Open-access Encontros e desencontros da sociologia e educação no Brasil

RESENHAS

Encontros e desencontros da sociologia e educação no Brasil

Carlos Benedito Martins

Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e Diretor-científico do Núcleo de Estudos sobre o Ensino Superior da UnB (Nesub)

Graziella Moraes DIAS DA SILVA. Sociologia da sociologia da educação: caminhos e desafios de uma policy science no Brasil (1920-1979). Bragança Paulista, Editora da Universidade São Francisco. 203 páginas

Após uma fase de acentuado recuo no interior das ciências sociais brasileira, assiste-se a partir da década de 1980 a retomada de uma reflexão sistemática e da realização metódica de trabalhos teóricos e empíricos sobre o tema da educação e de sua articulação com outros campos sociais. Em recente publicação da Anpocs O que ler na ciência social brasileira (1970-2002), Clarissa Baeta Neves, ao realizar um balanço crítico do estágio atual dos estudos sociológicos sobre educação no Brasil, destacou não só o seu significativo volume, mas também uma riqueza de linhas de pesquisa e uma pluralidade de enfoques analíticos, bem como a existência de diversos grupos de pesquisa dedicados a essa temática, a maioria deles, em estreita conexão com os programas de pós-graduação em sociologia, localizados em várias regiões do país. O trabalho de Graziella Silva é uma contribuição relevante para resgatar determinados momentos dos caminhos e dos descaminhos percorridos pelas afinidades estabelecidas entre a sociologia e a educação no país. Uma das motivações que orientaram sua realização foi entender as condições que conduziram o desinteresse da sociologia brasileira pela temática da educação, de modo destacado durante o período que se estende do golpe militar até o início do processo de redemocratização do país. Esse desinteresse não deixa de ser intrigante, quando se tem em conta a própria origem da sociologia no Brasil, a qual, na visão da autora, nasceu em estreita relação com a temática educacional.

Ao longo do trabalho, Graziella esboça os contornos históricos e institucionais que permearam as complexas relações entre educação e o desenvolvimento das ciências sociais no país, particularmente da sociologia da educação, assim como enfoca a movimentação de determinados atores que ocuparam posições estratégicas na construção dessa conexão. Analisa de forma detalhada não apenas a constituição da sociologia da educação, no período compreendido desde a década de 1920 até o início da transição democrática, em final dos anos de 1970, mas também os dilemas e os conflitos manifestos e/ou latentes quanto à definição do seu status disciplinar. Nesse sentido, a autora destaca que a institucionalização da sociologia da educação no país oscilou entre uma concepção, próxima de uma policy science, desejosa de aplicar os conhecimentos científicos à formulação de políticas públicas, particularmente no campo da política educacional, e outra que buscou se constituir como uma disciplina estritamente acadêmica, próxima do modelo mertoniano de comunidade científica. Além de ter realizado uma minuciosa reconstrução da trajetória das diversas concepções que permearam essas relações, utilizando-se para isso de uma bibliografia pertinente, o livro possui também o mérito de convidar o leitor a refletir sobre as possibilidades, os desafios e os problemas inerentes à constituição de uma sociologia da educação atualmente, voltada para a avaliação e o refinamento de políticas educacionais empreendidas tanto na esfera federal como estadual e municipal, sem perder nessa empreitada o rigor teórico-metodológico presente na tradição sociológica.

Este estudo incorpora, entre outros autores, as contribuições teóricas de Margaret Archer. Distanciando-se das análises funcionalistas e estruturalistas, Archer procurou em suas diversas investigações empíricas articular as relações recíprocas entre ação e estrutura, integrando as dimensões micro e macro e captando o sistema educacional como palco de incessantes disputas entre diferentes grupos sociais interessados na sua própria definição. Archer salienta que as interações sociais ao influírem na produção da estrutura presente acaba por produzir novas realidades que, por sua vez, se tornam estruturas, de tal forma que as conseqüências se transformam em causas e vice-versa. Ao comparar a construção dos sistemas educacionais de quatro países europeus, Rússia, França, Inglaterra e Dinamarca, Archer assinala como esses sistemas educacionais se transformaram em virtude da ação dos agentes que atuaram em seu interior e da relação que o sistema educacional mantém com outras instituições sociais. Graziella retém da reflexão de Archer a retomada da perspectiva macrosociológica presente em determinados pensadores clássicos da sociologia, em oposição às visões individualistas e voluntaristas de algumas abordagens sociológicas contemporâneas, assim como a centralidade do papel dos atores sociais na construção dos sistemas educacionais. Dessa forma, o estudo assume o pressuposto de que para compreender a dinâmica histórica dos sistemas educacionais, engendrada pelas disputas de poder no interior das atividades educacionais, é preciso analisar quem ganhou ou perdeu determinadas lutas específicas e quais os custos para os atores dessas disputas.

Nessa discussão, a autora introduz uma outra problemática, qual seja, a tentativa de compreender a sociologia da educação no Brasil como uma policy science, articulando essa idéia com a dinâmica dos sistemas educacionais nos termos delineados por Archer. O trabalho retoma, então, o debate em torno do estatuto teórico da relação entre conhecimento social e políticas públicas, estabelecido por Lerner e Lasswel no livro Policy sciences, publicado em 1951. Na perspectiva desses autores, as policy sciences não seriam ciências sociais aplicadas a temas específicos, mas um campo de conhecimento interdisciplinar comprometido com temas relevantes, como pleno emprego, paz, desigualdades sociais etc. As policy sciences não estariam voltadas à procedimentos burocráticos, mas deveriam ter valores bem definidos que determinariam os objetivos a serem alcançados. Lerner e Laswell acreditavam que uma vez predefinidas as diretrizes políticas, a objetividade da pesquisa social encontraria espaço de ação científica na análise de contextos específicos como uma adequação dos melhores meios para atingir determinados fins.

A discussão sobre o estatuto teórico das policy sciences é cotejada pelas contribuições fornecidas mais recentemente, por autores como Wagner, Wittrock e Wolmann, contidas no livro Social sciences and modern sate, publicado em 1991, no qual procuram avaliar os limites e as possibilidades da proposta de Lerner e Lasswell. Esses autores examinam a proposta de uma policy science baseados na compreensão histórica da relação entre ciências sociais e políticas públicas em diferentes contextos societários. Nesse sentido, para eles, uma visão estreita da pesquisa sobre políticas públicas pode acarretar uma excessiva subordinação dessas ciências a projetos de Estado, transformando os cientistas sociais em meros tecnocratas e/ou reformadores sociais. Em contrapartida, assinalam que uma excessiva "academicização" das ciências sociais pode conduzi-las a uma total desvinculação das questões relevantes da agenda do debate público. O engajamento das ciências sociais não constitui um fenômeno recente, uma vez que alguns de seus mais expressivos fundadores, no final do século XIX e início do XX, já apresentavam preocupação em intervir, demonstrando uma afinidade cognitiva com questões relevantes do debate público. Por fim, esses autores examinam as conexões assumidas historicamente entre as temáticas das ciências sociais e as questões de políticas sociais em diferentes momentos nos Estados Unidos e na Europa ocidental. Desta análise, Graziella Silva apreende a idéia de que a constituição possível de uma policy science depende da conjunção de fatores institucionais/intelectuais existentes em cada contexto societário (dinâmica do sistema universitário, herança intelectual vigente, papel desempenhado pelas instituições-ponte entre política social e produção do conhecimento) e de fatores político/institucionais (atores sociais que atuam no sistema educacional e o momento político). A autora compartilha com Wagner, Wittrock e Wollman a crença de que é possível e desejável aliar pesquisa social e políticas públicas, afastando-se, portanto, de uma concepção acentuadamente acadêmica. Ressaltando, ainda, que essa postura implica refletir sobre as prioridades e as diferenças da pesquisa científica e dos objetivos administrativos.

Uma vez delineado seu quadro de referência analítico, o trabalho dedica-se a abordar as relações históricas estabelecidas entre educação e sociologia no período entre 1920 e 1979, e busca analisar também as possibilidades e os limites que existiram, nesse período, quanto à construção da sociologia da educação como uma policy science. Inicialmente, a autora destaca a forte imbricação existente entre educação e sociologia, umas vez que, em sua visão, a institucionalização inicial da sociologia ocorreu no interior das escolas normais, por meio da obrigatoriedade do ensino da disciplina sociologia da educação, introduzida no âmbito das reformas estaduais ocorridas na década de 1920, responsáveis pela criação e/ou reformulação de diversos institutos de educação. A orientação dessas reformas era dotar os professores de uma base científica, considerada uma condição essencial para o processo de transformação do sistema escolar brasileiro. Além disso, Graziella adiciona a promulgação da Reforma Rocha Vaz, realizada em 1925, que determinou a introdução da sociologia na sexta série ginasial em todo o território nacional. A ocorrência desses acontecimentos conduziu a autora a contrapor a experiência brasileira à dos países latino-americanos que, segundo ela, incorporaram a sociologia em suas respectivas sociedades por meio dos cursos de direito.

Por outro lado, a história da sociologia da educação no Brasil esteve várias vezes associada às disputas em torno dos temas educacionais Na visão da autora, a partir de 1920, a sociologia foi enfaticamente utilizada na elaboração de projetos sobre a forma mais adequada de organizar o sistema educacional do país. A análise empreendida pelo trabalho evidencia que a educação assumiu uma importância não só como tema de intelectuais engajados, mas também como um acirrado campo de batalha ideológico entre defensores de um ensino público e laico, respaldado por concepções importadas da França e dos Estados Unidos e adeptos do ensino privado e religioso, grupo mais influente politicamente no período em foco.

Um dos grupos atuantes nesse período que mereceu uma detalhada análise no presente trabalho foi o dos Pioneiros da Escola Nova, formado no pós-1930. Além de se opor ao projeto educacional da Igreja, tinha a ambição de transformar o país por meio do seu sistema de ensino e seus membros acreditavam também na aplicação de princípios científicos no planejamento da educação, embora imperasse uma elevada dose de autodidatismo entre eles. O conhecimento de alguns da sociologia de Durkheim e da filosofia de Dewey seria utilizado para respaldar o pretendido diferencial científico. Dessa forma, o documento que os uniu, o Manifesto dos Pioneiros de 1932, contribuiu não apenas para defender uma ampla agenda de reformas educacionais no país ­ incluindo a defesa de uma educação pública e laica ­ mas levantou também o debate sobre a profissionalização do intelectual como assessor técnico das reformas sociais. Entre os signatários do Manifesto dos Pioneiros destacavam-se Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Júlio de Mesquita, Paschoal Leme, Cecília Meireles, Delgado de Carvalho, o único entre eles que possuía formação em sociologia, realizada no exterior. Esses intelectuais, embora insistissem na utilização de perspectivas científicas no planejamento da educação, na avaliação da autora, constituíam um grupo heterogêneo em termos de matrizes de pensamento e de orientação política, como demonstra sua análise quanto à trajetória de vida de determinados membros do grupo.

Os educadores-pioneiros encontravam-se ativamente envolvidos no debate sobre a criação de um sistema educacional e disputavam suas diretrizes gerais com grupos concorrentes, formados por católicos e também militares. Inicialmente, os Pioneiros foram os intelectuais-educadores mais influentes junto ao novo governo instalado em 1930 e na Constituinte de 1933. Nesses anos, eles, fundamentados em teorias sociológicas, psicológicas e filosóficas inseriram "cientificamente" a educação no projeto mais amplo de construção de uma nova sociedade brasileira. A Constituição de 1934 registrou vitórias e derrotas, tanto dos Pioneiros, como dos católicos. O princípio liberal de ensino público, contido na Constituição de 1891, deu lugar ao princípio da escolha das famílias pelo ensino laico ou religioso ­ influência dos católicos. A previsão de elaboração de um plano nacional de educação, com suficiente descentralização para a ação dos Estados, bem a inclusão da vinculação de uma porcentagem de recursos federais para investimento em educação foram certamente influência dos Pioneiros.

A autora considera que o advento do Estado Novo em 1937 interrompeu as possibilidades de constituição da sociologia da educação como policy science, pois o projeto de alguns desses educadores, comprometidos com a democratização da educação e da sociedade, passaram a ver vistos como uma ameaça ao regime instalado. Os educadores profissionais ficaram relativamente à margem da política educacional nesse período, o Exército ­ fortalecido pela época de guerras e de vigência de ideologias autoritárias ­ foi quem assumiu a sua condução. O projeto educacional dessa corporação possuía um claro intuito disciplinador, direcionado à enraizar na coletividade brasileira o espírito militar calcado em bases positivistas e nacionalistas. Recorrendo ao teor das publicações da revista Defesa Nacional, a autora salienta que vários de seus artigos pregavam a necessidade de um "projeto estratégico de mobilização controlada", em que a educação era definida como uma questão de segurança nacional. A ênfase nos cursos de educação física, no culto à bandeira e na educação moral e cívica expressava por parte do Exército objetivos mais políticos do que pedagógicos. A carta de 1937, juntamente à opção política de Capanema em se unir à Igreja Católica, imprimiu na educação um caráter homogêneo e nacionalista, disposição essa que conduziu a política educacional à enfatizar os rituais patrióticos, a reprimir as escolas de imigrantes e a definir um padrão de escolas (Colégio Pedro II) e de universidades (Universidade do Brasil) a ser seguidos pelo conjunto do país. À partir de 1937, o ideal de "educar para a sociedade", pleiteado pelos Pioneiros, foi substituído pela concepção "educar para a pátria", conforme expressão utilizada por Gustavo Capanema em 1940.

Na avaliação da autora, a centralização autoritária constituiu um duro golpe nas intenções "científico-educacionais" dos Pioneiros e representou a ruptura da possibilidade de uma nascente interação entre educação e sociologia. Ao mesmo tempo, a instauração do Estado Novo contribuiu para a dispersão do grupo. Alguns de seus membros apostaram na neutralidade técnica de seu conhecimento e permaneceram em determinados órgãos de planejamento educacional. A vertente ligada à psicologia também encontrou espaço no novo governo. O Inep, criado em 1938, principal responsável pelas pesquisas educacionais no país e interlocutor dos intelectuais nas políticas públicas, foi entregue a Lourenço Filho, que procurou imprimir uma perspectiva de psicologia aplicada à educação. Em contrapartida, a vertente sociológica do grupo perdeu influência nos rumos educacionais do país. Muitos de seus interlocutores afastaram-se ou foram afastados das arenas de decisões educacionais, tal como ocorreu com Anísio Teixeira que, após o fechamento da UDF em 1938, se "auto-exilou" no interior da Bahia. Uma vez afastada do planejamento educacional, a vertente sociológica recolheu-se nas novas instituições de ensino, como foi o caso de Fernando de Azevedo, que se voltou para o projeto de criação da USP e, posteriormente, assumiu a cátedra de sociologia nessa instituição, publicando à partir daí os manuais Princípios de sociologia (1935) e Sociologia educacional (1940).

O afastamento da possibilidade de uma interação mais estreita entre a sociologia e o planejamento correspondeu ao início do processo de institucionalização da sociologia como disciplina universitária. Nesse sentido, a autora destaca a criação dos cursos de sociologia em São Paulo, na Escola Livre de Sociologia e Política ­ ELSP (1933) e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ­ FFCL (USP, 1934), e no Rio de Janeiro, na Universidade do Distrito Federal (1935-1938). A experiência da UDF, em larga medida concebida por Anísio Teixeira e interrompida de forma autoritária pelo governo Vargas, foi muito curta para contribuir com o processo de institucionalização das ciência sociais no país. No entanto, a autora destaca que as instituições paulistas, ao buscar novas referências de organização do trabalho científico no campo das ciências sociais, recrutando professores e pesquisadores no exterior para integrar seus quadros docentes, se diferenciaram, de forma significativa, da tradição ensaística de conhecimento social até então predominante no país. A USP absorveu professores da Europa, sobretudo da França, e procurou imprimir um trabalho com acentuado perfil acadêmico. Segundo a avaliação da autora, o modelo da FFCL era o de ciência pura e sua vocação era formar uma comunidade científica mertoniana. A ELSP estabeleceu relações intelectuais com os Estados Unidos, principalmente com a tradição sociológica da escola de Chicago, incorporando seu ethos intelectual calcado em análises mais empíricas, apoiadas em novas metodologias como os estudos de comunidade e os surveys, os quais num momento posterior foram fundamentais na criação do CPBE. À medida que, segundo a autora, a ELSP produzia um conhecimento mais aplicado, o estilo de trabalho intelectual nessa instituição tornou-se cada vez mais próximo a uma concepção de policy science.

Entre 1920 e 1945a autora assinala que a produção intelectual no campo da sociologia da educação era extremamente modesta, em função do caráter incipiente do sistema universitário, apesar de já terem sido publicados trabalhos clássicos, como os de Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Junior, Roberto Simonsen etc. Em sua avaliação, embora tenha se formado na área do direito, Fernando de Azevedo foi o principal responsável pela produção propriamente sociológica nesse período, sobretudo no campo da sociologia da educação, fortemente influenciado pelo pensamento de Durkheim. Mesmo ele tinha uma avaliação pessimista: ao criticar a falta de ênfase dada à sociologia da educação, somente abria exceção a seus alunos Florestan Fernandes e Antonio Candido. Ele assinalava também que o projeto da sociologia da educação deveria ser prioritariamente científico, ou seja, o sociólogo deveria distanciar-se de objetivos práticos no momento da realização de suas pesquisas, por mais que tivesse consciência de suas possíveis aplicações práticas. Além de Fernando de Azevedo, Delgado de Carvalho também publicou alguns manuais voltados para as escolas normais. Diante da escassez de trabalhos, seria o caso de se questionar a existência de uma sociologia da educação nesse período.

Entre 1945 e 1964, o trabalho destaca o processo de democratização do país, depois de quase dez anos de ditadura do Estado Novo, assim como a emergência de um discurso nacional-desenvolvimentista, que buscou conferir ao Estado um papel estratégico no planejamento de diversas atividades socioeconômicas do país. A nova configuração política, se bem que não tenha marcado uma ruptura radical com o período anterior, propiciou o surgimento de tanto de instituições latino-americanas (Cepal, Claps, entre outras) como brasileiras (Iseb, CBPE, entre outras) para planejar as opções de desenvolvimento nacional, e com isso alargou a participação dos cientistas sociais em diversos orgãos estatais. Este momento marcou também a volta de alguns membros do grupo Pioneiros à vida pública ­ Anísio Teixeira, por exemplo, foi diretor da Capes, fundada em 1951, durante o segundo governo Vargas (1951-1954)Nessa direção, em meados da década de 1950 é criado o Iseb, segundo a autora, um centro importante no desenvolvimento das ciências sociais no Rio de Janeiro, embora sua atuação tenha se destacado mais como locus de criação de uma ideologia desenvolvimentista do que como uma instituição elaboradora de propostas e/ou de avaliação de políticas públicas, o que explicaria, de certa forma, a pouca ênfase que esse instituto conferia à realização de pesquisas empíricas. A esse propósito, a autora assinala que Guerreiro Ramos, um dos principais nomes do Iseb, criticava a utilização de surveys e de estudos de comunidade como metodologias frutíferas, uma vez que para ele esses procedimentos de investigação perdiam de vista a perspectiva geral da sociedade.

Em 1952, Anísio Teixeira assumiu a diretoria do Inep, acumulando-a com suas funções na Capes, com o objetivo de tornar esse orgão o responsável pelas pesquisas e estudos que assegurariam a fundamentação científica da política educacional do MEC. Para dinamizar o instituto, que havia se burocratizado de forma significativa durante a vigência do Estado Novo, em 1955 foi criado o CBPE (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais). A autora explora a centralidade do CPBE como um órgão de pesquisa aplicada à educação no qual os cientistas sociais se encontravam envolvidos com investigações teóricas e empíricas (supostamente) vinculadas ao tema educacional. No projeto inicial de Anísio, o CBPE teria o duplo objetivo de apoiar o desenvolvimento das próprias ciências sociais, ainda incipientes no país, ao mesmo tempo em que estimularia os cientistas sociais a se interessarem pelo estudo de problemas educacionais. Com a criação do Centro, as pesquisas educacionais passaram a contar com orçamento e espaço institucionalizados, condições raras no campo das ciências sociais naquele momento. Anísio Teixeira propôs também, além do CPBE a criação de centros regionais, os quais foram implantados nos Estados de Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul e Pernambuco, sob o comando de Gilberto Freire, e em São Paulo, sob orientação de Fernando de Azevedo. A inclusão Azevedo e Freyre ­ os quais não realizaram qualquer estudo sobre a temática educacional ­ fazia parte da estratégia de Anísio Teixeira em absorver nomes já consagrados nas ciências sociais brasileira, com o propósito de despertar o interesse desse campo disciplinar para a temática da educação.

O CBPE é analisado, de forma bastante detalhada, como um exemplo clássico de instituição-ponte entre Estado e Ciência, ou seja, um órgão voltado para a realização de políticas públicas que estabeleceu intensas conexões com os intelectuais e com as nascentes universidades. A coordenação inicial das pesquisas sociais do CPBE coube a Costa Pinto, que permaneceu apenas um ano no cargo. Com sua saída, Darcy Ribeiro assumiu a direção, por sugestão de Charles Wagley, seu professor na ELSP. Diga-se de passagem, o CBPE sofreu uma forte influência da concepção de investigação da ELSP, a qual privilegiava estudos de comunidade que eram analisadas a partir de uma perspectiva antropológica de cultura ­ que, por sua vez, ampliou o conceito de educação para o de socialização, mininizando a análise do sistema formal de educação ­, e, ao mesmo tempo, utilizava a técnica de surveys. Assim como Darcy, a maioria dos pesquisadores do CBPE, em maior ou menor grau, não tinha conhecimento ou interesse por questões educacionais tout court. O que a autora procura reafirmar é estratégia utilizada por Anísio de chamar para o Centro cientistas sociais competentes e promissores com o objetivo de estimulá-los para com o tema da educação. Nesse sentido, a análise fornece informações valiosas sobre as relações entre os cursos de sociologia das instituições recém-criadas e o recrutamento dos cientistas sociais. A análise demonstra, de forma convincente, que mesmo reunindo diversos cientistas sociais de duas gerações ­ os Pioneiros da Escola Nova e jovens cientistas sociais, como Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni ­ as pesquisas realizadas pelo CBPE se voltaram mais para a compreensão das condições gerais da sociedade brasileira, abordando temáticas como industrialização, urbanização, imigração, mudança social, relações raciais, partidos políticos etc, do que para aspectos específicos do sistema educacional brasileiro.

Graziella evidencia que nos 21 números publicados na revista Educação e Ciências Sociais, editada entre março de 1956 e setembro de 1962 ­ entre artigos de Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Antonio Candido, Costa Pinto, Gilberto Feyre, Jacques Lambert, Otávio Ianni, Juarez Brandão Lopez, Celso Furtado, entre outros ­, a maioria apresentava tênues relações com o temática educacional. Essa ausência revelava uma certa crítica dos cientistas sociais ao otimismo educacional, presente entre os educadores-pioneiros. De certa forma, os novos pesquisadores estavam sugerindo que o insucesso político dos Pioneiros residia na excessiva centralidade conferida à educação formal e aos procedimentos pedagógicos. Nesse sentido, o trabalho em foco aponta um paradoxo: num dos momentos em que as ciências sociais brasileiras, de forma institucionalizada, estabeleceu um diálogo com a temática educacional, essa aproximação não redundou em avanços no processo de institucionalização da sociologia da educação no país.

Na visão da nova geração, a transformação do sistema educacional dependia de uma mudança de processos sociais mais gerais, os quais deveriam constituir os objetos legítimos de investigação. Essa concepção, unida a uma certa desvalorização da educação, esvaziou o papel potencial que o CBPE poderia ter exercido como policy science institute. Além disso, na perspectiva dos professores que atuavam no sistema de ensino, as pesquisas do CBPE eram marcadamente acadêmicas e pouco contribuíam para a compreensão de seus afazeres práticos no cotidiano educacional Em sua avaliação, as tensões entre a necessidade de afirmação disciplinar das ciências sociais emergentes no país e as necessidades práticas da política educacional acabaram gerando conseqüências positivas para a institucionalização das ciências sociais, mas, em contrapartida, corroeu gradativamente a legitimidade social e a eficácia do CBPE como locus de formulação de políticas públicas.

Ao abordar as relações entre educação e sociologia Brasil no período 1964/1979, a autora afirma que não é fácil definir o seu lugar durante o regime militar. De um lado, houve uma visível repressão política aos setores de esquerda, que redundou no fechamento do Iseb, no controle da liberdade acadêmica das universidades, na cassação e aposentadorias compulsórias de vários professores universitários, esvaziando o espaço acadêmico. A sociologia, que vinha adquirindo uma gradativa visibilidade no espaço público, perdeu o papel de mapeamento dos rumos da mudança social e de seu planejamento, sendo, em larga medida, alijada das esferas estatais de análises socioeconômicas aplicadas. Entre as ciências sociais, a ciência econômica foi a que conquistou maior legitimidade científica no contexto político. O relevo adquirido pelo Ministério do Planejamento como pólo de desenvolvimento de ciência e tecnologia durante o governo militar, sobretudo depois da criação do Ipea em 1964, ampliou suas funções a tal ponto que as próprias pesquisas educacionais ­ concebidas à partir da lógica de capital humano ­ passaram a ser concebidas e realizadas no âmbito desse Ministério. Por outro lado, o governo militar implementou uma política de desenvolvimento científico e tecnológico com decisiva participação de agências de fomento federais, as quais possibilitaram a formação de um consistente sistema nacional de pós-graduação. Ao mesmo tempo em que ocorreu o afastamento entre sociologia e planejamento, a autora constata uma nova etapa no processo de sua institucionalização, representada pela criação de programas de pós-graduação nessa área do conhecimento, assim como a emergência de novos centros de investigação ­ baseados em recrutamento de professores universitários (cassados e/ou perseguidos politicamente pelo regime) como foi o caso do Iuperj e do Cebrap. Até que ponto o processo de formação de um sistema nacional de ensino e pesquisa, impulsionado pela criação e pela posterior multiplicação de programas de pós-graduação, contribuiu para a lógica de uma academicização da sociologia permanece uma questão em aberto que certamente merece ser discutida em maior profundidade.

Nesse contexto, a análise desenvolvida pela autora evidencia que, especificamente na área da sociologia da educação, a qual havia conquistado um espaço em determinados órgãos públicos de planejamento, a confluência da crise do CBPE aprofundada com a instalação do governo autoritário e a utilização cada vez maior da economia como referência disciplinar contribuíram para redefinir o modo pelo qual os praticantes da disciplina passaram a pensar a educação e sua relação com a própria sociologia. Concebida inicialmente pelo grupo Pioneiros como instrumento de democratização e de transformação da sociedade brasileira, utilizada em seguida nos anos de 1950 e 1960 para analisar o processo de transição do tradicional para o moderno, a sociologia seria empregada intelectualmente no novo contexto para captar a contribuição da educação no processo de reprodução das estruturas sociais. Nessa perspectiva, Graziella mostra que as opções teóricas utilizadas nesse momento para analisar o processo educacional esvaziou a temática educacional de um interesse sociológico substantivo e minou também a possibilidade de constituição da sociologia da educação como uma policy science. A partir da década de 1970, a recepção e a leitura empobrecida, que tendia a associar de maneira mecânica sistema educacional com reprodução da ordem social, da récem-chegada teoria estrutural-marxista francesa e do marxismo norte-americano ocasionou uma intensificação por parte das ciências sociais de um desencanto com o fenômeno da educação e de sua associação com propostas de reforma social.

Por outro lado, a autora chama atenção para o deslocamento da reflexão sobre a temática educacional, que vinha, até então, sendo realizada nos cursos de ciências sociais em diálogo com os cursos de educação. Com o desmembramento das faculdades de filosofia, ciências e letras e a criação das faculdades de educação ­ um subproduto da reforma universitária de 1968 ­, o debate educacional deslocou-se para as faculdades de pedagogia, com seus próprios sistemas de ensino e pesquisa, o que deu margem para o empobrecimento da sociologia educacional. O aprofundamento dessa ruptura dar-se-ia com a criação dos programas de pós-graduação em educação, os quais, em larga medida, elaboraram uma série de trabalhos utilizando categorias analítico-conceituais das ciências sociais, na maioria das vezes, sem o devido treino e a profundidade necessários, acentuando o desprestígio intelectual da educação como objeto de estudo junto aos sociólogos. Certamente, alguns sociólogos continuaram realizando pesquisas sobre educação, caso de Aparecida Joly Gouveia, cujos trabalhos mereceram uma atenção especial por parte da autora. No entanto, o fundamental a ser destacado é que a educação passou a ocupar um reduzidíssimo espaço na agenda de prioridades da sociologia: num total de 226 teses defendidas por essa disciplina no período 1976/1978, apenas 6% tinham a educação como tema central.

A esse propósito, não se pode deixar de reconhecer que atualmente houve sensíveis mudanças em relação à retomada do interesse da sociologia pela temática da educação. Alguns programas de pós-graduação em ciências sociais, particularmente os de sociologia, começaram gradativamente, a partir dos anos de 1980, a criar linhas de pesquisa relacionadas à temática e, pouco a pouco, passaram a incrementar a produção de trabalhos de docentes, dissertações e teses sobre as diversas interfaces entre educação e sociologia. Seria oportuno também ressaltar o significativo esforço que o GT Educação e Sociedade da Anpocs, criado em meados da década de 1980, vem desenvolvendo com vistas à recuperação dessa temática pelos cientistas sociais. Certamente, a ocorrência desses acontecimentos tem contribuído para que a educação ocupe uma posição destacada no contexto dos grupos de pesquisa em sociologia cadastrados atualmente no CNPq e no interior das ciências sociais brasileiras.

Sociologia da sociologia da educação destaca, na sua parte final, a existência de um processo complexo e descontinuo tanto no plano da sociologia como disciplina, ou seja, nos seus desenvolvimentos teóricos e institucionais, como no contexto político, marcado por mudanças de regimes políticos e sucessivos rearranjos das elites públicas. Para a autora, a sociologia apresentou nas diversas fases enfocadas ao longo do trabalho, esforços de aplicação de seus conhecimentos à discussão e à formulação de políticas públicas, aproximando-se de uma postura de uma policy science. Em função de uma constelação de fatores institucionais-intelectuais e político-instituicionais, os quais foram examinados de forma minuciosa neste estudo, a sociologia brasileira, segundo Graziella, acabou não concretizando a afirmação da área educacional como policy science. Contudo, conforme argumenta a autora, as condições presentes são propícias nesse sentido, uma vez que quase todos os obstáculos que impediram esse caminho se encontram ausentes no momento atual. Instalou-se por meio dos programas de pós-graduação um sistema nacional de pesquisa em ciências sociais que vem dando provas de sua maturidade institucional e acadêmica; a terceirização de muitos serviços públicos também tem estimulado a elaboração de projetos sociais, seja em ONGs, fundações privadas, seja em parcerias com o poder público. Ademais, Graziella não só salienta a existência de recursos nacionais e internacionais para pesquisa, avaliação e acompanhamento de políticas e projetos educacionais, mas também a visibilidade e a reputação pública do tema educacional, devido à sua recorrência nos meios mediáticos. Ressalta, ainda, que após três décadas da reforma universitária o número de estudantes em ciências sociais aumentou consideravelmente, de tal forma que torna-se impossível incorporar esses contingente em funções de docência e de pesquisa no interior da academia.

Retomando sua crença de que é possível e desejável aliar pesquisa social e políticas públicas, pressuposto presente desde as primeiras páginas do livro, a autora salienta que o desenvolvimento da sociologia da educação como policy science ­ além de não excluir um constante trabalho de revisão teórica sobre os temas tratados e de possibilitar um contínuo aprimoramento de procedimentos de investigação empírica ­ pode representar uma oportunidade para recuperar a relevância social da sociologia da educação, de torná-la um ator mais dinâmico no debate das questões públicas no país, e consolidar a profissionalização da disciplina para além dos muros da universidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2003
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