeto modernizador que envolve a construção do prédio do Ministério da Cultura, inaugurado em 1947, a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1939), o Instituto Nacional do Livro (1937) e o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937), entre outros elementos que serviram para dinamizar o universo intelectual carioca.
A cidade contava, em meados dos anos 1930, com cerca de um milhão e meio de habitantes, e seu centro ostentava um urbanismo moderno, resultado das reformas de Pereira Passos em 1906 – inspiradas, por sua vez, nas urbanizações realizadas em Paris por iniciativa do Barão de Haussmann algumas décadas antes. O centro do Rio enchia-se de livrarias. A cidade chegou a contar, entre 1930 e 1940, com pelo menos 144 delas, excluídas as papelarias – que vendiam livros como negócio secundário. Grande parte dessas livrarias ficava na região central da cidade (Machado, 2012MACHADO, Ubiratan. (2012). História das livrarias cariocas. São Paulo, Edusp.).3 3 Para se ter um valor atual como referência, a Associação Estadual de Livrarias do Rio (ael/rj) estimou que havia, em 2017, ano de lançamento de seu Guia de livrarias da cidade do Rio de Janeiro, 204 livrarias na capital fluminense. A cidade, que contava com uma população de pouco mais de 1,7 milhão de habitantes no Censo de 1940, ultrapassou 6 milhões em 2010. Há, portanto, um aumento do número de livrarias em termos absolutos, mas uma diminuição drástica, em termos relativos: de forma aproximada, havia uma livraria para cada 11 mil habitantes em 1940; hoje, a média é de uma para cada 30 mil pessoas. A Feira Nacional do Livro, que ficou conhecida como a Feira da Cinelândia, foi outro elemento dinamizador do mercado editorial da época, agregando livreiros que passaram a expor seus produtos em barracas dispostas em locais estratégicos, garantindo grande movimento de transeuntes e descontos que estimulavam o consumo (Azevedo, 2018AZEVEDO, Fabiano Cataldo. (2018), Editar livros, sonho de livreiros: Os Zahar e o livro no Brasil (1940-1970). Tese de doutorado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.).
A deflagração da Segunda Guerra Mundial, como vimos, dificultava a importação de livros oriundos do mercado europeu. Segundo relatou Jorge Zahar, não havia naquele momento “um serviço regular de importação de livros estrangeiros para livrarias” (Zahar, 2001ZAHAR, Jorge. (2001), Jorge Zahar - Editando o editor, v. 5. São Paulo, Edusp/Com-Arte., p. 31), atividade que passou a ser realizada pela empresa em que ingressara. Como desdobramento deste processo, aliado ao fortalecimento da indústria editorial regional, o Brasil passou a substituir os livros importados da França – de onde vinha a maior parte das importações até então – por livros em inglês e espanhol. Esse cenário, por um lado, estimulou a produção nacional de traduções e de livros de autores brasileiros. Por outro, fez emergir novos mercados exportadores, como Argentina e México. Como comenta Hallewell (2005HALLEWELL, Lawrence. (2005), O livro no Brasil: sua história. São Paulo, Edusp.:541), “três anos antes do conflito mundial, a deflagração da Guerra Civil Espanhola acarretara uma virtual paralisação da atividade editorial da Espanha, proporcionando uma oportunidade única às editoras hispano-americanas”.
Foi nesse contexto de crescente demanda por livros técnicos e de ciências sociais e humanas, e na esteira de um processo de institucionalização das ciências sociais (Jackson, Blanco, 2014JACKSON, Luiz Carlos & BLANCO, Alejandro. (2014), Sociologia no espelho: ensaístas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970). São Paulo, Editora 34.; Trindade, 2007TRINDADE, Hélgio. (2007), As ciências sociais na América Latina em perspectiva comparada: fundação, consolidação e expansão. 2ª edição. Porto Alegre, UFRGS.) e de regionalização do circuito livreiro (Sorá, 2017SORÁ, Gustavo. (2017), Editar desde la Izquierda en América Latina: La Agitada Historia del Fondo de Cultura Económica y de Siglo XXI. Buenos Aires, Siglo Veintiuno.), que Jorge Zahar se iniciou no ramo. Durante seis anos trabalhou como funcionário da empresa de Antonio Herrera, recebendo diversos livros vindos de países vizinhos. Em 1946, Herrera resolveu se aposentar, alegando não haver mais espaço para esse tipo de atividade intermediária, já que, com o fim da Segunda Guerra, as próprias livrarias poderiam realizar com mais facilidade suas importações. Acometido por uma doença que o deixou cego, Herrera veio a se suicidar pouco tempo depois (Pires, 2017PIRES, Paulo Roberto. (2017), A Marca do Z: A vida e os tempos do editor Jorge Zahar. Rio de Janeiro, Zahar.). Os irmãos Zahar – que pouco antes haviam se tornado sócios do negócio, junto ao filho de Herrera e dois outros funcionários da empresa –, agora assumiram integramente, em companhia de Lucien, a livraria, que rebatizaram de ler – Livrarias Editoras Reunidas.
Dando continuidade às atividades de importação e distribuição de livros que vinham sendo realizadas pela Herrera & Cia, os irmãos Zahar fariam novos investimentos. Em 1951 a ler passou a ocupar um espaço maior, em um novo endereço na rua México, 31, próximo à Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da Universidade do Brasil. A mudança se mostrou certeira em termos de aproximação com o crescente público universitário, que procurava a ler em busca das novidades editoriais em ciências sociais e humanas na cidade.
O Manual de sociologia e a coleção Biblioteca de Ciências Sociais
A experiência com a importação, distribuição e venda de livros acabou servindo como estímulo para a entrada da família Zahar na atividade editorial. Em dezembro de 1956, com Jorge à frente da empreitada, os irmãos fundaram a Zahar Editores. O primeiro livro publicado, em 1957, foi o Manual de sociologia, de Jay Rumney (1905-1957) e Joseph Maier (1911-2002), professores da Rutgers University, em Nova Jersey, Estados Unidos. A aposta inicial se mostrou bastante acertada. O livro inaugurou a coleção Biblioteca de Ciências Sociais – a principal das 28 coleções lançadas pela editora – e foi adotado em diversos cursos por todo o país.
A tradução ficou por conta de Octavio Alves Velho, pai dos antropólogos Otávio e Gilberto Velho, que também viriam a ser colaboradores da editora. O volume contou com uma introdução escrita por Djacir Menezes, então professor na Universidade do Brasil, que saudou a publicação afirmando ter “razões para supor que a iniciativa de Zahar Editores será recebida com entusiasmo e louvor, não somente pelos estudiosos de Sociologia, bem como por todos os que desejam compreender melhor, sem prevenções de seitas ou de partidos, as grandes perplexidades da vida contemporânea” (Romney e Maier, 1968ROMNEY, Jay & MAIER, Joseph. (1968), Manual de sociologia. Rio de Janeiro, Zahar.:9). Vinte e dois anos depois, em 1979, a publicação da nona e última edição do livro atestava a longevidade do interesse pela obra.
A crença na sociologia como ferramenta fundamental na realização de análises e nos processos de mudança social – perspectiva defendida no livro – está, em grande medida, alinhada ao tema da modernização. Como concluem os autores, “o estudo científico de assuntos humanos – tal é a firme convicção do sociólogo – acabará fornecendo um corpo de conhecimentos e princípios que o habilitarão a controlar e aperfeiçoar as condições da vida social” (Romney e Maier, 1968ROMNEY, Jay & MAIER, Joseph. (1968), Manual de sociologia. Rio de Janeiro, Zahar.:9).
Além da valorização do conhecimento sociológico concebido como ferramenta de transformação social, a ideia da “clareza didática”, outra marca fundamental do que viria a ser priorizado nas publicações da Zahar Editores, conforma a concepção de livro clássico que caracteriza grande parte do catálogo. A ausência de “tecnicismos dispensáveis” era uma característica desejável mesmo nos livros de “divulgação” e “familiarização” tão ao gosto da editora.
Isso se explica, por um lado, pela oportunidade mercadológica percebida, em grande medida, com base na experiência pregressa dos irmãos Zahar no setor de importação, distribuição e venda de livros. Mas não deixa de estar relacionado, por outro lado, à escassez de capital cultural e social que permitisse aos editores assumir uma postura de vanguarda. Foi o que os levou ao caminho mais seguro, tanto financeira quanto culturalmente, de investir nos clássicos, ou seja, livros que já haviam sido testados e aprovados em outros mercados e eram avaliados como adaptáveis ao contexto brasileiro.
É revelador, neste sentido, a tentativa, ainda quando a editora era apenas um projeto, de disponibilizar livros para o curso de economia – assim como havia ocorrido no início da editora mexicana Fondo de Cultura Económica (Sorá, 2017SORÁ, Gustavo. (2017), Editar desde la Izquierda en América Latina: La Agitada Historia del Fondo de Cultura Económica y de Siglo XXI. Buenos Aires, Siglo Veintiuno.) – que seriam escritos por professores brasileiros. Como afirma Jorge Zahar:
A ideia básica da editora Zahar, em 1956, era fazer uma coleção que compusesse um curso de Economia Política, com trabalhos de professores do Rio e de São Paulo. O diretor da coleção seria o homem que fez o primeiro plano econômico do governo Carvalho Pinto de São Paulo, Diogo Gaspar, posteriormente no Rio, no bnde. O curso de Ciências Econômicas tinha então onze cadeiras e encomendaram onze livros que cobriam as cadeiras principais de Teoria dos Preços até Contabilidade Social. (...). Bom, os livros estão encomendados até hoje. Enquanto eu esperava os originais brasileiros, eu comecei a fazer traduções. (Zahar, 2001ZAHAR, Jorge. (2001), Jorge Zahar - Editando o editor, v. 5. São Paulo, Edusp/Com-Arte.:33-34)
Poucos foram os autores brasileiros que publicaram pela editora nos primeiros anos da Zahar. Entre eles estão Djacir Menezes, Franklyn de Oliveira, Themistocles Brandão Cavalcanti, Alberto Guerreiro Ramos e Adolpho Justo Bezerra de Menezes. Com as dificuldades em fazer vingar os primeiros projetos editoriais, as traduções se impuseram como política editorial.
Os livros eram destinados ao público universitário e a leitores leigos interessados nos debates sociológicos da época, mais que a especialistas na área. Como relatou Jorge Zahar, “Eu não faço livros que tenham uma vida curta, que [...] deixem de ser lidos ao longo do tempo. O pensamento básico é fazer livros de interesse permanente, sempre foi isso que me norteou. [...] Minha ideia editorial básica é essa: editar livros clássicos” (Zahar, 2001ZAHAR, Jorge. (2001), Jorge Zahar - Editando o editor, v. 5. São Paulo, Edusp/Com-Arte.:59-60). Seguindo o mesmo princípio de seleção do Manual de sociologia, orientado para o público universitário e parte da coleção Biblioteca de Ciências Sociais, foram publicados nos dois anos iniciais da editora os livros Democracia e direito (1957), do jurista norte-americano Jerome Hall, e História das doutrinas políticas desde a antiguidade (1958), de Gaetano Mosca. Também integrando a Biblioteca de Ciências Sociais, os livros Teoria econômica (1959), de A. W. Stonier e D. C. Hague, e Grandes economistas (1959), de Robert L. Heilbroner – que teve o título alterado para Introdução às ideias econômicas na segunda edição, em 1965 – cumpriam o mesmo papel e tiveram sucessivas reedições.
Iniciava-se assim, de forma ainda bastante errática, uma agenda de publicações que, no decorrer dos anos 1960, ganharia destaque por destinar-se a divulgar o pensamento das ciências sociais e humanas prioritariamente entre alunos dos cursos universitários, valorizando o didatismo, o poder de síntese das obras e sua inserção nos debates públicos. Foi, portanto, a partir de uma bem-sucedida política de traduções de obras estrangeiras que Jorge Zahar acumulou prestígio e capital social, estabelecendo-se como referência na edição de ciências sociais e humanas no Brasil.
Uma carta enviada pelo sociólogo norte-americano Irving Louis Horowitz a seu colega Stanley Moore em 1962 destaca a fama de Jorge Zahar como editor de nomes relevantes das ciências sociais estrangeiras: “Zahar publicou livros de pessoas como Myrdal, Mills, Baran, Duverger, Schumpeter, Timasheff, Mannheim, Sweezy etc. Então o seu livro estará em boa companhia”,4 4 Carta de Irving Louis Horowitz a Stanley Moore, datada de 14 de dezembro de 1962. Disponível em https://digital.libraries.psu.edu/digital/collection/transaction/id/806/rec/17. Acesso em: 19 mar. 2021. afirma o sociólogo, estimulando o colega a fechar contrato com a editora.
A Biblioteca de Ciências Sociais foi a principal coleção da editora até o final do seu funcionamento, em 1984. Logo nos momentos iniciais foram publicados, além dos livros já citados, obras importantes como Diagnóstico do nosso tempo (1961) e O Homem e a sociedade (1962), de Karl Mannheim, que teve quatro edições; Aspectos políticos da teoria econômica (1962) e O Estado do futuro (1962), de Gunnar Myrdal; Imperialismo e classes sociais (1961), de Schumpeter; Ciência política: teoria e método (1962), de Maurice Duverger; Uma teoria científica da cultura (1962), de Malinowski; A luta pelo desenvolvimento (1964) e A formação da sociedade econômica (1964), de Robert L. Heilbroner; e Ensaios de sociologia (1967), de Max Weber, além de títulos de autores como Erich Fromm, C. Wright Mills, Marcuse, Paul Sweezy e Maurice Dobb.
Nos primeiros anos de atuação da Zahar Editores, a maior parte das obras traduzidas tinha como local privilegiado de origem os Estados Unidos. O país passou a ter uma influência decisiva no mundo, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, isso se refletiu em uma gradativa e inédita substituição do francês – até então a língua original de grande parte dos livros importados e traduzidos no país – pelo inglês. Autores vinculados à Escola de Frankfurt, como Erich Fromm e Herbert Marcuse, os editores da revista Monthly Review Paul Sweezy e Leo Huberman, e um epíteto da sociologia crítica estadunidense, C. Wright Mills, ganharam espaço privilegiado no catálogo da editora. Estes autores fizeram reverberar grande parte do pensamento crítico norte-americano que deu ensejo à formação do que ficou conhecido como Nova Esquerda. Esse movimento mundial pode, de forma geral, ser identificado com a emergência, atrelada à perda de centralidade das estruturas burocráticas dos partidos comunistas por todo o mundo, de jovens estudantes como atores políticos fundamentais, identificados também às lutas pacifistas, por direitos civis e pela libertação nacional de países em situação de colonização (Bottomore, 1970BOTTOMORE, Tom. (1970), Críticos da sociedade: o pensamento radical na América do Norte. Rio de Janeiro, Zahar.).
O autor com o maior número de obras no catálogo da Zahar Editores é Erich Fromm. Foram, ao todo, dezoito obras, publicadas entre 1959 e 1984, com várias reedições. A popularidade do autor se explica, em grande medida, por suas interpretações do autoritarismo, que interessou sobretudo ao público estadunidense dos anos 1940, e por suas reflexões sobre as mudanças comportamentais que se desdobravam nos anos 1950 e 1960. Este contexto viria a reverberar no Brasil na década de 1960, relacionado diretamente ao crescimento da comunidade universitária no país, aos protestos estudantis, aos movimentos de contracultura e a toda sorte de questionamentos sociais que surgiram no período. Entre as obras de Fromm publicadas pela Zahar estão Psicanálise da sociedade contemporânea (1959), que chegou ao total de dez edições; Análise do homem (1960), com treze edições; e O mêdo à liberdade (1960), com catorze edições. Também Herbert Marcuse teve algumas obras traduzidas e publicadas pela Zahar, como Eros e civilização (1968), Ideologia da sociedade industrial (1968), Crítica da tolerância pura (1970) – que reúne artigos de Marcuse, Robert Paul Wolf e Barrington Moore Jr. –, Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade (1972) e Contra-revolução e revolta (1973).
Com relação à esquerda socialista estadunidense, foram publicados diversos autores cujos vínculos originais com a Zahar atrelavam-se à Monthly Review. Criada pelo economista Paul Sweezy e pelo jornalista Leo Huberman em 1949, e alocada inicialmente no apartamento de Huberman em Nova York, durante período de grande efervescência intelectual na cidade (Mattson, 2002MATTSON, Kevin. (2002), Intellectuals in Action: The Origins of the New Left and Radical Liberalism, 1945-1970. University Park, The Pennsylvania State University Press.), a revista socialista surgiu em um momento em que o pensamento crítico de esquerda no país estava sob ataque (Bottomore, 1970BOTTOMORE, Tom. (1970), Críticos da sociedade: o pensamento radical na América do Norte. Rio de Janeiro, Zahar.). A expressão máxima desse cenário pode ser identificada na patrulha anticomunista liderada pelo senador Joseph McCarthy (1947-1957), no contexto inicial de Guerra Fria, e na diminuição da influência do Partido Comunista norte-americano.
A política editorial da Monthly Review priorizava, em grande medida, análises econômicas e políticas. O capitalismo como sistema de alcance mundial, o imperialismo norte-americano e as revoltas no Terceiro Mundo eram os principais temas da revista. Análises dos efeitos do macarthismo na sociedade norte-americana tinham destaque nos anos iniciais da publicação; em seguida, ganharam espaço as análises dos movimentos por direitos civis dos anos 1950; os efeitos da Revolução Cubana, no início dos anos 1960, foram objeto de diversos artigos, desdobrando-se em críticas à Guerra do Vietnã e discussões sobre o imperialismo norte-americano; por fim, a revista lança luz sobre a tendência de estagnação do capitalismo norte-americano nos anos 1970, e a crítica aos gastos militares do governo Reagan, no início dos anos 1980 (Mcchesney, 2007MCCHESNEY, Robert. (2007), “The Monthly Review Story: 1949-1984.” MROnline, 1:28. https://mronline.org/2007/05/06/the-monthly-review-story-1949-1984/. Acesso em 14 mar. 2021.
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).
A Zahar publicou diversos livros vinculados à Monthly Review Press, editora criada a partir do periódico. Eles incluem Socialismo (1959), de Paul Sweezy; Cuba: anatomia de uma revolução (1960), de Leo Huberman e Paul Sweezy; História da riqueza do Homem (1962),5 5 Com vinte edições, diversas reimpressões e mais de 300 mil exemplares vendidos, esse livro é considerado por Jorge Zahar seu maior sucesso comercial como editor. de Leo Huberman; e Capitalismo monopolista (1966), de Paul Baran e Paul Sweezy, além de vários livros de C. Wright Mills, como A verdade sobre Cuba (1961), A elite do poder (1962) e A imaginação sociológica (1965).
Embora Jorge Zahar explique retrospectivamente a adoção de uma política editorial focada na tradução de obras estrangeiras como decorrência de uma suposta dificuldade de obter textos de autores brasileiros nos prazos determinados, é de se notar os fracos vínculos que a editora tinha, no seu início, com a elite intelectual brasileira. Conquanto ocupassem posições de destaque na universidade e na política, Djacir Menezes, Milton Campos e Diogo Gaspar, intelectuais com os quais a Zahar Editores estabeleceu contato nos primeiros anos de funcionamento, não faziam parte da nova geração que passava a estabelecer os critérios de produção do conhecimento científico, acumulando prestígio a partir da institucionalização e da consolidação das faculdades de filosofia pelo país. Grande parte dessa elite acadêmica modernizadora já estava comprometida com outros projetos editoriais: intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (iseb) vinculavam-se à editora Civilização Brasileira, sociólogos da usp com as iniciativas da Companhia Editora Nacional – este caso mais diretamente ligado à construção de coleções voltadas a estudantes universitários.
A formação de coleções universitárias como novo paradigma editorial
No fim dos anos 1950, a construção de coleções em formato de bibliotecas disciplinares passa a se estabelecer como novo paradigma editorial, em substituição às coleções brasilianas dos anos 1930. Além da Zahar, outras editoras passaram a apostar nesse formato. Coleções como a Biblioteca Universitária da Companhia Editora Nacional, em 1959, e a Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais da editora Pioneira, em 1960, somaram-se à Biblioteca de Ciências Sociais da Zahar Editores, criada em 1957.
A Companhia Editora Nacional, de Octalles Marcondes Ferreira, vinha de uma tradição consolidada de publicação de livros didáticos e de estudos sobre o Brasil. Sua inserção no meio intelectual paulistano, que remontava aos empreendimentos editoriais levados a cabo nos anos 1920, ao lado de Monteiro Lobato, e o prestígio alcançado com sua coleção Brasiliana fizeram da editora, desde os anos 1940, um local privilegiado para a publicação de obras de intelectuais vinculados à Universidade de São Paulo e à Escola Livre de Sociologia e Política. Com a criação da coleção Biblioteca Universitária, a editora estabeleceu um novo vínculo com o universo cultural brasileiro. A coleção foi dividida em séries, cada uma cobrindo uma área de conhecimento específica. As ciências sociais compunham a série 2 da coleção e a coordenação ficou a cargo de Florestan Fernandes. O próprio diretor assina o volume inaugural, Fundamentos empíricos da explicação sociológica (1959).
Um grande número de autores vinculada à USP publicaria livros na coleção nos anos seguintes: Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Luiz Pereira, Marialice M. Foracchi, Antonio Candido, Roger Bastide, Oracy Nogueira, Paul Singer, Gioconda Mussolini, Gabriel Cohn, Juarez Rubens Brandão Lopes e Egon Schaden, entre outros. Além da clara preferência por autores que orbitavam sua rota de atuação profissional, Florestan Fernandes incluiu na coleção algumas traduções pensadas para o público universitário, de autores como Solomon Elliott Asch, William J. Goode, Paul K. Hatt, Émile Durkheim, Claude Lévi-Strauss, Ferdinand Tönnies, Talcott Parsons, Raymond Firth, Znaniecki, Georg Simmel, Edward Sapir e Georges Gurvitch.
Outra iniciativa editorial paulistana que tomou a universidade como interlocutor fundamental da sua estratégia foi a Editora Pioneira. A editora era um desdobramento da Livraria Pioneira, fundada por Enio Guazzelli em 1948. Guazzelli já trabalhava como funcionário de livrarias desde o final dos anos 1930. Ao criar seu próprio negócio, a ideia era que a livraria se especializasse em livros importados. Com o contexto das políticas de substituição de importação dos anos 1950, entretanto, a Pioneira passou a priorizar livros nacionais de ciências sociais, técnicos e voltados ao ensino de inglês (Machado, 2009MACHADO, Ubiratan. (2009), Pequeno guia histórico das livrarias brasileiras. São Paulo, Ateliê Editoral.), língua que estava em franca expansão desde o final da Segunda Guerra Mundial. A abertura de uma filial em 1954, na rua Maria Antonia, mostrou-se acertada: o novo espaço ficava próximo das faculdades de Filosofia, Ciências e Letras e Ciências Econômicas da USP, da faculdade Mackenzie e dos cursos de arquitetura e serviço social da PUC-SP. Em 1958, foi fundada a editora Pioneira.
A publicação do livro Ensaios de sociologia geral e aplicada (1960), de Florestan Fernandes, inaugurou a série de sociologia da coleção Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais. Assim como acontecia na Companhia Editora Nacional, a coleção foi dividida em séries: sociologia, psicologia, educação, política, economia, história, antropologia e serviço social. A coordenação da série de sociologia ficou a cargo de Ruy Coelho, Octavio Ianni e Luiz Pereira. Assim como ocorria na série de Ciências Sociais da Biblioteca Universitária da Companhia Editora Nacional, a Pioneira publicaria autores nacionais, a maioria vinculados à usp, e autores estrangeiros que fariam parte das bibliografias universitárias. Ao livro inaugural de Florestan Fernandes, somaram-se à coleção obras de autores como João Baptista Borges Pereira, Paula Beiguelman, Roger Bastide, Ruy Galvão de Andrada Coelho, Roberto Cardoso de Oliveira, Luiz Pereira e José de Souza Martins. Outros títulos, desses e de outros autores uspianos, passariam a conviver, na mesma coleção, com obras de autores estrangeiros como Maurice Dobb, Karl Mannheim, Thorstein Veblen, Max Weber, Alex Inkeles, Talcott Parsons e William Josiah Goode.
As instâncias de consagração universitária passaram a ser consideradas fundamentais nas estratégias adotadas pelas editoras na construção de suas políticas editoriais. O caráter científico do empreendimento passou a ganhar uma nova dimensão, atestando a consolidação de um processo que vinha se desenhando desde os anos 1930, com a institucionalização universitária das ciências sociais – tomando como marco a inauguração da Escola Livre de Sociologia e Política (1933), da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (1934) e da Universidade do Distrito Federal (1935) – e a defesa desse empreendimento intelectual como atividade profissional.
Tendo em vista a organização de coleções de ciências sociais voltadas ao público universitário, como a Biblioteca de Ciências Sociais da Zahar Editores, a série de ciências sociais da coleção Biblioteca Universitária da Companhia Editora Nacional e a série de sociologia da Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais, da editora Pioneira, é possível perceber o incremento de uma política editorial que constata a emergência e a consolidação das ciências sociais como gênero editorial. Apegando-se, entretanto, não ao que essas coleções têm em comum, mas a seus pontos divergentes – vínculos intelectuais e institucionais, princípios de seleção de obras –, é possível perceber que, à diferença das iniciativas paulistanas, muito vinculadas à usp, no contato com Florestan Fernandes e seus discípulos, e com grande contribuição de autores nacionais, a Zahar Editores constituiu uma política editorial fortemente baseada em traduções de obras clássicas, sem a chancela inicial de intelectuais de peso no cenário nacional, mas fazendo uso de uma experiência significativa, que se acumulava desde o início dos anos 1940, no trato com a importação e distribuição de livros.
A tradução como política editorial
Até a primeira metade do século xx, grande parte das obras canônicas das ciências sociais eram acessadas no Brasil por importações de livros em línguas estrangeiras, sobretudo espanhol, inglês e francês. Tanto os custos dos livros vindos de fora quanto a habilidade de leitura em línguas estrangeiras se impunham como barreiras de acesso aos estudantes que ingressavam na universidade. As experiências pregressas dos irmãos Zahar na distribuidora de Antonio Herrera e na livraria ler foram, neste sentido, fundamentais para o estabelecimento, na Zahar, de uma política editorial de tradução de obras que servissem aos estudantes universitários.
A política editorial da casa era inicialmente bastante indefinida, e levou algum tempo para se estabelecer. A partir da tentativa frustrada, já citada, de construir uma coleção de livros voltados ao curso de economia e escritos por professores brasileiros, a Zahar Editores investiu seus recursos e esforços na tradução de obras estrangeiras de ciências sociais e humanas. A estratégia, que serviu para compensar a falta de vínculos fortes com a elite intelectual local – que passava a se estabelecer, com a consolidação de faculdades de filosofia no Rio de Janeiro e em São Paulo –, contribuiu para construir o prestígio editorial e o capital econômico e social que viriam a ser fundamentais na consolidação da editora como referência na publicação de ciências sociais e humanas no Brasil.
O universo em que a Zahar Editores estabeleceu suas disputas iniciais ainda era fortemente marcado pelo tema da identidade nacional. As coleções brasilianas, que determinaram o principal paradigma intelectual do mercado editorial brasileiro nos anos 1930 e 1940, tiveram modificações em sua configuração nas décadas posteriores. Os relatos de viagem e os ensaios de interpretação nacional foram gradativamente dando espaço a obras monográficas, ao estilo do que se valorizava nos cursos de sociologia das recém-fundadas faculdades de filosofia (Pontes, 1989PONTES, Heloísa. (1989), “Retratos do Brasil: editores, editoras e ‘coleções Brasiliana’ nas décadas de 30, 40 e 50”, in S. Miceli (org.), História das ciências sociais no Brasil, São Paulo, Vértice/Idesp.). Coleções como a Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, e a Documentos Brasileiros, da José Olympio, passaram aos poucos a incorporar a seus catálogos autores vinculados a este novo universo intelectual. Com a criação das coleções Corpo e Alma do Brasil, da Difusão Europeia do Livro (Difel), em 1957, e Retratos do Brasil, da editora Civilização Brasileira, em 1960, essas casas passaram a reivindicar o lugar privilegiado de reflexão sobre o país, apropriando-se, em parte, do paradigma criado nos anos 1930, mas estabelecendo novos vínculos e configurações intelectuais, decorrentes do processo de institucionalização e modificação das disciplinas universitárias nos anos 1950 e 1960.
Diferente das coleções brasilianas – cujos livros visavam apresentar uma visão completa e abrangente do Brasil –, o nome da primeira coleção da Zahar Editores, Biblioteca de Ciências Sociais, remete à pretensão de constituir um conjunto de livros que seria o retrato não de um país, mas de uma área disciplinar. As interpretações da identidade nacional brasileira dão espaço à emergência de um novo vocabulário, oriundo do campo disciplinar que então se consolidava, como desdobramento do processo de institucionalização universitária iniciado em meados dos anos 1930.
O depoimento de Antonio Candido sobre a atuação da editora mexicana Fondo de Cultura Económica no Brasil é revelador da carência de obras traduzidas no país:
Para um homem da minha geração este é o momento de recordar o quanto devemos ao Fondo. Nas décadas de 1930, 1940 e ainda em 1950, contávamos com pouca bibliografia na área de ciências humanas, a não ser os estudos específicos sobre o Brasil. Por isso, muitas das grandes obras de cultura nos foram proporcionadas por editoras de língua espanhola, como Losada, Espalsa-Calpe de Buenos Aires, mas sobretudo pela Fondo de Cultura Económica, que nos disponibilizou os grandes textos de filosofia, sociologia, economia, antropologia, história, teoria da arte e de literatura. Eram obras de Max Weber, Mannheim, Toënnies (sic), Dilthey, Cassirer, Ermatinger, Alfoso Reyes e tantos outros. São inesquecíveis as capas coloridas dos livros: verdes, vermelhas, amarelas, azuis, rosadas, brancas. Formavam uma sorte de grande arco-íris cultural que unia simbolicamente os países da América Latina. (Candido, 1991, apudSorá, 2017SORÁ, Gustavo. (2017), Editar desde la Izquierda en América Latina: La Agitada Historia del Fondo de Cultura Económica y de Siglo XXI. Buenos Aires, Siglo Veintiuno., tradução do autor)
O depoimento destaca a produção, em território nacional, dos textos sobre o Brasil organizados pelas prestigiosas coleções brasilianas nos anos 1930 e 1940, embora as obras canônicas de autores estrangeiros e obras que servissem à formação dos estudantes universitários ainda fossem escassas em traduções para a língua local. Entre os obstáculos impostos ao estabelecimento de uma política editorial de traduções estava a pouca atenção que se dava à atividade do tradutor, realizada na maioria das vezes por escritores não especializados, e relegada pelas editoras a segundo plano, com orçamento reduzido e cronogramas apertados. Como revela uma matéria do Jornal do Brasil, “as traduções são, em 80% dos casos, inaceitáveis, feitas às pressas, sem responsabilidade nem do editor nem do tradutor. Não há critérios nem escrúpulos. Imprimem-se os mais grosseiros erros de português, de sintaxe, de acentuação, pervertendo o conteúdo lógico das frases” (Cardoso, 1965CARDOSO, Ivo. “Sêde de saber aumenta edições e abre caminho para o ensaio”. (1965), Jornal do Brasil, 3 set., p. 28).
O investimento em traduções, o estabelecimento de vínculos com tradutores e a manutenção de bons contatos com agentes estrangeiros eram parte das estratégias adotadas pela Zahar para se estabelecer como editora reconhecida no polo estrangeiro dos princípios de classificação editorial – opondo-se, por exemplo, a uma editora como a Difel, cuja coleção Corpo e Alma do Brasil pode servir como fórmula sintetizadora do polo nacional na dinâmica de disputas (Sorá, 2010SORÁ, Gustavo. (2010), Brasilianas: José Olympio e a gênese do nercado editorial brasileiro. São Paulo, Eduso/Com-Arte.).
A busca de uma relação mais profissionalizada com a tradução, como apontado por Jorge Zahar, estava no cerne da sua política editorial. O estabelecimento de um quadro fixo de colaboradores foi fundamental, no sentido de estabelecer uma rotina mais profissionalizada no trato com as traduções, embora nem sempre exitosa. Entre os tradutores mais frequentes da Zahar, incluíam-se Wantensir Dutra, Álvaro Cabral e Otávio Alves Velho.
Waltensir Dutra foi quem mais traduções realizou para a Zahar, chegando a ser responsável pelo setor de traduções da editora (Azevedo, 2018AZEVEDO, Fabiano Cataldo. (2018), Editar livros, sonho de livreiros: Os Zahar e o livro no Brasil (1940-1970). Tese de doutorado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.:279). Envolvido com o processo de profissionalização da tradução no país, Dutra foi secretário-geral e presidente da seção carioca da Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes (abrates), criada em 1974, e fundador e secretário-geral do Sindicato Nacional dos Tradutores (sintra), que surgiu em 1988, após o reconhecimento da profissão de tradutor pelo Ministério do Trabalho. Álvaro Cabral era o pseudônimo de Antônio José da Silva e Souza, português nascido em 1922 e formado em ciências históricas e filosóficas pela Universidade Clássica de Lisboa, e autor de dicionários e livros de psicanálise, como Uma breve história da psicologia (1972), escrito em parceria com Eduardo Pinto Oliveira e publicado pela Zahar. Fez parte do quadro fixo de tradutores da editora desde o início de suas atividades. Octávio Alves Velho era general do exército brasileiro. Foi professor de português na academia de West Point, nos Estados Unidos, e diretor da biblioteca do Exército. Começou como tradutor profissional vertendo para o português artigos da revista Seleções Reader’s Digest, uma das revistas de maior circulação nos Estados Unidos, na edição brasileira. Alves Velho já havia feito traduções para a Civilização Brasileira. Seu contato com Jorge Zahar se deu por intermédio de Ênio Silveira. Foi responsável pela tradução do primeiro livro da Zahar, o Manual de sociologia (1957). Seus filhos Otávio Guilherme Velho e Gilberto Velho viriam a ser dois dos principais colaboradores da editora. Além de tradutores, Waltensir Dutra, Álvaro Cabral e Octávio Alves Velho eram também interlocutores privilegiados de Jorge Zahar, participando algumas vezes das decisões em relação aos títulos a serem publicados.
Outro elemento adotado pela Zahar Editores dentro da lógica de construção de uma política editorial de tradução foi a revisão técnica, que servia para verificar e adequar as traduções, evitando que subvertessem conceitos e terminologias próprias de áreas especializadas de conhecimento. Autores como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, César Guimarães, Otávio Guilherme Velho e outros assinaram a revisão técnica de traduções da Zahar. Embora a remuneração não fosse elevada, servia como auxílio complementar às atividades de docência e de pesquisa; em alguns casos, teve o papel ainda de auxiliar intelectuais que, no período da ditadura militar, haviam perdido cargos acadêmicos nessas áreas.
Além de um trato mais profissionalizado com as traduções e do estabelecimento de revisões técnicas, a Zahar passou a dispor de um serviço até então inexistente no mercado editorial brasileiro: o do agente literário (Pires, 2017PIRES, Paulo Roberto. (2017), A Marca do Z: A vida e os tempos do editor Jorge Zahar. Rio de Janeiro, Zahar.). O agente literário emergiu nos mercados editoriais europeu e estadunidense na segunda metade do século xix, com a função básica de representar os interesses do escritor junto aos editores. O contato da Zahar com Erwin J. Bloch, que viria a cumprir a função de agente literário da editora, deu-se de uma forma distinta, que viria a se tornar prática corrente no mercado editorial mais tarde. Bloch era representante comercial de algumas editoras inglesas, como Blackwell, Oxford University Press, Cambridge University Press e Routledge, quando estabeleceu contato com a livraria ler. Judeu alemão, havia migrado para a Inglaterra fugindo do contexto de ascensão do regime nazista. No início dos anos 1950, seguiu o filho quando este se mudou para São Paulo. Representava comercialmente as editoras inglesas no mercado brasileiro quando recebeu de Jorge Zahar a proposta de cumprir a função inversa: comprar, de editoras estrangeiras, direitos autorais de obras a serem traduzidas no Brasil pela Zahar.
Em 1973, depois de estabelecida a nova atividade profissional, Bloch passou a contar com a assessoria de Karin Schindler, também ela judia alemã que migrara para São Paulo no contexto do regime nazista. O estabelecimento de um contato mais profissionalizado com os tradutores, a realização de revisões técnicas, e o auxílio de um agente literário para intermediar o contato com editoras estrangeiras – tudo isso revelava a configuração, na Zahar Editores, de uma política editorial voltada à realização de traduções.
A construção de um catálogo de obras direcionadas aos estudantes universitários responde, desta forma, às mudanças no universo intelectual brasileiro, que passava a valorizar a produção oriunda das instituições universitárias, com as preocupações metodológicas e a escrita monográfica que se pretendiam, nesse momento, traços distintivos em relação aos ensaios de interpretação da passagem do século xix para o xx. O encaminhamento para uma política editorial de traduções, entretanto, respondeu não somente à crescente demanda por obras estrangeiras que viessem a servir aos cursos universitários – ou à dificuldade de obter obras de autores brasileiros, como costumava argumentar Jorge Zahar (2001)ZAHAR, Jorge. (2001), Jorge Zahar - Editando o editor, v. 5. São Paulo, Edusp/Com-Arte. –, mas, em grande medida, ao comprometimento que grande parte da elite intelectual brasileira das ciências sociais e humanas já havia estabelecido com outras editoras de projeção nacional.
Importa, desta forma, constatar não somente o estabelecimento de uma política editorial voltada à tradução de obras estrangeiras na Zahar Editores, mas, mais especificamente, os fluxos de importação, as relações com os países de origem das obras e os domínios linguísticos privilegiados nos vínculos editoriais. Na Tabela 1 a seguir é possível observar, em termos absolutos, a predominância, ao longo de todos os anos de funcionamento da Zahar Editores, dos Estados Unidos e da Inglaterra como os principais países na origem de direitos autorais, seguidos pelo Brasil e pela França.
- Países de origem dos livros da Zahar Editores (1957-1984)6 6 Estão excluídos desta tabela os 126 títulos cuja origem nacional de produção não pôde ser verificada.
A diferença entre os quatro principais domínios nacionais e o restante dos países identificados permite estabelecer fluxos de importação bastante delimitados. A Zahar Editores parece se inserir, desta forma, em uma dinâmica globalizada de circulação intelectual, marcada por uma estrutura polarizada entre centro e periferia (Heilbron, 2014HEILBRON, Johan. (2014), “The Social Sciences as an Emerging Global Field”. Current Sociology, 62, 5:685-703.), em que a atuação dos domínios nacionais e linguísticos se impõe como forma de configuração da hierarquia de disciplinas, temas e recortes, na recepção dos autores e na construção de cânones disciplinares (Platt, 1995PLATT, Jennifer. (1995), “The United States Reception of Durkheim's The Rules of Sociological Method”. Sociological Perspectives, 38, 1:77-105.). Nota-se, desta forma, não só um processo de consolidação disciplinar e editorial das ciências sociais marcado por dinâmicas de importação, mas também a configuração de uma comunidade intelectual que, apesar de elementos de autonomização (Sapiro, 2004SAPIRO, Gisèle. (2004), “Elementos para uma história do processo de autonomização: o exemplo do campo literário francês”. Tempo Social, 16, 1:93-105.) no que toca à construção de seus debates e abordagens preferenciais – como se deu com o processo de regionalização das ciências sociais e os debates latino americanos –, revelavam traços de heteronomia que se acentuariam no final do século (Beigel, 2013BEIGEL, Fernanda. (2013), “Centros y Periferias En La Circulación Internacional Del Conocimiento”. Nueva Sociedad, 25.; Bringel, Domingues, 2015BRINGEL, Breno & DOMINGUES, José Maurício. (2015), “Teoria social, extroversão e autonomia: impasses e horizontes da sociologia (semi)periférica contemporânea”. Caderno CRH, 28, 73:59-76. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792015000100005. Acesso em 14 mar. 2021.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792015...
; Sorá, 2017SORÁ, Gustavo. (2017), Editar desde la Izquierda en América Latina: La Agitada Historia del Fondo de Cultura Económica y de Siglo XXI. Buenos Aires, Siglo Veintiuno.).
A dinâmica de modificação dos domínios nacionais pode ser melhor avaliada quando se percebe a variação ao longo do tempo, como ilustrado no Gráfico 1 a seguir.
Se nos anos 1960 houve a predominância de autores estadunidenses e ingleses, os brasileiros e franceses passaram a ganhar espaço nos anos 1970 e 1980 – período em que se observa a consolidação da profissionalização das ciências sociais no Brasil, a partir da construção de um sistema de pós-graduação e, de modo paralelo, a recuperação da França como centro de produção intelectual, em decorrência dos movimentos estudantis de maio de 1968 e do debate vinculado ao estruturalismo. Os autores franceses, contudo, nunca foram maioria no catálogo. A Zahar Editores passou a ser reconhecida pela tradução e publicação de grandes nomes das ciências sociais, inserindo-se no universo intelectual brasileiro pela disponibilização de obras que marcaram diversas gerações de estudantes e profissionais, fazendo-se presentes nos diversos debates públicos que se desdobraram no período. A adoção de uma política editorial de tradução possibilitou a inserção da editora no universo das ciências sociais brasileiras, e contribuiu para sua consolidação como agente fundamental na segunda metade do século xx no Brasil.
Considerações finais
Este artigo empreendeu a análise de parte significativa da trajetória da Zahar Editores, com foco sobretudo em sua política editorial de tradução. Ocupar-se das condições materiais de inscrição e circulação das ideias em livros significa tratar de elementos que respondem a uma lógica própria, e que costumam ser deixados de lado na história das ciências sociais. A partir do material analisado, foi possível localizar a Zahar Editores como um ator central na estruturação das ciências sociais brasileiras na segunda metade do século xx. Por meio da tradução de obras estrangeiras, a editora contribuiu para a circulação de ideias, o que possibilitou a conformação de uma comunidade intelectual que se forjou no processo de expansão universitária e de consolidação das ciências sociais no país.
Jorge Zahar se utilizou de sua experiência prévia no comércio de livros para estabelecer uma política editorial de traduções na Zahar Editores, marcada sobretudo pelo livro inaugural, o Manual de sociologia. A publicação de manuais e livros monográficos foi acompanhada também por obras de tom mais político, marcadas pelo contexto de efervescência dos movimentos estudantis dos anos 1960. A principal coleção, a Biblioteca de Ciências Sociais, inseriu a editora entre as referências mais importantes na publicação de livros universitários no país, servindo como exemplo da instauração de um novo paradigma editorial, que substituiu a lógica de organização das coleções brasilianas, presentes sobretudo nos anos 1930.
O estabelecimento de uma política editorial de tradução de obras clássicas voltadas a estudantes universitários permitiu à Zahar Editores se esquivar da dificuldade inicial de estabelecer vínculos fortes com os membros da elite intelectual nacional, relacionada a seu baixo estoque de capital cultural e social. Essa situação foi se modificando à medida que a editora acumulou capital simbólico, por meio das traduções. Passada esta etapa inicial, portanto, a editora se firmou no campo editorial brasileiro e logrou atrair para seu catálogo importantes autores nacionais, processo que viria a se desdobrar nos anos 1970, com a ampliação do sistema de pós-graduação no país.
Agradecimentos
Agradeço ao financiamento do CNPq que possibilitou a realização desta pesquisa. Também sou grato às diversas leituras atentas pelas quais passaram versões prelimitares deste texto, em especial a José Maurício Domingues, Gustavo Sorá, Glaucia Villas Bôas e aos (às) colegas do IESP e do IPP-Cebrap.
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1
Os estudos citados não compõem um inventário exaustivo, mas um recorte da diversidade de pesquisas que contribuíram para compreender a história das ciências sociais no Brasil. O objetivo era chamar a atenção para a insuficiência de pesquisas sobre edição, foco deste artigo.
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2
A criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (senai), em 1942, e do Serviço Social do Comércio (sesc), em 1946, são marcos significativos deste processo.
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Para se ter um valor atual como referência, a Associação Estadual de Livrarias do Rio (ael/rj) estimou que havia, em 2017, ano de lançamento de seu Guia de livrarias da cidade do Rio de Janeiro, 204 livrarias na capital fluminense. A cidade, que contava com uma população de pouco mais de 1,7 milhão de habitantes no Censo de 1940, ultrapassou 6 milhões em 2010. Há, portanto, um aumento do número de livrarias em termos absolutos, mas uma diminuição drástica, em termos relativos: de forma aproximada, havia uma livraria para cada 11 mil habitantes em 1940; hoje, a média é de uma para cada 30 mil pessoas.
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Carta de Irving Louis Horowitz a Stanley Moore, datada de 14 de dezembro de 1962. Disponível em https://digital.libraries.psu.edu/digital/collection/transaction/id/806/rec/17. Acesso em: 19 mar. 2021.
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Com vinte edições, diversas reimpressões e mais de 300 mil exemplares vendidos, esse livro é considerado por Jorge Zahar seu maior sucesso comercial como editor.
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Estão excluídos desta tabela os 126 títulos cuja origem nacional de produção não pôde ser verificada.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Jun 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
14 Jul 2020 -
Aceito
22 Fev 2021