RESUMO
Este artigo, apoiado em pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico, lançando mão de fontes consideradas o estado da arte em estudos sobre o sistema educacional da Finlândia, bem como em documentos oficiais de seu governo e de instituições multilaterais que investigam e procuram influenciar as decisões nacionais sobre a área, aborda a emergência, a partir de 2001, do reconhecimento internacional do êxito do modelo de educação praticado naquele país. Ante os surpreendentes resultados obtidos por seus estudantes no primeiro teste do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, realizado em 2000, são abordados os fatores que contribuem para a consistência daquele paradigma educacional. Entre os resultados alcançados, destaca-se o conclusivo entendimento de que existem sistemas educacionais alternativos exitosos, cujos pressupostos se opõem profundamente ao padrão corporativo global de educação, os quais podem servir como modelo educacional a ser buscado por outras nações.
PALAVRAS-CHAVE:
Finlândia; educação; sistema educacional
RESUMEN
Este artículo, basado en principios de la investigación cualitativa de enfoque bibliográfico, recurriendo a fuentes consideradas de última generación en estudios sobre el sistema educativo de Finlandia y a documentos oficiales de su gobierno y de instituciones multilaterales que investigan e intentan influir en las decisiones nacionales acerca del área, trata sobre la emergencia, a partir de 2011, del reconocimiento internacional del éxito del modelo educativo utilizado en aquel país. Ante los sorprendentes resultados logrados en la primera evaluación del Programa Internacional de Evaluación de Alumnos, en 2000, se abordan los factores que contribuyen para la solidez de aquel paradigma educativo. De entre los resultados obtenidos, se destaca el firme entendimiento de que hay sistemas educativos alternativos exitosos, cuyas premisas se oponen fuertemente al modelo corporativo global de educación, los cuales pueden servir como un ideal educativo a seguir por las demás naciones.
PALABRAS CLAVE:
Finlandia; educación; sistema educativo
ABSTRACT
This paper, supported by bibliographic qualitative research, makes use of state of the art sources in studies of the educational system of Finland, as well as official government and multilateral institutions’ documents that investigate and seek to influence national decisions in the area of education. Additionally, it discusses the emergence, in 2001, of the international recognition of the the success of the country’s educational model. In view of the astonishing results obtained by students in the first Programme for International Student Assessment, which was conducted in 2000, we address the factors that contribute to the consistency and the success of Finland’s educational paradigm. Among the achieved results, emerges the conclusive understanding that there are successful alternative educational systems that are deeply opposed to the global corporate standard of education, and which can serve as educational models for other nations.
KEYWORDS:
Finland; education; educational system
INTRODUÇÃO
Não obstante as sérias reservas de expressivos segmentos da comunidade acadêmica mundial - Bonal e Tarabini (2013Bonal, X.;Tarabini, A. The role of PISA in shaping hegemonic educational discourses, policies and practices: the case of Spain. Research in Comparative and International Education, v. 8, n.3, p. 335-341, 2013.), Carabaña (2015Carabaña, J. La inutilidad de Pisa para las escuelas. Madri: Las Cataratas, 2015.), Carnoy e Rothstein (2013Carnoy, M.; Rothstein, R. What do international tests really show about U.S. student performance? Economic Policy Institute Report, 28 jan. 2013. Disponível em: <Disponível em: http://www.epi.org/publication/us-student-performance-testing/
>. Acesso em: 5 ago. 2015.
http://www.epi.org/publication/us-studen...
), Stewart (2013Stewart, W. Is Pisa fundamentally flawed? TES magazine, 26 jul.2013. Disponível em: <Disponível em: https://www.tes.co.uk/article.aspx?storycode=6344672
>. Acesso em: 5 ago. 2015.
https://www.tes.co.uk/article.aspx?story...
), entre outros -, à qual nos associamos no que concerne à sua validade e confiabilidade como instrumento suficiente para aferir a aprendizagem de estudantes na faixa etária entre 15 e 17 anos, bem como as consequências negativas do uso massificante de seus resultados como critério definidor da qualidade de díspares sistemas nacionais de educação, o presente trabalho aborda a evolução positiva do desempenho da Finlândia nos testes aplicados no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA - Programme for International Student Assessment), conduzidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 2001 a 2012. Discorre também sobre sua repercussão internacional, a qual vem desde então provocando uma onda de análises e especulações sobre o sucesso do sistema educacional desse país, notadamente quando as bases de tal êxito repousam sobre concepções educacionais que destoam radicalmente das presentes no modelo hegemônico preconizado pelos cânones do ideário neoliberal.
Partindo da análise do desempenho dos alunos finlandeses na primeira edição do referido teste, realizado em 2000, apresentam-se as reações a esses resultados na Finlândia. Em seguida, são explorados os fatores que podem explicar tal desempenho, contrapondo-os com seus homólogos encontrados no modelo corporativo global de educação, desvelando como a consistência superior daqueles elementos presentes no sistema finlandês constitui a base do sucesso das reformas educacionais implementadas no país.
O IMPACTO DOS RESULTADOS DO TESTE DO PROGRAMA INTERNACIONAL DE AVALIAÇÃO DE ESTUDANTES (PISA) DE 2000
Antes da divulgação dos resultados da primeira edição dos testes do PISA, ocorrida em dezembro de 2001, havia um consenso geral de que países tidos como referência mundial em educação, tais como Estados Unidos, Alemanha e França, para citar alguns, desfrutavam sistemas educacionais que proporcionavam aos seus alunos excelência em desempenho acadêmico e consistente aprendizagem, situando-se como os melhores do mundo. Indicadores nacionais da área - nível de instrução, proporção de investimento em relação ao produto nacional, percentual de pessoas com nível superior -, além do sucesso de seus estudantes em competições acadêmicas nacionais e internacionais, como as Olimpíadas em Física, Matemática, Computação, Química e Biologia, por exemplo, reforçavam e confirmavam o senso comum de então no que concerne à qualidade daqueles sistemas educacionais.
A divulgação daqueles resultados abalou o status quo acadêmico e político mundial. A Finlândia, longínquo país localizado na extremidade norte do globo terrestre, surpreendentemente, assumiu os primeiros lugares nos três domínios cognitivos avaliados pelo teste - Matemática, Ciências e Leitura, este como foco prioritário daquela edição do PISA (enquanto, na edição de 2003, foi dada atenção prioritária à Matemática e, na de 2006, às Ciências).
O Quadro 1 mostra o desempenho daquele país nas três áreas do conhecimento em relação aos demais países da OCDE e às outras nações participantes não pertencentes a essa organização multilateral.
A título de comparação com os sistemas educacionais até então tidos como de excelência mundial, o primeiro lugar obtido pela Finlândia em desempenho médio na escala combinada de proficiência em leitura (OCDE, 2003Organização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico(OCDE).Literacy skills for the world of tomorrow:further results from PISA 2000. Paris: OECD , 2003.)1 1 Conforme quadro disponível na página 76 do referido documento. , mostrado na primeira linha do quadro mencionado, contrasta com os decepcionantes e surpreendentemente pífios desempenhos de alguns daqueles sistemas educacionais: França, 15.º lugar, Estados Unidos, 16.º, e Alemanha, 22.º, entre outros (OCDE, 2003Organização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico(OCDE).Literacy skills for the world of tomorrow:further results from PISA 2000. Paris: OECD , 2003.). Além disso, a variação relativa da perfomance intra e entre-escolas na Finlândia era excepcionalmente baixa, refletindo a equidade do sistema.
O desempenho dos alunos finlandeses nos ciclos seguintes do exame (2003, 2006, 2009 e 20122 2 Na edição desse ano, o desempenho dos estudantes finlandeses em Matemática teve leve queda em relação às edições anteriores do PISA, situando aquela nação no 12.º lugar. Nos demais domínios cognitivos, Leitura e Ciências, o país manteve os primeiros lugares, ficando em quinto lugar em ambos (OECD, 2014b). ) repetiu o padrão de excelência registrado na primeira edição, a de 2000, o que consolidou a percepção da consistência e da solidez do sistema educacional daquele país do norte europeu, suscitando a curiosidade e a avalanche mundial de análises e pesquisas sobre os fundamentos e as razões do sucesso de seu modelo educacional.
AS REAÇÕES NA FINLÂNDIA
Como assinala Sahlberg (2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.), as reações iniciais posteriores aos primeiros resultados positivos da Finlândia no PISA na comunidade educacional foram confusas. A mídia mundial queria saber o segredo da sua excelente educação. Nos primeiros 18 meses após a publicação desses resultados, centenas de delegações estrangeiras oficiais excursionaram por todo aquele país no intuito de descobrir como suas escolas funcionavam e como seus professores ensinavam. Tamanho era o grau de perplexidade e de admiração dos visitantes estrangeiros em relação ao “milagre finlandês” do PISA que muitas vezes os próprios finlandeses não conseguiam responder aos questionamentos com a riqueza de detalhes que os visitantes esperavam.
Ainda segundo o referido autor, malgrado todo o entusiasmo relacionado a tal façanha, a maioria dos educadores e diretores escolares daquela nação entende que os testes padronizados de larga escala aferem apenas uma estreita gama do amplo espectro da aprendizagem escolar, os quais ainda advertem que o PISA advoga a ideia da transferência de políticas e de práticas educacionais que, com efeito, não são, em sua maioria, mecanicamente transmissíveis, bem como alertam que sua acrítica adoção leva a uma visão simplista do aprimoramento educacional.
FATORES QUE COLABORAM PARA A CONSISTÊNCIA DO MODELO EDUCACIONAL FINLANDÊS
Ao abordarmos, na presente seção, os fatores que levaram, no curto espaço de 30 anos, o sistema educacional finlandês de um rendimento mediano para o topo da escala do PISA3 3 Sahlberg (2011) traz dados do desempenho de estudantes finlandeses em diversos testes internacionais desde 1962 (International Association for the Evaluation of Educational Achievement - IEA -, Second International Mathematics Study - SIMS - e Trends in Mathematics and Science Repeat Study - TIMSS). Não obstante seja difícil comparar a aprendizagem de um corpo discente em períodos históricos tão díspares, com realidades socioeconômicas, culturais e políticas tão discrepantes, o autor delineia um convincente quadro no qual mostra a evolução da performance daqueles aprendizes no período de 1970 a 2012. Conforme também Martin, Gregory e Stemler (2000) e Robitaille e Garden (1989). , procederemos à contraposição desses valores aos que alicerçam o modelo corporativo global de educação, contemporaneamente hegemônico, focado em constantes testes padronizados de larga escala e no rigoroso controle do trabalho docente, e estruturado de acordo com o paradigma subjacente às técnicas de gestão empresarial.
BAIXO GAP EDUCACIONAL INTRA E INTERESCOLAS
A excelência do sistema educacional finlandês tem sido favorecida por sua notável homogeneidade de desempenho nas escolas e entre elas. Segundo a OCDE, nenhum outro país tem tão pouca variação nos resultados entre as escolas, e a diferença nesses estabelecimentos de ensino entre os alunos de maior e menor desempenho é extremamente reduzida. Nesse sentido, as unidades escolares finlandesas conseguem servir a todos os aprendizes bem, independentemente da sua origem familiar ou de sua condição socioeconômica (OCDE, 2010Organização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico(OCDE).Education at a glance. 2010 OECD indicators. Paris: OECD, 2010. ).
O Quadro 2 ilustra bem a liderança daquele país no que se refere a um salutar baixo gap educacional nas escolas e entre elas, conforme os respectivos territórios nacionais, entre os países da OCDE.
Variação intra e entre-escolas do desempenho nos testes de proficiência em leitura no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) 20094 4 Para obter a variação, por país, do desempenho dos estudantes no PISA 2003 em Matemática nas escolas e entre elas, reportar-se à OECD (2004, p. 19). Enquanto essa variação entre escolas, nos países da OCDE, oscilava em torno de 34%, na Finlândia ficava ao redor de apenas 4% (OECD, 2007). A mesma fonte pontua que contribui significativamente para isso o caráter não seletivo das escolas gerais (comprehensive schools) naquele país, que constituem a essência do modelo educacional finlandês (peruskoulu), no qual todos os alunos recebem o mesmo provimento educacional básico, em média, até os 16 anos de idade. Conclui indicando que variações mais acentuadas de desempenho entre escolas ocorrem com mais frequência nos sistemas educacionais nacionais nos quais os aprendizes ingressam, no início de sua vida escolar, em diferentes tipos de escolas. .
Para obter tal façanha, a Finlândia tratou de abolir, em meados da década de 1980, o tracking5 5 Segundo Gamoran (1992), trata-se do artifício pedagógico de separar os educandos por capacidade acadêmica em grupos (para todas as matérias ou somente para algumas) em uma escola, prática corrente nas escolas privadas de classe média alta das grandes cidades brasileiras, que instituem as “turmas especiais” como estratégia de marketing, acirrando a competitividade entre as empresas escolares e entre os discentes. no seu ensino geral regular, projetando as mesmas expectativas de aprendizagem para todos os alunos, independentemente da origem social ou do background acadêmico. Com isso, as disparidades de resultados entre altos e baixos desempenhos escolares começaram a diminuir. A partir de então, sem levar em conta suas capacidades ou interesses, todos os discentes estudariam as mesmas disciplinas do currículo comum nas mesmas classes, ao contrário do que ocorria antes, quando havia três níveis de currículos a serem atribuídos aos educandos conforme seu desempenho anterior naquelas disciplinas, mas muitas vezes também com base na influência de seus pais.
PRESTÍGIO SOCIAL, AUTONOMIA E CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS PROFESSORES
Muitos fatores têm contribuído para o sucesso do modelo educacional da Finlândia, mas qualquer pesquisa empreendida com o mínimo nível de aprofundamento bibliográfico-empírico revelará que, desses fatores, um supera todos os demais em importância para a consistência e a sustentabilidade do sistema: a excelência de seus professores.
Como corolário de uma sólida preparação profissional (sobre a qual versa seção ulterior do presente trabalho) e das bases socioéticas que fundamentam o exercício de sua profissão, em consonância, diga-se de passagem, com os valores predominantes naquela sociedade, a docência desfruta imenso prestígio e confiança naquele país, tanto quanto a medicina, a advocacia e outras do mesmo quilate em termos de valor social. Dessa forma, a carreira é exercida por toda a vida e é uma das mais disputadas. Anualmente, mais de 20 mil candidatos concorrem para o cargo de professor de escola primária, e apenas um décimo destes conseguem ser selecionados.
Não é de admirar, então, que os professores e o próprio ensino sejam altamente respeitados na Finlândia. Os meios de comunicação finlandeses divulgam regularmente os resultados de pesquisas de opinião que avaliam as profissões favoritas entre os diplomados do ensino superior secundário geral. Surpreendentemente, a docência é constantemente classificada como uma das profissões mais admiradas, à frente de medicina, arquitetura e direito, tipicamente consideradas profissões de sonho [...]. Ensinar é congruente com os valores fundamentais dos finlandeses, que incluem a justiça social, o cuidar de outros, e a felicidade (Sahlberg, 2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011., p. 97, grifos nossos)6 6 A responsabilidade pelas traduções no presente trabalho é de seu autor. .
Congruentemente, os docentes participam intensamente do planejamento escolar e do desenvolvimento dos currículos, que naquela nação não é competência da federação, e sim dos municípios, muito embora estes sigam algumas diretrizes gerais, delineadas pelo governo central, notadamente de ordem programática, que deixam suficiente margem aos municípios para contemplarem aspectos peculiares à realidade sociocultural local.
Fica claro que o macroambiente e o contexto sociopolítico nos quais o magistério é exercido na Finlândia diferem significativamente dos existentes nos países que adotam o modelo corporativo global de educação (Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, entre outros), cujo paradigma fundante da accountability prevê rigorosas inspeções de agentes governamentais e infindáveis testes externos padronizados, nos quais se espera que o desempenho dos alunos reflita a qualidade do trabalho docente.
Precisamente por se pautar em um paradigma ético-educacional diametralmente oposto, o modelo finlandês, caracterizado pela notável autonomia profissional de seus professores, supera seu congênere neoliberal. Sahlberg (2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.) sintetiza, de forma preciosa, essa axial característica do sistema de educação daquela nação:
Curiosamente, quase ninguém cita salário7 7 Salário não é o principal motivo pelo qual os jovens finlandeses escolhem a profissão de professor. Não obstante, a remuneração dos professores efetivos situa-se no mesmo nível, em média, da praticada nos países da OCDE (Sahlberg, 2011). Importa considerar que o Estado finlandês provê ampla gama de bens e serviços que contemplam as necessidades materiais básicas de sua população, o que não ocorre na maioria dos países daquela organização. Ademais, ressalta-se que, em conformidade com os valores prevalecentes naquela sociedade, o prestígio, o respeito e o reconhecimento que os docentes desfrutam não poderiam deixar de guardar íntima congruência com sua remuneração profissional. como motivo para deixar de ensinar. Em vez disso, muitos apontam que, se viessem a perder sua autonomia profissional nas escolas e em suas salas de aula, o exercício de sua profissão seria colocado em questão. Por exemplo, se um inspetor externo fosse determinado para julgar a qualidade do seu trabalho ou se uma política de remuneração baseada no mérito, influenciada por fatores externos, fosse imposta, muitos mudariam de profissão. [...] Muitos professores finlandeses me dizem que, se encontrassem pressão externa semelhante aos testes padronizados de alto impacto e à accountability, como ocorre com seus pares na Inglaterra ou nos Estados Unidos, eles iriam buscar outros empregos. Em suma, os professores na Finlândia esperam desfrutar de autonomia profissional, prestígio, respeito e confiança em seu trabalho. Em primeiro lugar, as condições de trabalho e um ambiente profissional moral são o que efetivamente os jovens finlandeses levam em consideração na hora de decidir se eles vão seguir a carreira docente ou procurar trabalho em outro campo (Sahlberg, 2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.,p. 101, grifo nosso).
A avaliação dos professores na Finlândia é conduzida por seus próprios pares de forma não estruturada. Ou seja, não há processo formal, pois, como o trabalho docente se realiza em bases cooperativas, em equipes organicamente atuantes, todos são responsáveis pelo desempenho de cada um, visto que a autonomia que desfrutam corresponde ao empenho não somente em suas atribuições de docência, mas também no funcionamento de suas escolas como um todo. Ante a identificação de qualquer deficiência no desempenho de algum educador, este é auxiliado por toda a equipe, de forma respeitosa e solidária, a fim de que supere sua dificuldade, quase sempre mediante treinamento com vistas a solucionar a carência. Basicamente, o valor fundamental que permeia todo o sistema educacional finlandês é a confiança entre seus membros, alicerçada no rígido padrão de seleção profissional e na elevada qualidade da formação pedagógica e ética de seus quadros.
A responsabilização educacional no contexto educativo finlandês preserva e aumenta a confiança entre os professores, alunos, dirigentes escolares e autoridades, envolvendo todos no processo e oferecendo-lhes um forte senso de responsabilidade profissional e de iniciativa. A responsabilidade compartilhada para com o ensino e a aprendizagem caracteriza como a prestação de contas nessa área é organizada na Finlândia. Pais, alunos e professores preferem uma metodologia inteligente, que permita às escolas manter o foco na aprendizagem e possibilite maior grau de liberdade no planejamento do currículo, em comparação com a cultura de testes externos padronizados que prevalece em outras nações (Sahlberg, 2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011., p. 154).
Ainda segundo Sahlberg (2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.), as autoridades dessa área e os pais entendem que a educação é um processo revestido de elevada complexidade para ser mensurado e avaliado por parâmetros meramente quantitativos. Porquanto, no sistema educacional daquela nação, o princípio operativo existente é o de que a qualidade é definida pela mútua interação entre escolas e alunos, juntamente com os pais.
Outra característica do modelo educacional finlandês que contribui decisivamente para a eficácia e a fluidez do sistema consiste na descentralização do poder de decisão para as instâncias locais, a saber, os municípios e as escolas, que passam a se responsabilizar pelo planejamento do currículo, pela implementação e pela avaliação da política educacional a nível local. Trata-se de notável autonomia administrativa, pedagógica e financeira, já que, de acordo com Hautamäki et al.(2008Hautamäki, J. Harjunen et al. PISA 06 Finland. Analyses, reflections and explanations. Helsinki: Finnish Ministry of Education, 2008. ), em 68,1% das escolas, um professor-diretor, com as autoridades educacionais locais, formula o orçamento daquelas instituições, percentual que é apenas de 35,1% nos países da OCDE.
Segundo ainda aqueles autores, com a extinção da inspeção nacional de material didático ocorrida no início dos anos 1990, todas as escolas e seus professores passaram a escolher os livros a serem utilizados, o que ocorre em apenas 83,5% dos países da mencionada organização multilateral, acrescentando ainda:
A cultura de confiança [predominante naquela sociedade] significa que as autoridades da área de educação e ensino de nível nacional e os políticos acreditam que os professores, juntamente com os diretores, os reitores e os pais, sabem como fornecer o melhor ensino possível para crianças e jovens em um determinado nível. Além disso, os pais confiam nos professores (Hautamäki et al., 2008Hautamäki, J. Harjunen et al. PISA 06 Finland. Analyses, reflections and explanations. Helsinki: Finnish Ministry of Education, 2008. , p. 87).
Por serem educados para serem profissionais autônomos e reflexivos, aos docentes da Finlândia não cabe apenas implementar localmente medidas determinadas em uma instância nacional central, como acontece no modelo corporativo global de educação, mas sim participar efetivamente dos processos decisórios, o que constitui mais um aspecto no qual se manifestam as maiores maturidade e consistência do modelo educacional praticado no país nórdico.
IGUALDADE DE OPORTUNIDADES COMO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DO SISTEMA EDUCACIONAL FINLANDÊS
Provavelmente, a característica mais destoante do sistema educacional finlandês em relação ao seu congênere neoliberal, hegemônico no restante do mundo, é o princípio basilar de ensino geral e único obrigatório para todas as crianças, independentemente de suas condições intrínsecas ou extrínsecas.
Sahlberg (2015Sahlberg, P.Finnish lessons 2.0: What can the world learn from educational change in Finland? New York: TeachersCollege, 2015.) esclarece que, na Finlândia, equidade significa ter um sistema de educação socialmente justo e inclusivo, que proporciona a todos a oportunidade de cumprir suas intenções e sonhos por meio da educação, o que transcende o mero acesso universal à escola. Nas palavras do educador:
As pessoas às vezes supõem incorretamente que a equidade na educação significa que a todos os alunos deve ser ensinado o mesmo currículo, ou que aqueles deveriam atingir os mesmos resultados de aprendizagem na escola. Esta foi também uma crença comum na Finlândia por um longo tempo após a reforma da escola que teve por base a igualdade, que foi inicialmente lançada no início dos anos 1970. Em vez disso, a equidade na educação8 8 A partir dos anos 1990, as agências multilaterais envolvidas com a educação, notadamente a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o Banco Mundial e a OCDE, passaram a prescrever a equidade em políticas educacionais, sutilmente utilizando esse substantivo com vistas a elidir a impossibilidade de uma educação estruturada sob os marcos de o sistema do capital prover a genuína igualdade entre os educandos. Observando que ambos os termos são tidos como sinônimos no senso comum, Saviani (2015, p. 12) postula a tese de que “é exatamente o recurso ao conceito de equidade que vem justificar as desigualdades ao permitir a introdução de regras utilitárias de conduta que correspondem à desregulamentação do direito, possibilitando tratamentos diferenciados e ampliando em escala sem precedentes a margem de arbítrio dos que detêm o poder de decisão”, constatando que, para aquelas agências internacionais, a equidade consiste na tentativa de se conciliar o mérito e a recompensa. Entende-se a preferência por aquele termo, em detrimento de igualdade, por este conter em si, intrinsecamente, o caráter ético-moral que reconhece que todos os homens têm os mesmos direitos fundamentais e lhes confere mínima dignidade, o que não pode ser cumprido pelo sistema sociometabólico capitalista. significa que todos os alunos devem ter acesso à educação de alta qualidade, independentemente do local onde vivam, de quem seus pais possam ser, ou do que a escola que eles frequentaram. Neste sentido, a equidade garante que as diferenças em resultados educacionais não são resultado de diferenças de riqueza, renda, poder ou posses, em outras palavras, do background familiar (Sahlberg, 2015Sahlberg, P.Finnish lessons 2.0: What can the world learn from educational change in Finland? New York: TeachersCollege, 2015., p. 75).
Conhecido como Peruskoulu e implantado no início da década de 1970, desde então esse princípio estrutura o ensino básico naquele país, no qual todos os estudantes aprendem juntos em escolas gerais (comprehensive schools9 9 Tipo de escola no qual a admissão é universal, e não baseada em critérios de aptidão ou nos resultados acadêmicos. Guarda um paralelo com a “escola unitária”, propugnada por Gramsci (2006). ). Sahlberg (2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011., p. 51) tece as linhas gerais da ideia:
A idéia central do Peruskoulu [...] era fundir os existentes liceus, escolas cívicas e escolas primárias em um abrangente ciclo básico de 9 anos a ser cursado em escolas municipais. Isso significava que a separação dos alunos após 4 anos de ensino primário em dois tipos de escolas diferentes (gramar e civic schools10 10 As primeiras ministravam um ensino geral, de caráter mais humanístico, enquanto as segundas focavam as bases da preparação para o mercado de trabalho. ) chegaria ao fim. Todos os alunos, independentemente do seu domicílio, antecedentes socioeconômicos ou interesses, cursariam o mesmo curso básico de 9 anos de duração, em escolas administradas por autoridades locais de educação. Sua implementação foi revolucionária.
Como era de se esperar, os críticos do novo sistema sustentavam que não era possível ter as mesmas expectativas educacionais de crianças que vinham de diferentes ambientes sociais e intelectuais e que o futuro da Finlândia como uma nação industrial desenvolvida estava em risco, porque o desempenho global da educação nacional teria de ser ajustado para baixo a fim de acomodar os alunos menos talentosos. A despeito de serem minoritários naquela sociedade, permeada por amplo consenso cultural e político sobre as linhas fundamentais de seu sistema educacional (OCDE, 2007Organização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico(OCDE).The Finnish success in PISA: and some reasons behind it 2. PISA 2003. Paris: OECD , 2007.), esses segmentos somente arrefeceram seu ímpeto particularista e “meritocrático” em 2001, com a divulgação dos resultados dos primeiros testes internacionais do PISA, os quais sinalizaram que o firme compromisso com o princípio da equidade, estabelecido no início das reformas, levaria a frutos consistentes.
Restou claro que o êxito adveio precisamente da opção ético-política de não procurar criar pequenos gênios, mas de levantar o desempenho de cada criança, indistintamente, ou seja, elevar o desempenho nacional em termos de aprendizagem apoiando todos os educandos, e não apenas uma minoria privilegiada, como ocorre no modelo corporativo global de educação, o qual segrega os alunos em turmas de acordo com seu desempenho anterior ou esperado11 11 Nesse modelo educacional, de cunho dualista, um dos elementos da estratégia operacional e mercadológica das escolas privadas presente notadamente nas destinadas à pequena burguesia (visto que a burguesia opta majoritariamente pelo ensino no exterior) consiste em concentrar os melhores alunos em “turmas especiais”, principalmente com vistas à preparação para exames de seleção para ingresso em cursos superiores de elevado prestígio social. .
Como reflexo da adoção do princípio da equidade, mais de 99% dos estudantes da faixa etária ideal na Finlândia concluem com êxito o ensino básico obrigatório; cerca de 95% continuam a sua educação em escolas do ensino secundário; 93% dos que o iniciam concluem o ensino secundário, e mais de 60% destes se matriculam no ensino superior. Todo o ensino naquele país, da pré-escola à pós-graduação, é completamente gratuito para todos os estudantes12 12 O que não significa que inexistam escolas privadas naquele país. Conhecidas como “independentes”, a maioria delas é gratuita e totalmente financiada pelo Estado, por isso sujeita ao seu controle no que respeita à aplicação legal dos recursos públicos. Uma ínfima parcela delas cobra mensalidade (não recebe verba pública). Apenas 2,4% do gasto nacional com instituições educacionais (em todos os níveis) vem de fontes privadas (OCDE, 2014a). (Sahlberg, 2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.).
No que se refere ao ensino superior, chama a atenção o fato de o finlandês ser um dos mais equitativos do mundo. O Instituto Estratégico de Ensino Superior, baseado em Toronto, Canadá, compara equidade e questões relacionadas à igualdade no ensino superior em diferentes países. Seu Ranking Global de Educação Superior (Usher; Medow, 2010Usher, A.; Medow, J. Global higher education rankings 2010: affordability and accessibility in comparative perspective. Toronto: Higher Education Strategy Associates, 2010.) compara a acessibilidade do ensino superior para residentes em 17 países. O estudo apresenta dados de seis indicadores diferentes de acessibilidade financeira13 13 Affordability: qualidade de ser financeiramente possível; habilidade de pagar. e quatro de acessibilidade geral14 14 Accessibility: “De um modo geral, ‘acesso’ é considerado como tendo duas interpretações possíveis [...]. Uma medida (‘acesso Tipo I’) mede o total de número de lugares disponíveis, enquanto a outra (‘acesso Tipo II’) examina a origem social dos alunos. Um tipo de acesso não é geralmente pensado para ser mais importante que o outro; portanto, acreditamos que os indicadores que examinam o ‘Tipo I’ e o ‘Tipo II’ devem ter o mesmo peso” (Usher; Medow, 2010, p. 10, grifos nossos). . O grande vencedor em ambos os critérios em 2010 foi a Finlândia.
Difícil não perceber que, em congruência com o paradigma de política social predominante naquele país, entende-se que as despesas incorridas pelo seu sistema educacional constituem um investimento de inquestionável relevância para toda a sociedade, e não um custo a pesar sobre a economia nacional.
CONSISTENTE FORMAÇÃO DOCENTE DE EXCELÊNCIA, NECESSARIAMENTE VINCULADA À PESQUISA
Em congruência com o padrão de qualidade superior apresentado nas demais dimensões de seu sistema educacional, a formação dos professores finlandeses constitui um dos pilares da excelência e do sucesso do seu modelo de educação.
Desde o fim dos anos 1970, todos os programas de formação docente passaram a funcionar apenas em universidades, e o mestrado tornou-se a habilitação mínima para se ensinar nas escolas daquele país15 15 Optando por uma política de formação de professores antípoda à do sistema educacional finlandês, o paradigma corporativo global de educação privilegia uma formação docente rápida e superficial para um magistério a ser exercido em condições de subordinação pedagógica e responsabilização pelos resultados quantitativos dos alunos medidos nos testes padronizados de alto impacto que grassam naquele modelo educacional. Nos Estados Unidos, o Programa Teach for America recruta recém-formados sem qualquer experiência ou formação docente anterior, “treina-os” em rudimentos pedagógicos por, em média, cinco semanas e, em seguida, os envia para atuar como “instrutores” nas escolas consideradas mais “problemáticas”. No Reino Unido e na Noruega, o Teach First atua de forma similar. Para aprofundamento, conferir Ravitch (2010, 2013), respectivamente, capítulos 9 e 14. . Segundo Uusiauttie Määttä (2013Uusiautti, S.; Määttä, K. Significant trends in the development of Finnish teacher education programs (1860-2010). EducationPolicyAnalysisArchives, Arizona, v. 21, n. 59, p. 1-18, jul. 2013., p. 6):
O propósito era o de fornecer a todo o corpo docente conhecimento da mais alta qualidade possível, com base nas mais recentes pesquisas. Além disso, os professores tinham que estar preparados para seguir e explorar os mais recentes resultados das pesquisas em sua área de ensino. Isto lançou as bases para a ideia de enxergar os professores como pesquisadores no seu campo de trabalho. Esperava-se deles trabalhar com uma mente aberta e crítica e contribuir para o desenvolvimento de sua profissão.
Simultaneamente, o conteúdo científico e os avanços da pesquisa pedagógica começaram a enriquecer o currículo de formação docente, a qual passou a assumir o caráter acadêmico, no sentido de que os professores adotaram, em seu trabalho, perspectiva crítica e analítica, orientada à pesquisa, de modo a balizar sua atuação não somente na sala de aula, mas também nas atividades de planejamento e avaliação escolar e na elaboração de currículos, das quais passaram a participar, juntamente com diretores e autoridades locais de educação, notadamente como corolário da elevação do nível de sua formação profissional e intelectual (Sahlberg, 2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.).
O próprio Banco Mundial, ferrenho defensor, difusor e implementador do modelo corporativo global de educação na periferia do capitalismo, reconhece, em estudo produzido por sua área de pesquisa em educação (Aho; Pitkänen; Sahlberg, 2006Aho, E.; Pitkänen, K.; Sahlberg, P. Policy development and reform principles of basic and secondary education in Finland since 1968. Washington, D.C.: World Bank Education Unit, 2006.(Education Working Paper, Series 2).), que, em comparação com sua correspondente em outros países, a formação docente finlandesa se destaca por sua profundidade e abrangência16 16 Entre estudos acadêmicos que ratificam a proeminência da formação docente finlandesa em âmbito internacional, notadamente por conta da solidez, do equilíbrio e da profundidade de seu currículo, reportar-se a Saari (2009). . Seu equilíbrio entre aprendizagem teórica e prática ajuda os jovens professores a entender os vários métodos de ensino, bem como a dinâmica da correlação entre ensino e aprendizagem.
Com tão elevados expertise e prestígio profissional, nada mais esperado que a motivação leve os docentes a se envolverem nos processos de desenvolvimento educacional em suas próprias escolas, como também em projetos nacionais e internacionais. Além disso, os educadores continuam espontaneamente a aprimorar seus próprios conhecimentos e habilidades profissionais, considerando o apoio que recebem do Estado nesse âmbito como um direito, e não como uma obrigação, como ocorre em sistemas educacionais prescritivos baseados na responsabilização docente como justificativa para reformas neoliberais.
Outra organização multilateral, a OCDE, em documento setorial intitulado “Atores fortes e reformadores de sucesso na educação. Lições para a Coreia” (OCDE, 2014cOrganização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico(OCDE).Strong performers and successful reformers in education. Lessons from PISA for Korea. Paris: OECD , 2014c., p. 175), salienta como a Finlândia criou um círculo virtuoso em torno da valorização de seus professores:
Status elevado e excelentes condições de trabalho, turmas pequenas, o apoio adequado para os conselheiros e professores de alunos com necessidades especiais, uma voz ativa nas decisões da escola, os baixos níveis de problemas de disciplina, níveis elevados de autonomia profissional; tudo isso atrai um grande número de candidatos, suscitando um altamente seletivo e intenso programa de formação docente. Isto, por sua vez, leva ao êxito logo nos anos iniciais da docência, à relativa estabilidade dessa força de trabalho e ao sucesso no ensino em geral (dos quais os resultados do PISA são apenas um exemplo).
Anuímos ao entendimento de Sahlberg (2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.) quando esse autor assevera que o elevado status profissional dos professores na sociedade finlandesa é um fenômeno cultural, mas que sua habilidade teórica e pedagógica em sala de aula e seu envolvimento entusiasmado e contagiante nas atividades colaborativas desenvolvidas em redes de comunidades profissionais têm raízes no próprio modelo de formação docente, sistematicamente delineado e implementado desde fins da década de 1970, bem como nos valores e na base ética e epistemológica que norteiam o sistema. Em outras palavras, a opção política no sentido de investir pesadamente na formação do corpo docente nacional foi claramente assumida e efetivamente adotada por aquela sociedade.
MENOS SIGNIFICA MAIS
O caráter paradoxal do modelo educacional finlandês, vis-à-vis ao paradigma neoliberal dominante nessa área, manifesta-se notadamente em suas opções principiológicas e metodológicas que privilegiam a consistência e a qualidade dos processos formativos, em vez da busca imediatista por indicadores quantitativos por meio de esforços geralmente descontínuos, nitidamente descoordenados entre si e ineficazes do ponto de vista pedagógico, modus operandi característico do modelo corporativo global de educação.
Na concepção educacional praticada por aquele país nórdico, um incremento na carga horária de aulas com o objetivo de compensar o nível deficiente de aprendizagem, excedendo o número razoável de horas, que equilibra motivação, empenho e disciplina do educando, com vistas à consistente fixação do conhecimento pretendido, gera efeito contrário ao que se pretende, entendendo-se que longas e intensivas jornadas de aula sem intervalos apropriados levam à fadiga, e não à maturação do aprendizado, a qual somente é adquirida em espaços de tempo maiores e como corolário de processos que harmonizem as dimensões físicas, psicológicas e sociais do aluno. O mesmo raciocínio aplica-se, analogamente, à carga de tarefas escolares de casa e de testes padronizados de aprendizagem a que os estudantes são submetidos.
Sahlberg (2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.) chama a atenção para o fato de que nações com os melhores desempenhos nos testes do PISA em todos os domínios cognitivos (Finlândia, Coreia do Sul e Japão, por exemplo) dedicam menos horas para a instrução formal em sala de aula, o que faz com que os alunos desses sistemas educacionais frequentem em média dois anos a menos de escolarização formal pré-ensino superior do que seus pares em outros países com políticas educacionais opostas. Essa diferença é reforçada mais ainda pelo fato de o ensino básico obrigatório na Finlândia iniciar-se apenas aos 7 anos de idade, e não aos 5, como ocorre na maioria dos outros Estados.
Outra forma de observar o referido paradoxo seria examinar a distribuição da carga horária de trabalho dos professores nos diversos sistemas educacionais nacionais, entre horas de efetiva instrução em sala de aula e horas nas demais atividades atinentes à docência. De acordo com Sahlberg (2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.), entre a 6.ª e a 8.ª série do ensino básico, os professores finlandeses ministram aproximadamente 600 horas anuais de aula, a menor carga horária entre os países da OCDE, ao passo que, consoante a essa organização, nos Estados Unidos o tempo total anual médio de docentes em sala de aula nas mesmas séries é de 1.080 horas17 17 Apesar de a OCDE não disponibilizar dados precisos sobre essa dimensão do trabalho docente no Canadá, Sahlberg (2011) estima que os professores desse país devam ensinar cerca de 900 horas por ano. .
O paradoxo qualidade versus quantidade manifesta-se da mesma forma na questão da prescrição de tarefas escolares de casa para os alunos. Mais uma vez, a Finlândia lidera o ranking de sistemas educacionais de países da OCDE, dessa feita com a menor carga horária semanal entre as 38 nações pesquisadas, 2,9 horas, contra 6,1 horas nos Estados Unidos, 6 horas na Austrália e em Hong Kong, 5,5 horas no Canadá e na Bélgica, entre outros países, sendo a média da OCDE de 4,9 horas (OCDE, 2014aOrganização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico(OCDE). Does homework perpetuate inequities in education? PISA in Focus, Paris, n. 46, p. 1-4, Dec. 2014a.).
Importa observar que Cingapura, Hong Kong (China) e Macau (China), países/instâncias cujos estudantes apresentam desempenhos semelhantes aos de seus pares finlandeses nos testes do PISA, o fazem à custa de extenuantes horas de estudo após o horário regular escolar, em instituições privadas de reforço educacional que já constituem uma indústria economicamente bastante significativa naquelas nações. Na contramão dessa concepção, na Finlândia não existe tutoria ou reforço além dos oferecidos na própria escola que o aluno frequenta, quando isso se faz necessário (Sahlberg, 2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.). Os resultados do PISA 2003 já sinalizavam o êxito da opção finlandesa:
Há uma variação considerável entre países quanto ao grau de ansiedade dos estudantes ao lidar com matemática: segundo seu relato, os estudantes da Coréia do Sul, da Espanha, da França, da Itália, do Japão, do México e da Turquia são os mais preocupados, e os menos preocupados são os estudantes da Dinamarca, da Finlândia, da Holanda e da Suécia [...]. Por exemplo, mais de 50% dos estudantes da França e do Japão relatam que ficam muito tensos quando precisam fazer lição de casa de matemática, mas apenas 7% dos estudantes da Finlândia e da Holanda relatam o mesmo. Vale notar que Finlândia e Holanda são dois dos países com melhor desempenho (OCDE, 2005Organização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico(OCDE). Aprendendo para o mundo de amanhã. Primeiros resultados do Pisa 2003. São Paulo: Moderna, 2005., p. 138).
Outra característica do sistema educacional finlandês destoante do modelo corporativo global de educação é a ausência quase completa de testes padronizados externos de rendimento escolar. Seus discentes apenas deparam com testes dessa espécie ao final do ensino básico, na idade de 18 ou 19 anos, com vistas ao ingresso em universidades.
Com efeito, a avaliação escolar no modelo finlandês fundamenta-se em princípios diametralmente opostos aos prevalecentes em seu congênere neoliberal. Neste, a competição entre alunos, escolas e professores perpassa todo o sistema, fazendo com que se ensine e se estude para os testes, os quais se revestem de caráter punitivo para os membros da mencionada tríade que não atingirem o desempenho estabelecido como parâmetro mínimo aceitável. Na direção oposta, Hargreaves, Halász e Pont (2008Hargreaves, A.; Halász, G.; Pont, B. The Finnish approach to system leadership. In: OECD. Improving School Leadership: case studies on system leadership. Paris: OECD, 2008. 2 v., p. 86) identificam na autoavaliação a chave para o contínuo aprimoramento do sistema educacional da Finlândia:
A Finlândia não tem um sistema de testes padronizados ou responsabilização com base em testes. Ela não tem sistemas de escolha competitiva entre as escolas ou de ranqueamento público de suas escolas. Nas palavras de formadores de liderança escolar que conhecemos, “todas as escolas devem ser boas o suficiente e não há nenhuma razão para haver escolas de elite e escolas ruins”. Se as escolas têm alguma dificuldade, o governo não intervém de forma punitiva, mas opta por sistemas autocorretivos de apoio e assistência. Há uma ênfase na avaliação da melhoria, especialmente por meio da autoavaliação das escolas, que, por sua vez, incorporam-se às avaliações nacionais. Através deste sistema de autoavaliação, interação em redes, participação e cooperação, o sistema é capaz de “construir estruturas cooperativas e ouvir os sinais fracos”. O sistema, então, responde a estes por meio de treinamento, apoio e assistência ao município e a outras escolas de maneira serenamente cooperativa, em vez de dramático ou orientado a crises.
Mais uma vez, os resultados do PISA parecem indicar o acerto daquela nação nórdica no que concerne à política avaliativa de seu sistema educacional. Ao analisar os resultados das edições de 2000, 2003, 2006 e 2012 daqueles testes, Sahlberg (2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.) identifica uma tendência de queda de perfomance média em Matemática18 18 Atesta o mencionado autor que a tendência observada incide também, sem mudanças significativas, sobre o desempenho dos mesmos estudantes nas áreas de Ciências e de Leitura naquelas edições do teste PISA. na série em questão, notadamente entre os estudantes dos Estados Unidos, do Reino Unido, da Nova Zelândia, do Japão e de alguns estados do Canadá e da Austrália, precisamente países que optaram (e ainda o fazem, contemporaneamente) por políticas de avaliação educacional fortemente concentradas em responsabilização por intermédio da utilização intensiva de testes externos de alto impacto.
Caminhando em sentido diametralmente oposto, a vitoriosa opção finlandesa, no mesmo período investigado, enfatizou investimento no aperfeiçoamento de professores, desenvolvimento participativo dos currículos, de lideranças e de redes de colaboração entre as escolas, processos nos quais o elemento norteador de toda a filosofia do sistema, que perpassa todas as dimensões nele envolvidas, é a mútua confiança entre todos os participantes.
Embora essa correlação apontada por Sahlberg (2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.) per se não constitua necessariamente prova do fracasso das políticas de reforma educacional focadas em testes externos de alto impacto, evidencia claramente que o recurso a toda a estrutura física, logística e de pessoal envolvida na concepção e operacionalização desses testes padronizados, como instrumentos adequados para levar a cabo a avaliação do sistema educacional, não é uma condição necessária para a melhoria da qualidade da educação, como a própria opção finlandesa, caminhando no sentido drasticamente contrário, o demonstrou. Posiciona-se o pesquisador:
O teste em si não é uma coisa ruim, e eu não sou uma pessoa “antiavaliação”. Os problemas aparecem quando se acentuam em impacto e intensidade e passam a incluir sanções para os professores ou escolas, como consequência do mau desempenho. [...] Os professores tendem a redesenhar o seu ensino de acordo com esses testes, dando maior prioridade aos assuntos que podem cair nos testes e ajustando os métodos de ensino para exercícios repetitivos e memorização de informações, em vez de priorizar o conhecimento crítico. Como não há esses tipos de testes padronizados na Finlândia antes do exame de admissão no final do ensino secundário, o professor pode se concentrar no ensino e aprendizagem sem a perturbação de testes freqüentes (Sahlberg, 2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011., p. 92).
Com efeito, o que se depreende da filosofia da estratégia avaliativa incorporada ao sistema educacional daquele país é que, ao priorizar a criatividade e respeitar e acompanhar o ritmo de aprendizado de cada educando, permite-se que o seu desenvolvimento cognitivo tenha como parâmetro suas próprias características e habilidades, e não padrões uniformes externamente determinados por indicadores estatísticos. Como reconhece a própria OCDE (2011Organização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico(OCDE).Strong performers and successful reformers in education. Lessons from PISA for the United States. Paris: OECD , 2011. Disponívelem: <Disponívelem: http://www.oecd.org/pisa/46623978.pdf
>. Acesso em: 17 fev. 2015.
http://www.oecd.org/pisa/46623978.pdf...
, p. 127):
A prestação de contas no sistema finlandês é construída de baixo para cima. Candidatos a professores são selecionados em parte com base na sua capacidade de transmitir sua crença na missão central da educação pública na Finlândia, que é profundamente moral e humanística, bem como cívica e econômica. A preparação que recebem é projetada para construir um poderoso senso de responsabilidade individual para com a aprendizagem e o bem-estar de todos os alunos, em seus cuidados. [...] O nível de confiança que a comunidade em geral dedica às suas escolas parece engendrar um forte senso de responsabilidade coletiva para o sucesso de todos os alunos.
Por constituir responsabilidade dos professores e das próprias escolas, que desfrutam, como instituições públicas, amplo respeito e confiança da população, como corolário da elevada coesão social e do alto padrão de vida existente naquela formação social, a política finlandesa de avaliação de escolas e de professores destoa radicalmente da “caça às bruxas” que caracteriza sua correspondente no modelo corporativo global de educação, notadamente em sua vertente anglo-saxônica, caracterizada pelo solapamento da confiança e da coesão entre os grupos envolvidos na dinâmica educacional, gerando suspeitas, descrédito e baixo moral entre os educadores.
A seção posterior mostra a atual configuração do sistema educacional finlandês.
COMO SE ESTRUTURA O SISTEMA EDUCACIONAL DA FINLÂNDIA 19 19 Esta seção tem como fonte de referências o sítio eletrônico do Ministério da Educação e Cultura da Finlândia.
Atualmente, o sistema educacional da Finlândia apresenta a seguinte configuração.
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Educação infantil: oferecida até os 6 anos, idade em que as crianças têm direito a um ano de pré-escolaridade (facultativo), a fim de facilitar a transição para o ensino básico.
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Educação básica: cumprida na escola básica comum (comprehensive schools), a partir dos 7 anos de idade, com frequência obrigatória durante nove anos. Embora unificado, nos primeiros seis anos, o ensino é às vezes designado como “educação primária” e, nos últimos três anos, como “primeiro ciclo da educação secundária”, de acordo com a Classificação Internacional Normalizada da Educação20 20 Mais conhecida por sua sigla em língua inglesa International Standard Classification of Education (ISCED). , da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que distingue primary education (educação primária: nível 1), lower secondary education (primeiro ciclo da educação secundária: nível 2) e upper secondary education (segundo ciclo da educação secundária: nível 3.
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Educação secundária: corresponde ao segundo ciclo da educação secundária (nível 3) da mencionada classificação, tendo frequência facultativa e desdobrando-se em duas vias: a geral, escolhida por aqueles que almejam a carreira acadêmica ou de áreas ligadas às humanidades; e a profissional, indicada para os que pretendem trabalhar como técnicos em empresas e organizações privadas em geral. Normalmente cursada em três anos, antecede o ensino superior, ao qual o acesso é obtido, para as universidades, mediante aprovação nos Exames de Matrícula Nacional e, para os centros politécnicos, por meio de comprovação de experiência profissional e de satisfatório desempenho acadêmico.
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Educação superior: dividida em universitária e politécnica, contempla os bacharelados (com duração de três anos para os acadêmicos e de três anos e meio a quatro para os politécnicos), os mestrados (sendo o acadêmico de dois anos e o politécnico de um ano e meio) e os doutorados. O nível de mestrado encerra a instrução formal, que habilita para a plena atuação no magistério não superior, mas há muitos professores e pesquisadores que avançam para o doutorado (Figura 1).
Impressionam os índices de conclusão apresentados pelo sistema educacional do país nórdico: educação básica, 99%; educação secundária geral, 94%; e educação secundária profissional, 90%. No que se refere à frequência e ao acesso, 98% das crianças atendem ao ensino pré-escolar, e 60% dos jovens estudam nas instituições de ensino superior, porcentagem superior à média da OCDE, em torno de 25%.
AVALIAÇÃO GERAL E REPRODUTIBILIDADE DO MODELO EM OUTROS PAÍSES
O sistema de educação da Finlândia tem conseguido manter-se razoavelmente imune à subsunção global dessa esfera a alguns mecanismos capitalistas de mercado, os quais engendram modelos educacionais baseados na competição entre alunos, escolas e nações, com seus infindáveis e extenuantes testes de alto impacto, e na obsessiva culpabilização de professores pelo precário desempenho discente, predominantes na maioria dos Estados nacionais em que os governos se pautam pelo receituário econômico neoliberal. A política educacional finlandesa, cuja maioria dos pressupostos e paradigmas são opostos aos encontrados nos sistemas congêneres daqueles países, articula-se intimamente com as demais políticas sociais que são implementadas por aquele Estado21 21 Paradoxalmente, apenas a partir da década de 1970, a Finlândia começou a implantar o que se convencionou chamar de Estado de Bem-Estar Social, período no qual a maioria dos países centrais, premidos pelo agravamento da crise estrutural do capital, inicia o processo de desmantelamento daquele arranjo sociopolítico e econômico. Adotamos, no presente estudo, uma perspectiva crítica com relação à ideia de uma deliberada institucionalização naqueles países de um “acordo” que, conciliando os interesses antagônicos do capital e do trabalho, propiciasse uma trégua que levasse ao aumento da remuneração deste com base no incremento da produtividade daquele. Entendemos que o que ficou conhecido como welfare state constituiu uma das configurações históricas assumidas pelo capital monopolista com vistas a deslocar (temporal e geograficamente) as contradições intrínsecas ao seu processo de acumulação e reprodução, contando para isso com a “ajuda estranha” do Estado (Mészáros, 2011). Com efeito, todas as políticas públicas adotadas por aqueles países no contexto em questão tiveram como móveis fundamentais a recuperação da taxa média de lucro e o dinamismo do processo de acumulação do capital, comprometidos com as cíclicas depressões econômicas que afligem esse contraditório modo de produção. Naturalmente, os imperativos de legitimidade, visando à implementação menos conflitiva possível do arranjo, trouxeram substanciais melhorias de condições de vida para a aristocracia da classe operária daqueles países, contudo não se pode ignorar que precisamente esses “benefícios” desempenhavam a função de subsidiar a reprodução da força de trabalho, diminuindo o valor desta e, consequentemente, o custo do capital, levantando assim (pelo menos provisoriamente) sua taxa média de lucro. Tendo em vista as limitações decorrentes do escopo do presente trabalho, não é possível abordar outros aspectos que corroborariam nossa perspectiva, entre os quais o fato de que a superexploração da mão de obra nos países periféricos propiciou a base de lucratividade necessária para que o capital fizesse as concessões que permitiram estruturar aquela peculiar configuração, razão pela qual nos reportamos a Gough e Cabrero (1982) e a O’Connor (1979) para aprofundamento. .
Tal constatação enseja as bases para uma desejável e salutar assimilação dos aspectos positivos da experiência finlandesa por outras nações, com vistas ao aperfeiçoamento de seus sistemas educacionais. Importa, não obstante, conciliar satisfatoriamente duas questões frequentemente tratadas de forma dicotômica, obnubilando a complexidade da reprodução das práticas educacionais adotadas pelo país nórdico em outras formações nacionais.
Importa a profícua compreensão de que o êxito do modelo da Finlândia não “caiu do céu como um raio num dia ensolarado”, na feliz metáfora marxiana, mas inseriu-se em um amplo e participativo projeto de nação, conforme anteriormente mencionado. Atalhos “rápidos” e soluções imediatistas de curto prazo, que caracterizam o modus operandi do atual estágio do capitalismo, em sua congenial e obsessiva ânsia de competitividade, não produzem a consistência necessária para solidificar as bases adequadas ao desenvolvimento de um sistema justo e eficaz.
Dessa forma, o êxito do sistema educacional da Finlândia resulta de um conjunto de fatores sociais, culturais, políticos, econômicos e ético-morais que moldaram aquela sociedade nos últimos 70 anos e da disposição consciente e deliberada daquele corpo social, no mesmo período, no sentido de criar as bases para a construção de uma nação moderna, próspera, equânime e justa. A força do consenso nacional em torno dessa missão reflete-se, entre outras manifestações, na sólida permanência e consolidação de seu sistema público e gratuito de ensino desde o início da década de 1970, independentemente do perfil ideológico dos partidos políticos que estiveram no poder em todo o período, bem como na firme resistência às pressões da macroestrutura global capitalista, com vistas a subsumir o sistema de educação daquele país aos mecanismos de reprodução e acumulação dos capitais concentrados nos imensos conglomerados monopólicos financeiros transnacionais22 22 Faz-se mister registrar uma perspectiva analítica alternativa esboçada em Simola e Rinne (2013), na qual os autores acentuam as contingências e convergências históricas como fatores com maior potencial para explicar o êxito do sistema educacional finlandês, descartando categoricamente as racionais e deliberadamente conscientes decisões político-educacionais como promotoras do sucesso de tal modelo educacional, chegando a afirmar que ele ocorreu mesmo a despeito de tais decisões. .
Assim como os esforços no sentido de mecanicamente transportar para outros países e neles tentar reproduzir apenas determinados aspectos que se mostraram eficazes no modelo finlandês resultam, por óbvio, inócuos, a apurada análise desse modelo mostra que a própria construção do sistema educacional se dá no amplo âmbito da formulação e do desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social configurado naquela nação desde o alvorecer do decênio de 1970.
Nessa perspectiva, a educação integra-se a todo o arcabouço de políticas públicas existentes naquele Estado, o qual a apoia e a viabiliza como base indispensável da coesão social e do desenvolvimento socioeconômico daquela nação. Tentar reproduzir um sistema educacional com os valores, fundamentos, princípios e objetivos do modelo finlandês em uma sociedade caracterizada por níveis iníquos de desigualdade social e de miséria, pela ausência de um sistema político minimamente democrático e por elevados patamares de concentração de renda e de poder econômico, indubitavelmente, mostrar-se-á como uma experiência infrutífera e frustrante.
Por outro lado, a relativa peculiaridade de algumas características da sociedade, do Estado e do sistema educacional daquele país não deve servir como pretexto para a desconsideração de seu modelo como um ideal educacional a ser buscado por outras nações, naturalmente por intermédio de um processo de mútua aprendizagem, colaboração e interação entre os participantes dos sistemas em comparação, visando às necessárias adaptações aos seus respectivos contextos sociais, culturais, políticos e econômicos.
Uma das alegações dos que incorrem em tal equívoco tem sido a de que a pequena extensão territorial e a pouco numerosa população da Finlândia estão ausentes na maioria dos outros países, o que inviabilizaria aquele sistema como modelo a ser considerado nas formulações de políticas educacionais de outras nações. O argumento cai por terra quando se atenta para o fato de que, por exemplo, 30 dos 50 estados dos Estados Unidos possuem população em número semelhante ao daquele país nórdico, sabendo-se ainda que aquelas instâncias político-administrativas dispõem, na federação estadunidense, de considerável autonomia administrativa, pedagógica e financeira para formular suas políticas educacionais. Portanto, nenhum fator estrutural, basicamente, lhes impediria de considerar as alternativas adotadas pelo exitoso modelo daquele país do norte europeu.
Outra ideia analogamente equivocada remete à suposta homogeneidade étnica e cultural existente na Finlândia, que não ocorre em grandes países que tentam reformular seus sistemas educacionais. Esse traço tem, progressivamente, nas últimas décadas, perdido relevância e intensidade naquela sociedade, com o recrudescimento dos processos migratórios oriundos principalmente de outros países da Europa. Contudo, o que chama a atenção é que, como nos lembra Sahlberg (2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.), essa mesma homogeneidade relativa pode ser encontrada no Japão, na Coreia do Sul e em Xangai, cujos sistemas educacionais são frequentemente tomados como referência pelos reformadores educacionais adeptos da perspectiva de mercado, o que demonstra sua fragilidade como argumento justificativo da suposta inaplicabilidade da experiência finlandesa em outros países.
Com efeito, para além da difícil reprodução, em outras formações nacionais, de alguns dos fatores anteriormente mencionados do sucesso do sistema educacional da Finlândia, notadamente os de cunho sociocultural, custa-se a acreditar que sociedades afetadas pela desigualdade social - caracterizadas por um ethos individualista e competitivo -, como as nações anglo-saxônicas, consigam assimilar os valores fundamentais que pautaram e balizaram o sucesso da “via finlandesa”.
Não obstante, fica a lição de que existem sistemas educacionais alternativos razoavelmente bem-sucedidos, cujos pressupostos se opõem profundamente ao padrão corporativo global de educação, que podem sinalizar às nações vítimas desse ardil a possibilidade do desenvolvimento cooperativo, com a participação dos mais amplos segmentos da sociedade, de um modelo autônomo compatível com os valores de igualdade, dignidade, fraternidade e solidariedade que pautam os conjuntos sociais que já entenderam e amadureceram a basilar ligação entre equidade e coesão social.
REFERÊNCIAS
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Conforme quadro disponível na página 76 do referido documento.
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Na edição desse ano, o desempenho dos estudantes finlandeses em Matemática teve leve queda em relação às edições anteriores do PISA, situando aquela nação no 12.º lugar. Nos demais domínios cognitivos, Leitura e Ciências, o país manteve os primeiros lugares, ficando em quinto lugar em ambos (OECD, 2014bOrganização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico(OCDE).PISA 2012 results in focus: what 15-year-olds know and what they can do with what they know. Paris: OECD , 2014b. ).
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Sahlberg (2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.) traz dados do desempenho de estudantes finlandeses em diversos testes internacionais desde 1962 (International Association for the Evaluation of Educational Achievement - IEA -, Second International Mathematics Study - SIMS - e Trends in Mathematics and Science Repeat Study - TIMSS). Não obstante seja difícil comparar a aprendizagem de um corpo discente em períodos históricos tão díspares, com realidades socioeconômicas, culturais e políticas tão discrepantes, o autor delineia um convincente quadro no qual mostra a evolução da performance daqueles aprendizes no período de 1970 a 2012. Conforme também Martin, Gregory e Stemler (2000Martin, M. O.; Gregory, K. D.;Stemler;S. E. TIMSS 1999 technical report: IEA’s Repeat of the Third International Mathematics and Science Study at the Eight Grade. Chestnut Hill: Boston College, 2000.) e Robitaille e Garden (1989Robitaille, D. F.; Garden, R. A. The IEA study of mathematics II: contexts and outcomes of school mathematics. Oxford: Pergamon, 1989.).
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Para obter a variação, por país, do desempenho dos estudantes no PISA 2003 em Matemática nas escolas e entre elas, reportar-se à OECD (2004Organização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico(OCDE).First results from PISA 2003. Executive Summary. Paris: OECD , 2004. , p. 19). Enquanto essa variação entre escolas, nos países da OCDE, oscilava em torno de 34%, na Finlândia ficava ao redor de apenas 4% (OECD, 2007Organização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico(OCDE).The Finnish success in PISA: and some reasons behind it 2. PISA 2003. Paris: OECD , 2007.). A mesma fonte pontua que contribui significativamente para isso o caráter não seletivo das escolas gerais (comprehensive schools) naquele país, que constituem a essência do modelo educacional finlandês (peruskoulu), no qual todos os alunos recebem o mesmo provimento educacional básico, em média, até os 16 anos de idade. Conclui indicando que variações mais acentuadas de desempenho entre escolas ocorrem com mais frequência nos sistemas educacionais nacionais nos quais os aprendizes ingressam, no início de sua vida escolar, em diferentes tipos de escolas.
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Segundo Gamoran (1992Gamoran, A. Is ability grouping equitable? Educational Leadership, n. 50, p. 11-17, 1992.), trata-se do artifício pedagógico de separar os educandos por capacidade acadêmica em grupos (para todas as matérias ou somente para algumas) em uma escola, prática corrente nas escolas privadas de classe média alta das grandes cidades brasileiras, que instituem as “turmas especiais” como estratégia de marketing, acirrando a competitividade entre as empresas escolares e entre os discentes.
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A responsabilidade pelas traduções no presente trabalho é de seu autor.
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Salário não é o principal motivo pelo qual os jovens finlandeses escolhem a profissão de professor. Não obstante, a remuneração dos professores efetivos situa-se no mesmo nível, em média, da praticada nos países da OCDE (Sahlberg, 2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.). Importa considerar que o Estado finlandês provê ampla gama de bens e serviços que contemplam as necessidades materiais básicas de sua população, o que não ocorre na maioria dos países daquela organização. Ademais, ressalta-se que, em conformidade com os valores prevalecentes naquela sociedade, o prestígio, o respeito e o reconhecimento que os docentes desfrutam não poderiam deixar de guardar íntima congruência com sua remuneração profissional.
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A partir dos anos 1990, as agências multilaterais envolvidas com a educação, notadamente a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o Banco Mundial e a OCDE, passaram a prescrever a equidade em políticas educacionais, sutilmente utilizando esse substantivo com vistas a elidir a impossibilidade de uma educação estruturada sob os marcos de o sistema do capital prover a genuína igualdade entre os educandos. Observando que ambos os termos são tidos como sinônimos no senso comum, Saviani (2015Saviani, D. Equidade e qualidade em educação: equidade ou igualdade? In: Saviani, D. História do tempo e tempo da história: estudos de historiografia e história da educação. São Paulo: Autores Associados, 2015. Cap. 2., p. 12) postula a tese de que “é exatamente o recurso ao conceito de equidade que vem justificar as desigualdades ao permitir a introdução de regras utilitárias de conduta que correspondem à desregulamentação do direito, possibilitando tratamentos diferenciados e ampliando em escala sem precedentes a margem de arbítrio dos que detêm o poder de decisão”, constatando que, para aquelas agências internacionais, a equidade consiste na tentativa de se conciliar o mérito e a recompensa. Entende-se a preferência por aquele termo, em detrimento de igualdade, por este conter em si, intrinsecamente, o caráter ético-moral que reconhece que todos os homens têm os mesmos direitos fundamentais e lhes confere mínima dignidade, o que não pode ser cumprido pelo sistema sociometabólico capitalista.
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Tipo de escola no qual a admissão é universal, e não baseada em critérios de aptidão ou nos resultados acadêmicos. Guarda um paralelo com a “escola unitária”, propugnada por Gramsci (2006Robitaille, D. F.; Garden, R. A. The IEA study of mathematics II: contexts and outcomes of school mathematics. Oxford: Pergamon, 1989.).
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As primeiras ministravam um ensino geral, de caráter mais humanístico, enquanto as segundas focavam as bases da preparação para o mercado de trabalho.
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Nesse modelo educacional, de cunho dualista, um dos elementos da estratégia operacional e mercadológica das escolas privadas presente notadamente nas destinadas à pequena burguesia (visto que a burguesia opta majoritariamente pelo ensino no exterior) consiste em concentrar os melhores alunos em “turmas especiais”, principalmente com vistas à preparação para exames de seleção para ingresso em cursos superiores de elevado prestígio social.
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O que não significa que inexistam escolas privadas naquele país. Conhecidas como “independentes”, a maioria delas é gratuita e totalmente financiada pelo Estado, por isso sujeita ao seu controle no que respeita à aplicação legal dos recursos públicos. Uma ínfima parcela delas cobra mensalidade (não recebe verba pública). Apenas 2,4% do gasto nacional com instituições educacionais (em todos os níveis) vem de fontes privadas (OCDE, 2014aOrganização para a Cooperação eo Desenvolvimento Econômico(OCDE). Does homework perpetuate inequities in education? PISA in Focus, Paris, n. 46, p. 1-4, Dec. 2014a.).
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Affordability: qualidade de ser financeiramente possível; habilidade de pagar.
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Accessibility: “De um modo geral, ‘acesso’ é considerado como tendo duas interpretações possíveis [...]. Uma medida (‘acesso Tipo I’) mede o total de número de lugares disponíveis, enquanto a outra (‘acesso Tipo II’) examina a origem social dos alunos. Um tipo de acesso não é geralmente pensado para ser mais importante que o outro; portanto, acreditamos que os indicadores que examinam o ‘Tipo I’ e o ‘Tipo II’ devem ter o mesmo peso” (Usher; Medow, 2010Usher, A.; Medow, J. Global higher education rankings 2010: affordability and accessibility in comparative perspective. Toronto: Higher Education Strategy Associates, 2010., p. 10, grifos nossos).
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Optando por uma política de formação de professores antípoda à do sistema educacional finlandês, o paradigma corporativo global de educação privilegia uma formação docente rápida e superficial para um magistério a ser exercido em condições de subordinação pedagógica e responsabilização pelos resultados quantitativos dos alunos medidos nos testes padronizados de alto impacto que grassam naquele modelo educacional. Nos Estados Unidos, o Programa Teach for America recruta recém-formados sem qualquer experiência ou formação docente anterior, “treina-os” em rudimentos pedagógicos por, em média, cinco semanas e, em seguida, os envia para atuar como “instrutores” nas escolas consideradas mais “problemáticas”. No Reino Unido e na Noruega, o Teach First atua de forma similar. Para aprofundamento, conferir Ravitch (2010Ravitch, D.The death and life of the great American school system: how testing and choice are undermining education. New York: Basic Books , 2010., 2013Ravitch, D. Reign of error: the hoax of the privatization movement and the danger to America’s public schools. New York: Basic Books, 2013.), respectivamente, capítulos 9 e 14.
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Entre estudos acadêmicos que ratificam a proeminência da formação docente finlandesa em âmbito internacional, notadamente por conta da solidez, do equilíbrio e da profundidade de seu currículo, reportar-se a Saari (2009Saari, S. Leadership and management of education. Evaluation of education at the University of Helsinki 2007-2008. Administrative Publications 58. Helsinki: University of Helsinki, 2009.).
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Apesar de a OCDE não disponibilizar dados precisos sobre essa dimensão do trabalho docente no Canadá, Sahlberg (2011Sahlberg, P. Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? New York: Teachers College, 2011.) estima que os professores desse país devam ensinar cerca de 900 horas por ano.
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Atesta o mencionado autor que a tendência observada incide também, sem mudanças significativas, sobre o desempenho dos mesmos estudantes nas áreas de Ciências e de Leitura naquelas edições do teste PISA.
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Esta seção tem como fonte de referências o sítio eletrônico do Ministério da Educação e Cultura da Finlândia.
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20
Mais conhecida por sua sigla em língua inglesa International Standard Classification of Education (ISCED).
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21 Paradoxalmente, apenas a partir da década de 1970, a Finlândia começou a implantar o que se convencionou chamar de Estado de Bem-Estar Social, período no qual a maioria dos países centrais, premidos pelo agravamento da crise estrutural do capital, inicia o processo de desmantelamento daquele arranjo sociopolítico e econômico. Adotamos, no presente estudo, uma perspectiva crítica com relação à ideia de uma deliberada institucionalização naqueles países de um “acordo” que, conciliando os interesses antagônicos do capital e do trabalho, propiciasse uma trégua que levasse ao aumento da remuneração deste com base no incremento da produtividade daquele. Entendemos que o que ficou conhecido como welfare state constituiu uma das configurações históricas assumidas pelo capital monopolista com vistas a deslocar (temporal e geograficamente) as contradições intrínsecas ao seu processo de acumulação e reprodução, contando para isso com a “ajuda estranha” do Estado (Mészáros, 2011Mészáros, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011.). Com efeito, todas as políticas públicas adotadas por aqueles países no contexto em questão tiveram como móveis fundamentais a recuperação da taxa média de lucro e o dinamismo do processo de acumulação do capital, comprometidos com as cíclicas depressões econômicas que afligem esse contraditório modo de produção. Naturalmente, os imperativos de legitimidade, visando à implementação menos conflitiva possível do arranjo, trouxeram substanciais melhorias de condições de vida para a aristocracia da classe operária daqueles países, contudo não se pode ignorar que precisamente esses “benefícios” desempenhavam a função de subsidiar a reprodução da força de trabalho, diminuindo o valor desta e, consequentemente, o custo do capital, levantando assim (pelo menos provisoriamente) sua taxa média de lucro. Tendo em vista as limitações decorrentes do escopo do presente trabalho, não é possível abordar outros aspectos que corroborariam nossa perspectiva, entre os quais o fato de que a superexploração da mão de obra nos países periféricos propiciou a base de lucratividade necessária para que o capital fizesse as concessões que permitiram estruturar aquela peculiar configuração, razão pela qual nos reportamos a Gough e Cabrero (1982Gough, I.; Cabrero, G. R. Economía política del estado de bienestar. Madri: H. Blume, 1982.) e a O’Connor (1979O’connor, J. The fiscal crisis of the state. New York: TransactionPublishers, 1979.) para aprofundamento.
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Faz-se mister registrar uma perspectiva analítica alternativa esboçada em Simola e Rinne (2013Simola, H.; Rinne, R. Política educativa y contingencia: creencias, estatus y confianza detrás del milagro finlandés de Pisa. Profesorado: Revista de Currículum y Formación de Profesorado, Granada, v. 17, n. 2, p. 171-192, 2013.), na qual os autores acentuam as contingências e convergências históricas como fatores com maior potencial para explicar o êxito do sistema educacional finlandês, descartando categoricamente as racionais e deliberadamente conscientes decisões político-educacionais como promotoras do sucesso de tal modelo educacional, chegando a afirmar que ele ocorreu mesmo a despeito de tais decisões.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2017
Histórico
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Recebido
03 Nov 2015 -
Aceito
22 Fev 2016