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Sobre silêncios, suturas e fabulações críticas: um diálogo entre Saidiya Hartman, Rosana Paulino e Grada Kilomba

About silences, sutures and critical fabulations: a dialogue between Saidiya Hartman, Rosana Paulino and Grada Kilomba

Ensaio bibliográfico1 1 Este ensaio integra a pesquisa “Cidade, arte e memória: conflitos raciais e poéticas urbanas”, que conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj).

O livro “Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão”, da pesquisadora estadunidense Saidiya Hartman, ganhou sua edição brasileira em 2021 pela editora Bazar no Tempo. Antes mesmo de abrir o livro, nos deparamos com uma imagem desconcertante que evoca o passado escravocrata de nosso país (Imagem 1). Nela, uma jovem mulher negra desnuda convive com azulejos portugueses e representações de órgãos e partes de esqueleto humano. Trata-se da obra Sem Título (2016) da Série Atlântico Vermelho da artista brasileira Rosana Paulino. A imagem é constituída de nove pedaços, cada um deles distinto entre si, que, em apenas um dos casos, se completa como partes de um quebra-cabeça. Cada um desses pedaços contém desenhos ou fotos impressas sobre tecido. Os nove pedaços são costurados entre si, enquanto algumas linhas pretas, usadas no cerzimento das partes, escapam daqueles que parecem ser fragmentos de pano onde a artista imprimiu imagens mais ou menos realistas. São fotos e desenhos, o negativo de uma foto e azulejos azuis que, no Brasil, costumamos chamar, não à toa, de portugueses (como uma nacionalidade que cria um estilo específico de arte colonial).

Imagem 1
Capa do livro “Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão” Fonte: capa do livro da pesquisadora estadunidense Saidiya Hartman, editado pela Bazar do Tempo em 2021.

A imagem que aparece mais de uma vez - em pedaços que se completam em negativo e como uma só peça completa em outro retângulo - é de uma jovem mulher negra de cabelos curtos, seios pequenos desnudos, braços que parecem se encontrar através de suas mãos que devem estar unidas na altura do seu ventre. Digo “devem” porque o que vemos da imagem desta mulher é apenas uma parte: sua cabeça e seu tronco. Ela olha de frente para quem a fotografa, traz ainda colares de contas justos em seu pescoço e algo em sua orelha esquerda. A possibilidade de trabalhar com imagens que são partes de arquivos faz com que a artista Rosana Paulino, responsável pela obra da capa do livro de Hartman, possa revisar as imagens que foram utilizadas historicamente desde uma lógica colonial, em que pessoas eram entendidas como objetos, transformando-as. Grande parte das fotos de mulheres e homens escravizados com as quais Paulino trabalha foram feitas por fotógrafos naturalistas interessados em conhecer, hierarquizar e se apropriar daquilo que era considerado estranho e exótico, mas sobretudo riquezas a serem exploradas. Para a artista, tais imagens “aplainavam o elemento negro tirando dele toda sua subjetividade”.2 2 Fala da artista Rosana Paulino em vídeo de Antonacci (2023).

Os cinco pedaços que ocupam a parte central da obra são como partes dessa pessoa, dessa jovem mulher negra. Um retângulo na vertical, na parte superior esquerda, traz um coração vermelho bastante realista que ocupa quase todo o espaço, sendo envolto por pinceladas pretas. Seria esse um modo encontrado pela artista para devolver àquela mulher sua humanidade?3 3 Em outra fala, no mesmo vídeo (Antonacci, 2023), ela se refere a essa operação ao narrar outra obra que traz o retrato de uma mulher negra escravizada, dessa vez em tamanho natural. Abaixo e costurado a ele, também como um retângulo na vertical, está a foto dessa mulher que nos olha. À direita desses dois retângulos costurados, encontramos três outros retângulos (todos cerzidos entre si), desta vez na horizontal. No primeiro deles, acima e ao lado do coração, o rosto dessa pessoa até seus ombros, abaixo e costurado a ele, seu tronco até a altura do umbigo e, abaixo dele, um raio-X que revela o interior da coluna e da bacia desta mulher. Essas três imagens aparecem todas como negativos fotográficos, trazendo, nas palavras da artista, “o avesso à tona, aquilo que quer ser escondido”.4 4 Fala da artista Rosana Paulino em vídeo de Antonacci (2023). O cerzimento, a costura dos retângulos entre si, também parece trazer o avesso para a frente. Essa costura é chamada por ela de sutura, que pode ser pensada como um conjunto de manobras realizadas com agulha e linha pela própria artista para unir tecidos, sendo capaz de restituir a anatomia original de um corpo dilacerado. Ela mostra-se, no entanto, insuficiente. A sutura revela que, ao se juntar as partes, esse “refazimento” não se dá da maneira esperada, não restitui integralmente os fragmentos separados a um todo original.

Há ainda, mais à direita, outros dois cortes de pano: no primeiro, na altura da cabeça em negativo, um desenho de um crânio; costurado abaixo dele e também ao tronco e à bacia da mulher, um azulejo português. Na realidade, a foto de diversos azulejos portugueses que, em conjunto, revelam uma espécie de mandala em flor azul sobre o azulejo branco, cercado de detalhes florais. Há, nessa imagem, 16 azulejos entre aqueles inteiros e outros em parte. No outro extremo da obra, à esquerda do coração e da foto inteira da mulher negra, estão a imagem de um osso solitário em um pedaço de pano branco e, logo abaixo, um outro conjunto de azulejos azul e branco que nos mostra uma caravela em alto mar com a cruz de malta em suas velas frontais. O atlântico, tingido de vermelho pelo sangue das vidas perdidas no tráfico de pessoas escravizadas em tumbeiros, é reconstituído pelas partes escolhidas pela artista que articulam racismo, ciência, violência e colonialismo. Nas palavras de Hollanda,

Rosana Paulino faz ecoar no presente as marcas da violência do passado, suturando imagens em positivo e negativo do corpo nu da mulher negra junto a imagens de ossos e órgãos vitais. A profundidade de campo é poética, ambientando a história pessoal e social como um mesmo tecido de reescritas e ressignificações (Hollanda, 2020, pHOLLANDA, Heloisa Buarque de. (2020), “Outras línguas; três artistas brasileiras” In: H.B. de Hollanda. (org.), Pensamento Feminista Hoje - Perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. 361).

Essa é a imagem da capa do livro de Saidiya Hartman. Ainda que esta obra de Rosana Paulino deva ser comumente exposta na horizontal, na capa do livro ela aparece na vertical, o que nos faz ter que mover a capa para que possamos reconhecê-la de acordo com a descrição acima, conforme mostra a Imagem 2.

Imagem 2
Obra Sem Título da Série Atlântico Vermelho

O trabalho artístico de Rosana Paulino já existe há mais de 25 anos,5 5 Em 2018, Rosana Paulino foi a primeira artista negra a ter uma exposição individual na Pinacoteca de São Paulo. A exposição, intitulada “Rosana Paulino: a costura da memória”, reuniu obras da artista realizadas entre 1993 e 2018, ou seja, ao longo de 25 anos de carreira. No ano seguinte, a mesma exposição foi levada para o Rio de Janeiro e ficou em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR) entre abril e setembro de 2019. Mais informações sobre a exposição podem ser encontradas nos sites dos respectivos espaços culturais e na página da artista: https://rosanapaulino.com.br/ (Site Rosana Paulino, 2023). mas recentemente tem despertado grande interesse para além do mundo das artes. Ela vem sendo convidada para dar palestras, aulas e entrevistas em eventos que se autointitulam de(s)coloniais. Muitos artigos vêm sendo publicados sobre sua obra e trajetória. E parte de suas obras tem sido trazida para capas de livros de autoria de pessoas que se propõem a interpelar o passado a partir de deslocamentos mais ou menos sutis que permitem ser identificados (ainda que nem sempre se identifiquem) como de(s)coloniais, anticolonais ou contracoloniais.

Na série de publicações “Pensamento Feminista Hoje”, organizado por Heloisa Buarque de Hollanda (2020), oHOLLANDA, Heloisa Buarque de. (2020), “Outras línguas; três artistas brasileiras” In: H.B. de Hollanda. (org.), Pensamento Feminista Hoje - Perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo. volume nomeado “Perspectivas Decoloniais”, que possui uma seção denominada “Outras línguas: três artistas brasileiras”, conta com uma única artista negra entre as selecionadas: Rosana Paulino. Ali são escolhidas as obras Assentamento (2013); Parede da Memória (1994/ 2015); Bastidores (1997); História Natural? (2016); e Atlântico Vermelho (2016).6 6 Para mais informações sobre o trabalho de Rosana Paulino, consultar o site da artista: https://rosanapaulino.com.br/ (Site Rosana Paulino, 2023).

As tramas das obras de Paulino são cerzidas junto a textos que abordam a produção de passado e presente, propondo, como ela, outras possibilidades de agenciamento do tempo, o pensar das heranças coloniais e das colonialidades delas derivadas naquilo que somos, pensamos e fazemos.7 7 Maldonado-Torres (2018) define colonialidade como lógica embutida na modernidade e como lógica global de desumanização capaz de existir mesmo na ausência de colônias formais. “A colonialidade do saber, ser e poder é informada, se não constituída, pela catástrofe metafísica, pela naturalização da guerra e pelas várias modalidades da diferença humana que se tornaram parte da experiência moderna/colonial, enquanto, ao mesmo tempo, ajudam a diferenciar modernidade de outros projetos civilizatórios e a explicar os caminhos pelos quais a colonialidade organiza múltiplas camadas de desumanização da modernidade/ colonialidade” (Maldonado-Torres, 2018, p. 42). O passado colonial, visto a partir das experiências íntimas e pessoais de pessoas e famílias, fazendo ver e compreender, para além da arte visual em si, escritas, estratégias e metodologias que permitem outros deslocamentos sobre temas como memória, diáspora e (auto)biografias. Aqui falamos de autoras e artistas que têm sua produção de conhecimento na aproximação e não no distanciamento entre o pessoal e o científico.

Uma das questões centrais neste debate é a possibilidade de deslocamento de grupos subalternizados, “objetos” históricos de práticas coloniais profundamente violentas que se perpetuam a partir de múltiplas colonialidades para a condição de “sujeitos” do conhecimento. O debate não é novo, mas podemos pensar como novas as condições de produção em que se dá hoje. Trata-se da inclusão de pessoas historicamente racializadas, generificadas, de países do Sul global, de população LGBTQIAP+ etc. em espaços canônicos de produção do conhecimento. E, no Brasil, o investimento em políticas de cotas raciais e sociais para a entrada e permanência na universidade pública (graduação, pós-graduação e docência) pode ser pensado como parte deste esforço de deslocamento. Ele tem como um dos efeitos a ampliação deste debate dentro do ambiente acadêmico, marcadamente colonial, e para além de suas fronteiras, a partir, sobretudo, do descentramento do lugar de produção e divulgação do conhecimento pelas novas configurações dadas pela Internet, entendida como espaço de difusão, conflito e disputa.

Outras fronteiras, no entanto, têm sido cruzadas (ou, ao menos, alargadas) para que esse deslocamente do lugar de objeto para sujeito da produção de conhecimento, reconhecido socialmente e com legitimidade para se fazer ouvir tanto quanto ícones europeus e estadunidenses estabelecidos, isso em dois espaços: a arte e o mercado editorial. A produção de conhecimento dentro de parâmetros acadêmicos por pessoas negras e historicamente racializadas existe há décadas. Artistas negras, negros e negres, indígenas e não reconhecidos como brancos(as), de modo geral, sempre produziram e muitos estiveram incluídos em espaços hegemônicos dentro do mundo das artes (galerias, museus, centros culturais), questionando, inclusive, a chave da “representatividade” como paradigma único de inclusão.

Proponho aqui, como hipótese, que mudanças de políticas editoriais e a implosão de fronteiras canônicas das artes (e de nichos racializados/generificados de circulação), também através da Internet, mas que reverberam esforços históricos e coletivos de movimentos diversos, têm nos permitido ir além nesse debate. Não se trata “apenas” da mudança de lugar de “objeto” para “sujeito” de produção de conhecimento legítimo dentro de parâmetros coloniais (como a universidade ou museus) - o que já seria muito, mas da disputa por epistemologias que nos guiem na produção de conhecimentos diversos, na feitura de nossas pesquisas, capazes de implodir velhos paradigmas ou fagocitá-los a partir de outras referências, de outros enquadramentos, de outros passados e memórias, de outros presentes, de outras temporalidades e agenciamentos espaciais.

Tomo aqui em diálogo três experiências que contribuem para revisitar, ampliar e criar propostas anticoloniais dentro deste debate: o livro de Hartman, a arte de Paulino e o pensamento de Grada Kilomba. O livro “Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão”, escrito pela pesquisadora estadunidense Saidiya Hartman, publicado nos Estados Unidos em 2007 e no Brasil em 2021, traz na capa de sua edição brasileira uma obra da artista visual, educadora e pesquisadora negra brasileira Rosana Paulino, como visto anteriormente.

Com mais de 25 anos de carreira e passagem por galerias e mostras nacionais e internacionais, Paulino chamou a exposição síntese de sua trajetória de “A Costura da Memória” (2018). É no cerzimento entre diversas camadas temporais que a artista aposta para articular e produzir não uma síntese, mas tramas possíveis entre nosso passado colonial, sua história pessoal e familiar como mulher negra brasileira e paulistana, e nosso presente, ainda visceralmente violento contra pessoas e populações negras, indígenas e não entendidas como brancas de forma geral. As mulheres negras têm centralidade em sua obra e os caminhos estéticos percorridos pela artista recorrem à prática da costura como memória pessoal e ancestral. Evoca e recria saberes, como a costura aprendida com sua mãe, que transitam entre gerações e se perpetuam e transformam no tempo que não precisa ser pensado como linear.

A pesquisadora Flávia Santos de Araújo (2019)ARAÚJO, Flávia Santos de. (2019), “Rosana Paulino and the art of refazimento: reconfigurations of the black female body in the land of social democracy”, Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, 8, 1-2:63-90. DOI: https://doi.org/10.25160/bjbs.v8i1-2.114869.
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propõe que olhemos para os modos de refazimento contidos nas obras artísticas de Paulino como parte de um método e de uma metodologia. Em parte de seu trabalho, a arte de Rosana que se volta de muitas maneiras para a mulher negra, busca explorar questões relativas às conexões entre produção pseudocientífica e escravidão no Brasil. Ela traz para frente o contexto de produção de escravidão e dos corpos negros nos termos em que eram produzidos naquele momento histórico, mas elaborando (com outras artistas negras estudadas por Araújo) “enquadramentos e métodos que permitem revisões, reinterpretações e expansões para aquilo que o registro histórico é limitado para oferecer como narrativa total8 8 Tradução minha. (Araújo, 2019, pARAÚJO, Flávia Santos de. (2019), “Rosana Paulino and the art of refazimento: reconfigurations of the black female body in the land of social democracy”, Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, 8, 1-2:63-90. DOI: https://doi.org/10.25160/bjbs.v8i1-2.114869.
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. 71).

Foi na dimensão material do livro de Saidiya Hartman que encontrei, pela primeira vez, a relação entre ela e Rosana. Na capa da edição brasileira de seu livro encontramos a obra Sem Título (2016) da série Atlântico Vermelho, descrita no início deste ensaio. A obra escolhida é a mesma que ilustra a série da artista no livro organizado por Heloisa Buarque de Hollanda (2020)HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (2020), “Outras línguas; três artistas brasileiras” In: H.B. de Hollanda. (org.), Pensamento Feminista Hoje - Perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. De acordo com a autora,

O conjunto de obras expostas em Atlântico Vermelho evoca, de imediato, as consequências da expansão europeia, que destruiu as sociedades ameríndias e impôs o tráfico negreiro entre a África e as Américas. (...) A obra de Rosana Paulino é um permanente resgatar das duas entidades subjugadas (natureza e pessoas escravizadas): na força da desocultação dessas violências e no cuidado que é dado à visibilidade da história dos negros e da natureza (Hollanda, 2020, pHOLLANDA, Heloisa Buarque de. (2020), “Outras línguas; três artistas brasileiras” In: H.B. de Hollanda. (org.), Pensamento Feminista Hoje - Perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. 361).

No livro de Grada Kilomba (2019)KILOMBA, Grada. (2019), Memórias da plantação - episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Editora Cobogó., “Memórias da Plantação - episódios de racismo cotidiano”, lançado no Brasil pela editora Cobogó, a autora (que também é artista) analisa o cotidiano do racismo entre mulheres negras que viviam na Alemanha. O percurso de seu estudo parte, no entanto, de sua experiência pessoal como mulher negra na Europa e, particularmente, como mulher negra não-alemã em uma universidade do país. As impossibilidades de acesso e circulação no espaço universitário se refazem a partir da reprodução do lugar de “outridade” de pessoas não brancas dentro da epistemologia canônica.

Na Introdução de seu livro, e em diálogo com a pensadora estadunidense bell hooks, Kilomba (2019)KILOMBA, Grada. (2019), Memórias da plantação - episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Editora Cobogó. afirma que hooks usa os

conceitos de “sujeito” e “objeto” argumentando que sujeitos são aqueles que “têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades, de nomear suas histórias” (hooks, 1989, p. 42). Essa passagem de objeto a sujeito é o que marca a escrita como um ato político (Kilomba, 2019, pKILOMBA, Grada. (2019), Memórias da plantação - episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Editora Cobogó.. 28).

A autora aborda o racismo cotidiano como “realidade traumática” e onde a descolonização do conhecimento passaria por aprender a falar e escrever a partir de perspectivas capazes de romper com a perspectiva do colonizador. “Escrever contra significa falar contra o silêncio e a marginalidade criados pelo racismo. Essa é uma metáfora que ilustra a luta das pessoas colonizadas para acessar a representação dentro de regimes brancos dominantes” (Kilomba, 2019, pKILOMBA, Grada. (2019), Memórias da plantação - episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Editora Cobogó.. 69).

Assim como Rosana Paulino e Grada Kilomba, Saidiya Hartman faz de seu estudo sobre a rota atlântica da escravidão uma parte de sua história. Além da análise de vasto material documental feita ao longo de sua pesquisa e publicada em livro, nele também encontramos sua história e as histórias de suas idas ao continente africano, particularmente a Gana. As condições de produção do conhecimento e seus vínculos pessoais e afetivos ao longo dela não são escondidos ou escamoteados, mas fazem parte mesmo de seu processo de fazimento. A conversa entre essas três pensadoras negras contemporâneas - uma no Brasil, outra na Europa e a terceira nos Estados Unidos -, todas estabelecendo diferentes diálogos com África e com a diáspora, me parece factível pois elas fazem parte de um importante debate em curso sobre possibilidades outras do fazer científico e artístico, onde o protagonismo das mulheres negras e historicamente racializadas vão para primeiro plano sem que, com isso, aquilo que produzem seja questionado a priori. Tanto Hartman quanto Paulino têm, no entanto, outro ponto em comum: o trabalho com arquivo.

Araújo (2019)ARAÚJO, Flávia Santos de. (2019), “Rosana Paulino and the art of refazimento: reconfigurations of the black female body in the land of social democracy”, Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, 8, 1-2:63-90. DOI: https://doi.org/10.25160/bjbs.v8i1-2.114869.
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também encontrou na obra de Paulino conexões com a metodologia presente na obra de Saidiya Hartman. Casualmente ou não, o encontro das duas intelectuais no livro da segunda ajuda a conectar ainda mais os diferentes caminhos através dos quais elas estudam e utilizam arquivos coloniais para contar outras histórias já que

as informações que os arquivos preservam mantêm afinidade com a produção de saberes coloniais e com a prática de seus agentes diretos e indiretos. Além de fonte e emblema de poder e conhecimento, os arquivos coloniais inventaram e aperfeiçoaram formas específicas de produzi-los. Entre elas, deve-se ressaltar a criação de tecnologias específicas, voltadas para a manutenção e ordenação de conjuntos documentais diversos, particularmente notável na persistente atenção de seus especialistas em tornar perene tudo aquilo que pudesse testemunhar e registrar o contato, as formas de dominação, a violência e o poder da superioridade racial e cultural das metrópoles sobre seus súditos coloniais (Cunha, 2004, pCUNHA, Olívia Maria Gomes da. (2004), “Tempo imperfeito: uma etnografia do arquivo”. MANA, 10, 2:287-322. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-93132004000200003.
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. 291-292).

A existência dos arquivos, do modo como foram criados e organizados, é violenta e colonial e engendra uma maneira específica (e legítima) de acessar a história.

O livro de Saidiya é escrito em primeira pessoa. Sua análise passa pela sua história e pelo relato de sua viagem. Uma viagem de retorno para um lugar que, ela descobre, existiu e não existiu. Sua ida para Gana é atravessada por interesses de pesquisa e por sua história como mulher afro-estadunidense. A narrativa mistura sua história e uma vasta pesquisa documental sobre um período violento da história de África, especialmente, de Gana, mas também nos revela uma estratégia para produzir o conhecimento que é impossível resgatar nos documentos, conhecer aquilo que se perdeu, que foi apagado pela dinâmica do tráfico de escravos, pela violência colonial.

O livro permite complexificar a compreensão sobre o tráfico de pessoas para serem escravizadas a partir das relações de antes e de depois do período colonial. Mas é na construção de sua própria identidade e na busca por respostas em solo africano que a levou a Gana, que ela foi constantemente lembrada e reconhecida como uma “filha de escravos”, tendo vivenciado todos os estigmas ligados a esta condição. E, nesse caminho, abre-se uma importante reflexão sobre memória e esquecimento. Em suas palavras,

mas o silêncio e recusa (sobre suas origens escravas e a conversa sobre a escravidão) não eram o mesmo que esquecimento. Apesar dos ditames da lei e dos senhores, que proibiam discussões sobre a origem das pessoas, todos se lembravam do estrangeiro da vila, todos se recordavam de quem havia sido escravo e com um simples olhar discerniam facilmente seus descendentes. (...) O escravo parecia a única pessoa que deveria desconsiderar o próprio passado. A princípio, isso me surpreendeu. Por que aqueles que perderam estariam mais inclinados ou suscetíveis a esquecer? (Hartman, 2021a, pHARTMAN, Saidiya. (2021a), Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. 195).

Questão posta, questão que passou também a guiá-la pela rota dos escravizados. E, a partir dela, desvendou métodos utilizados para que aquelas pessoas que haviam sido escravizadas esquecessem de suas raízes. Aquilo que é esquecido deixa de ser uma ameaça e, por isso, em toda sociedade escravista há políticas dos senhores para erradicar a memória dos escravos, ou seja, “eliminar todas as evidências de uma existência anterior à escravidão. Isso aconteceu tanto na África quanto nas Américas. Uma escrava sem um passado não tinha uma vida para vingar” (Hartman, 2021a, pHARTMAN, Saidiya. (2021a), Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. 196). A dor, a saudade, aquelas e aqueles que ficaram para trás não causariam a inviabilidade de uma vida submetida a outra pessoa. O que ela desvenda, no entanto, é que para se fazer esquecer o passado foi preciso ir além da violência física e moral, da submissão às armas.

A resposta estava na feitiçaria. Saidiya Hartman ouviu diferentes versões sobre essas formas de fazer esquecer. As histórias ouvidas pela costa oeste de África se encerravam, segundo ela, da mesma maneira: a escrava perde a mãe. Essa perda transformava as pessoas escravizadas em pessoas ocas e passivas. Diferentes rituais envolvendo canções, ervas, banhos, árvores, mata, rios e santuários eram evocados em diversas versões para um mesmo fato: a amnésia não era nunca um ato voluntário (Hartman, 2021a, pHARTMAN, Saidiya. (2021a), Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. 196). A eficácia dos rituais empregados se fazia notar, inclusive, pelo fato de traficantes de escravos europeus também empregarem feiticeiros para “pacificar e ter acesso aos escravos com ervas medicinais” (Hartman, 2021a, pHARTMAN, Saidiya. (2021a), Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. 197). O “esquecimento da mãe” como marca maior desse processo vem do nome dado a um pequeno arbusto encontrado na savana chamado de manta uwa que significa “esquecer a mãe” em haussa. “Não mais filha de alguém, a escrava não tinha outra escolha senão suportar as marcas visíveis da servidão e aceitar a nova identidade no lar de seu proprietário. Era um fardo ser um estrangeiro numa terra estrangeira, e inteiramente pior ser um estranho para si mesmo” (Hartman, 2021a, pHARTMAN, Saidiya. (2021a), Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. 198) O esquecimento se ligava também àqueles que colocavam as pessoas na condição de escravizada: “era necessário esquecer também quem havia sido responsável por deixá-los em condições miseráveis” (Hartman, 2021a, pHARTMAN, Saidiya. (2021a), Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. 200).

A autora transita entre a era do tráfico e o mundo contemporâneo, onde os descendentes de africanos escravizados fazem o impossível para reivindicar a mãe perdida e superar o esquecimento voltando a lembrar. Nascia assim, ao menos em Gana a partir dos anos 1990, uma política estatal que criava uma memória pública da escravidão. Diversas instituições de dentro e de fora do país (como a Shell) investiram na produção de “uma narrativa para 10 mil turistas negros que visitam o país a cada ano, sedentos pelo conhecimento de seus ancestrais escravizados” (Hartman, 2021a, pHARTMAN, Saidiya. (2021a), Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. 205). Como toda narrativa, ela oculta partes importantes da história em busca de uma “fábula de um tráfico atlântico como uma história afro-americana alternativa, sem qualquer menção à expansão e à crescente gravidade da escravidão africana em resposta à demanda do tráfico no Atlântico ou às comunidades roubadas” (Hartman, 2021a, pHARTMAN, Saidiya. (2021a), Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. 205). A rota dos escravos se tornou uma modalidade turística a fim de gerar receitas e desenvolver uma “economia viável” em Gana.

Saidiya se confronta com diferentes relatos e afetos relativos ao período do tráfico de pessoas escravizadas. Não há respostas ou saídas fáceis em seu livro. Há histórias divergentes, percepções conflitantes sobre o mesmo fato histórico; há mágoas e mazelas.

O passado para eles era uma causa para esperança, enquanto eu ansiava por um futuro que pudesse ser arrancado de um passado irredimível. Meu presente era o futuro que fora criado por homens e mulheres acorrentados, por mercadorias humanas, por bens móveis. Tentei muito vislumbrar um futuro no qual esse passado tivesse terminado e, na maioria das vezes, fracassei (Hartman, 2021a, pHARTMAN, Saidiya. (2021a), Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. 293).

Uma das forças da leitura da obra de Hartman é o fato de se fazer a partir de distintas narrativas. Ainda que seja ela a autora em primeira pessoa quem nos guie, existem diferentes momentos de análise e rememoração que transformam os capítulos em um todo, mas não de forma linear. Um deles chamou a minha atenção em particular e, acredito, estreita ainda mais o contato entre as intelectuais postas em diálogo aqui. Intitulado “O livro dos mortos”, neste capítulo a autora busca formas de restituir a história de uma das inúmeras meninas e mulheres enterradas no fundo do oceano. Gostaria de abordar aqui menos a história contada pela autora no capítulo em questão e mais o que ela chamará mais recentemente de fabulação crítica.9 9 No livro “Vidas rebeldes, belos experimentos – histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais”, lançado nos Estados Unidos em 2019 e no Brasil em 2022, pela editora Fósforo, a autora radicaliza o método pela criação de “contra narrativas” a partir de personagens e eventos reais comprovados por inúmeros documentos e registros, rastros históricos que permitiram à autora oferecer “um relato sobre os belos experimentos – de fazer do viver uma arte – realizado por aquelas muitas vezes descritas como promíscuas, inconsequentes, selvagens e rebeldes” (Hartman, 2022, p. 12). O método foi um caminho encontrado e criado por Saidiya para ir além dos rastros escassos e pouco visíveis das milhares e milhares de vidas perdidas, cuja memória foi quase totalmente enterrada no Atlântico com seus corpos.

Quando escreveu “Perder a Mãe”, Hartman ainda não havia cunhado o termo “fabulação crítica”. Ela conta em palestra no Museu do Amanhã,10 10 Mesa Redonda “Ficcções e fabulações afro-atlânticas”, com Saidiya Hartman (2022), no Museu do Amanhã. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=E_XjmfTHsmY&t=4459s, consultado em 26/07/2023. em 2022, que só reconheceu ali um método após utilizá-lo como recurso nesse capítulo do livro. Ela queria contar uma história, mas existiam pouquíssimas evidências sobre ela em arquivos acessados em bibliotecas e Arquivos de diferentes países. Saidiya se envolveu, então, em um trabalho que produzia o processo de transposição e expansão de arquivos, reunindo histórias distintas para falar de uma história em especial, de que tomou conhecimento pela primeira vez em documentos legais que usavam ao todo sete palavras para descrevê-la: a história de uma jovem, que possuía entre 13 e 16 anos, e foi assassinada em um tumbeiro pelo seu capitão. Hartman quis “completar aquela imagem” que encontrou em pesquisa em arquivos ingleses sobre o comércio de pessoas escravizadas e começou a juntar essas informações para contar a história dessa menina.

Eu também estou tentando salvar a vida da garota, não da morte, da doença ou de um tirano, mas do esquecimento. Entretanto, não tenho certeza se é possível salvar uma existência a partir de um punhado de palavras: o suposto assassinato de uma garota negra. Sua vida era impossível de ser reconstruída, nem mesmo seu nome sobreviveu. (...) Umas poucas linhas de uma transcrição judicial mofada formam a história inteira da vida de uma garota. Não fosse isso, ela teria sido extinta sem deixar um rastro (Hartman, 2021a, pHARTMAN, Saidiya. (2021a), Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.. 173-174).

Em menos de 20 páginas, a autora restitui não a vida da menina morta violentamente, mas nos coloca radicalmente próximos de seus últimos dias de vida, o tempo em que ela esteve no navio sendo levada como escravizada. A proximidade da narrativa não retira da mesma a construção colonial, legal, estatal que está por trás de todo o processo que permitiu que aquela jovem fosse tratada da forma que o foi, mas restitui aquilo que é possível: desde o comércio de pessoas de África até o julgamento do capitão do navio.

A fabulação crítica se apresenta, assim, como forma de contar histórias impossíveis. Se os registros daquele “comércio” não a permitiam contar a história daquela pessoa, o método encontrado foi priorizar as experiências incorporadas de pessoas escravizadas como forma de criar histórias a partir do silêncio, mas de forma crítica em relação à História que as abriga e molda. No caso do capítulo destacado, Hartman buscou trazer detalhes da fome (a menina se recusava a comer e por isso também era punida), as alucinações como consequência da privação de comida, do cansaço, da viagem forçada, da violência física e sexual.

Jogando com os elementos básicos da história e rearranjando-os, re(a)presentando a sequência de acontecimentos em histórias divergentes e de pontos de vista em disputa, tentei comprometer o status do acontecimento, deslocar o relato preestabelecido ou autorizado e imaginar o que poderia ter acontecido, o que poderia ter sido dito ou poderia ter sido feito (Hartman, 2021b, pHARTMAN, Saidiya. (2021b), “Vênus em dois atos”, in C. Barzaghi; S.Z. Paterniani; A. Arias. (org.), Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo, Crocodilo, N-1 Edições.. 47).

Com “Atlântico Vermelho”, série cuja obra da capa do livro de Hartman foi descrita anteriormente, Paulino pretendia pensar a diáspora também a partir do sangue invisível deixado como rastro no Oceano Atlântico. A obra que me fez sentar no chão no dia em que fui à sua exposição, fazia parte, no entanto, de outra parte da mostra, chamada Assentamento (2013). Nela, diferentes elementos são colocados em diálogo em um espaço único da mostra. Os tablets com a visão e som do mar eram apenas um deles. Ao falar sobre a instalação, Rosana Paulino conta que “assentamento pode se referir a um prédio, o assentamento de um grupo social (como o MST, ela lembra), ou pode ser também a força mágica que mantém um terreiro de pé nas religiões afro-brasileiras”.11 11 Fala da artista Rosana Paulino em vídeo da Antonacci (2023). Ainda em suas palavras,

essa população apesar de todos os horrores vividos, ainda assim assentaram uma cultura, ainda assim assentaram um país. Três milhões de escravizados africanos e africanas levados ao Brasil em tumbeiros, essas pessoas tinham que se refazer ao chegar (ou se refazem ou morrem) e, ainda assim, conseguiram se assentar no país. Só que esse refazer tem o trauma (Paulino).12 12 Fala da artista Rosana Paulino em vídeo da Antonacci (2023).

O trauma é traduzido por aquilo que, no caso da instalação Assentamento (2013), aparece mais uma vez na sutura das partes do corpo de uma mulher negra nua que tem seus pedaços reconectados, mas não de forma invisível ou perfeitamente encaixada. “Quando a gente olha, vemos que esse refazimento não se liga de maneira correta” (Paulino).13 13 Fala da artista Rosana Paulino em vídeo da Antonacci (2023).

Imagem 3
Assentamento

Na instalação, os tablets foram colocados bem próximos ao chão, encostados nas paredes que limitavam a abrangência da instalação como um todo. Enxergávamos ali o mar, embora não o mar que vemos hoje de qualquer ângulo e no qual podemos escolher entrar ou não. O enquadramento da nossa visão do mar nos revelava apenas o pedaço de mar, simulando aquele ouvido e talvez visto por tantas pessoas encarceradas por meses em porões de navios, levando-as amontoadas com outras tantas pessoas de forma violenta, humilhante e desumanizante para um destino desconhecido. Ali se ouvia o mar por uma pequena fresta ritmado pelo balanço do navio. Dali podíamos imaginar algumas sensações daqueles e daquelas que estiveram naquela posição.

O trauma transborda como o sangue perdido no mar pelas linhas que trazem para frente aquilo que deveria ser ocultado ao ficar no forro, no avesso do tecido. Em livro já citado neste ensaio, Kilomba (2019)KILOMBA, Grada. (2019), Memórias da plantação - episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Editora Cobogó. traz a expressão “mantido em silêncio como segredo”. De acordo com a autora, esta é uma expressão que tem raiz na diáspora africana e que “anuncia o momento em que alguém está prestes a revelar o que se presume ser um segredo. Segredos como a escravidão. Segredos como o colonialismo. Segredos como o racismo” (Kilomba, 2019, pKILOMBA, Grada. (2019), Memórias da plantação - episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Editora Cobogó.. 41).

Minha aposta com este ensaio é evidenciar as diferentes maneiras através das quais essas três intelectuais - que têm na diáspora um ponto de conexão, mas também na amplitude de seus trabalhos acadêmicos e artísticos - revelam os segredos ocultados pela história colonial que ainda são mantidos como segredos através de colonialidades diversas, em especial a do saber, que nos leva a acreditar que há apenas um modelo possível de saber científico, que desincentiva diálogos entre os campos da ciência e da arte e que se utiliza da desconfiança do Outro para mascarar novas possibilidades de produzir conhecimento. Para Hartman (2021b)HARTMAN, Saidiya. (2021b), “Vênus em dois atos”, in C. Barzaghi; S.Z. Paterniani; A. Arias. (org.), Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo, Crocodilo, N-1 Edições.,

a contenção narrativa e a recusa em preencher as lacunas e dar fechamento é uma exigência desse método (fabulação crítica), assim como o imperativo de respeitar o ruído negro - os berros, os gemidos, o sem sentido e a opacidade, que sempre excedem a legibilidade e a lei e que se insinuam e encarnam aspirações que são desvairadamente utópicas, abandonadas pelo capitalismo e antéticas ao seu concomitante discurso do Homem.

A intenção dessa prática não é dar voz ao escravo, mas antes imaginar o que não pode ser verificado, um domínio de experiência que será situado entre duas zonas de morte - morte social e corporal - e considerar as vidas precárias que são visíveis apenas no momento de seu desaparecimento. É uma escrita impossível que tenta dizer o que resiste a ser dito (uma vez que garotas mortas são incapazes de falar). É uma História de um passado irrecuperável; é uma narrativa do que talvez tivesse sido ou poderia ter sido; é uma História escrita com e contra o arquivo (Hartman, 2021b, pHARTMAN, Saidiya. (2021b), “Vênus em dois atos”, in C. Barzaghi; S.Z. Paterniani; A. Arias. (org.), Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo, Crocodilo, N-1 Edições.. 122).

  • 1
    Este ensaio integra a pesquisa “Cidade, arte e memória: conflitos raciais e poéticas urbanas”, que conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj).
  • 2
    Fala da artista Rosana Paulino em vídeo de Antonacci (2023)ANTONACCI, Célia. (2023), A Costura da Memória - Rosana Paulino. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArBdKw, consultado em 26/07/2023.
    https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArB...
    .
  • 3
    Em outra fala, no mesmo vídeo (Antonacci, 2023ANTONACCI, Célia. (2023), A Costura da Memória - Rosana Paulino. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArBdKw, consultado em 26/07/2023.
    https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArB...
    ), ela se refere a essa operação ao narrar outra obra que traz o retrato de uma mulher negra escravizada, dessa vez em tamanho natural.
  • 4
    Fala da artista Rosana Paulino em vídeo de Antonacci (2023)ANTONACCI, Célia. (2023), A Costura da Memória - Rosana Paulino. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArBdKw, consultado em 26/07/2023.
    https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArB...
    .
  • 5
    Em 2018, Rosana Paulino foi a primeira artista negra a ter uma exposição individual na Pinacoteca de São Paulo. A exposição, intitulada “Rosana Paulino: a costura da memória”, reuniu obras da artista realizadas entre 1993 e 2018, ou seja, ao longo de 25 anos de carreira. No ano seguinte, a mesma exposição foi levada para o Rio de Janeiro e ficou em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR) entre abril e setembro de 2019. Mais informações sobre a exposição podem ser encontradas nos sites dos respectivos espaços culturais e na página da artista: https://rosanapaulino.com.br/ (Site Rosana Paulino, 2023SITE ROSANA PAULINO. Disponível em https://rosanapaulino.com.br/, consultado em 14/07/2023.
    https://rosanapaulino.com.br/...
    ).
  • 6
    Para mais informações sobre o trabalho de Rosana Paulino, consultar o site da artista: https://rosanapaulino.com.br/ (Site Rosana Paulino, 2023SITE ROSANA PAULINO. Disponível em https://rosanapaulino.com.br/, consultado em 14/07/2023.
    https://rosanapaulino.com.br/...
    ).
  • 7
    Maldonado-Torres (2018)MALDONADO-TORRES, Nelson. (2018), “Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas”. In: J. Bernardino-Costa; N. Maldonado-Torres; R. Grosfoguel. (org.), Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte, Autêntica Editora. define colonialidade como lógica embutida na modernidade e como lógica global de desumanização capaz de existir mesmo na ausência de colônias formais. “A colonialidade do saber, ser e poder é informada, se não constituída, pela catástrofe metafísica, pela naturalização da guerra e pelas várias modalidades da diferença humana que se tornaram parte da experiência moderna/colonial, enquanto, ao mesmo tempo, ajudam a diferenciar modernidade de outros projetos civilizatórios e a explicar os caminhos pelos quais a colonialidade organiza múltiplas camadas de desumanização da modernidade/ colonialidade” (Maldonado-Torres, 2018, pMALDONADO-TORRES, Nelson. (2018), “Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas”. In: J. Bernardino-Costa; N. Maldonado-Torres; R. Grosfoguel. (org.), Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte, Autêntica Editora.. 42).
  • 8
    Tradução minha.
  • 9
    No livro “Vidas rebeldes, belos experimentos – histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais”, lançado nos Estados Unidos em 2019 e no Brasil em 2022, pela editora Fósforo, a autora radicaliza o método pela criação de “contra narrativas” a partir de personagens e eventos reais comprovados por inúmeros documentos e registros, rastros históricos que permitiram à autora oferecer “um relato sobre os belos experimentos – de fazer do viver uma arte – realizado por aquelas muitas vezes descritas como promíscuas, inconsequentes, selvagens e rebeldes” (Hartman, 2022, pHARTMAN, Saidiya. (2022), Vidas rebeldes, belos experimentos - histórias íntimas de meninas desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. São Paulo, Fósforo.. 12).
  • 10
    Mesa Redonda “Ficcções e fabulações afro-atlânticas”, com Saidiya Hartman (2022)HARTMAN, Saidiya. (2022), Vidas rebeldes, belos experimentos - histórias íntimas de meninas desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. São Paulo, Fósforo., no Museu do Amanhã. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=E_XjmfTHsmY&t=4459s, consultado em 26/07/2023.
  • 11
    Fala da artista Rosana Paulino em vídeo da Antonacci (2023)ANTONACCI, Célia. (2023), A Costura da Memória - Rosana Paulino. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArBdKw, consultado em 26/07/2023.
    https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArB...
    .
  • 12
    Fala da artista Rosana Paulino em vídeo da Antonacci (2023)ANTONACCI, Célia. (2023), A Costura da Memória - Rosana Paulino. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArBdKw, consultado em 26/07/2023.
    https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArB...
    .
  • 13
    Fala da artista Rosana Paulino em vídeo da Antonacci (2023)ANTONACCI, Célia. (2023), A Costura da Memória - Rosana Paulino. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArBdKw, consultado em 26/07/2023.
    https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArB...
    .

Bibliografia

  • ANTONACCI, Célia. (2023), A Costura da Memória - Rosana Paulino. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=uNEIJArBdKw, consultado em 26/07/2023.
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  • CUNHA, Olívia Maria Gomes da. (2004), “Tempo imperfeito: uma etnografia do arquivo”. MANA, 10, 2:287-322. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-93132004000200003
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  • HARTMAN, Saidiya. (2021a), Perder a mãe - uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo.
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  • SITE ROSANA PAULINO. Disponível em https://rosanapaulino.com.br/, consultado em 14/07/2023.
    » https://rosanapaulino.com.br/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2023
  • Aceito
    24 Nov 2023
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