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As Ciências da Educação em Portugal e no Brasil1 1 Este artigo é resultado parcial de uma pesquisa de pós-doutoramento em Ciências da Educação desenvolvida pelo autor na Universidade Católica Portuguesa, sob a supervisão do professor Adalberto Dias de Carvalho e da professora Isabel Maria de Carvalho Baptista, no ano de 2018.

The Educational Sciences in Portugal and Brazil

Las Ciencias de la Educación en Portugal y Brasil

RESUMO

O artigo tem por objetivo relacionar e analisar o desenvolvimento das ciências da educação em Portugal e no Brasil. Para tanto, examina a trajetória histórica dessas ciências no país lusitano, que oferece o curso de graduação em ciências da educação. Uma vez que esse curso não é ofertado no Brasil, mas sim o de pedagogia, o estudo está mais direcionado para a análise da constituição do campo epistemológico dessas ciências na interface com as pesquisas desenvolvidas na área de educação. Assim, depois de examinar o desenvolvimento dessas pesquisas nesses dois países, destaca algumas aproximações e desafios, como o fato de sua produção científica ocorrer fundamentalmente nos cursos de pós-graduação e a necessidade de iniciativas interinstitucionais que agreguem e sintetizem as pesquisas produzidas na área.

Palavras-chave:
Ciências da Educação; Pedagogia; Pesquisa em Educação

ABSTRACT

This article aims to relate and analyze the development of the educational sciences in Portugal and Brazil. To do so, it examines the historical trajectory of these sciences in the Lusitanian country, which offers the undergraduate course in educational sciences. Since this course is not offered in Brazil, where pedagogy is offered instead, the study is more directed to the analysis of the constitution of the epistemological field of these sciences in its interface with the research developed in the area of education. Thus, after examining the development of this research in the two countries, it highlights some approximations and challenges, such as the fact that their scientific production occurs mainly in postgraduate courses and underlines the need for inter-institutional initiatives that aggregate and synthesize the research studies produced in the area.

Keywords:
Educational Sciences; Pedagogy; Education Research

RESUMEN

El artículo tiene como objetivo relacionar y analizar el desarrollo de las ciencias de la educación en Portugal y Brasil. Para eso, examina la trayectoria histórica de estas ciencias en el país lusitano, que ofrece la carrera de grado en Ciencias de la Educación. Dado que este curso no se ofrece en Brasil, sino el de Pedagogía, el estudio está más dirigido al análisis de la constitución del campo epistemológico de estas ciencias en su interfaz con las investigaciones desarrolladas en el área de la educación. Así, después de examinar el desarrollo de estas investigaciones en estos dos países, destaca algunas aproximaciones y desafíos, como el hecho de que su producción científica se da principalmente en cursos de posgrado, y la necesidad de iniciativas interinstitucionales que agreguen y sinteticen las investigaciones producidas en el área.

Palabras clave:
Ciencias de la Educación; Pedagogía; Investigación en Educación

INTRODUÇÃO

As ciências da educação partilham de uma função comum às ciências sociais, sintetizada numa fórmula célebre de Norbert Elias, como a de <caçar mitos>. E o principal mito que as ciências sociais têm a missão de esclarecer é o fato de a sociedade não ser <natural>. A contribuição primeira das ciências da educação consiste, portanto, e do meu ponto de vista, em contribuir para produzir uma visão <desnaturalizada> do campo dos fenômenos educativos. (Canário, 2005CANÁRIO, Rui. O impacte social das ciências da educação. In: ESTRELA, Albano; MENDES, Paulo Sérgio; CHOURIÇO, João Carlos (orgs.). O estado da arte em Ciências da Educação. Porto: SPCE, 2005., p. 25)

O desenvolvimento das ciências da educação, como área científica, ocorre em decorrência da instalação dos sistemas públicos de ensino nas sociedades burguesas ao longo dos séculos XIX e XX. Canário (2005)CANÁRIO, Rui. O impacte social das ciências da educação. In: ESTRELA, Albano; MENDES, Paulo Sérgio; CHOURIÇO, João Carlos (orgs.). O estado da arte em Ciências da Educação. Porto: SPCE, 2005. lembra que o surgimento dos campos científicos obedece a uma dinâmica de caráter histórico e igualmente ocorre com as ciências da educação:

O processo de institucionalização de um domínio específico de produção de conhecimento sobre os factos educativos processa-se em articulação estreita com a emergência de campos profissionais correspondentes e a institucionalização ao nível universitário amplia-se e consolida-se com a <explosão escolar> […]. (Canário, 2005CANÁRIO, Rui. O impacte social das ciências da educação. In: ESTRELA, Albano; MENDES, Paulo Sérgio; CHOURIÇO, João Carlos (orgs.). O estado da arte em Ciências da Educação. Porto: SPCE, 2005., p. 20)

Nesse sentido é que podemos afirmar que a origem das ciências da educação se assenta na expansão da oferta de educação escolar no contexto europeu do século XIX, impulsionada tanto pelas demandas de profissionalização docente quanto daquelas decorrentes da organização escolar de modo mais geral, no âmbito dos estados nacionais. Por outro lado, seus estudos ampliam-se ao longo do século XX com uma visão cada vez mais alargada de educação que, ao entender a condição humana como sempre inacabada, extrapola o âmbito escolar e passa a dialogar com novas demandas sociais, decorrentes da complexificação das sociedades contemporâneas, a que a escola sozinha não mais consegue atender.

O presente artigo propõe relacionar e analisar os processos constitutivos das ciências da educação em Portugal e no Brasil. Assim, abordará inicialmente como ocorre esse processo em Portugal e no Brasil e, na sequência, busca estabelecer algumas aproximações entre os percursos dessas ciências nos dois países, finalizando com uma análise dos principais desafios que a área tem apresentado. Esses dois países têm tido um intenso intercâmbio acadêmico na área educacional, especialmente nas três últimas décadas, que já permitiu constatar a similaridade em vários desses desafios. Por outro lado, parte-se do pressuposto que analisar as questões referentes à cientificidade da prática educativa pode contribuir para a melhoria da educação pública socialmente referenciada.

Inicialmente, cabe esclarecer aos leitores de ambos os países que a expressão ciências da educação é muito mais difundida no ambiente acadêmico português do que no brasileiro, uma vez que o país lusitano tem cursos instalados de ciências da educação tanto em nível de graduação quanto de pós-graduação.

No Brasil não temos curso de graduação em ciências da educação, mas os cursos de Pós-Graduação em Educação ocupam um espaço acadêmico que corresponde aos cursos de Pós-Graduação em ciências da educação em Portugal. Assim, cabe esclarecer que o objetivo deste estudo, ao analisar os processos constitutivos das ciências da educação nesses dois países, é voltar-se diretamente para o desenvolvimento do campo científico em educação. Ou seja, a questão da oferta de um curso específico em nível de graduação em ciências da educação em Portugal não será aqui tematizada, nem as aproximações entre esse curso e o de pedagogia existente no Brasil. Nesta mesma direção, não serão aqui analisadas as relações entre o campo epistemológico das ciências da educação com o da pedagogia, já abordado em outros estudos (Pinto, 2011PINTO, Umberto de Andrade. Pedagogia Escolar: Coordenação Pedagógica e Gestão educacional. São Paulo: Cortez Editora, 2011.; Pimenta et al., 2020PIMENTA, Selma Garrido; PINTO, Umberto de Andrade; SEVERO, José Leonardo Rolim de Lima. A Pedagogia como lócus de formação profissional de educadores(as): desafios epistemológicos e curriculares. Práxis Educativa, [S. l.], v. 15, p. 1-20, 2020. https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.15528.057
https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.15...
). Ou seja, a intenção neste artigo é examinar a constituição do campo científico sobre a educação que, tanto em Portugal quanto no Brasil, ocorre fundamentalmente nos cursos de pós-graduação. Por outro lado, cabe esclarecer que mesmo não tendo curso de graduação ou pós-graduação em ciências da educação no Brasil, entendemos que o conjunto da produção científica sobre educação desenvolvida nesse país pode ser identificada como ciências da educação.

EM PORTUGAL

A constituição e institucionalização das ciências da educação em Portugal revela processos históricos diretamente relacionados àqueles que ocorreram na França, país onde se localiza o nascedouro da identificação e sistematização dessas ciências. Assim, trataremos brevemente desse percurso histórico na França, e posteriormente como ocorreu em Portugal.

Cabe destacar inicialmente que esse percurso histórico envolve três aspectos que se alimentam uns aos outros de modo totalmente imbricado. São eles: o desenvolvimento das pesquisas em educação, a constituição epistemológica das ciências da educação e a institucionalização dos cursos de ciências da educação. Como já justificado anteriormente, neste artigo trataremos dos dois primeiros aspectos.

A CONSTITUIÇÃO DAS CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO NA FRANÇA

Os cursos de ciências da educação foram criados na França em 1967, mas o debate em torno da constituição das ciências da educação como campo científico ocorre pelo menos desde o início do século anterior, a partir dos estudos da Psicologia na área de educação.

Ao recuperar a história da psicologia, Reuchlin (1986)REUCHLIN, Maurice. História da Psicologia. Lisboa: Dom Quixote, 1986. argumenta que, se ela ainda fosse um ramo da filosofia, remontaria aos primeiros sinais do pensamento humano, mas que, em meados do século XIX, "esboçou-se a possibilidade de uma psicologia científica que consistisse no estudo, pela observação e pela experiência, das reações de organismos completos às diversas condições do meio que os rodeia" (p. 9). O autor destaca que essa psicologia se distingue da psicologia filosófica também pelo seu método de estudo, que é o mesmo das outras ciências: "consiste na comprovação experimental das hipóteses […] que possam ser verificadas por qualquer observador que conheça o manejo das técnicas que serviram para os estabelecer" (Reuchlin, 1986REUCHLIN, Maurice. História da Psicologia. Lisboa: Dom Quixote, 1986., p. 9). Assim, o autor esclarece que no seu surgimento, para se diferenciar da psicologia que tinha abrigo na filosofia desde sempre, passou-se a utilizar a expressão psicologia experimental para identificar essa nova ciência suscitada pela evolução da física e da fisiologia. Podemos constatar com esses argumentos de Reuchlin (1986)REUCHLIN, Maurice. História da Psicologia. Lisboa: Dom Quixote, 1986. que a inauguração da psicologia como ciência autônoma vem marcada pelas ideias positivistas em circulação na época. Por outro lado, seus estudos experimentais logo se voltariam para a educação, de modo que a área psicologia da educação seria inaugurada justamente com base na psicologia experimental e, assim, marcada pelo pensamento positivista.

Desse modo, a psicologia da educação vai se constituir historicamente como ciência-mãe das ciências da educação e demarcar seus estudos na individualização dos processos educativos. Na segunda metade do século XIX, ocorre uma grande difusão das ideias escolanovistas no âmbito do que Suchodolski (1972)SUCHODOLSKI, Bogdan. A Pedagogia e as grandes correntes filosóficas. Lisboa: Horizonte, 1972. identifica como pedagogia da existência. Essa pedagogia vai se contrapor radicalmente à hegemonia milenar das pedagogias da essência. Assim, de uma tradição marcada por um ideal (externo) predeterminado de ser humano, de caráter universal — herdeiro da filosofia platônica —, transita-se para uma pedagogia da existência, que coloca em cena a individualidade do aprendiz, que existe por ele mesmo, e não mais se prende a modelos exteriores predefinidos. É nesse solo fértil de mudança paradigmática de entendimento do humano que a psicologia da educação disseminará seus estudos no campo da psicologia, que acabava por se constituir como ciência autônoma ao focar a subjetividade da condição humana.

Plaisance e Vergnaud (2003)PLAISANCE, Éric; VERGNAUD, Gérard. As Ciências da Educação. São Paulo: Loyola, 2003., ao recuperarem os precursores das ciências da educação na França, fazem referência ao professor Henri Marion como um dos primeiros a oferecer uma disciplina de pedagogia como ciência da educação nas universidades francesas. Argumentam que, embora ele aponte vários temas que envolvem os estudos dessa área, será a psicologia que guiará suas análises sobre a educação:

Se a própria educação é definida como o <desenvolvimento harmônico de todas as faculdades>, então a psicologia é o instrumento essencial de conhecimento dessas faculdades […]. A Pedagogia como <ciência da educação> será, pois, desenvolvida como aplicação, e mesmo uma dedução, da psicologia, com legitimidade idêntica à que permite fundar a medicina sobre o conhecimento de seu organismo e de suas funções. (Plaisance e Vergnaud, 2003PLAISANCE, Éric; VERGNAUD, Gérard. As Ciências da Educação. São Paulo: Loyola, 2003., p. 21)

Esse entendimento restritivo de conhecimento científico marcará profundamente o estabelecimento tanto da psicologia quanto da sociologia como ciências autônomas no século XIX e, por decorrência, a psicologia da educação e a sociologia da educação, os dois pilares de constituição e sustentação das ciências da educação na França.

Plaisance e Vergnaud (2003)PLAISANCE, Éric; VERGNAUD, Gérard. As Ciências da Educação. São Paulo: Loyola, 2003. identificam os precursores dessas ciências já no início do século XIX — período em que a expressão aparece ainda no singular — na obra L’Esprit de la méthode d’éducation de Pestalozzi de Marc-Antoine Jullien de Paris. No entanto, é mais para o fim desse século e início do século XX que se observa a intensificação do uso dessa expressão, com a tradução para o francês de um livro inglês:

Alexander Bain é citado, com maior frequência, nos balanços retrospectivos sobre a história das abordagens científicas da educação. Sua obra, inicialmente publicada em inglês, em 1872, Education as a science, foi rapidamente traduzida para o francês, sob o título La Science de l’Éducation (1897) por Gabriel Compayré (Plaisance e Vergnaud, 2003PLAISANCE, Éric; VERGNAUD, Gérard. As Ciências da Educação. São Paulo: Loyola, 2003., p. 18)

Essa mesma constatação é feita por Mialaret (2013)MIALARET, Gaston. Ciências da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2013. ao destacar que A. Bain faz uso da expressão ciência da educação, também no singular. Então, quando ocorre o emprego da expressão ciências da educação, no plural? A resposta a esse questionamento exige um exame sobre o impacto do pensamento positivista no campo das ciências humanas, assim como a decorrente negação da pedagogia como ciência da educação. A seguir, trataremos brevemente desses dois temas.

O POSITIVISMO E AS CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

O debate em torno da epistemologia das ciências da educação é intenso, pelo menos nas três últimas décadas, e dele têm participado diversos pesquisadores que concordam que sua problemática está diretamente relacionada à trajetória histórica de constituição das próprias ciências humanas (Carvalho, 1994CARVALHO, Adalberto Dias. Utopia e educação. Porto: Porto Editora, 1994.; 1996CARVALHO, Adalberto Dias. A epistemologia da Ciências da Educação. Porto: Afrontamento, 1996.; Houssaye et al., 2004HOUSSAYE, Jean; SOËTARD, Michel; HAMELINE, Daniel; FABRE, Michel. Manifesto a favor dos pedagogos. Porto Alegre: Artmed, 2004.; Boavida e Amado, 2008BOAVIDA, João; AMADO, João. Ciências da Educação: epistemologia, identidade e perspectivas. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008.).

O entendimento de ciência, a partir da modernidade, foi gestado em torno das áreas de conhecimento sobre a natureza. Por outro lado, o avanço das forças produtivas, desde o capitalismo industrial, incrementou não somente as ciências duras, mas também as que viriam a ser identificadas como ciências humanas no contexto de um novo ordenamento social constituído em torno dos centros urbanos.

O positivismo de Augusto Comte influenciará diretamente o entendimento do que deve ser a ciência, numa visão reducionista, conforme argumentam Boavida e Amado (2008)BOAVIDA, João; AMADO, João. Ciências da Educação: epistemologia, identidade e perspectivas. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008.:

O método experimental, a partir da investigação assente nos factos observáveis tornou-se, com o Positivismo, não só como a única via possível para o conhecimento científico, a única via credível de investigação, mas também numa autêntica concepção filosófica. (p. 45-46)

Essa concepção de conhecimento científico marcará profundamente as novas áreas de investigação que tomam o ser humano como objeto de estudo — as ciências humanas. Carvalho (1996)CARVALHO, Adalberto Dias. A epistemologia da Ciências da Educação. Porto: Afrontamento, 1996. argumenta que os teorizadores das ciências da natureza não vislumbram a possibilidade de outras construções científicas para além das constituídas no modelo verificacionista e quantitativista que orienta suas pesquisas. Por extensão, podemos acrescentar que não somente esses teorizadores passam a difundir esse entendimento do que é conhecimento científico, mas também muitos pesquisadores passam a desenvolver os estudos sobre o ser humano. Abrigados até então na filosofia, esses estudos intensificados e especializados ao longo do século XIX buscam por um espaço de autonomia que permita a demarcação específica do seu objeto de investigação. É o caso especialmente da psicologia e da sociologia, duas áreas emblemáticas nesse questionamento sobre o estatuto de cientificidade das ciências humanas, e que já em seu nascimento incorporaram estudos sobre o fenômeno educativo. Com isso, queremos destacar que os impasses em torno da constituição epistemológica das ciências da educação, no que se refere à problemática de um conjunto de áreas científicas (psicologia, história, sociologia etc.) tomarem como estudo um mesmo objeto (educação), são ainda potencializados pela fragilidade com que se apresenta no meio científico a própria constituição de suas ciências-mãe. Assim, as ciências da educação, como área científica, são duplamente atacadas pelo reducionismo conceitual da ciência moderna: primeiro por extensão da crítica às suas ciências-mãe, que ao tomarem a condição humana como objeto de estudo não se adaptam aos cânones científicos da modernidade; e depois pelo fato de o seu objeto de estudo — a educação — não ser demarcado por uma única ciência especializada.

Cabe destacar que, a partir do século XIX, os estudos incipientes sobre educação desenvolvidos pela psicologia, já como ciência autônoma, foram diretamente influenciados pelas ciências naturais, especialmente a biologia e a anatomia, o que certamente contribuiu para a transposição do método de pesquisa das ciências naturais para a área das ciências humanas no campo educacional. Assim, a psicologia é a ciência que inaugura os estudos científicos na área de educação, marcados pela referência positivista das ciências da natureza, o que depois também ocorrerá com a sociologia. Essas duas jovens ciências, ao se voltarem para os fenômenos educativos, sustentarão posteriormente a formulação da expressão ciências da educação.

A NEGAÇÃO DA PEDAGOGIA

Por que os estudos sobre educação da psicologia e da sociologia não vão ao encontro daqueles já abrigados na pedagogia anteriormente? A resposta a esse questionamento está justamente relacionada à hegemonia do pensamento positivista no século XIX:

A pedagogia ainda está na fase das opiniões […]. A ciência progride porque resulta de um procedimento objectivo porque recorre em todos os domínios à aplicação da prova: a ciência forja o futuro, a pedagogia venera o passado. (Dottrens, 1961, apud Juif e Dovero, 1974JUIF, Paul; DOVERO, Fernand. Guia do estudante de Ciências Pedagógicas. Lisboa: Estampa, 1974., p. 42)

Esse discurso cientificista logo rechaçará a pedagogia como ciência da educação e abrirá caminho para que outras ciências, com outros objetos de estudo, ao se voltarem para a área educacional, possam, aí sim, ser identificadas como ciências da educação.

Entretanto, a pedagogia sempre foi historicamente associada à ideia de educação na chamada civilização ocidental (Saviani, 2007SAVIANI, Dermeval. Epistemologia e teorias da educação no Brasil. Revista Pro-Posições, Campinas, v. 8, n. 1, p. 15-27, jan./abr. 2007.), e o seu sentido etimológico remonta à realidade social da antiguidade grega: o escravo que conduzia a criança aos estudos. A partir da modernidade, vários pensadores se debruçaram sobre essa área de conhecimento para estudar a educação das novas gerações num contexto histórico em que as pessoas não eram mais classificadas socialmente por sua hereditariedade, como ocorria no modo de produção feudal, mas sim pela sua individualidade. Daí a importância de discutir a educação desse (novo) ser humano a integrar outro ordenamento social. No entanto, por estar diretamente associada à prática docente, a pedagogia nunca foi facilmente identificada como ciência (mesmo antes da difusão das ideias positivistas), mas sim como arte, no sentido de que toda prática humana é expressão de sua criatividade.

A ampliação exponencial dos estudos sobre educação escolar, a partir da implantação dos sistemas públicos de ensino, coincidirá historicamente com a difusão do pensamento positivista, de modo que o desconforto — já existente anteriormente — em classificar a pedagogia como ciência aumenta com o discurso do cientificismo.

Posteriormente, ao longo do século XX, além dessa crítica à pedagogia (que não poderia ser uma ciência pelo fato de seu objeto de estudo ser uma atividade prática), acrescentou-se também a ideia de que ela trataria somente da educação de crianças. Assim, à medida que avançam os estudos em educação em outros níveis de ensino, com alunos em outras faixas etárias, esses estudos supostamente deveriam ser tratados com maior rigor e seriedade no interior do campo científico.

AS PESQUISAS SOBRE EDUCAÇÃO EM PORTUGAL

O desenvolvimento das pesquisas sobre educação em Portugal ocorre fundamentalmente a partir da década de 1980, após o fim do Estado Novo, com a instalação das faculdades onde foram criados os cursos de ciências da educação. Esse longo período histórico (1933–1974) de regime ditatorial conteve os estudos na área de humanidades, de modo geral, e por consequência na área de educação.

Grácio (1991)GRÁCIO, Rui. Das Ciências de Educação em Portugal: um testemunho. In: SOCIEDADE PORTUGUESA DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO (SPCE) (org.). Ciências da Educação em Portugal: situação actual e perspectivas. Porto: Afrontamento, 1991. testemunha, por ocasião do Primeiro Congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, ocorrido em 1989 na cidade do Porto, que a tentativa de organizar uma entidade científica na área de educação no início da década de 1970 havia fracassado:

[…] um grupo de interessados no desenvolvimento de estudos e investigações no domínio educacional requereu, em 1971, ao Ministério da Educação Nacional, a aprovação de um projecto de estatuto de uma sociedade de estudos educacionais. Sobre o requerimento não terá sido lavrado despacho que se conhecesse: os requerentes foram informados que o documento se teria extraviado no Ministério. A bom entendedor — os requerentes — a informação bastou: tiveram de renunciar ao projecto, à espera de melhores dias […]. (Grácio, 1991GRÁCIO, Rui. Das Ciências de Educação em Portugal: um testemunho. In: SOCIEDADE PORTUGUESA DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO (SPCE) (org.). Ciências da Educação em Portugal: situação actual e perspectivas. Porto: Afrontamento, 1991., p. 13)

Com esse testemunho, além da importância do registro histórico do desenvolvimento das pesquisas sobre educação em Portugal, é fundamental destacar que somente num estado democrático a sociedade pode debater e implementar propostas educacionais que sejam minimamente consensuais entre os diferentes segmentos sociais e culturais que a constituem. À medida que as sociedades burguesas são estruturadas organicamente sobre desigualdades sociais, elas geram contradições próprias dessa sua estruturação. Assim, na área educacional, essas contradições se expressam nas intenções dos fins educativos de boa parte dos professores e pesquisadores da área com os interesses do Estado. A esses atores educacionais interessa trabalhar com a educação na perspectiva de promoção da condição humana; já aos setores corporativistas, abrigados no Estado para garantir a reprodução e acumulação do capital, interessa uma educação reduzida à formação de um ser (aluno) produtivo. Assim como neste início do século XXI as políticas educacionais são tratadas no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e se alinham às avaliações externas definidoras do perfil de aluno a ser educado, já na primeira metade do século anterior, em Portugal, as parcas pesquisas até então desenvolvidas ocorriam sob essa mesma lógica. Grácio (1991)GRÁCIO, Rui. Das Ciências de Educação em Portugal: um testemunho. In: SOCIEDADE PORTUGUESA DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO (SPCE) (org.). Ciências da Educação em Portugal: situação actual e perspectivas. Porto: Afrontamento, 1991. argumenta que, no fim da década de 1950, quando Portugal adere à Associação Europeia de Livre Troca (EFTA), o então ministro Leite Pinto promove a participação do país no Projecto Regional do Mediterrâneo (PRM) da OCDE na perspectiva de combinar fomento econômico e fomento cultural com base na educação. Também nessa época é criado o Gabinete de Estudos e Planejamento da Ação Educativa:

[…] com funções de documentação, informação e, sublinhe-se, de investigação […]. Este organismo terá, com a assessoria técnica da OCDE, lugar destacado na elaboração dos projetos reformistas protagonizados pelo derradeiro ministro da Educação da Ditadura. Projectos que estariam numa linha de continuidade, desde finais de 50, de uma decisão política — determinada ou reticente — de articular fomento económico e reforma educativa. (Grácio, 1991GRÁCIO, Rui. Das Ciências de Educação em Portugal: um testemunho. In: SOCIEDADE PORTUGUESA DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO (SPCE) (org.). Ciências da Educação em Portugal: situação actual e perspectivas. Porto: Afrontamento, 1991., p. 19)

Ainda nessa direção de atrelamento das políticas educacionais ao setor produtivo da sociedade, é importante destacar a presença desse mesmo princípio produtivista das pesquisas na área do ensino na justificativa que Juif e Dovero (1974)JUIF, Paul; DOVERO, Fernand. Guia do estudante de Ciências Pedagógicas. Lisboa: Estampa, 1974. encontram para o surgimento das pesquisas em educação:

No passado, as modificações em matéria de educação provinham dos filósofos (Platão, Montaigne, Rousseau, Kant, Spencer), e também dos práticos, médicos ou professores (Itard, Decroly, Pestalozzi, Freinet). Mas notaram que as reformas inspiradas do alto pelos filósofos e da base pelos práticos, paralisadas por uma espécie de inércia sociológica, não bastavam para melhorar a <produtividade> do ensino. (p. 135)

Constata-se que o princípio positivista de neutralidade científica, presente nas primeiras pesquisas em educação na virada do século XIX para o século XX, estender-se-á ao plano político. Assim, no âmbito das iniciativas governamentais na área de educação, ao longo de todo o século passado e início deste século XXI, predominam as iniciativas que vão ao encontro da objetivação dos processos de ensino e aprendizagem, voltados para uma padronização da formação humana que favoreça a produtividade do sistema de ensino e, por extensão, a instrumentalização de uma mão de obra que interessa somente ao mercado de trabalho.

Retomando o caso de Portugal, o incremento das pesquisas em educação ocorrerá, portanto, já no contexto histórico de democratização de sua sociedade, no âmbito das universidades que, com base na autonomia (relativa) que o estado democrático lhes confere, intensificarão profundamente a produção científica em educação nas quatro últimas décadas. Cabe frisar que essa produção científica foi decorrente da instalação inicial das Faculdades de Psicologia e Ciências da Educação (Universidade de Lisboa, Universidade de Coimbra e Universidade do Porto), que a partir da criação dos cursos de mestrado iniciam suas pesquisas para a concessão dos graus acadêmicos, que se estendem, posteriormente, aos cursos de doutoramento (Estrela, 2007ESTRELA, Maria Teresa. Um olhar sobre a investigação educacional a partir dos anos 60. In: ESTRELA, Albano. (org.). Investigação em Educação: teorias e práticas (1960-2005). Lisboa: Educa; Unidade de I&D de Ciências da Educação, 2007.).

Esse reconhecimento do locus de desenvolvimento das pesquisas educacionais em Portugal é também constatado por Albano Estrela (1999)ESTRELA, Albano. O tempo e o lugar das Ciências da Educação. Porto: Porto Editora, 1999. ao afirmar que isso só foi possível porque "encontrou o seu principal suporte institucional nas universidades, centros educativos por definição e natureza" (p. 10).

O professor Bártolo Paiva Campos (1995)CAMPOS, Bártolo Paiva. Desenvolvimento recente das Ciências da Educação em Portugal. In: SOCIEDADE PORTUGUESA DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO (SPCE) (org.). Ciências da Educação: investigação e acção. Braga: SPCE; Reprografia e Publicações da Universidade do Minho, 1995., por ocasião do II Congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, afirmava que:

O desenvolvimento das Ciências da Educação em Portugal, nos últimos vinte anos, é antes de mais o desenvolvimento do ensino das Ciências da Educação […]. Quanto ao desenvolvimento da investigação em Ciências da Educação, temos de reconhecer que é essencialmente uma consequência ou subproduto do desenvolvimento do respectivo ensino. (p. 13-14, grifo nosso)

Assim, o autor constata que não havia, nessa época, qualquer política institucional para a investigação na área de educação e afirma que a maior parte das pesquisas era feita até então nos cursos de mestrado e doutorado com o objetivo de obtenção de títulos para o exercício docente ou para provas de progressão funcional na carreira do magistério. Ele argumenta que o Estado deveria aumentar os estímulos, os apoios e os meios para as pesquisas em educação, mas que também caberia à comunidade científica demonstrar para a sociedade que é capaz de utilizar de maneira adequada esses meios disponibilizados para produzir um saber pertinente à resolução de problemas da educação em Portugal. Ainda nessa direção, Campos (1995)CAMPOS, Bártolo Paiva. Desenvolvimento recente das Ciências da Educação em Portugal. In: SOCIEDADE PORTUGUESA DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO (SPCE) (org.). Ciências da Educação: investigação e acção. Braga: SPCE; Reprografia e Publicações da Universidade do Minho, 1995. alerta que as perspectivas teóricas e metodológicas para a produção desse saber devem ser adequadas ao contexto sociocultural português, não sendo somente aquelas importadas do estrangeiro e que não se aplicam à realidade local.

Com relação ao intercâmbio entre a comunidade científica portuguesa e as estrangeiras na área de educação, Maria Teresa Estrela (2007)ESTRELA, Maria Teresa. Um olhar sobre a investigação educacional a partir dos anos 60. In: ESTRELA, Albano. (org.). Investigação em Educação: teorias e práticas (1960-2005). Lisboa: Educa; Unidade de I&D de Ciências da Educação, 2007. esclarece que praticamente a totalidade dos investigadores portugueses dos anos 1970, e muitos das gerações seguintes, foi formada em outras universidades europeias e norte-americanas — esclarecimento este que, de qualquer modo, não desconsidera a existência de investigadores portugueses antes dos anos 1970, sobretudo nas primeiras décadas do século XX. Entretanto, apesar de reconhecer a importância desse intercâmbio internacional no sentido de dialogar com o que se faz no exterior, a autora alerta sobre os riscos da dependência de teorias e conceitos elaborados e operacionalizados em outros países, assim como sobre a dispersão dos estudos em uma pluralidade de perspectivas teóricas e metodológicas importadas. Desse modo, ela conclui que:

Consequentemente, o desenvolvimento da investigação educacional em Portugal poderá considerar-se como um espelho em que se reflecte, por vezes com algum desfasamento temporal, uma imagem da investigação internacional. (p. 15)

Essa constatação da autora fica mais evidente ao destacar que os bolsistas e outros pesquisadores portugueses que se tinham expatriado por motivos políticos trazem para o país referências da investigação anglófona em detrimento da influência francesa, até então predominante.

Assim, cabe destacar que, num curto prazo de tempo histórico — pouco mais de quatro décadas —, as investigações educacionais em Portugal tiveram grande incremento e diversificação em seus objetos de estudo, assim como nas diferentes abordagens metodológicas, conquistando e afirmando o seu espaço na academia portuguesa:

Como qualquer outro domínio científico, a emergência do que hoje se chama <ciências da educação> corresponde a uma realidade inquestionável no que se refere à existência de uma comunidade com os seus instrumentos e rituais próprios (associações, revistas, congressos), de uma presença significativa em termos de ensino superior (politécnico e universitário) e um conjunto assinalável (e documentável) de actividades de investigação. (Canário, 2005CANÁRIO, Rui. O impacte social das ciências da educação. In: ESTRELA, Albano; MENDES, Paulo Sérgio; CHOURIÇO, João Carlos (orgs.). O estado da arte em Ciências da Educação. Porto: SPCE, 2005., p. 21)

No que se refere à diversificação temática e metodológica das pesquisas educacionais produzidas no país a partir da década de 1960, Estrela (2007)ESTRELA, Maria Teresa. Um olhar sobre a investigação educacional a partir dos anos 60. In: ESTRELA, Albano. (org.). Investigação em Educação: teorias e práticas (1960-2005). Lisboa: Educa; Unidade de I&D de Ciências da Educação, 2007. divide-as em três períodos, conjugados entre a evolução das investigações educacionais em nível internacional e o que ela identifica em nível nacional: de 1960 até finais de 1970, período ainda marcado pelo domínio das influências positivistas; final dos anos 1970 até o final dos anos 1980, marcado pela afirmação e expansão de novos paradigmas surgidos já no período anterior; e dos anos 1990 em diante, período em que se tornam evidentes as influências do pós-modernismo, já despontadas na década anterior. O primeiro período, marcado pelas influências positivistas, representa o apogeu de um longo período de difusão das ideias que impactaram profundamente o modo de produzir conhecimento científico em educação:

As tentativas de criação de uma ciência da educação no século XIX e princípios do século XX, com esta ou outra designação, tiveram origem num clima de cientismo triunfante, assente na confiança da razão para conhecer, prever e prover. (Estrela, 2007ESTRELA, Maria Teresa. Um olhar sobre a investigação educacional a partir dos anos 60. In: ESTRELA, Albano. (org.). Investigação em Educação: teorias e práticas (1960-2005). Lisboa: Educa; Unidade de I&D de Ciências da Educação, 2007.; p. 19)

Por outro lado, a autora identifica esse mesmo período como simultaneamente marcado pelo declínio dessas ideias e ascensão de novos paradigmas. Assim, a pedagogia científica, fundada nos princípios positivistas presentes na psicologia, perde terreno, e as grandes teorias passam a ser importadas de outras ciências. As ciências da educação firmam-se sobretudo na intradisciplinaridade ou na pluridisciplinaridade com grande variedade de métodos e técnicas de investigação de diferentes disciplinas. As abordagens quantitativas passam a ser objeto de crítica dos defensores das abordagens qualitativas que, por sua vez, passam a ganhar credibilidade científica (Estrela, 2007ESTRELA, Maria Teresa. Um olhar sobre a investigação educacional a partir dos anos 60. In: ESTRELA, Albano. (org.). Investigação em Educação: teorias e práticas (1960-2005). Lisboa: Educa; Unidade de I&D de Ciências da Educação, 2007.).

O segundo período, de meados dos anos 1970 até fins dos anos 1980, é marcado por evidentes continuidades, mas também por traços distintos. Esse período é marcado pela coexistência dos paradigmas denominados de racionalista, hermenêutico e sociocrítico. Assim:

[…] o investigador educacional descobre o sujeito e descobre-se como sujeito inserido e implicado numa trama histórica e social […] assistimos à expansão de um novo paradigma que opõe à verdade universal a verdade contextual […]. (Estrela, 2007ESTRELA, Maria Teresa. Um olhar sobre a investigação educacional a partir dos anos 60. In: ESTRELA, Albano. (org.). Investigação em Educação: teorias e práticas (1960-2005). Lisboa: Educa; Unidade de I&D de Ciências da Educação, 2007., p. 24)

Na esteira dessa nova compreensão epistemológica de apreensão do real educativo, ocorre uma explosão de estudos qualitativos, marcados pelo uso de instrumentos como entrevistas em profundidade, estudo de caso, observação participante, biografias e documentos autobiográficos etc. Estrela (2007)ESTRELA, Maria Teresa. Um olhar sobre a investigação educacional a partir dos anos 60. In: ESTRELA, Albano. (org.). Investigação em Educação: teorias e práticas (1960-2005). Lisboa: Educa; Unidade de I&D de Ciências da Educação, 2007. afirma que, consultando as atas do congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação de 1991, nota-se a continuidade de antigos temas, mas também o surgimento de alguns novos: formação de professores, supervisão clínica, ética e deontologia docente.

O terceiro período das pesquisas educacionais produzidas em Portugal vai dos anos 1990 até por volta de 2005, e é identificado pela influência do pós-modernismo. Essa influência é traduzida pelo apagamento das fronteiras não só entre os vários campos disciplinares, mas também "entre os diferentes tipos de conhecimento, nomeadamente entre o conhecimento praxeológico dos práticos e o conhecimento científico propriamente dito" (Estrela, 2007ESTRELA, Maria Teresa. Um olhar sobre a investigação educacional a partir dos anos 60. In: ESTRELA, Albano. (org.). Investigação em Educação: teorias e práticas (1960-2005). Lisboa: Educa; Unidade de I&D de Ciências da Educação, 2007., p. 31). As metodologias de investigação flexibilizam-se, e os critérios de cientificidade diluem-se. Nesse sentido, Estrela (2007)ESTRELA, Maria Teresa. Um olhar sobre a investigação educacional a partir dos anos 60. In: ESTRELA, Albano. (org.). Investigação em Educação: teorias e práticas (1960-2005). Lisboa: Educa; Unidade de I&D de Ciências da Educação, 2007. argumenta:

Se eu compreendo o pós-modernismo nos seus aspectos artísticos e aprecio a tentativa de interligação entre várias formas artísticas […] se estou aberta a novas formas de conhecimento e aprecio as novas formas de participação cívica e política que têm aparecido, tenho alguma dificuldade em aceitar a legitimidade de transposição para o campo científico de pressupostos próprios do mundo das artes e mormente a aceitação de critérios de cientificidade que sejam alheios à lógica interna de desenvolvimento científico. (p. 33)

Assim, para sintetizar esse período, a autora atesta que, apesar dos sinais pós-modernistas, ele representa ainda em grande parte uma continuidade das pesquisas do período anterior, mas também de seus problemas não resolvidos.

QUAIS SÃO AS CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO?

Como já exposto, a psicologia da educação e a sociologia da Educação inauguram as ciências da educação. Posteriormente, elas incorporarão os estudos que já eram tradicionais nas áreas de história e de filosofia voltados para a educação, desenvolvidos por diferentes pensadores ao longo dos tempos. Assim, podemos identificar estas quatro disciplinas — psicologia, sociologia, história e filosofia da educação — como áreas já clássicas no tratamento das questões educacionais, acrescidas da contribuição de outras ciências que, embora ainda não tenham conquistado um espaço acadêmico e/ou estudos sistemáticos sobre a educação, mesmo assim contribuem para a compreensão dos fenômenos educativos. É o caso da biologia, entre outras, que em diferentes épocas já gozou de maior prestígio; e, nos últimos tempos, são especialmente os casos da neurologia, da genética e da antropologia.

Podemos, então, constatar que as áreas que compõem o conjunto das ciências da educação estão em sua maioria abrigadas nas ciências humanas. Uma vez que estas últimas se identificam no fato de terem o ser humano como seu objeto de estudo, e uma das características desse ser é justamente sua capacidade de educabilidade, essas ciências — inevitavelmente — contemplarão estudos sobre a educação. Assim, a sociologia, ao estudar a condição do ser humano nas sociedades modernas, também se debruça sobre a educação como fenômeno social. Podemos estender o mesmo raciocínio para os casos da psicologia, da história e da filosofia. Assim, tanto pelo percurso acadêmico quanto pela produção bibliográfica, a composição das ciências da educação ocorre baseada na psicologia, na sociologia, na história e na filosofia. Há uma tradição secular nas universidades (francesas e portuguesas desde meados do século XIX e, no caso do Brasil, a partir do século XX) na área de educação, que consagrou a essas ciências (da educação) um espaço curricular como disciplinas e, por extensão, como campos de estudo. Por outro lado, temos uma farta literatura sobre educação nessas quatro áreas, que remontam há vários séculos, nos casos da filosofia e da história da educação, e a meados do século XIX em diante, nos casos da psicologia e da sociologia da educação. Assim, poderíamos identificar essas quatro ciências como as ciências clássicas da educação. Cabe também esclarecer que, no Brasil, essas disciplinas tradicionalmente foram identificadas nos cursos de licenciatura (formação de professores) como disciplinas dos fundamentos da educação.

Entretanto, todas as ciências cujo objeto de estudo também incorpora a educação como um dos seus ramos de investigação poderiam ser identificadas como ciência da educação, mesmo não tendo consagrado um espaço acadêmico — seja porque ainda não têm acumulado e sistematizado significativamente os seus estudos sobre a educação, seja por não terem conquistado um espaço acadêmico expressivo na área educacional ao longo de sua trajetória como campo científico. Nesse sentido, é importante considerar a conjuntura histórica em cada país, em cada local e em diferentes épocas que alimentam a cultura institucional das diferentes universidades, muitas vezes decisiva na criação, ou mesmo extinção, de uma ou outra disciplina. Conforme Carvalho (1994)CARVALHO, Adalberto Dias. Utopia e educação. Porto: Porto Editora, 1994., o peso relativo de cada uma dessas disciplinas no edifício das chamadas ciências da educação "tem dependido […] das oscilações e dos equilíbrios conjunturais vividos pelas ciências sociais e humanas no seu conjunto" (p. 81).

Mialaret (2013)MIALARET, Gaston. Ciências da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2013., ao se referir à classificação das ciências da educação, alerta que não há uma única a ser feita, que sempre dependerá do ponto de vista adotado. O autor procede com uma minuciosa classificação que não será aqui detalhada por extrapolar o objetivo deste estudo. Entretanto, cabe mencioná-la, pois, nessa classificação, o autor elenca uma série numerosa de disciplinas oferecidas nas universidades na área de educação, muitas das quais não se configuram como campo científico já estabelecido, mas sim como áreas de estudos disciplinares. Como exemplo, podemos citar educação comparada e ciências dos métodos e das técnicas pedagógicas, disciplinas que podem constar no currículo de diferentes cursos da área educacional, mas que não se apresentam efetivamente como uma ciência (da educação).

Campos (1991)CAMPOS, Bártolo Paiva. A Sociedade portuguesa de Ciências da Educação após o período de instalação. In: NÓVOA, António; CAMPOS, Bártolo; PONTE, Pedro; BREDERODE, Maria Emília. Ciências da Educação e mudança. Porto: SPCE, 1991., ao referir-se ao congresso ocorrido na cidade do Porto em 1989, promovido pela Comissão Promotora da então futura Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, afirma:

A centena de comunicações apresentadas situam-se no âmbito das várias disciplinas das Ciências da Educação (Filosofia, História, Psicologia, Sociologia) e das problemáticas mais trabalhadas em Portugal: Insucesso Escolar, Formação de Professores, Educação Especial, Educação para os Valores, Administração da Educação, Educação dos Adultos e Comunitária, Desenvolvimento Curricular e Metodologias do Ensino das Ciências e das Línguas, Novas Tecnologias da Informação na Educação, Educação e Trabalho. (p. 11, grifos nossos)

Vale destacar que o autor utiliza a expressão disciplina ao se referir aos campos científicos que originam as ciências da educação: psicologia, sociologia, filosofia e história, deixando o termo problemáticas para as várias áreas sobre as quais as pesquisas em educação já vinham se debruçando na época.

Com relação à filosofia da educação, é necessário registrar o desconforto de incluí-la entre as ciências da educação. À semelhança da pedagogia, ela também não se adequa às exigências do conhecimento científico na modernidade, embora por outros motivos. No caso da pedagogia, a questão principal refere-se ao fato de estar articulada diretamente às atividades práticas, mas o outro questionamento a ela dirigido — a visão de totalidade — também se aproxima no caso da abordagem filosófica. Historicamente a filosofia sempre abrigou todos os estudos voltados à condição humana. Entretanto, a constituição das ciências humanas e suas diferentes especializações não conseguiu, até hoje, acomodar, de modo adequado, o conhecimento filosófico. Assim, do mesmo modo que a filosofia não se identifica como ciência, por extensão, a filosofia da educação também não se identifica plenamente como ciência da educação: "Repare-se que o seu aparecimento no leque das ciências da educação cria problemas que, no nosso entender, nunca foram devidamente ponderados" (Carvalho, 1996CARVALHO, Adalberto Dias. A epistemologia da Ciências da Educação. Porto: Afrontamento, 1996., p. 82). Essa constatação é tão complexa e grave quanto a situação criada em torno da pedagogia com o surgimento das ciências da educação. O conhecimento filosófico, por não aderir às exigências das ciências experimentais, passa a ser expurgado dos estudos científicos sobre a condição humana, de modo a ocupar cada vez mais um espaço residual nesses estudos. Do mesmo modo, a filosofia da educação passa a ser reduzida à atitude filosófico-analítica: "É neste contexto crítico que a filosofia analítica, herdeira do positivismo lógico, restringe as tarefas da filosofia a um esforço de crítica e de clarificação da linguagem, na circunstância, da linguagem educativa" (Carvalho, 1996CARVALHO, Adalberto Dias. A epistemologia da Ciências da Educação. Porto: Afrontamento, 1996., p. 116).

Por extensão dessa atitude filosófico-analítica, no que se refere ao estatuto da filosofia da educação, Carvalho (1996)CARVALHO, Adalberto Dias. A epistemologia da Ciências da Educação. Porto: Afrontamento, 1996. distingue ainda uma atitude cientificista que recusa qualquer intervenção filosófica do estado metafísico para garantir a do estado positivo.

Em que pese a hegemonia desse confinamento do pensamento filosófico nas pedagogias produtivistas que predominam no cenário educacional contemporâneo, tanto em Portugal quanto no Brasil, as produções acadêmicas na área da filosofia da educação são intensas e muito têm contribuído, até mesmo com a denúncia desse seu reducionismo.

Cabe frisar a centralidade que a filosofia da educação ocupa (ou deveria ocupar) nos estudos sobre educação. Em acordo com Baptista (2010BAPTISTA, Isabel. Estatuto filosófico e científico da pedagogia social. Especificidade epistemo-antropológica. In: CARVALHO, Adalberto Dias (coord.). Contemporaneidade educativa e interpelação filosófica. Porto: Afrontamento, 2010., p. 101), "defendemos a necessidade de reflexividade ético-antropológica como elemento estruturante do estatuto epistemológico da pedagogia social" e, por extensão, das demais áreas da pedagogia, sem prejuízo de temas ou outras tarefas de investigação que podem ser creditadas a esses estudos.

AS PESQUISAS EM EDUCAÇÃO NO BRASIL

No Brasil, as ciências da educação vêm cumprindo, nos últimos tempos, um papel decisivo nos estudos da área educacional. Esses estudos desenvolvidos intensamente nas quatro últimas décadas ocorrem de modo predominante nos programas da pós-graduação em educação. Como em Portugal, também no Brasil o aumento substantivo das pesquisas sobre a educação escolar brasileira se justifica na expansão dos cursos de mestrado e doutorado da área (Gatti, 2002GATTI, Bernardete Angelina. A construção da pesquisa em educação no Brasil. Brasília: Plano, 2002.). Cabe informar ao leitor português que, no Brasil, os cursos de Pós-Graduação da área educacional são denominados de Pós-Graduação em Educação, diferentemente de Portugal, que incorporou a denominação Pós-Graduação em Ciências da Educação. Essa informação evidencia, por outro lado, a dispersão ou inconsistência conceitual da área, pois pós-graduação em educação toma o objeto de estudo (educação) para denominar a área científica. Ou seja, os cursos de pós-graduação em sua quase totalidade no Brasil trazem em seus títulos o nome da área científica: pós-graduação em história, em sociologia, em biologia, em psicologia etc.; entretanto, na área educacional, a pós-graduação traz o seu objeto de estudo para o título! Assim, a pós-graduação dessa área não se identifica como ciências da educação, a exemplo de Portugal e outros países, nem como pedagogia, ciência da educação já consagrada como curso de graduação há mais de oito décadas no país.

Os cursos de pós-graduação em educação no Brasil são oferecidos majoritariamente nas universidades públicas e geralmente estão vinculados às faculdades e/ou departamentos de educação. Contam com uma grande diversificação das linhas de pesquisas e, de modo geral, as ciências (clássicas) da educação têm sido contempladas nos diferentes programas de pós-graduação. Desse modo, a produção do conhecimento em psicologia, filosofia, história e sociologia da educação brasileira tem sido valiosa, pois o que tínhamos até há bem pouco tempo era predominantemente uma teoria educacional importada da Europa e dos Estados Unidos da América. Testemunha a consolidação da produção teórica das diferentes ciências da educação no Brasil a constituição de grupos de trabalho das quatro ciências (clássicas) já citadas, entre outros campos temáticos na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd). Segundo Gatti (2002)GATTI, Bernardete Angelina. A construção da pesquisa em educação no Brasil. Brasília: Plano, 2002.:

Esta associação teve, a partir do final da década de 70, papel marcado na integração e intercâmbio de pesquisadores e na disseminação de pesquisa educacional e questões a ela ligadas. Contando com mais de 20 grupos de trabalho, que se concentram em temas específicos dos estudos das questões educacionais […]. (p. 20)

Essa expansão da pesquisa educacional em nosso país, além de contribuir com a produção de conhecimento científico sobre a educação brasileira, também tem contribuído com a expansão dos aportes teóricos de outras ciências que ainda não tinham espaço acadêmico formal na área de educação. É o caso, especialmente nas três últimas décadas, da antropologia. Os estudos desenvolvidos no país por essa ciência têm contribuído diretamente para as pesquisas sobre as relações étnico-raciais, questões de gênero e sexualidades no campo da educação. Atesta o avanço dessas pesquisas no Brasil o fato de, no início dos anos 2000, dois novos grupos de trabalho (GT) terem sido instituídos no interior da ANPEd para abrigar esses estudos.

Assim, cabe destacar que as pesquisas desenvolvidas no GT Educação e Relações Étnico-Raciais têm contribuído para a luta política do movimento negro que, há décadas, reivindicava que o tema das relações étnico-raciais fosse incorporado no currículo escolar, uma vez que num país de população majoritariamente afrodescendente era imperioso o enfrentamento do racismo brasileiro, que, camuflado historicamente no mito da democracia racial, sempre se manifestou institucionalmente, mesmo no interior das próprias escolas brasileiras. Por outro lado, como informa o histórico da constituição desse GT (ANPEd, s.d.a.), ele também incorporou os estudos sobre educação indígena que, assim como aqueles relacionados à população afrodescendente, estavam dispersos em outros GT. As pesquisas que vêm sendo desenvolvidas nessa confluência das relações étnico-raciais e educação têm sido possíveis pelo acúmulo dos estudos no trato das questões relacionadas às condições das populações negras e indígenas em nosso país produzidas pelos pesquisadores brasileiros, especialmente na área da antropologia.

Do mesmo modo, também deve ser creditado a esses pesquisadores o avanço dos estudos no campo de Gênero, sexualidade e educação. A constituição de um GT específico para tratar desses estudos na ANPEd atende ao incremento das pesquisas desenvolvidas na interface da antropologia com a educação, assim como às indicações previstas nos Parâmetros Curriculares Nacionais, promulgados pelo Ministério da Educação em 1996, no que se refere ao tratamento transversal da orientação sexual nas escolas. A citação que segue, reproduzida do histórico da constituição do referido GT no sítio da ANPEd, evidencia o avanço dos estudos nessa área no país:

Acreditamos não ser mais necessário enfatizar a importância que as dimensões de gênero e sexualidade adquiriram na teorização social, cultural e política contemporânea. De fato, desde o final dos anos 70 do séc. XX, uma ampla, complexa e profícua produção acadêmica vem ressaltando a impossibilidade de se ignorarem relações de gênero e sexualidade quando se busca analisar e compreender questões sociais e educacionais. Estudiosas/os e pesquisadoras/es de várias nacionalidades e filiações teóricas e disciplinares participaram e continuam participando da construção desses campos, numa perspectiva que focaliza tanto relações de gênero e sexualidade quanto suas importantes articulações com dimensões como raça/etnia, classe, geração, nacionalidade, religião, dentre outras. (Meyer, Ribeiro e Ribeiro, 2004, apud ANPEd, s.d.b)

Podemos então constatar que, no Brasil, nestas últimas décadas, a Antropologia tem sido uma das principais protagonistas na área das ciências da educação. A contribuição de seus estudos, além de contribuir com o alargamento no entendimento dos fenômenos educativos no Brasil, também tem trazido grande contribuição na produção de conteúdos de ensino a serem desenvolvidos nas escolas, tanto no que se refere às exigências da Lei 10639/93, que aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, quanto às incipientes iniciativas de uma abordagem curricular sobre as questões de gênero e sexualidades.

Ademais, em algumas instituições de ensino superior que oferecem o curso de pedagogia, já podemos até mesmo identificar o surgimento de disciplinas específicas em suas matrizes curriculares que tratam da antropologia e educação.

Por outro lado, reconhecer a produção científica na área da antropologia em sua interface com a educação no Brasil é fundamental para que possam ser legitimadas as políticas públicas da área, assim como as mudanças que vêm ocorrendo, ainda que de modo pontual, nas práticas educativas que ocorrem no que se refere ao tratamento das relações étnico-raciais, de gênero e sexualidades. Já não é mais admissível que, na terceira década do século XXI, o cotidiano das práticas pedagógicas nas escolas brasileiras continue naturalizando aquilo que foi construído socialmente como, por exemplo, dar mais atenção à criança branca do que à negra, afirmar que isso é coisa de menino e aquilo é coisa de menina, desabonar atitudes ou posturas de crianças e jovens que não estejam alinhadas à heteronormatividade etc.

ALGUMAS APROXIMAÇÕES E DESAFIOS NO DESENVOLVIMENTO DAS PESQUISAS SOBRE EDUCAÇÃO EM PORTUGAL E NO BRASIL

A pesar de o Brasil não ter o curso de ciências da educação e Portugal não ter o de pedagogia, constatamos que o desenvolvimento das ciências da educação — como área científica — ocorre de modo muito semelhante nos dois países, assim como alguns desafios que decorrem desse desenvolvimento, conforme veremos a seguir.

Uma primeira constatação é o fato de a expansão quantitativa das pesquisas educacionais tanto em Portugal quanto no Brasil ocorrerem em contextos históricos pós-ditaduras. Como já foi argumentado, os governos totalitários não incentivam a produção de conhecimento científico crítico e desinteressado em suas agendas. Assim, a defesa do estado democrático é fundamental para a circulação livre do conhecimento na área educacional, assim como em outras áreas científicas.

A expansão das pesquisas nos dois países, a partir da década de 1980, contribuiu com a produção de um conhecimento sobre a realidade educacional de cada um deles, rompendo com uma tradição de importação de teorias de outros países, que nem sempre dialogavam com a realidade local, ainda que perdure essa influência estrangeira em menor grau. Certamente não estamos defendendo uma xenofobia científica, mas sim intercâmbios internacionais que efetivamente contribuam para a promoção de soluções aos problemas educacionais locais.

Outra constatação refere-se ao fato de a produção científica sobre educação, tanto no Brasil quanto em Portugal, estar concentrada predominantemente nas pesquisas desenvolvidas nas universidades. Em ambos os países, as pesquisas direcionadas à obtenção dos títulos acadêmicos em nível de pós-graduação (mestrado, doutorado, pós-doutorado) na área de educação representam quantitativamente o maior número dos estudos da área. Além dessas pesquisas, podemos também contabilizar nos programas de pós-graduação aquelas desenvolvidas por seus professores, vinculados a diferentes grupos de pesquisas, e que geralmente envolvem estudos mais abrangentes com a participação de diversos pesquisadores, às vezes, de várias instituições. Entretanto, o elevado volume da produção dessas pesquisas ocorre com uma grande dispersão de seus resultados, uma vez que não existem mecanismos de agregação dessa produção, que acaba por atomizar-se nos locais onde são desenvolvidas. Comumente os pesquisadores de uma mesma área temática não acompanham nem o que está sendo produzido por colegas de outros grupos de pesquisas e, à medida que os ingressantes nos cursos de pós-graduação adentram nos estudos de seus orientadores, essa lógica vai assim sendo reproduzida.

Em que pese o lado satisfatório do grande aumento da produção científica educacional, que realmente dificulta acompanhar o que está sendo produzido por outros pesquisadores, urge a necessidade de estratégias e mecanismos institucionais que favoreçam — pelo menos — a aproximação dos grupos de pesquisas de uma mesma área temática, de modo a promoverem um intercâmbio que possibilite a formulação de algumas sínteses das produções nessas áreas, conforme algumas iniciativas já em curso (redes de grupos de pesquisas interinstitucionais, por exemplo). Neste sentido, cabe destacar que essas sínteses favoreceriam a difusão dos novos conhecimentos científicos nas escolas da educação básica, conforme defende Saviani (2011)SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3. ed. rev. 1 reimpr. Campinas: Autores Associados, 2011.:

Observa-se, porém, que mesmo os conhecimentos já disponíveis não têm sido incorporados como objeto de ensino. Resulta pertinente, portanto, indagar sobre o grau em que as investigações são suscetíveis de se integrarem aos programas de ensino próprios das disciplinas escolares. O encaminhamento da resposta a esse problema traz, a meu ver, a exigência de que, além dos estudos de corte analítico incidindo sobre temas ou momentos específicos, se devam elaborar estudos de caráter sintético que permitam articular, numa compreensão de mais amplo alcance, os resultados das investigações particulares. (p. xxiv, grifos nossos)

Do mesmo modo, seria desejável que a partir dessas sínteses de cada área fossem possíveis novas sínteses envolvendo as diversas áreas que desenvolvem suas pesquisas em educação. Carvalho (1994)CARVALHO, Adalberto Dias. Utopia e educação. Porto: Porto Editora, 1994. assevera o impacto da especialização especificamente no campo da educação: "Diremos mesmo que a educação se tornou num dos domínios que mais impiedosa e negativamente foi alvo da vaga de especialização que caracterizou o nosso século" (p. 82).

Podemos justificar que os efeitos dessa especialização na área educacional são muito mais perversos, pois a educação, como fenômeno multideterminado, recorre a diversos aportes teóricos, o que exige do seu campo científico um empenho muito maior na produção de sínteses mais abrangentes. Com relação a essa problemática, especialmente no que se refere à organização departamental das universidades, Canário (2005CANÁRIO, Rui. O impacte social das ciências da educação. In: ESTRELA, Albano; MENDES, Paulo Sérgio; CHOURIÇO, João Carlos (orgs.). O estado da arte em Ciências da Educação. Porto: SPCE, 2005., p. 18) assim se posiciona:

Mais do que justificar as fronteiras disciplinares no quadro das quais se pretende inscrever uma determinada investigação, será mais fecundo concentrar esforços na construção de objectos científicos e metodologias, próprios e singulares para cada investigação, fazendo apelo ao património teórico e conceptual que tende a ser comum às várias ciências sociais e promovendo a consciente e deliberada transgressão das fronteiras disciplinares que delimitam as <reservas de caça> de investigadores e de departamentos.

Assim, a organização da estrutura acadêmica das universidades, de modo geral, representa um dos maiores desafios na superação da fragmentação do conhecimento científico, especialmente na área de educação. Desafio que, para ser superado, deveria passar necessariamente pela constituição de equipes de pesquisadores:

[…] a investigação, dentro da ciência específica da educação, não pode ser obra de investigadores isolados ou que se reúnam apenas para confrontar os resultados que alcançaram: não há lugar para especialistas em investigação educacional, mas somente para equipas especializadas. (Carvalho, 1994CARVALHO, Adalberto Dias. Utopia e educação. Porto: Porto Editora, 1994., p. 89)

Ainda com relação à produção das pesquisas estarem centradas nos cursos de pós-graduação, outro desafio refere-se ao fato de a definição dos problemas de investigação e a decorrente formulação do seu objeto de estudo ficarem sob a responsabilidade dos ingressantes nos diferentes cursos. Um princípio razoável que seria os problemas de pesquisa serem identificados socialmente e coletivamente com base na realidade educacional acaba perdido na lógica estrutural e organizacional das universidades. Ainda que muitos candidatos aos diferentes programas de pós-graduação tenham que apresentar projetos de pesquisa que se alinhem aos grupos de investigação dos respectivos programas, mesmo assim, nem sempre estão articulados a projetos de pesquisas mais abrangentes.

Como vimos, tanto em Portugal quanto no Brasil, suas maiores entidades científicas de educação assumem um papel centralizador e divulgador das pesquisas da área. Neste sentido, tanto a Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE) quanto a ANPEd poderiam ocupar um espaço ainda maior no fomento de pesquisas interdisciplinares e interinstitucionais no que se refere à produção de sínteses de resultados de pesquisas em cada área temática, assim como entre as diferentes áreas (como defendido anteriormente), com financiamento público. Nesse sentido, cabe destacar que esse protagonismo das entidades científicas depende diretamente do estabelecimento de vínculos institucionais sólidos com órgãos estatais, que não sejam rompidos por governos eleitos periodicamente, de modo que a produção científica na área de educação possa contribuir efetivamente para a elaboração das políticas públicas educacionais.

Outra constatação comum aos dois países diz respeito a uma problemática própria da área: a identidade profissional dos pesquisadores em educação. Uma vez que muitos deles possuem formação acadêmica em diferentes cursos de graduação (história, filosofia, psicologia etc.), com entrada posterior na área de educação por meio da pós-graduação, é comum certo desconforto gerado pelo fato de terem perdido sua identidade inicial (da graduação) e não terem ganhado completamente uma nova identidade profissional. Em suas áreas de origem, nem sempre são bem recebidos por a terem deixado em troca de outra com menos prestígio (educação). Na academia, ressoa silenciosamente certa desqualificação da área de educação por ser considerada como depositária de pesquisadores menos prestigiados em relação às suas ciências-mãe. A esse respeito, Nóvoa (1991)NÓVOA, António. As Ciências da Educação e os processos de mudança. In: NÓVOA, António; NÓVOA, António; CAMPOS, Bártolo; PONTE, Pedro; BREDERODE, Maria Emília. Ciências da Educação e mudança. Porto: SPCE, 1991., ao discorrer sobre a identidade profissional dos especialistas em ciências da educação em Portugal, afirma:

[…] a gestão do processo identitário depara-se ainda com uma dificuldade suplementar: o anátema que foi lançado às Ciências da Educação, olhadas como o espaço académico onde se albergam os piores profissionais dos diversos domínios científicos. Num certo sentido, esta perspectiva prolonga-se numa visão do ensino como profissão-refúgio ou de 2ª escolha. (p. 23)

Entretanto, há de se considerar que, em Portugal, a partir da década de 1990, ocorre um aumento gradativo de licenciados já em ciências da educação que, apoiados na carreira acadêmica, também passam a produzir pesquisas educacionais. Nesses casos, não se aplica a problemática enunciada anteriormente em torno da questão da identidade profissional.

Contudo, Estrela (2007)ESTRELA, Maria Teresa. Um olhar sobre a investigação educacional a partir dos anos 60. In: ESTRELA, Albano. (org.). Investigação em Educação: teorias e práticas (1960-2005). Lisboa: Educa; Unidade de I&D de Ciências da Educação, 2007. também faz referência às ambiguidades da identidade profissional daqueles pesquisadores educacionais citados anteriormente:

Rigorosamente, a expressão investigação educacional transborda o campo das ciências da educação, sendo difícil, por vezes, distinguir fronteiras com outras ciências que operam no campo educativo. Esta dificuldade liga-se também à ambiguidade da identidade dos investigadores que, muitas vezes e por razões que o modelo de identidade social de Tajfel ajuda a explicar, preferem a colagem à ciência mãe, julgando tirar daí segurança científica e prestígio social. (p. 18)

Sobre o argumento acima, é importante a constatação de que as pesquisas em educação não estão confinadas exclusivamente nos programas de pós-graduação da área de educação/ciências da educação. De fato, tanto no Brasil quanto em Portugal, na contabilização das pesquisas da área, temos que considerar aquelas desenvolvidas em outros programas de pós-graduação, especialmente naqueles das ciências-mãe das ciências da educação (programas de pós-graduação em Filosofia, em psicologia…).

Ainda com relação à identidade profissional dos pesquisadores educacionais, no caso do Brasil, aqueles com formação inicial no curso de pedagogia também padecem por serem considerados uns generalistas órfãos de uma ciência-mãe, o que já não ocorre com os pesquisadores educacionais oriundos das demais ciências humanas. Acrescenta-se ainda o fato de alguns pesquisadores da própria área das humanidades ratificarem a ideia que a educação seria uma área menos prestigiada por lidar com crianças ou, então, por eles se envolverem com atividades práticas (o ensino), que não condiz com a tradição universitária escolástica. Por outro lado, os pesquisadores das diferentes ciências da educação (psicologia, história etc.) teriam uma formação deficitária na área educacional como um todo, uma vez que não tiveram uma formação inicial em educação (pedagogia). Tudo isso confirma a complexidade da área educacional que, ao lidar com um fenômeno multideterminado, necessita de pesquisadores especialistas em diferentes áreas, e que, muitas vezes, são penalizados pela reverberação dessa complexidade em suas próprias identidades profissionais.

Ainda comum aos dois países, embora mais explícito em Portugal, é a ascendência da psicologia sobre o conjunto das ciências da educação, conforme observamos no estudo da trajetória histórica de constituição dessas ciências. Pudemos constatar que o seu desenvolvimento está diretamente relacionado ao da ciência moderna, ao das ciências humanas e ao da psicologia. As ciências da educação são constituídas com base nos estudos sobre educação desenvolvidos pela psicologia e marcadas pelo pensamento positivista, que busca inserir as ciências humanas no mesmo enquadramento das ciências da natureza. Assim, os estudos iniciais da psicologia da educação foram voltados para a educação das crianças — público-alvo predominante nas escolas públicas instaladas à época da constituição da sociedade burguesa — e posteriormente pelo público juvenil que, no caso de Portugal, ficará marcado pela introdução dos estudos sociológicos em educação.

É importante destacar que é inegável a contribuição da psicologia (assim como da biologia, anatomia, medicina) nos estudos iniciais (e decorrentes práticas) da educação contemporânea, especialmente no campo das teorias da aprendizagem. Entretanto, considerando-se a multideterminação da prática educativa, não é possível o seu reducionismo à dimensão psicológica, que periodicamente vem marcando os estudos da área desde meados do século XIX até os dias atuais, manifestando em alguns contextos um psicologismo educacional. Carvalho (1994)CARVALHO, Adalberto Dias. Utopia e educação. Porto: Porto Editora, 1994. assim argumenta sobre esse reducionismo:

Quer como psicologia da educação, quer como psicopedagogia, quer ainda e apenas como psicologia da personalidade, do comportamento, do desenvolvimento ou da aprendizagem, ela insinuou-se, até no senso comum, como a abordagem científica a quem primordialmente compete o estudo dos fenómenos educativos. Não somos movidos aqui por qualquer espírito de cruzada contra uma ciência cujas contribuições — seja a nível de métodos, seja no que concerne a resultados objetivos — gozam de uma importância que é indiscutível. Um tal radicalismo atingiria os limites da insensatez. Porém, o mesmo não se passará com a denúncia enérgica do cariz reducionista (e subvertor da identidade dos fenômenos considerados) que assumem muitas das intervenções que explicitamente se apoiam no terreno conceptual dessa ciência humana. (p. 82)

No caso de Portugal, é surpreendente que a inauguração dos cursos de ciências da educação, relativamente recente em termos históricos, ainda tenha ocorrido com essa ascendência — agora institucional — da psicologia em relação à educação, uma vez que esses cursos foram instalados nas Faculdades de psicologia, conforme constatação do referido autor:

[…] em Portugal, data de […] 1976 o decreto que funda os Departamentos de Psicologia e de Ciências da Educação — repare-se uma vez mais nesta associação persistente entre a psicologia e as ciências da educação — onde germinaram as actuais Faculdades com o mesmo nome. (Carvalho, 1994CARVALHO, Adalberto Dias. Utopia e educação. Porto: Porto Editora, 1994., p. 85)

Nesse sentido, seria desejável que o curso de ciências da educação fosse instalado junto com as demais ciências humanas, e não somente com a psicologia, de modo a favorecer os intercâmbios entre as diversas áreas que contribuem para o entendimento da educação.

Ainda no caso de Portugal, é importante destacar o avanço no debate sobre a constituição epistemológica das ciências da educação, assim como uma expressiva produção teórica na área da educação não escolar e da pedagogia Social. Como vimos, as discussões em torno das ciências da educação têm ocorrido muito mais em Portugal do que no Brasil, que tem problematizado mais a questão epistemológica da pedagogia. A oferta no país lusitano de um curso de ciências da educação voltado para a formação de especialistas em educação não vinculados diretamente com a docência também tem favorecido a discussão em torno da educação de um modo geral, incluindo a escolar, mas também aquela que ocorre para além da escola. Já no Brasil, desde 2006, com a promulgação das atuais Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de pedagogia, a formação dos especialistas em educação ficou fragilizada, na medida em que o curso atual prioriza a formação de professores dos anos iniciais da educação básica (Pimenta et al., 2020PIMENTA, Selma Garrido; PINTO, Umberto de Andrade; SEVERO, José Leonardo Rolim de Lima. A Pedagogia como lócus de formação profissional de educadores(as): desafios epistemológicos e curriculares. Práxis Educativa, [S. l.], v. 15, p. 1-20, 2020. https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.15528.057
https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.15...
).

CONSIDERAÇÃO FINAL

Finalmente, é importante destacar que os desafios para superar a fragmentação do conhecimento educacional encontram um solo fértil na abordagem dialética da pedagogia, campo de conhecimento que tem a educação como seu objeto exclusivo de estudo, que se reporta à sua própria fundamentação teórica como uma ciência prática da e para a educação.

Somente na medida em que a ciência da educação se compreende dialeticamente a partir do interesse libertário do conhecimento de uma teoria crítica da sociedade, voltado à emancipação e libertação dos homens, torna-se possível a ela criticar, por sua vez, a realidade educacional descoberta empiricamente […] na experiência, antecipando, deste modo emancipatório, uma práxis educacional transformada. (Schmied-Kowarzik, 1988SCHMIED-KOWARZIK, Wolfdietrich. Pedagogia Dialética: de Aristóteles a Paulo Freire. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988., p. 14)

Assim, entendemos que as amarras do pensamento positivista, a que ficaram presas as ciências da educação desde o seu surgimento, possam ser rompidas pela influência de outras abordagens dos fenômenos educativos articuladas num movimento contra-hegemônico que supere a concepção pedagógica produtivista predominante em todas as esferas da educação pública na atualidade (Saviani, 2011SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3. ed. rev. 1 reimpr. Campinas: Autores Associados, 2011.).

As primeiras décadas do século XXI estão marcadas pela hegemonia do pensamento neoliberal, que no plano político desloca e reduz a educação pública à área econômica. Os economistas passam a ser os reconhecidos cientistas da educação, cientistas orgânicos do capital financeiro. No Brasil, especialmente, saem de cena os pedagogos, assim como filósofos, psicólogos, sociólogos, historiadores e antropólogos da educação, e quem passa a ocupar todos os espaços institucionais (tanto públicos quanto privados) no debate sobre a educação são os economistas. Assim, urge avançarmos nos estudos sobre outras concepções pedagógicas que ofereçam outros sentidos às atividades práticas dos educadores, na perspectiva da construção de sociedades menos injustas do ponto de vista socioeconômico, que respeitem e convivam com a diversidade humana e assim disseminem a fraternidade e a paz.

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    Este artigo é resultado parcial de uma pesquisa de pós-doutoramento em Ciências da Educação desenvolvida pelo autor na Universidade Católica Portuguesa, sob a supervisão do professor Adalberto Dias de Carvalho e da professora Isabel Maria de Carvalho Baptista, no ano de 2018.
  • Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2022
  • Aceito
    07 Jun 2023
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