RESUMO
Este artigo aborda a educação indígena na educação superior no curso de direito na Universidade Federal de Roraima. Tem como objetivo compreender os desafios enfrentados pelos indígenas ao ingressarem nesse novo ambiente acadêmico integrado pela maioria não indígena. Para isso, o presente texto apresenta a metodologia quanti-qualitativa realizada por meio de análise documental e de conteúdo, como também de rodas de conversas com indígenas estudantes do curso. Como resultado, obteve-se um levantamento de ingresso de discentes indígenas, no período de 2011 a 2019, bem como de todos os auxílios ofertados pela instituição. A instituição vem promovendo o ingresso de indígenas de forma eficaz e também propicia a sua permanência, por meio de diversas formas de ajuda financeira. Quanto às dificuldades reveladas no estudo, identificou-se que as mais recorrentes e que levam aos abandonos do curso são as de ordem financeira, linguagem, informática e preconceito.
PALAVRAS-CHAVE discentes indígenas; ensino superior em direito; Universidade Federal de Roraima
ABSTRACT
This paper addresses indigenous higher education in the Law Program at the Federal University of Roraima (UFRR). It aims to understand the challenges faced by indigenous people when they enter this new academic environment integrated by a majority of non-indigenous people. To this end, this text outlines the quantitative and qualitative methodology carried out through documentary and content analysis, as well as conversations with indigenous students taking the program. As a result, a survey was obtained with data on the entrance of indigenous students, in the period from 2011 to 2019, as well as all the aid offered by the institution. The institution has been promoting the entry of indigenous people in an effective manner and also provides for their permanence through various forms of financial assistance. As for the difficulties revealed in the study, financial, language, and information technology difficulties as well as prejudice were identified as the most recurrent, leading to drop out.
KEYWORDS indigenous students; higher education in Law; Federal University of Roraima
RESUMEN
Este artículo aborda la educación indígena en la educación superior en la carrera de Derecho de la Universidad Federal de Roraima (UFRR). Tiene como objetivo comprender los desafíos que enfrentan los pueblos indígenas cuando ingresan a este nuevo entorno académico integrado por la mayoría no indígena. Para ello, este texto presenta la metodología cuantitativa y cualitativa llevada a cabo a través del análisis documental y de contenido, así como las conversaciones con estudiantes indígenas del curso. Como resultado, se realiza una encuesta de ingreso de estudiantes indígenas, en el período de 2011 a 2019, así como todas las ayudas ofrecidas por la institución. La institución viene promoviendo el ingreso de los indígenas de manera efectiva y también prevé su permanencia, a través de diversas formas de ayuda financiera. En cuanto a las dificultades reveladas en el estudio, se identificó que las más recurrentes y que conducen al abandono son las de carácter financiero, el idioma, las tecnologías de la información y el prejuicio.
PALABRAS CLAVE estudiantes indígenas; educación superior en Derecho; Universidad Federal de Roraima
INTRODUÇÃO
Segundo o mais recente censo realizado, em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há no estado de Roraima 49.637 indígenas,1 os quais residem nas zonas rurais e urbanas dos municípios. Dos que habitam as zonas rurais, alguns migram para as áreas urbanas, buscando alçar novos horizontes fora da comunidade, entre eles, a formação superior.
Atualmente, em Roraima, contamos com três instituições públicas de educação superior, a saber, Universidade Estadual de Roraima (UERR), Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima (IFRR) e Universidade Federal de Roraima (UFRR), sendo na última onde realizamos a pesquisa.
A instituição escolhida oferece um processo seletivo de ingresso diferenciado tanto para cursos específicos para indígenas, ofertados pelo Instituto Insikiran, como para os demais cursos da grade regular. Em razão das diferenças dos cursos voltados para indígenas e não indígenas é que optamos pela investigação com acadêmicos matriculados num curso da grade regular por entendermos que se trata de um ambiente heterogêneo, onde estão latentes as questões interculturais, objetivando compreender os desafios enfrentados por eles ao ingressarem no curso superior de direito na UFRR, isto é, num novo ambiente acadêmico integrado pela maioria não indígena. A escolha deu-se pelo de direito em razão de ele ser considerado um curso elitizado e um dos mais concorridos na universidade. Isso aguçou o interesse em direcionar a pesquisa a ele, a fim de investigar quais os desafios que os discentes enfrentam.
A metodologia deste trabalho orientou-se pela análise documental de um levantamento das políticas públicas disponibilizadas aos indígenas (nacional e da UFRR), por meio da análise de leis e resoluções, bem como dos dados institucionais que colhemos nos departamentos responsáveis. Além disso, realizamos uma roda de conversa com os participantes para subsidiar o estudo. Dessa forma, por meio da pesquisa quanti-qualitativa e da abordagem de análise de conteúdo (Bardin, 2016), realizamos as análises e apresentamos os resultados.
POVOS INDÍGENAS: COMUNIDADES BRASILEIRAS E RORAIMENSES
Conceituar, definir e significar não são tarefas fáceis, ainda mais quando se trata de seres humanos. Entretanto, precisamos partir de definições para explicitar/delimitar o objeto de estudo, como também os participantes. Sendo assim, apresentamos a definição técnica das Nações Unidas, revelada por Luciano (2006, p. 27):
As comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, contando com uma continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à colonização que foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de outros setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações futuras seus territórios ancestrais e sua identidade étnica, como base da sua existência continuada como povos, em conformidade com seus próprios padrões culturais, as instituições sociais e os sistemas jurídicos.
Tal definição é importante para desvelar conceitualmente o que se entende por comunidades e povos indígenas. A saber, podemos perceber que são sociedades muito antigas que já habitavam o Brasil bem antes da chegada dos portugueses. Além disso, essas sociedades permanecem, ao longo do tempo, com suas identidades étnicas e culturais, que se diferem dos demais. Assim sendo, são indivíduos que perpetuam suas tradições de geração em geração, criando sua própria organização social, como demonstra Luciano (2006, p. 210):
Os povos indígenas constituem-se como sociedades altamente organizadas. Suas organizações sociais seguem princípios e orientações cosmológicas e ancestrais fortemente marcadas por funções de subgrupos sociais [...] que articulados entre si conformam a possibilidade de existência do grupo étnico. Cada subgrupo exerce funções primordiais para a existência do grupo como tal, ou seja, cultural e etnicamente distinto dos outros.
Essa organização social própria é mais um ponto que os caracterizam como grupo que, historicamente, sempre foi excluído da hegemonia conservadora, composta de brancos e de pessoas com poder aquisitivo, sendo visto como não civilizado e que em nada contribuía com o país.
Essa exclusão, por parte da sociedade, acarretou a marginalização desse povo e fez que com tivesse que lutar pelos direitos de se inserir na sociedade da qual sempre fez parte, mesmo nunca tendo sido reconhecido.
A Conferência Mundial de Direitos Humanos (Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993, online), em seu parágrafo 11, destaca que:
A Conferência Mundial reconhece a dignidade intrínseca e a incomparável contribuição dos povos indígenas ao desenvolvimento e ao pluralismo da sociedade e reitera firmemente a determinação da comunidade internacional de garantir-lhes o bem-estar econômico, social e cultural e o desfrute dos benefícios ao desenvolvimento sustentável.
Como podemos constatar nesse excerto da Conferência Mundial de Direitos Humanos, celebrada em Viena em 1993, foi consagrada uma parte da Declaração Final ao reconhecimento da importância de garantir o desenvolvimento e o bem-estar desses povos.
POVOS INDÍGENAS DE RORAIMA
Foi às margens do Rio Branco que Roraima se tornou estado em 5 de outubro de 1988. Está situado no extremo norte do país e possui 224,3 km² de extensão territorial. Ele é o estado brasileiro que, em números proporcionais, possui a maior população indígena: 49.637. Dessa população, em 2020, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) apontou a existência de 11 etnias divididas em 32 terras indígenas (TI) regularizadas e mais duas em estudo, o que representa a demarcação de 46% do seu território.
A definição de TI encontra-se no parágrafo primeiro do artigo 231 da Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988, online):
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
As etnias existentes que residem nessas terras são: Makuxí, Wapixana, Jaricuna, Taulipáng, Ingarikó, Waimiri Atroari, Mawayána, Yanomámi, Wai-Wai, Karafawyana e Katuena. Elas são originárias dos povos Karíb e Arawak, os quais se deslocavam entre as diversas fronteiras que circundavam a região Norte do Brasil, as chamadas antigas Guianas:
Com a ocupação dos países europeus neste espaço amazônico, a geopolítica da ilha foi dividida em cinco Guianas: Guiana Espanhola (atualmente Venezuela), Guiana Britânica (Guyana), Guiana Holandesa (Suriname), Guiana Francesa (Departamento Ultramarino da França) e Guiana Portuguesa (Brasil, com parte do território entre os Estados do Amapá e Roraima). (Oliveira e Ifill, 2011, p. 20)
Assim, geograficamente, Roraima estabeleceu-se nessa tríplice fronteira, onde atualmente temos Venezuela, Guiana e Brasil. Os ancestrais das etnias indígenas existentes hoje em Roraima têm como procedência esses povos (Karíb e Arawak), que já habitavam a região, muito antes de Roraima tornar-se estado.
A seguir, abordaremos as políticas públicas para educação indígena existentes no Brasil, analisando as legislações vigentes voltadas a essa população. Assim, elencaremos as políticas de assistência estudantil adotadas pela UFRR para permanência dos alunos (indígenas e não indígenas) na educação superior.
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A EDUCAÇÃO INDÍGENA
Este segundo momento será destinado à análise das políticas públicas educacionais adotadas no Brasil voltadas aos povos indígenas e tem por finalidade atender ao objetivo específico que trata de compreender as estratégias usadas pela UFRR para possibilitar sua permanência e êxito. Ante isso, realizamos um levantamento das legislações relativas, inicialmente, às políticas públicas regulatórias, ou seja, às leis e aos decretos já expedidos no Brasil. Entre elas, destacamos o Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/1973), a CRFB/88, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394/96), a lei n. 12.711/2012 (Lei de cotas), a portaria n. 389/2013 - Ministério da Educação (MEC).
Iniciaremos pela lei n. 6.001/1973 (Brasil, 1973), conhecida como Estatuto do Índio, que tem por finalidade regular a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional. Embora seja datada da década de 1970, ela continua vigente até hoje, tendo sofrido algumas alterações por meio de atualizações, tais como a CRFB/88, o decreto n. 1.775/96, entre outras. Nesse estatuto, estão dispostos 68 artigos que versam sobre as obrigações da União, dos estados e municípios em favor dos direitos indígenas.
A legislação seguinte que versou sobre a temática foi a CRFB/88, que dispôs um título específico intitulado “Índios”, entretanto ele trata exclusivamente de questões territoriais. Concernente à educação, trouxe poucas inovações, merecendo destaque o art. 210:
O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: [...]
§ 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
Esse parágrafo garante o direito a aulas diferenciadas com uso da língua indígena e a um processo de aprendizagem diferenciado, porém cita essa garantia apenas no ensino fundamental e não menciona educação superior indígena em nenhum artigo ao longo do texto constitucional. Tal previsão legal só surge após a edição da lei n. 9.394/96 (Brasil, 1996), na qual a educação superior indígena foi de fato regulamentada, em seu art. 79, que dispõe:
§ 3º No que se refere à educação superior, sem prejuízo de outras ações, o atendimento aos povos indígenas efetivar-se-á, nas universidades públicas e privadas, mediante a oferta de ensino e de assistência estudantil, assim como de estímulo à pesquisa e desenvolvimento de programas especiais.
Vale ressaltar que, embora a LDB seja de 1996, esse artigo foi incluído apenas em 2011 quando houve a edição da lei n. 12.416, de 09 de junho de 2011. A partir daí é que ficou efetivamente assegurado, pela primeira vez no país, o direito em ingressar na educação superior pública e privada. Com isso, gerou-se uma sucessão de novas normas visando ao atendimento dessa garantia legal.
Além desse artigo, ao longo do texto, a lei estabelece inovações importantes na área da educação indígena, tais como a oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos originários, programas de ensino interculturais planejados com as comunidades, desenvolvimento de currículos e programas específicos com conteúdos culturais etc.
Com base nesses novos apontamentos legais, as instituições superiores foram se adequando para promover o acesso em seus cursos de graduação (inicialmente, somente em licenciatura intercultural e, depois, nos demais cursos de graduação) que, até então, tinham pouco espaço no ambiente acadêmico por serem uma classe excluída da hegemonia dominante, ou seja, da classe mais abastada da sociedade, a qual detém o poder econômico e pela qual são norteadas as questões culturais.
Assim, a tão almejada educação superior indígena começou a se tornar uma realidade. Acerca do seu entendimento, apresentamos a acepção de Amado e Brostolin (2011, p. 14):
Educação superior é um mecanismo de fortalecimento das culturas e das identidades dos povos indígenas. A educação superior permite a conquista da efetiva cidadania, pelo direito de acesso aos bens do mundo contemporâneo, sem interveniência e sem intermediação de não índios. Isso significa que a partir disso se formarão profissionais que sejam no mínimo capazes de articular os conhecimentos provenientes, por um lado, das tradições de seus povos, por outro, da tradição ocidental e, ao mesmo tempo, dará ao país a oportunidade de quebrar a visão estereotipada que uma parcela significativa da população brasileira ainda guarda sobre os índios.
Após mais de uma década de debates, a lei n. 12.711 (Brasil, 2012), conhecida como “Lei de cotas”, foi, enfim, publicada em 2012, estabelecendo a obrigatoriedade de novos critérios de distribuição de vagas para as instituições de ensino superior públicas federais. A mais recente atualização foi em 2017, a qual teve sua redação alterada pelo decreto n. 9.034/2017:
II - as vagas de que trata o art. 1º da Lei nº 12.711, de 2012, serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação pertinente, em proporção ao total de vagas, no mínimo, igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade federativa onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (Brasil, 2012, grifo nosso)
Assim, ficou assegurado que pretos, pardos e indígenas oriundos de escolas públicas tenham vagas reservadas para o ingresso em instituições federais, de acordo com a proporção específica de cada estado.
Em maio de 2013, por meio da portaria n. 389/2013 do MEC (Brasil, 2013), foi instituído o Programa de Bolsa Permanência (PBP), que é uma ação do governo federal de concessão de auxílio financeiro a estudantes matriculados em instituições federais de ensino superior em situação de vulnerabilidade socioeconômica e para indígenas e quilombolas. O valor é de R$400,00 (quatrocentos reais) para todos os acadêmicos, entretanto, para indígenas e quilombolas, previu-se a garantia de um valor diferenciado, igual a pelo menos o dobro da bolsa paga aos demais. Sendo assim, atualmente (2019), é de R$900,00 (novecentos reais), e o recurso é pago por meio de um cartão de benefício. Os objetivos do PBP são viabilizar a permanência de estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, especialmente os indígenas e quilombolas, reduzir custos de manutenção de vagas ociosas em decorrência de evasão estudantil, promover a democratização do acesso à educação superior, por meio da adoção de ações complementares de promoção do desempenho acadêmico.
No decorrer dessa análise temporal (1973-2019) da legislação indigenista no Brasil, percebemos que há diversos direitos previstos. Ocorre que, apenas essa disposição legal não garante a efetividade. É preciso que a lei seja aplicada por meio de projetos eficazes, por meio da adesão e integração dos mais variados órgãos governamentais, a fim de que possam se tornar de fato realidade. Nesse percurso, foram surgindo novas demandas e com elas ações afirmativas que visam à garantia dos direitos assegurados legalmente, mas que precisam ser postos efetivamente em prática. Sendo assim, explicitaremos essas políticas.
POLÍTICAS PÚBLICAS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA
A primeira política pública ofertada pela UFRR é logo para o ingresso, no qual o candidato inscreve-se no Processo Seletivo Específico Indígena (PSEI). Após ser aprovado e matriculado na seleção, o aluno possui opções de políticas de assistência estudantil, disponibilizadas pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e Extensão (PRAE).
Além do PBP, já mencionado, a UFRR oferta outros auxílios, podendo o indígena acumulá-los, pois não há restrição de limite de renda para eles. São auxílios e bolsas em diversas áreas, tais como moradia, alimentação, transporte, cultura etc., conforme Quadro 1.
Além dessas bolsas e auxílios, há também outros programas que os discentes podem participar: o Programa de Iniciação Científica (PIC), Programa de Educação Tutorial (PET), Programa Institucional de Bolsa de Incentivo à Docência (PIBID) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Programa de Residência Pedagógica e Programa de Mobilidade Acadêmica.
Somando todos esses auxílios, são ofertadas cerca de 3.000 vagas para acadêmicos regularmente matriculados, lembrando que esses auxílios são acumuláveis, desde que não ultrapasse 1,5 salário mínimo, excetuando-se os indígenas, que podem ultrapassar esse valor. Desse modo, um aluno pode ser beneficiário de mais de um auxílio.
Além desses, há também programas e projetos de extensão desenvolvidos pelo Instituto Insikiran que têm como público-alvo os indígenas. Na investigação, identificamos alguns: programa de Valorização das Línguas e Culturas Macuxi e Wapichana, Insikiran Anna Eserenka, Feira Intercultural do Instituto Insikiran, Programa Indígena: Gestão em Saúde e Meio Ambiente, 1º Mestre Culinário Intercultural Indígena, Pré-Vestibular Indígena, IV Semana dos Povos.
Após esse levantamento das políticas estudantis (bolsas, auxílios e programas), recolhemos dados institucionais com quantitativos, baseados em julho de 2019, e constatamos que na UFRR são beneficiários do PBP 548 indígenas, conforme informações da Diretoria de Extensão (DIREX). Destes, nove são do curso de direito. Além do PBP, há ainda 215 discentes indígenas que também recebem outros auxílios e bolsas, descritos anteriormente. Destes, há somente um aluno de direito que é beneficiário, recebendo o auxílio alimentação.
Por meio desses índices, pudemos perceber que as políticas públicas voltadas para os indígenas na UFRR estão em plena vigência e são válidas. Entretanto, o número de contemplados matriculados no curso objeto do presente estudo é bem ínfimo.
A seguir, abordaremos especificamente o curso de bacharelado em direito, perfazendo um levantamento histórico de seu surgimento no Brasil e em Roraima, bem como realizando a análise do projeto pedagógico do curso (PPC) e das ações desenvolvidas.
O CURSO DE GRADUAÇÃO BACHARELADO EM DIREITO
As primeiras faculdades de direito datam de 1827, em São Paulo e Recife, e desempenham um papel importante na qualificação profissional para o quadro da administração e da política do Brasil. Era o curso mais concorrido na época, como nos revela Romanelli (2006, p. 40):
Para se ter uma ideia da predominância do ensino jurídico sobre os demais ramos, assinale-se que em 1864 nas duas Faculdades de Direito, estavam matriculados 826 alunos, contra 294 em Medicina, 154 em Engenharia (Escola Central) e 109 na Escola Militar e de Aplicação.
Podemos perceber que, desde o início de sua instituição no Brasil, esse curso sempre foi muito concorrido. E, ao longo do tempo, consolidou-se como uma área de estudo sempre muito disputada e elitizada. Quem conseguia acesso a seu estudo era a classe mais privilegiada, de acordo com o apresentado por Rodrigues (1992, p. 18):
A criação dos cursos jurídicos no Brasil, em 1827, foi uma opção política e tinha duas funções básicas: (a) sistematizar a ideologia político-jurídica do liberalismo, com a finalidade de promover a integração ideológica do estado nacional projetado pelas elites; e (b) a formação da burocracia encarregada de operacionalizar esta ideologia, para a gestão do estado nacional.
Em Roraima, a primeira instituição a oferecer o curso de graduação bacharelado em direito foi a UFRR, o qual foi criado pela resolução n. 25/1991 (Universidade Federal de Roraima, 1991) sendo, portanto, um dos cursos pioneiros da instituição, que iniciou suas atividades em 1988. Ele atende de modo especial a uma demanda social local, por meio da oferta de ensino público superior na área jurídica à comunidade roraimense. Tem como modalidade de ensino as aulas presenciais, nos turnos vespertino e noturno, cujo tempo de duração varia de 10 (mínimo) a 16 (máximo) semestres. A nota cinco no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), pontuação máxima a ser atingida na avaliação, revela o prestígio, a excelência e a qualidade do curso no cenário nacional.
No decorrer dos 28 anos de criação do curso de direito, 692 pessoas já se formaram na área, segundo dados do Departamento de Registro e Controle Acadêmico (DERCA). E, em 2019, possuía 260 discentes regularmente matriculados. Nesse ínterim, o curso procurou moldar o seu currículo às características e à vocação natural do estado e da região amazônica, dando ênfase para ramos como direito ambiental, direito agrário, direito internacional, bem como para a temática do direito amazônico, especialmente o direito indígena. Nessa esteira, o curso também buscou aprimorar a vocação latente na formação dos povos locais, que têm buscado profissionalização superior na área do direito, para isso passaram a ser reservadas vagas extras específicas, por meio do PSEI, a partir de 2011, por meio do edital n. 024/2011 da Comissão Permanente de Vestibular (CPV). Ao longo desses oito anos do curso de direito no PSEI, 45 vagas foram disponibilizadas, conforme informações constantes no site da CPV.
No Quadro 2, apresentamos um panorama, de 2011 a 2019, das vagas ofertadas.
Por meio da análise do Quadro II, percebemos que, como os primeiros acadêmicos ingressaram em 2011, e a duração do curso de direito é de cinco anos, era para haver quatro formados em 2016 e mais cinco em 2017. Entretanto, só houve um formado em 2016 e mais um em 2017. Tal estatística nos remete a refletir sobre as causas que levam a esse fato.
Assim, dos 43 indígenas que se matricularam de 2011-2019, apenas 2 concluíram o curso, além disso, no início de 2019, só havia 17 matrículas ativas. Logo, os demais desistiram, trancaram ou foram jubilados. Esse número que retrata a evasão é bastante expressivo, considerando o PPC-Direito, o tempo de curso varia de 10 (mínimo) a 16 (máximo) semestres, isto é, cinco a oito anos. Desconsideramos os ingressantes de 2015, uma vez que completam cinco anos de curso em 2020; os semestres 2020.1 e 2020.2 foram inicialmente suspensos e apenas voltaram em sistema remoto em setembro. Então só completarão os cinco anos em 2021, quando se encerrarão os dois semestres de 2020.
Em breve análise, no mais recente PPC do curso (resolução n. 002/15 - Câmara de Ensino - Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão - CENS/CEPE), identificamos que, das 66 disciplinas ofertadas ao longo de 10 semestres, há só uma disciplina que versa acerca de direito indígena (DIR-003) inserida na matriz curricular.
Ainda no tocante à temática indígena, verificamos que há pouca produção na área, de acordo com consulta realizada no banco de monografias disponíveis na página do curso, tais como “O problema da nacionalidade dos povos indígenas das etnias Macuxi e Wapichana na fronteira entre o Brasil e a Guiana: ausência de documentação, identidade e cidadania”, de Isabele Medeiros de Souza (2018), e “Terra indígena Waimiri Atroari e a BR-174: direitos constitucionais em conflito na Amazônia brasileira à luz da técnica de ponderação”, de Mariana Von Linde Moura (2017).
É nesse cenário que se desenvolveu a pesquisa, buscando investigar quais as dificuldades que os discentes enfrentam para alcançarem a sua formação. Para tanto, no tópico seguinte apresentaremos os procedimentos metodológicos, as análises e os resultados.
CAMINHOS METODOLÓGICOS PERCORRIDOS, ANÁLISES E RESULTADOS
O estudo foi realizado por meio da associação de pesquisa quantitativa e qualitativa, como demonstra Chizzotti (2006, p. 52) na sua obra Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais:
As pesquisas têm sido caracterizadas pelo tipo de dados coletados e pela análise que se fará desses dados:
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quantitativas: preveem a mensuração de variáveis preestabelecidas, procurando verificar e explicar sua influência sobre outras variáveis, mediante a análise da frequência de incidências e de correlações estatísticas. O pesquisador descreve, explica e prediz;
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qualitativas: fundamentam-se em dados coligidos nas interações interpessoais, na coparticipação das situações dos informantes, analisadas a partir da significação que estes dão aos seus atos. O pesquisador participa, compreende e interpreta.
Na distinção de características entre as abordagens, percebemos que a análise dos dados se difere: na quantitativa, o dado é descrito e explicado por meio de índices de ocorrências, ao passo que, na qualitativa, ele tem uma análise mais correlacionada e interpretativa. Para a execução do trabalho, entendemos que a associação de ambas foi adequada por haver maior interação dos dados e, consequentemente, propiciar melhor análise com vista a alcançar os resultados. A pesquisa ocorreu, portanto, por meio da análise de índices institucionais (quantitativa) e de roda de conversa (qualitativa) realizada com os indígenas matriculados no curso de direito.
A roda de conversa foi escolhida por ser um método que consiste na participação coletiva propiciando um debate em que é possível dialogar com os participantes, que se expressam e escutam seus pares e a si mesmos por meio do exercício reflexivo. Permite a partilha de experiências e o desenvolvimento de reflexões acerca das práticas educativas. Para Warschauer (2001, p. 179):
Conversar não só desenvolve a capacidade de argumentação lógica, como, ao propor a presença física do outro, implica as capacidades relacionais, as emoções, o respeito, saber ouvir e falar, aguardar a vez, inserir-se na malha da conversa, enfrentar as diferenças, o esforço de colocar-se no ponto de vista do outro etc.
Dos 17 acadêmicos indígenas do curso de direito com matrícula ativa, até o início de 2019, 6 participaram das conversas, aqui nomeados de participantes (de 1 a 6), a fim de resguardar a identidade.
A pesquisa foi conduzida por meio das rodas de conversa: inicialmente, elas foram presenciais e, em virtude da situação pandêmica, alteradas para virtuais. Para isso, utilizamos a plataforma de conferência de vídeo Zoom, que permitiu a interação em tempo real dos participantes com a pesquisadora. As rodas foram gravadas pelo aplicativo, e, após a finalização, iniciamos o processo de transcrição das respostas de cada participante, de forma individual (cada participante em um formulário próprio), uma vez que “cada pessoa serve-se dos seus próprios meios de expressão para descrever acontecimentos, práticas, crenças, episódios passados, juízos.” (Bardin, 2016, p. 94)
Com base nos dados coletados, organizados e analisados, iniciamos a criação de quadros/tabelas, a fim de visualizarmos melhor o cenário e traçarmos o perfil do aluno. As primeiras características reveladas foram sintetizadas e descritas no Quadro 3. Vale ressaltar que o quadro é um resumo que contempla as características da maioria dos participantes, ou seja, ele foi criado com base no quantitativo maior, e não na unanimidade.
Ao fim dessa primeira análise, podemos, em síntese, expor que a maioria possui idade superior a 29 anos e pertence às etnias Macuxi e Wapichana. Dos 17 estudantes, a maior parte é do sexo masculino, residente em Boa Vista, não é falante da sua língua materna e se autoidentifica indígena. Acerca do perfil traçado, foi possível inferir que eles buscam cursar direito já na fase da vida mais adulta e não logo ao término do ensino médio. Tal fato pode se dar pelo amadurecimento e certeza do que realmente buscam e também pela maior estabilidade que a idade adulta traz. No tocante às etnias majoritárias no curso, elas são também as duas maiores em termos de quantidade populacional no estado: juntas totalizam 43.044, correspondendo a um percentual de 86% do total de indígenas residentes em Roraima. Outro fator relevante é que a localização das comunidades onde habitam seus povos tem fácil acesso à capital Boa Vista, o que facilitaria esse contato com a área urbana e propiciaria a vinda em maior número para estudar na universidade. Outras etnias já não possuem essas características, têm uma população menor e suas comunidades localizam-se em perímetros distantes e de difícil acesso.
Em relação às expectativas e à motivação em morar, estudar e trabalhar fora da comunidade, nas falas expostas pelos participantes, pudemos constatar que as expectativas são de cunho pessoal e coletivo. Eles aspiram à formação, ao emprego e, sobretudo, a dar retorno as suas comunidades. Isso demonstra o espírito de coletividade e união tão característico de seus povos, como também a responsabilidade social como grupo hegemonicamente excluído ao longo dos séculos.
Minha expectativa é continuar estudando se possível uma especialização ou o mestrado, porque eu pretendo atuar em sala de aula como professora também. [...] E eu fico feliz na verdade, porque de alguma forma eu vou poder, em algum momento, dar o retorno, não sei que tipo de retorno ainda, mas eu quero contribuir não só com a minha comunidade, mas com a população indígena geral do estado. (Participante 1, 2020, grifo nosso)
Pretendo sim fazer um mestrado ou doutorado em questões indígenas e voltar para lá, lutar mesmo pelas questões indígenas, que foi o início de tudo. (Participante 2, 2020, grifo nosso)
Após a minha formação, eu pretendo seguir essa minha carreira de concurso, de concurseiro, pretendo fazer um concurso pra delegado, pra magistratura. Eu pretendo atuar nessa área e, quando eu tiver oportunidade, fazer palestras nas comunidades indígenas, se eu puder contribuir. (Participante 5, 2020, grifo nosso)
Relacionando o levantamento das políticas públicas apresentadas anteriormente com as rodas de conversas, obtivemos o Quadro 4 com o quantitativo dos participantes que recebem ou não algum auxílio financeiro da instituição.
Por meio das conversas, detectamos que a maioria recebe a bolsa permanência e que ela auxilia na renda, porém não é suficiente, e, por isso, os alunos precisam buscar outras formas de sustento:
Consegui fazer o cadastro e consegui ser aprovada para receber a bolsa permanência do MEC. [...] Meus pais me ajudam muito, que estão apostando nisso. Eu tenho 2 filhos aí a despesa é maior. Então, meus pais estão sendo os dois grandes patrocinadores nesse projeto [risos]. (Participante 1, 2020, grifo nosso)
Me sustento pela bolsa e pela família. Mas a bolsa ajuda muito, eu acho. (Participante 3, 2020, grifo nosso)
Nessas falas, fica evidente que a bolsa é uma ajuda válida. Ocorre que todos eles necessitam de complementação de renda, seja com apoio da família, emprego ou com outras atividades remuneradas. E isso interfere no rendimento acadêmico, já que trabalhar e estudar, ao mesmo tempo, acaba prejudicando-os:
A questão é, para nós ficarmos aqui, nós temos que trabalhar. Então, assim, eu trabalho e aí estudo, eu não consigo pegar uma grade fechada. Não tem como. Eu tenho que me sustentar aqui, por mais que a gente receba bolsa, mas a bolsa é o aluguel que a gente paga. [...] Por isso, que esse tempo todo eu pego duas, três disciplinas, porque eu tenho que comer e estudar e, para eu fazer isso, eu tenho que pegar poucas disciplinas. (Participante 4, 2020, grifo nosso)
Com o intuito de desvelar as relações aluno-aluno, professor-aluno, indígena-não indígena no curso, destacamos os trechos a seguir:
É um curso muito puxado... Você tem que se dedicar mesmo para acompanhar, isso me surpreendeu, e os estudos são muito individuais. [...] As pessoas estudam muito por si só, não se ajudam entre si. (Participante 1, 2020, grifo nosso)
Na questão da coletividade que há entre os indígenas, eu senti falta disso na primeira faculdade na primeira graduação, então, quando eu entrei aqui no direito, eu já sabia o que me esperava. (Participante 2, 2020, grifo nosso)
Observamos que todos indicam que, de fato, é um curso complexo, que exige muita leitura, estudo e dedicação para conseguir êxito. Outro fator que identificamos que pode interferir nas relações é a questão do individualismo, presente em várias conversas. Entre os discentes indígenas, a falta de coletividade dos demais alunos é um fator de destaque. Essa questão da coletividade eles trazem culturalmente, em virtude da forma de organização social de suas comunidades. Por isso, acabam relacionando-se mais entre si mesmos:
Porque entra os indígenas, a gente se junta, né? Chegou na turma, nós já se [sic] aproximamos. [...] No curso de direito não tem nada, ninguém gosta nem de índio lá, principalmente os filhos dos arrozeiros. Os filhos dos arrozeiros dizem: “Vocês tomaram as terras do meu pai.” [...] “Ah, mas porque vocês não trabalham, porque vocês são preguiçosos, querem terra pra quê?” (Participante 4, 2020, grifo nosso)
Quando vai fazer trabalho, você já vê a reunião daquelas pessoas, daquele grupinho que se faz, que une pra fazer aquele trabalho diferente. E o que sobrar é os que se misturam, que são a gente, que se mistura com quem entrou de forma, como é que se diz, beneficiado pela universidade. (Participante 6, 2020, grifo nosso)
Fica evidente que, nessa formação, há uma discriminação, pois o agrupamento acaba ocorrendo por exclusão, ou seja, os que entraram por cotas acabam se unindo para se relacionarem no ambiente da sala de aula.
Há ainda a relação professor-aluno, que também foi investigada a fim de revelar se ela ajuda ou prejudica o processo de aprendizagem.
Alguns professores não gostavam de assinar [o formulário da bolsa] ou olhavam com mau olhar. Por exemplo, eu paguei uma disciplina, e a professora não assinou nenhuma vez pra mim. Eu conversei com ela um bocado de vezes, e ela ficou me questionando: “Por que tu recebe [sic] essa bolsa? Por que eu tenho que assinar?” Aí eu respondia. Até que uma hora que eu cansei e falei pra ela: “Tudo bem! A senhora não é obrigada a assinar, mas é o certo.” (Participante 3, 2020, grifo nosso)
Até os professores você consegue enxergar nesse sentido de responder com paciência esses grupinhos. Porque a gente não tem isso, a gente não tem um professor que pergunta: “Como é que tá a sua situação?” [...] Não tem esse tipo de preocupação.” (Participante 6, 2020)
Os excertos anteriores revelam que a relação com alguns professores também se apresenta um pouco conflituosa, haja vista que propagam ideias contrárias às cotas, à alimentação/cultura e até ao recebimento de bolsa. E ainda expõem um tratamento parcial por parte dos professores ao responderem de forma diferenciada para certo grupo de estudantes.
É perceptível que a permanência numa instituição de educação superior é muito difícil, já que precisamos considerar as realidades diferentes, sejam linguísticas, culturais, tecnológicas, financeiras etc. Ante isso, os participantes sentem falta desse apoio e fazem apontamentos para mudança desse cenário:
Quando se trata de disciplinas como direito indígena ou antropologia jurídica. Eu sinto que tem essa deficiência para abordar a realidade do nosso estado. Roraima é um estado eminentemente indígena, e aí eu acho que precisa de alguém que conheça a realidade para estar ministrando as aulas. (Participante 1, 2020, grifo nosso)
O participante 1 sugere que algumas disciplinas temáticas fossem ministradas por profissionais que conhecessem de fato a realidade, assim, ao menos nessas disciplinas, os docentes não teceriam comentários preconceituosos. Já o participante 4 utiliza palavras como “cuidado”, “outro olhar” e “acolhimento” para demonstrar o que gostaria de ter dos professores. Um tratamento diferenciado que procurasse entender a realidade e as dificuldades pelas quais passam.
Embora em menor quantidade, há também fragmentos que apontam docentes que se esforçam para manter esse tratamento mais cuidadoso:
Eu tive uma ajuda, né? De uma professora que se dispôs a me orientar de que forma eu tenho que falar, de que forma tenho que se [sic] comportar. (Participante 6, 2020)
O participante 6, por ser falante da língua Wapichana, apresenta dificuldades para se expressar na língua portuguesa, como já relatou em outras passagens. Entretanto, revela que contou com a ajuda de uma professora para conseguir se expressar melhor durante as apresentações em sala de aula.
Finalmente, abordaremos a questão: “quais os desafios enfrentados pelos indígenas ao ingressarem no curso superior de direito na UFRR, num novo ambiente acadêmico integrado pela maioria não indígena?”
Para analisar os desafios, utilizaremos as categorias “alimentação”, “informática”, “língua”, “financeiro/trabalho”, “abandono” e “preconceito”, que foram as mais citadas nas rodas de conversas.
Alimentação apareceu em várias falas dos participantes como sendo uma das dificuldades de adaptação na capital, como também uma questão de preconceito, pelo não respeito aos hábitos alimentares:
Não sei se o participante 3 já comeu rã. A gente já comeu rã, calango, macaco... a fome é que manda, Sandra, é a fome que manda. [...] Eu não aguento passar o dia todinho comendo salgadinho e refrigerante, eu quero comer peixe, quero comer paca, cotia, anta, eu quero uma caçada, uma carne de sol, essas coisas, entendeu? E, quando você fala, as pessoas te olham diferente, então foi algo que eu aprendi a não expor muito, porque realmente para quem não conhece acaba te julgando também. (Participante 4, 2020, grifo nosso)
No quesito alimentação, fica claro que a oferta e o tipo da comida na comunidade são bem diferentes da capital. Eles preferem comer carne de caça a alimentos industrializados, como salgadinhos e refrigerantes. Porém, os fragmentos destacados revelam certa inibição em externar tal preferência: “não pode dizer que já comeu jacaré, senão vai ser preso” e “eu aprendi a não expor muito... acaba te julgando”. Nesse trecho, percebemos que eles se retraem quanto a demonstrar seus gostos alimentares na cidade, pois sabem que as pessoas não vão entender e ainda vão julgar.
Outra parte que nos chamou atenção “é a fome que manda”, na qual o participante 4 relata que, na comunidade, não há muita escolha. Eles vão à caça e o que conseguirem vira a refeição, não importando qual animal seja, conforme complementa:
Nos indígenas não é crime ambiental. É pra matar a fome, é diferente, entendeu? Nesse sentido, quando você fala, se você chegar na comunidade, isso é normal. Agora, quando você se expõe dentro de uma sala de aula numa universidade, é um escândalo: “você comer onça, cobra...?” [...]. Você já sofre preconceito por seu índio e ainda vai te chamar de índio seboso, porque tu come [sic] caça, né? Aí fica complicado. (Participante 4, 2020, grifo nosso)
Essa rotina alimentar é perfeitamente normal para eles, mas, nos centros urbanos, é visto com um olhar de surpresa e até de preconceito, por não compreendermos a realidade das comunidades.
Na categoria “informática”, que engloba as diversas tecnologias que atualmente são imprescindíveis na educação superior, detectamos outra grande dificuldade com a qual eles se deparam na universidade.
Inclusive não são todos que possuem tecnologia, que têm acesso à tecnologia. (Participante 4, 2020)
Nós não temos as ferramentas que o pessoal daqui tem que é o mundo virtual, digital, informatizado. Nós não temos lá. [...] Eu nunca tinha feito um curso de informática, não tinha acesso a essas tecnologias que hoje têm na universidade, né? Pra mim, a maior dificuldade foi essa. (Participante 5, 2020, grifo nosso)
“O mundo virtual”, como se refere o participante 5 às tecnologias que hoje o estudante precisa ter acesso para poder estudar, não está ao alcance dos indígenas. Esse alcance se dá tanto pela questão econômica, pois é preciso ter equipamentos (computador, tablet, celular, impressora etc), acesso à internet de qualidade, como pelo manuseio dessas ferramentas. Essa realidade se encontra bem distante, haja vista que não tiveram contato com tais ferramentas na comunidade. Com isso, torna-se, assim, mais um desafio a ser superado.
A categoria “língua” será analisada pelo ponto de vista da dificuldade que ela gera, fazendo-se presente na vida acadêmica.
Nós não temos um linguajar mais apurado como eles. Tanto que têm palavras que a gente fala que eles perguntam: “O que você falou? Eu não conheço essa palavra.” Então, é complicado. [...] É uma língua mais regional que não é aceita no ambiente acadêmico, principalmente no curso de direito. (Participante 4, 2020, grifo nosso)
A gente não aprendeu falar, isso que é a verdade, a língua portuguesa. [...] Então, eu acho que é a língua, o comportamento, a timidez, tudo isso influencia. Em geral, você pegando, é a linguagem mesmo. Você está se informando todo tempo, lendo novas palavras pra poder tá junto e tá inserido dentro do ambiente que é esperado, que é do direito. (Participante 6, 2020, grifo nosso)
Nesses depoimentos, percebemos que a linguagem, ou seja, a forma de falar do indígena tem suas particularidades. Ante isso, eles precisam alcançar o linguajar mais culto/formal, a fim de se inserirem no curso e, de certa forma, serem aceitos. O participante 6 descreve que a sua timidez também é um desafio a ser vencido, juntamente com a língua.
O terceiro desafio elencado diz respeito a questões financeiras. Essa categoria esteve presente em todas as falas dos participantes e já foi um pouco discutida quando tratamos das bolsas e auxílios da UFRR. Porém, neste momento, abordaremos como e quanto trabalho e finanças interferem nos estudos. Para isso, elaboramos o Quadro 5 para visualizar a situação empregatícia dos participantes.Nas conversas, identificamos que a maioria, quatro dos participantes, concilia trabalho e estudos por necessidade financeira, posto que somente a bolsa não é suficiente para o sustento na universidade. Tal associação dessas atividades prejudica o desenvolvimento do curso, como vemos:
A primeira dificuldade foi a financeira, porque eu deixei de atuar em sala de aula, porque eu não ia conseguir conciliar, eu até tentei conciliar a minha vida de professora na comunidade e tentava vir para as aulas. Mas assim era muita loucura ficar lá dando aula até 16h00, 16h30, dirigia até aqui para ter aula das 18h00, mas eu sempre chegava atrasada. [...] Atualmente eu optei por não estar trabalhando, mas eu sou professora. Aí deixei de ser professora para investir no curso de direito. (Participante 1, 2020, grifo nosso)
Quando eu entrei na gestão territorial, eu trabalhava, eu era autônomo, trabalhava de diversas coisas: fábrica de gelo, panificadora... A gente ia mudando de acordo com a minha necessidade de estudar. [...] Trabalhar de autônomo é muito difícil. Eu trabalhei em bar, ficava a noite todinha em bar, aí tinha que sair de manhã e ir pra faculdade e estudar. [...] Porque a gente aqui pra se manter tem que pagar o transporte de ida e volta, o aluguel que a gente mora, alimentação, o próprio material, tem que ter um computador, apostila, livro... (Participante 5, 2020)
Primeiro que eu tenho uma dificuldade muito grande financeira [...]. Sempre trabalhei desde pequeno e até hoje eu trabalho, por exemplo, com serviços gerais capinando, roçando, fazendo esses tipos de serviço. (Participante 6, 2020)
Conciliar trabalho e estudo não é tarefa simples, tanto que nem todos conseguem. A participante 1 diz que “optou” por não trabalhar mais como professora, mas, na verdade, não foi uma opção, acabou sendo uma decisão impositiva, uma vez que dar aulas na comunidade e chegar sempre atrasada na UFRR a prejudicava.
Nessa fala, fica claro que o trabalho atrapalha no rendimento dos estudos, haja vista que, para ir às aulas, realizar as leituras, atividades, participar de eventos ou pesquisas, o acadêmico precisa ter tempo para se dedicar, do contrário, acaba se atrasando ou mesmo desistindo, como na maioria dos casos.
Na sociedade capitalista em que estamos inseridos, é notório que o dinheiro reflete em tudo e não seria diferente na educação. Os participantes têm consciência de tal fato:
Eu pude acompanhar um colega meu de medicina que desistiu logo no primeiro semestre do 1º ano, justamente por questão financeira. (Participante 5, 2020, grifo nosso)
Até pra estudar hoje em dia você tem que ter acesso ao material que você tem que ter, dinheiro pra usar um computador, pra comprar melhor livro, melhor apostila, ter acesso aos melhores professores. (Participante 6, 2020, grifo nosso)
Ambos participantes sabem que a questão financeira é necessária para se ter boas condições de estudo, e que o contrário pode levar à desistência.
No quesito abandono, alguns participantes contaram suas próprias experiências e expectativas acerca do assunto:
Eu não tranquei nenhum semestre, mas já pensei em desistir. No terceiro semestre, eu pensei em desistir, porque era uma disciplina que eu estava pagando, aí eu repeti de novo com ele (o professor), aí deu vontade de desistir. (Participante 2, 2020, grifo nosso)
Eu penso em trancar futuramente e estudar, ser um servidor público também. Aí depois eu voltaria pra terminar com mais tranquilidade. [...] Porque, às vezes, quando bate a crise, a gente... Quando chega uma crise econômica, a gente, que somo [sic] autônomo, sente muito na pele. (Participante 6, 2020, grifo nosso)
A questão financeira mais uma vez está presente e, com ela, aparece a dificuldade de acompanhar as aulas. Esse fato pode ser justificado pelos ensinos fundamental e médio dos indígenas que, na sua maioria, foram realizados de forma precária, bem diferente dos estudantes da capital. Isso já foi evidenciado em falas anteriores e é reforçado novamente:
O ensino médio eu tive que desistir no 2º ano. Aí eu fui servir o exército, tive que interromper os meus estudos, fiquei um tempão parado. [...] Finalizei com maior dificuldade na escola, tive até que fazer o EJA [educação de jovens e adultos], no último ano, por conta do meu trabalho, porque eu não conseguia conciliar o trabalho com a minha vida estudantil. E aí finalizei o meu ensino médio e fiquei parado de 2006 até 2014, fiquei estagnado no tempo. (Participante 5, 2020, grifo nosso)
Como o participante 5 falou, eu estudei pouco na comunidade indígena e eu terminei aqui, mas na escola pública, fazendo EJA e tudo mais. Eu não tive o preparo de apresentar um trabalho, tudo isso eu tive que aprender, aprender na prática. Porque os alunos do colégio particular eles têm facilidade de apresentar, porque eles já apresentavam trabalho. A gente não tem isso na comunidade tanto assim. (Participante 6, 2020, grifo nosso)
As passagens anteriores denotam que os dois participantes concluíram o ensino médio pela EJA e que isso pode tê-los prejudicado em relação a quem estudou em escolas públicas na capital e, principalmente, em particulares. Fica claro que eles têm ciência que essas dificuldades de acompanhamento do conteúdo na faculdade vêm da base educacional bem desigual dos demais estudantes.
Já vimos que uma das causas de abandono do estudo está diretamente ligada ao preconceito, próxima categoria a ser analisada.
Na sociedade, o preconceito ainda está presente no dia a dia dos grupos minoritários, sejam negros, pardos, indígenas, deficientes, homossexuais, imigrantes etc. Essa discriminação ocorre nos mais diversos ambientes, às vezes, de forma sutil; outras, mais direta. E isso não seria diferente no espaço acadêmico, segundo os excertos:
Mas as questões não só por eu ser indígena, no caso desses ambientes que eu sofri/senti uma certa discriminação, que foi justamente por eu ser homossexual também, então foi tipo um preconceito duplo. [...] Eu não costumo frequentar muito a biblioteca e o RU [restaurante universitário], justamente por conta disso. (Participante 2, 2020, grifo nosso)
Principalmente no direito, que são pessoas da elite, que têm mais dinheiro, então, a gente sente tanto econômica quanto preconceito, quanto tudo, entendeu? Até quando dividem pra fazer trabalho: “ah não, fazer com caboco não dá!”. É assim que tratam. [...] Lá no restaurante acadêmico, por exemplo, eu estava na fila e tinha um rapaz atrás e disse: “ah, mas aqui não tem farinha”. Tipo, se insinuando, tem que ter a farinha pros indígenas que vão comer aqui, porque eles não comem sem farinha. “Aqui também tem que adaptar pros indígenas”. Aí eu olhei assim para trás, mas eu senti o sarcasmo. Agora eu não sei o problema dele com indígena, por que ele é branco, será? Não sei. (Participante 4, 2020, grifo nosso)
No começo, essa situação, às vezes, me deixava chateado, porque muita gente critica: “ah, a facilitação dos indígenas no curso de direito e medicina que vai ser um mau profissional quando se formar e tal”. E várias críticas... Realmente, e isso deixa a gente chateado, é um tipo de preconceito que eu diria que é um preconceito coletivo, não é direcionado a uma pessoa e sim ao povo indígena. (Participante 5, 2020, grifo nosso)
Não, eu nunca sofri preconceito de forma visível, não. Assim, que tenha falado pra mim, jogado pra me ouvir não. [...] E isso é uma forma de preconceito, você enxerga... Ele existe, é visível, só que, quando tu presta [sic] atenção, começa a enxergar ele, não é assim direcionado pra uma pessoa só. (Participante 6, 2020, grifo nosso)
Esses exemplos de discriminações, visíveis ou veladas, são manifestados em vários momentos das conversas de todos os participantes. Mesmo as que não são específicas ou diretas são percebidas por meio de ironias, críticas, exclusões etc.
A forma como cada um lida com essas situações cotidianas de preconceito varia. Alguns, pelo convívio, revelaram um conformismo ante a circunstância:
Só que ninguém expõe assim, e nós indígenas temos que ir levando, porque, se eu for discutir com cada um que me chamar de “ah, porque a caboquinha, porque aquilo...”, eu vou me desgastar muito. (Participante 4, 2020, grifo nosso)
A gente se depara com todo tipo de violação, até por falta de informação. [...] E até o próprio indígena ele não ele não... é tanta violação que ele já é acostumado praticamente. Ele não percebe que aquilo é uma violação, que tá [sic] ferindo o direito dele. [...] Como a gente aprendeu a conviver com essas violações, durante anos, que se tornou normal. E realmente não é... [...] Eu acho assim que... preconceito sempre vai existir, e não é só com indígena. Mas a gente que faz o direito tem que ter, digamos, a capacidade de receber esse preconceito e a gente, quando possível, contestar ou questionar, deixar mais claro. (Participante 5, 2020, grifo nosso)
Expressões como “ir levando”, “acostumado”, “aprendeu a conviver”, “quando possível” denotam que, para continuar convivendo nos mesmos espaços, é preciso, de certa forma, aceitar os comentários maldosos, brincadeiras, críticas e indiretas. Embora contestar, a todo momento, cause desgaste, como relata o participante 4, em alguns momentos, eles também se impõem para expor os seus pontos de vista:
Os filhos dos arrozeiros dizem: “vocês tomaram as terras do meu pai”. Aí eu digo: “eu não tomei nada, se fosse do seu pai era dele”. “Ah, mas porque vocês não trabalham, porque vocês são preguiçosos, querem terra pra quê?” Eu falei: “primeiro, a terra não é nossa, é da União, porque se fosse nossa a gente podia vender, a gente só tem o usufruto, e se teu pai saiu é porque ele não era dono, estava sendo invasor, então tu tem que ficar quieto!”. Aí ele me deixou em paz. (Participante 4, 2020, grifo nosso)
Se eu puder contra-argumentar em sala de aula, eu sempre contra-argumento. [...] Às vezes, a pessoa tem uma informação, e a gente levando a ela uma informação verdadeira do nosso mundo do indígena, aquela pessoa pode até compreender e tirar aquela visão que ela tem equivocada. (Participante 5, 2020, grifo nosso)
Evidenciamos que o preconceito, disfarçado de falta de informação, foi rebatido com o intuito de impor e levar a verdade, a informação correta sobre a realidade dos povos originários. Essa atitude visa à tentativa de mudar ou ampliar a visão do “desinformado” e, assim, evitar novos comentários inverídicos e ter “paz”, como narra o participante 4. Em síntese, acerca das categorias discutidas, é difícil elencar os desafios por uma ordem de importância ou quantidade de correspondências, haja vista que são questões muito pessoais que variam de acordo com o grau de valor que cada um dá.
É notório que o preconceito foi o desafio mais presente nas conversas obtidas, pois perpassa todas as outras categorias, isto é, preconceito alimentar, preconceito linguístico, preconceito pelas cotas etc.
Como dito, é complexo mensurar e hierarquizar os desafios, pois, individualmente, eles possuem importâncias muito particulares. Mesmo assim, pelas conversas realizadas, podemos inferir que o aspecto econômico-financeiro é o problema mais relatado e apontado como causa de abandonos e dificuldades gerais na vida acadêmica.
Posteriormente, indicamos outros desafios balizados, que se apresentam em patamares aproximados em nível de importância, tais como: língua, alimentação, individualismo, tecnologias e o preconceito que está inserido em todas as áreas.
Após os apontamentos de todas as problemáticas enfrentadas, sugerimos aos acadêmicos a proposição de ideias que pudessem viabilizar melhorias na instituição e, consequentemente, no curso de direito. Assim sendo, surgiram as seguintes proposições: reserva de vagas para os programas de bolsas da universidade, criação de núcleos de apoio aos indígenas na universidade, um acompanhamento mais aproximado entre a instituição e os acadêmicos do PSEI, um engajamento maior por parte dos alunos, para que possam reivindicar as melhorias que almejam, e a criação de um PIC voltado para temáticas indígenas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo geral deste trabalho foi compreender os desafios enfrentados pelos indígenas ao ingressarem no curso superior de direito na UFRR, num novo ambiente acadêmico integrado pela maioria não indígena.
Isso posto, por meio de procedimentos metodológicos definidos previamente, pudemos concretizar a pesquisa de modo que, com os dados estatísticos, associados às rodas de conversas dos participantes, foi possível uma compreensão maior desse universo no qual tivemos que nos inserir profundamente, pois, sem a imersão, não seria possível apreender a abrangência da temática. A consolidação de todos os documentos coletados permitiu extrairmos as informações mais relevantes e, assim, fazermos as inferências necessárias na análise do fenômeno, que é a educação indígena na educação superior.
Todas as colocações dos participantes foram primordiais para confrontarmos com os dados institucionais e as legislações. E pudemos perceber que a educação superior pública em Roraima ainda é bem distante da realidade dos indígenas. Por mais que a UFRR, por meio do PSEI, promova o ingresso, ainda caímos no grande gargalo educacional: a permanência. Por meio dos números, percebemos que a quantidade de abandono e retenção é bem elevada. Além disso, a bolsa permanência é insuficiente para mantê-los na cidade. Com as conversas, avaliamos que isso ocorre pela questão da moradia, alimentação, transporte e gastos no geral, pois na universidade precisam pagar aluguel, locomover-se, alimentar-se etc. Ao passo que, na comunidade, não têm todas essas despesas, porquanto possuem casa própria e a alimentação é basicamente de subsistência e vem, grande parte, do cultivo e da caça.
Pelas estatísticas examinadas, averiguamos que os números revelados apontam para o problema: “quais os desafios dos discentes indígenas?”. Embora seu ingresso na educação superior seja oportunizado pela UFRR, de forma institucionalizada, específica e com várias políticas públicas, o seu êxito não está convalidado. Haja vista que, como nos mostram os indicadores, foram poucos os indígenas que efetivamente conseguiram concluir o curso de direito (apenas 2 dos 43 que ingressaram).
Além disso, há um alto índice de evasão que nos remete à reflexão inicialmente proposta: de que são inúmeros os desafios encarados por eles. Visto que são sujeitos inseridos na sociedade capitalista que trazem consigo um passado histórico eivado de opressão e exploração. E tudo isso também reflete no ambiente acadêmico.
Por fim, visando ao atendimento do objetivo geral desta pesquisa, podemos inferir que a dificuldade financeira é mais manifestada. No entanto, percebemos que há um conjunto de outros problemas que caminham paralelamente, como língua, dificuldade de acompanhamento do conteúdo, alimentação, individualismo, tecnologias, todos esses permeados pelo preconceito, que é um dos grandes desafios a serem superados.
Após perpassar por essas reflexões, pudemos também apontar caminhos, sugerindo propostas, com vistas a melhorar as problemáticas apresentadas, tais como: reserva de vagas para indígenas nos programas de bolsas, criação de um PIC específico, núcleo ou centro etc.
Ao fim, ficam os ensinamentos, apreendidos por meio da escuta, da observação e da interação com a temática e os participantes. Dessa forma, pudemos voltar o olhar não só para a pesquisa acadêmica, mas principalmente para as histórias de vida que se apresentavam. Conhecer a cultura, legislação, realidade, educação e vivência dos indígenas na prática permitiu-nos, de certa forma, colocarmo-nos naquele local de fala deles e imaginar o quão difícil é estar matriculado em uma universidade, longe da sua comunidade e família, enfrentando dificuldades financeiras, de adaptação e até preconceito.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Set 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
17 Mar 2021 -
Aceito
20 Set 2021