RESUMO
Ensaio no qual se apresenta reflexões sobre violência social e suas manifestações na escola. Trata-se de relação que jamais pode ser negligenciada, pois a educação também contém as tendências sociais que reproduzem a violência, a agressividade e a barbárie. Com base em autores da Escola de Frankfurt, discorre-se sobre o tema da violência, destacando seus nexos com o sistema social e econômico, que se reproduz exatamente promovendo a destruição de pessoas, culturas e o meio ambiente. Seguem considerações que evidenciam que tal destrutividade repercute na formação das subjetividades e das disposições de os indivíduos se conformarem ou resistirem a essa tendência. Por fim, aventa-se a possibilidade histórica de concretização da dimensão política da educação como forma de contraposição e enfrentamento da agressividade e violência inerentes às sociedades do capitalismo avançado.
Palavras-chave:
Teoria crítica da sociedade; Violência social; Educação e resistência; Educação política
RESUMEN
Ensayo con reflexiones sobre la violencia social y sus manifestaciones en la escuela. Es una relación que no se puede descuidar nunca, pues la educación también contiene tendencias sociales que reproducen la violencia, la agresión y la barbarie. Con textos de autores de la Escuela de Frankfurt, se discute la violencia, destacando sus vínculos con el sistema social y económico, que reproduce a sí mismo exactamente promoviendo la destrucción de las personas, las culturas y el medio ambiente. Las siguientes son consideraciones que muestran que tal destructividad afecta la formación de subjetividades y la disposición de los individuos a conformarse o resistir. Finalmente, se plantea la posibilidad histórica de concretar la dimensión política de la educación como forma de oponer y confrontar la agresividad y violencia inherentes a las sociedades capitalistas avanzadas.
Palabras clave:
Teoría crítica de la sociedad; Violencia social; Educación y resistencia; Educación política
ABSTRACT
Essay with reflections on social violence and its manifestations at school. It is a relationship that can never be neglected, because education also contains the social tendencies that reproduce violence, aggressiveness, and barbarism. Based on texts by authors from the Frankfurt School, the theme of violence is discussed, highlighting its links with the social and economic system, which is reproduced exactly by promoting the destruction of people, cultures, and environment. Next, considerations are presented that show that such destructiveness affects the formation of subjectivities and the willingness of individuals to conform or resist this tendency. Finally, it discusses the historical possibility of concretizing the political dimension of education as a way of opposing and confronting the aggressiveness and violence inherent to advanced capitalist societies.
Keywords:
Critical theory of society; Social violence; Education and resistance; Political education
Neste ensaio, são apresentadas reflexões acerca da violência social e suas manifestações na escola. Trata-se de relação que jamais pode ser negligenciada, pois a educação também contém as tendências sociais que reproduzem a violência, a agressividade e a barbárie.
Não restam dúvidas de que a educação é um poderoso instrumento de enfrentamento e contraposição à violência institucionalizada e presente nos mais diversos âmbitos da sociedade. No cotidiano doméstico, no trabalho, nos ambientes públicos, nas interações ocorridas nos meios digitais de informação e comunicação, especialmente nas redes sociais, que congregam pessoas e organizações que aparentemente compartilham entre si valores e conteúdos, mas são capazes igualmente de promover a hostilidade contra indivíduos e grupos, enfim, em todos esses espaços são facilmente perceptíveis a violência socializada e as tensões derivadas de tal situação.
Em função da extensão desse fenômeno, que possui um potencial desmedido para a destruição de vidas e laços que proporcionam dinamismo à vida social, a educação ganha ainda mais relevância, pois carrega a esperança de que seja possível, por seu intermédio, a reversão dessa tendência avassaladora. De outra parte, também é de amplo conhecimento o fato de que as instituições educativas, inclusive e principalmente a escola, são palco de práticas de violência especialmente contra pessoas que, por suas características, fogem aos padrões considerados aceitos e normais ou são frágeis, vulneráveis e/ou desviantes (gays, lésbicas, transexuais, gordos, negros, mulheres, pessoas com deficiência, crianças, entre outros), bem como da disseminação da agressividade no enfrentamento de conflitos e problemas de toda ordem entre gestores, professores, alunos e suas famílias — uns em relação aos outros e entre si.
Portanto, existe uma relação, que jamais pode ser negligenciada, entre a violência social e a escolar. Em outras palavras, a segunda é expressão e um modo de manifestação da primeira. Sendo assim, ainda que a educação possa estar voltada ao enfrentamento da violência, da agressividade e da barbárie em todas as suas formas, argumento desenvolvido mais adiante, exatamente pelos nexos existentes entre escola e sociedade, e, para não incorrer em uma postura ingênua, é imprescindível não perder de vista a advertência de Adorno (1995)ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.: se, de um lado, é preciso se contrapor à barbárie, principalmente na escola, mediante a consciência de que sua organização e seu funcionamento podem levar tanto professores quanto alunos a serem violentos, o que torna "[…] possível empreender algo mediante a educação e o esclarecimento." (Adorno, 1995ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995., p. 138), de outro, há de se reconhecer que essa instituição possui mínimas possibilidades de realizar tal intento:
[…] não se deve esquecer que a chave da transformação decisiva reside na sociedade e em sua relação com a escola. Contudo, neste plano, a escola não é apenas objeto. A minha geração vivenciou o retrocesso da humanidade à barbárie, em seu sentido literal, indescritível e verdadeiro. Esta é uma situação em que se revela o fracasso de todas aquelas configurações para as quais vale a escola. Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto. (ibidem, p. 116)
Levando em conta exatamente o quão impotentes são os indivíduos frente à realidade objetiva configurada pelo poder econômico do capital e pelos grupos sociais que dele tiram proveito, o autor afirma que aqueles interessados e militantes da luta contra a violência e a opressão "[…] orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência" (Adorno, 1995ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995., p. 183). De par com esse entendimento, parece fundamental tecer considerações acerca de algumas tendências sociais que constituem os estímulos aos comportamentos e às ações violentas dos indivíduos na escola e fora dela.
Antes disso, apenas um esclarecimento sobre a relação entre meios e fins relativamente à violência. Em mais de uma ocasião, os autores da primeira geração da teoria crítica da sociedade, que servem de referência para as reflexões aqui elaboradas, estabeleceram uma distinção marcante entre as diferentes motivações para a violência. Em linhas gerais, pode-se afirmar que, com a violência, se objetiva, fundamentalmente, poder e dominação, enfim, ela está à serviço da opressão. Mas há a violência que é exatamente a reação a tudo isso e que, portanto, tem como finalidade a resistência e a emancipação daqueles que exercem o primeiro tipo de violência. Na correspondência mantida em 1969, Marcuse (1999aMARCUSE, Herbert. A grande recusa hoje. Petrópolis: Vozes, 1999a., p. 100) enfatiza para Adorno esse ponto: existe a "violência da libertação" que não pode ser interpretada como se faz com a "violência da opressão". De sua parte, Adorno concorda com seu interlocutor. Na conversa que trava com Hellmut Becker, em 1968, que originou o artigo "A educação contra a barbárie", o autor assevera:
Suspeito que a barbárie existe em toda parte em que há uma regressão à violência física primitiva, sem que haja uma vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade, onde exista, portanto, a identificação com a erupção da violência física. Por outro lado, em circunstâncias em que a violência conduz inclusive a situações bem constrangedoras em contextos transparentes para a geração de condições humanas mais dignas, a violência não pode sem mais nem menos ser condenada como barbárie. (Adorno, 1995ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995., p. 159)
Outro autor que propõe essa mesma distinção é Walter Benjamin (2013)BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013.. Em artigo no qual desenvolve uma reflexão sobre direito e violência, o autor indica sua concordância em relação a afirmação de que há momentos em que o emprego da violência é legítimo, justamente porque esta assume o caráter de meio ou de estratégia para aqueles que lutam contra a opressão e contra a tendência presente na sociedade moderna (burguesa) de instaurar o monopólio do direito ao uso da violência, mesmo que isso signifique a manutenção da injustiça. Os exemplos citados são a greve proletária e a violência revolucionária, que objetivam a conquista de uma existência justa, boa e digna.
Reconhece-se que a discussão sobre a relação entre meios e fins da violência requer aprofundamento, o que foge ao escopo deste trabalho, uma vez que é fundamental responder à pergunta acerca de quem deve decidir sobre "[…] a justificação dos meios e a justeza dos fins […]" (Benjamin, 2013BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013., p. 146). Trata-se de uma tarefa histórica: conjugar princípios universais, estabelecidos histórica e politicamente pelos povos e submetidos ao escrutínio da razão, com a experiência, disposições, interesses e necessidades de sociedades, grupos e cidadãos, vivendo em interação uns com os outros. Seja como for, considera-se fundamental a discussão, aqui apenas anunciada, pois em muitas ocasiões os movimentos sociais que atuam contra as formas de opressão e violência são severamente reprimidos e criminalizados exatamente por suas ações serem enquadradas em alguma forma de violência (contra o poder do Estado, a propriedade privada, a ordem pública etc.).
A opção pela teoria crítica se deve à atualidade das análises que seus autores fazem do capitalismo tardio. As temáticas investigadas por eles e por outros estudiosos são variadas e evidenciam a amplitude dessa perspectiva de pensamento. Pode-se mencionar a preocupação em torno dos meios de comunicação, da indústria cultural e dos processos de subjetivação (Antunes e Maia, 2018ANTUNES, Deborah Christina; MAIA, Ari Fernando. Big Data, exploração ubíqua e propaganda dirigida: novas facetas da indústria cultural. Psicologia USP, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 189-199, maio/ago. 2018. https://doi.org/10.1590/0103-656420170156
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; Zuin e Gomes, 2019ZUIN, Antônio Álvaro Soares; GOMES, Luiz Roberto. A formação da subjetividade na Idade Mídia. Revista Eletrônica de Educação, v. 13, n. 2, p. 377-387, maio/ago. 2019. https://doi.org/10.14244/198271993350
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), da violência e do preconceito na educação (Crochick, 2016CROCHÍK, José Leon. Hierarquia, Violência e Bullying Entre Estudantes da Rede Pública do Ensino Fundamental. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 26, n. 65, p. 307-315, set./dez. 2016.) e das interrelações entre cultura, arte e estética (Duarte, 2007DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.). É digno de nota a publicação de alguns dossiês que examinam as problemáticas do século XXI e escrutinam a teoria crítica. É o caso da obra Theodor W. Adorno: A atualidade da crítica, que reúne comunicações de congresso internacional (Souza et al., 2017SOUZA, Ricardo Timm de; CAIRES, Fábio; MESSERSCHMIDT, Marcos; GUADAGNIN, Renata; SAVI NETO, Pedro; SANTOS, Marelo Leandro dos; PERIUS, Oneide. (org.). Theodor W. Adorno: A atualidade da crítica. Porto Alegre: Editora Fi, 2017.). Outras coletâneas são: Dissonância. Dossiê Herbert Marcuse (Dissonância, 2018DISSONÂNCIA. Dossiê Herbert Marcuse, partes 1 e 2. Revista de teoria crítica, Campinas, v. 2, n. 1.1 e 1.2, jun. 2018.); Dissonância. Dossiê Theodor W. Adorno (Dissonância, 2019DISSONÂNCIA. Dossiê Theodor W. Adorno. Revista de teoria crítica, Campinas, v. 3, n. 2, 2019.); e Revista Dialectus. Dossiê Herbert Marcuse (Revista Dialectus, 2019REVISTA DIALECTUS. Dossiê Herbert Marcuse. Revista Dialectus: Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 14, 2019. https://doi.org/10.30611/2019n14
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).
Essa produção reforça que a teoria crítica é uma potente ferramenta de análise das questões atuais (o poder dos meios de comunicação de massa, o recrudescimento do fascismo e do autoritarismo, a influência da tecnologia sobre a subjetivação etc.). De outra parte, há estudiosos que fazem o confronto com outras pujantes perspectivas críticas, como na publicação Dissonância. Dossiê teoria decolonial e teoria crítica (Dissonância, 2020DISSONÂNCIA. Dossiê Teoria decolonial e teoria crítica. Revista de teoria crítica, Campinas, v. 4, 2020.). Estes aproximam os conceitos-chave da teoria crítica não só do tema da decolonialidade, mas também do racismo e do feminismo.
A VIOLÊNCIA E SEUS NEXOS COM O SISTEMA SOCIAL E ECONÔMICO
A violência é inerente ao capitalismo, mas há a especificidade brasileira. Pode-se afirmar que a violência também constituiu a sociabilidade no país. Aqui, não é possível apresentar como tal fenômeno se configurou desde a época colonial; apenas se destaca que o autoritarismo, no Brasil, é um dos elementos que dão sustentação à violência estrutural e institucionalizada. Para nos certificar disso, basta mencionar que, no processo de redemocratização (anos 1980–1990), foram negligenciadas as violações dos direitos humanos cometidas pelos militares (Nascimento, 2022NASCIMENTO, Emerson Oliveira do. Violência política e justiça de transição no Brasil: disputas em torno da memória do passado político recente. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 723-75, abr./jun. 2022.), o que é cada vez mais normalizado. Outro fator, associado ao anterior, é o medo da violência, explorado pela extrema direita (Lima et al., 2020LIMA, Renato Sérgio de; JANNUZZI, Paulo de Martino; MOURA JUNIOR, James F.; ALMEIDA SEGUNDO, Damião S. de. Medo da violência e adesão ao autoritarismo no Brasil: proposta metodológica e resultados em 2017. Opinião pública, Campinas, v. 26, n. 1, p. 34-65, jan./abr., 2020. https://doi.org/10.1590/1807-0191202026134
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), o que impulsiona as tendências autoritárias.
Recorre-se ao livro de Schwarcz (2019)SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. a fim de compreender os nexos entre violência e autoritarismo no Brasil. Segundo a autora, escravidão, racismo, patrimonialismo, corrupção, desigualdade social, sexismo e intolerância são elementos entrelaçados que revelam muito daquilo que é o Brasil no século XXI, visto que todos são problemas e situações ainda não resolvidas. Daí a dificuldade de a democracia, de fato, ser estabelecida e a violência, combatida.
Para a reflexão sobre tendências sociais que constituem os estímulos para a violência, recorre-se a algumas formulações de Herbert Marcuse que auxiliam na compreensão de como a objetividade do capitalismo em seu estágio hodierno, com destaque para a concentração brutal dos meios de produção nas mãos de poderosos conglomerados empresariais e econômicos, a extrema disparidade entre os países desenvolvidos e não desenvolvidos economicamente, com reflexos na desigualdade entre as classes sociais e segmentos sociais distintos (homens e mulheres, brancos e negros, nacionais e imigrantes, executivos e trabalhadores assalariados ou exercendo atividades em situação de precariedade etc.), bem como o não acesso de um grande contingente populacional, em inúmeras nações, às condições mínimas e básicas de vida (alimentação, saúde, educação, habitação e lazer).
Trata-se de noções elaboradas pelo autor com o objetivo de analisar as consequências do desenvolvimento da economia capitalista ao longo de todo o século XX, considerando as duas grandes guerras (1914–1918 e 1939–1945) como fenômenos intrínsecos a esse processo e apontar os elementos que compõem a ideologia da sociedade industrial. Para Marcuse (1969)MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1964/1969., o capitalismo da segunda metade do século XX, quer dizer, o sistema econômico que se desenvolvia e se alimentava do incremento científico e tecnológico e que avançava sobre o âmbito da cultura, tornando seus bens mercadorias e a venda delas um negócio extremamente rentável, tende a produzir a sociedade unidimensional e totalitária. Unidimensional porque as alternativas à ordem estabelecida são impedidas de se desenvolver — inclusive aquelas que nascem no interior dessa mesma ordem,1 1 A exemplo da exploração de outras formas de mobilidade urbana, além do automóvel como meio de transporte individual. o que conduz a imposição e a obrigatoriedade de aceitação conformada do rumo do progresso material preconizado com base em interesses particulares impostos pela ideologia e pela violência; totalitária porque impõe a integração conformista, mesmo nas sociedade ditas democráticas, às tendências sociais dominantes; a oposição, organizada ou não, consciente ou não, ao modo e estilo de vida em conformidade com tais interesses é também violentamente reprimida, seja pelas forças policiais, seja pelo sistema judiciário, seja ainda pela existência de determinadas práticas sociais, inclusive na escola, que empurram para fora do debate político e da vida social aqueles que representam exatamente as alternativas aos padrões consagrados. Exemplos dessa situação são desnecessários; basta apenas mencionar a violência e repressão a que são submetidos os movimentos sociais e determinados grupos de pessoas que expressam, em sua forma de existência, as alternativas que devem ser sufocadas.2 2 Em muitos desses casos, a violência e a repressão podem levar à morte dos transgressores, fato patente e facilmente perceptível numa simples passada de olhos no noticiário diário.
Após essas considerações de caráter mais geral, destaca-se a noção extraída do pensamento de Herbert Marcuse (1999a)MARCUSE, Herbert. A grande recusa hoje. Petrópolis: Vozes, 1999a.: agressividade e destrutividade como consortes inseparáveis do capitalismo avançado. Nos países onde esse sistema econômico se desenvolveu, é possível observar a conjugação de um conjunto de tendências, como a produção da abundância e a melhoria do nível médio de vida da população, mesmo que isso não tenha modificado o quadro de desigualdade social de um país como o Brasil. De outra parte, também se verifica o aumento de pessoas ocupadas em empregos improdutivos, a obsolescência planejada de mercadorias e serviços, a concentração do poder político e econômico, o alto grau de controle social e a manipulação do comportamento dos cidadãos. Toda essa situação, embora tenha proporcionado vantagens materiais, produziu o que Marcuse (1969)MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1964/1969. denomina de fechamento do universo político e da locução.
Temos o aprisionamento e a contenção das forças políticas, com reflexos importantes na vida psíquica e pulsional: os indivíduos sentem-se cada vez mais enclausurados em um estilo de vida do qual não podem escapar sob o risco de deixar de usufruir das conquistas da civilização. Se este é o estado emocional das massas, que experimentam a angústia de reconhecer que não há saídas e o medo de que qualquer movimento contrário ao funcionamento "normal" da sociedade pode ser fatal e se o desenvolvimento econômico sob a égide do capital só é possível mediante o binômio progresso e destruição, com a dominação sobre a natureza, indivíduos e sociedades inteiras sendo alcançada de forma agressiva e violenta, então, verifica-se que, junto com a tendência à destrutividade geral (do capitalismo), surge outra tendência que alimenta e é alimentada pela anterior: a destrutividade psicológica.
[…] nossa sociedade atual caracteriza-se por um predomínio em seus membros individuais de uma estrutura de caráter destrutiva. Porém como podemos falar de tal fenômeno? Como podemos identificar a estrutura de caráter destrutiva em nossa sociedade atual? Gostaria de sugerir que certos eventos simbólicos, questões simbólicas, ações simbólicas, ilustram e iluminam a dimensão profunda da sociedade. Esta é aquela dimensão na qual a sociedade se reproduz na consciência dos indivíduos e do mesmo modo em seu inconsciente. Esta dimensão profunda é um dos fundamentos da manutenção da ordem política e econômica estabelecida da sociedade. […] a estrutura de caráter destrutiva [,] tão proeminente hoje em nossa sociedade, deve ser entendida no contexto da destrutibilidade institucionalizada, característica tanto de assuntos externos quanto internos [aos países]. Essa destrutibilidade institucionalizada é notória, e exemplos disto são fáceis de fornecer. Incluem o constante aumento do orçamento militar às custas do bem-estar social, a proliferação de instalações nucleares, o envenenamento e poluição gerais do meio ambiente, a gritante subordinação dos direitos humanos às exigências da estratégia global e a ameaça de guerra no caso de uma contestação desta estratégia. Essa destruição institucionalizada é tanto aberta como legitimada. Fornece o contexto em que ocorre a reprodução individual da destrutibilidade. (Marcuse, 1999aMARCUSE, Herbert. A grande recusa hoje. Petrópolis: Vozes, 1999a., p. 144-45)
O excerto apresentado é suficiente para indicar, de modo inequívoco, os nexos entre objetividade e subjetividade no que se refere ao modo como a realidade social é produzida. Chama-se a atenção para o fato de que o contexto geral de destrutividade, do qual fala Marcuse (1999a)MARCUSE, Herbert. A grande recusa hoje. Petrópolis: Vozes, 1999a., também parece ser o resultado do modo como os indivíduos lidam com a constante repressão a qual estão submetidos, com o medo da destruição eminente, objetivamente real num mundo permeado de guerras e ameaças ambientais, e com a energia psíquica direcionada à autoconservação e a ilusória e aparente segurança e estabilidade proporcionadas pelo desenvolvimento econômico, pelo progresso material, pelo avanço tecnológico e científico não conseguem dirimir os fatores que produzem tal destrutividade.
Além dessas ameaças à manutenção da vida e da repressão sistemática, há também a distribuição desigual e desiquilibrada da riqueza social e das oportunidades de acesso ao que a civilização produz em termos de bens materiais e culturais. Assim, conjuga-se o interesse egoísta, que visa essencialmente à autopreservação imediata, com a prevalecente tendência do modelo econômico em vigor, a saber: a agressão e a violência promovidas por indivíduos isolados e grupos em posições de poder privilegiadas como meio para se alcançar a satisfação de interesses mesquinhos e privados são combinadas com o caráter predatório, expansionista e imperialista da exploração capitalista dos recursos naturais e humanos; tais indivíduos e grupos são integrados e aumentam suas chances de adaptação aos aparatos social, político e produtivo em detrimento daqueles que, na sociedade de classes, naturalmente têm essa integração e adaptação impedidas — se não a maioria, parcelas significativas das populações de sociedades em que a violência é um de seus elementos constituintes são impedidas e a elas é vedado o acesso às condições mínimas de inserção na ordem econômica e na vida social. Já o capitalismo avançado, para continuar seu desenvolvimento, necessita nutrir-se desse comportamento social agressivo e violento, pois é exatamente por esse meio que a expansão acontece. Por intermédio da crescente exploração do trabalho humano (alienado) e da natureza, garante-se a contínua acumulação e reprodução do capital (concentrado cada vez mais em um número reduzido de empresas, grupos e pessoas).
Entre outros aspectos, essa configuração, descrita resumidamente, explica a existência das tendências de atitude e de comportamentos que podem ser referidos ao individualismo egoísta, à frieza e à indiferença perante o outro e o diferente, bem como o cinismo conformista, aquele que assume a impossibilidade de alterar a ordem das coisas. Para os que sofrem com a má consciência, resta ainda o sentimento de superioridade em relação aos infortunados, o que pode ser aplacado como ações piedosas e caridosas, mas que não alteram em nada a situação aqui analisada; ocorre exatamente o contrário: as formas de caridade religiosa ou cívica reforçam e justificam a hierarquia social resultante da extrema e brutal desigualdade econômica entre as classes e entre os estratos da população.
Ante o exposto, é possível afirmar que a "coesão social" produzida sob essas condições, em que a violência é estimulada e premiada, é permeada de tensões e conflitos que tendem a se tornar explosões irracionais de agressividade de todos contra todos. De um lado, temos formas de controle e repressão bastantes eficazes, com a obrigação de respeito às normas sociais, sob pena de o desviante sofrer terríveis sanções; de outro, há a criminosa licenciosidade em relação a comportamentos irracionais, como os atos de violência contra indivíduos específicos cometidos por pessoas reunidas em grupos ou protegidas pelo anonimato e virtualidade das digitais redes sociais em funcionamento na web.
Não resta dúvida de que todo esse complexo conjunto de fatores produz a deformação psicológica dos indivíduos, fazendo sentido recorrer ao jargão nada simpático e óbvio de que, em sociedades violentas, temos indivíduos violentos. Marcuse (2018MARCUSE, Herbert. Dossiê Herbert Marcuse (ensaios reunidos). Dissonância, Campinas, v. 2, n. 1. 2, jun. 2018., p. 25-26), em ensaio publicado em 1967, aponta as implicações desse processo no qual indivíduo e sociedade tendem a manterem-se em simbiose:
Quanto à manipulação sistemática e controle da psique na sociedade industrial avançada: manipulação e controle para quê e por quem? Além de toda manipulação particular no interesse de certos negócios, políticas e lobbies — o propósito geral objetivo é conciliar o indivíduo com o modo de existência que sua sociedade lhe impõe. […] as necessidades sociais devem tornar-se necessidades individuais, necessidades instintivas. E na medida em que a produtividade desta sociedade exige a produção em massa e consumo de massa, essas necessidades devem ser padronizadas, coordenadas e generalizadas. […] Estas breves observações sugerem a profundidade do ingresso da sociedade na psique, na medida em que a saúde mental, a normalidade, não é a do indivíduo, mas de sua sociedade. Tal harmonia entre o indivíduo e a sociedade seria altamente desejável se a sociedade oferecesse ao indivíduo as condições para a seu desenvolvimento como ser humano de acordo com as possibilidades disponíveis de liberdade, paz e felicidade (ou seja, em acordo com a possível liberação de seus instintos de vida), mas é altamente destrutivo para o indivíduo se essas condições não prevalecem.
Portanto, o aparato político, social e econômico, à medida que exerce controle repressivo e violento sobre a vida privada e pulsional dos indivíduos, motiva mais violência, o que reforça a lógica que alimenta o capitalismo: a exploração irracional de recursos para a garantia egoísta do êxito econômico. Observam-se "[…] as marcas de um ser humano mutilado, que colabora com sua própria repressão, com a contenção do potencial da liberdade individual e social, com a liberação da agressão" (Marcuse, 2018MARCUSE, Herbert. Dossiê Herbert Marcuse (ensaios reunidos). Dissonância, Campinas, v. 2, n. 1. 2, jun. 2018., p. 26). Esses são os termos com base nos quais é possível definir a contradição quase fatal das sociedades do capitalismo avançado: são extremamente racionais, pois produzem e mobilizam os mais elevados recursos materiais (científicos, técnicos e tecnológicos), com potencial de serem utilizados em prol das pessoas e da humanidade, porém, ao mesmo tempo são irracionais, uma vez que o planejamento e o cálculo econômico não são feitos em função das necessidades humanas e da sociedade em geral e porque não estão sob controle dos indivíduos e da coletividade, mas de poderosos grupos econômicos e governos autoritários. As consequências já foram sublinhadas: violência e agressividade generalizada, concentração de renda, desperdício e obsolescência planejada, esgotamento dos recursos naturais, desigualdade social e pobreza extrema ao lado de bolsões admiráveis de riqueza, planejamento deliberado e "racional" da exclusão, da marginalização e do extermínio de pessoas e grupos humanos (especialmente aqueles que são obstáculos à franca reprodução da ordem social e que, com sua existência e resistência, evidenciam os limites e a ilusão do progresso material capitalista no que diz respeito à promoção da justiça social, da igualdade e da liberdade).
Toda essa situação parece ser resultante do modo como a racionalidade econômica e a dominação social convergiram. Se o imperativo da sobrevivência e da autoconservação impõe a integração conformista aos padrões relativos às funções sociais (trabalho, valores, comportamento etc.) como forma de atingir algum grau de segurança e estabilidade e se tal integração não é possível a grandes contingentes populacionais, uma vez que o aumento da riqueza social é proporcional a sua concentração privada, a manutenção do status quo requer expedientes que incrementem o controle sobre as massas. Ainda que seja possível identificar fundamentais formas de resistência nessa avassaladora investida do capital e dos segmentos sociais que tradicionalmente mantêm posições de poder privilegiadas — como as lutas antirracista, anticapital, feminista (contra o machismo e o patriarcado), pelos direitos humanos e sociais, em defesa do meio ambiente, em favor dos povos da floresta, das nações indígenas, entre outros —, está em curso uma racionalidade da dominação que congrega o emprego da tecnologia e o terror.
Quanto à primeira, consolidou-se uma tendência que impõe a adesão, por parte das pessoas, aos desempenhos eficientes no trabalho. Em certa medida, isso indica que a individuação foi reduzida à capacidade de adaptação ao aparato tecnológico em constante evolução. Assim, "[…] as distinções individuais de aptidão, percepção e conhecimento são transformadas em diferentes graus de perícia e treinamento, a serem coordenadas a qualquer momento dentro da estrutura comum dos desempenhos padronizados" (Marcuse, 1999bMARCUSE, Herbert. Tecnologia, guerra e fascismo. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1999b., p. 78). Dessa forma, a racionalidade, surgida do fato de a tecnologia, que pode ser definida como a aplicação deliberada e sistemática do conhecimento científico na produção material (Marx, 1985MARX, Karl. O capital. Coleção Os economistas – v. 1, Livro Primeiro, Tomo 2, Cap. XIII a XXV. São Paulo: Nova Cultural, 1985.), visando ao incremento da produtividade e à acumulação capitalistas, ter constante presença e configurar as relações de trabalho e sociais, modela e conforma a individualidade, não mais desejosa de liberdade e autonomia, mas ansiosa por "eficiência padronizada" e pela habilidade de selecionar os "[…] os meios mais adequados para alcançar uma meta que ele [o indivíduo] não determinou" (Marcuse, 1999bMARCUSE, Herbert. Tecnologia, guerra e fascismo. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1999b., p. 78).
Quanto ao terror e à permanente ameaça, que se tornam uma experiência empírica com a repressão exercida pelos detentores dos poderes político e econômico e com a autointerdição, por parte dos indivíduos, de certas disposições, atitudes e comportamentos em função de evidenciarem os riscos caso se decida pela livre expressão, observa-se a produção do medo, sendo este mais do que um sentimento ou uma sensação, uma vez que envolve as maneiras de se portar, encarar e agir perante o desconhecido e o não idêntico. Essa é mais uma evidência da irracionalidade das sociedades industriais avançadas, com desdobramento na regressão psicológica das massas, e do caráter "racional" de sua irracionalidade, porque extremamente eficiente e eficaz na finalidade da dominação. Sobre isso, mais uma vez recorre-se a Marcuse (1969MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1964/1969., p. 14):
[…] essa sociedade é irracional como um todo. Sua produtividade é destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas; sua paz mantida pela constante ameaça de guerra; seu crescimento, dependente da repressão das possibilidades reais de amenizar a luta pela existência. Essa repressão […] não opera, hoje, de uma posição de imaturidade natural e técnica, mas de força. As aptidões (intelectuais e materiais) da sociedade contemporânea são incomensuravelmente maiores do que nunca dantes — o que significa que o alcance da dominação da sociedade sobre o indivíduo é incomensuravelmente maior do que nunca dantes.
Acrescente-se ao extremado poderio sobre o indivíduo o fato de essa sociedade se caracterizar como de classes: prevalecem antagonismos e contradições que não podem ser superados em seu interior ou com base na lógica da dominação; as desigualdades são intrínsecas à divisão social do trabalho e a seu corolário, qual seja, o acesso aos bens materiais e culturais é sistematicamente negado a segmentos sociais inteiros; por fim, a sociedade de classes, no estágio atual do capitalismo avançado, parece somente reproduzir com base nos conflitos, na agressividade dos que buscam um lugar ao sol e na violência socializada. São esses elementos que autorizam a afirmar que, mesmo em meio às democracias formais, o desenvolvimento econômico capitalista tem produzido e reproduzido tendências que podem ser remetidas ao totalitarismo, especialmente, no que se refere às formas de controle e repressão sobre os indivíduos (organizados em grupos e associações políticas ou não).
De todo o exposto, é imprescindível ainda tecer uma última ponderação sobre a racionalidade da dominação que opera conjugando repressão, manipulação e violência, considerando o destacado nos parágrafos anteriores: a articulação da racionalidade tecnológica com o terror. Novamente, recorre-se às formulações de Herbert Marcuse. Nas obras Eros e civilização (Marcuse, 1972MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de janeiro: Zahar, 1972., publicada originalmente em 1955) e Ideologia da sociedade industrial (publicada originalmente em 1964), o autor enfatiza, predominantemente, o poder dos aparatos produtivo, institucional e cultural em promover o conformismo e a disposição de os próprios indivíduos realizarem ativamente sua integração à ordem social e econômica — o fato apresentado é a capacidade de o capitalismo incorporar e neutralizar a oposição, especialmente o movimento operário, que abriu mão de seu caráter revolucionário, algo que se verificou em todo o século XX. Trata-se de uma análise que tem como referência a expansão do acesso de bens e serviços à maioria da população em sociedades afluentes ou com elevado desenvolvimento econômico no âmbito do capitalismo, o que se pode constatar no excerto a seguir:
O aparato produtivo e as mercadorias e serviços que ele produz "vendem" ou impõem o sistema social como um todo. […] Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune à sua falsidade. E, ao ficarem esses produtos benéficos à disposição de maior número de indivíduos e de classes sociais, a doutrinação que eles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida. É um bom estilo de vida — muito melhor do que antes — e, como um bom estilo de vida, milita contra a transformação qualitativa. (Marcuse, 1969MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1964/1969., p. 32)
O autor sublinha que, mesmo com a manutenção da estrutura de classes e da distância material entre elas, os diferentes e antagônicos grupos sociais tendem a se aproximar em termos de disposições psicológicas. Marcuse também aponta que tal configuração é possível graças à racionalidade tecnológica e sua ideologia da integração, mas também mediante a dominação exercida sobre as populações dos países periféricos e pobres, que, naquele momento, lutavam por sua emancipação, em particular na África e na Ásia.
DESTRUTIVIDADE E FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO
Já nos escritos de fins dos anos 1960 em diante — destacam-se os ensaios "Agressividade em sociedades industriais avançadas" (publicado originalmente em 1967) e "Ecologia e crítica da sociedade moderna" (publicado originalmente em 1977) —, esse mesmo autor parece perceber uma mudança importante, quer dizer, Marcuse expõe uma diferença no modo como percebe as possiblidades de integração nas chamadas sociedades democráticas do mundo ocidental e nos territórios periféricos do capitalismo, bem como parece identificar indícios de esgotamento do modelo econômico em vigência desde os anos 1950: para uns, os incluídos, os que usufruem do estado de bem-estar social e da situação de pleno emprego, é possível a adaptação mediante a submissão ao aparato e o desempenho eficiente. Para outros, os excluídos e marginalizados das conquistas civilizatórias e as populações dos países pobres, mas que nem por isso estão desobrigados dessa mesma submissão e integração, essa adaptação não é possível nem desejável, pois a concentração de renda e a circulação restrita da riqueza continuam características marcantes do desenvolvimento econômico. Ora, o recurso à violência e à agressividade, inclusive organizada, para a garantia dos interesses privados cresce em função das poucas ou nenhumas oportunidades de integração a um sistema social cada vez mais repressor e cada vez menos recompensador dos sacrifícios e das renúncias que todo indivíduo civilizado deve fazer. O autor, acrescentando que às formas tradicionais de agressão foram adicionadas aquelas que se valem dos disponíveis recursos técnicos e tecnológicos (o automóvel, o míssil etc.), assim se refere a esse processo:
A máquina: a palavra sugere que um aparato que consiste em seres humanos pode ser substituído pelo aparato mecânico: a burocracia, a administração, o partido ou organização é o agente responsável: Eu, o indivíduo, fui apenas instrumentalizado. E como um instrumento não pode, em qualquer sentido moral, ser responsável ou estar em um estado de culpa. Desta forma, mais uma barreira contra a agressão que a civilização tinha erguido em um processo longo e violento de disciplina é removida. E a expansão do capitalismo avançado torna-se envolvida numa dialética psíquica fatal que participa e impulsiona sua dinâmica econômica e política: quanto mais poderosa e "tecnológica" a agressão se torna, menos ela está apta a satisfazer e pacificar os impulsos primários, e mais ela tende a repetição e a escalada. (Marcuse, 2018MARCUSE, Herbert. Dossiê Herbert Marcuse (ensaios reunidos). Dissonância, Campinas, v. 2, n. 1. 2, jun. 2018., p. 36-37)
Evidencia-se o propósito geral da sociedade unidimensional, totalitária e administrada no interesse do capital monopolista e concentrador do poder político e econômico, na qual predomina a racionalidade da dominação: integrar e submeter as pessoas ao modo de existência que lhes é imposto, especialmente fazendo-as introjetar necessidades sociais específicas (não universais) como se fossem individuais e pulsionais.3 3 Para ilustrar, recorre-se ao fenômeno da compulsão de muitos pelos produtos tecnológicos que corporificam a ideia da inovação e da necessidade permanente de progresso material, convertidas em valores "indiscutíveis" das sociedades modernas. Essa coincidência, produzida artificialmente, entre a objetividade da agressão capitalista e a subjetividade fragilizada do indivíduo impotente, não é concretizada sem sobressaltos e conflitos psicológicos. Para elucidar, recorre-se ao que Adorno (1994)ADORNO, Theodor Wiesengrund. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel (org.). Theodor W. Adorno. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1994. p. 92-99. sentencia acerca da manipulação e do logro produzidos no âmbito da indústria cultural. O autor afirma que ocorre o encorajamento e a exploração das fraquezas do Eu, com vistas "[…] a fazer de um adulto uma criança de 11 anos." (Adorno, 1994ADORNO, Theodor Wiesengrund. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel (org.). Theodor W. Adorno. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1994. p. 92-99., p. 98), mas, ainda assim, mesmo com o êxito de tal empreitada, permanece uma certa desconfiança inconsciente de que algo não corresponde ao que, de fato, poderia e deveria ser e às reais potencialidades que não afloram em meio a uma vida de renúncia e repressão. Enfim, "[…] as massas não veem e aceitam de há muito o mundo tal como ele lhes é preparado pela indústria cultural" (ibidem, p. 98). Tal situação pode gerar a transgressão e a resistência impulsionadoras da transformação social, mas também é fonte de sofrimento psíquico, uma vez que, em certa medida, fixa no consciente e no inconsciente a impotência frente a força avassaladora da realidade objetiva. Inclusive, é assim que a ideologia se impõe, ratificando a ordem social existente, percebida, com elevado grau de acerto, como praticamente eterna, imutável e toda poderosa. "A ideologia já não é um envoltório, mas a própria imagem ameaçadora do mundo. Não só pelas suas interligações com a propaganda, mas também pela sua própria configuração, converte-se em terror" (Horkheimer e Adorno, 1973HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor Wiesengrund. Temas básicos da sociologia. São Paulo: Cultrix, 1973., p. 203).
Os autores citados nesse último excerto enfatizam que há, por parte dos indivíduos adaptados, conformados e em posição de usufruto de parcela, mesmo que pequena e ínfima, da riqueza social e dos bens proporcionados pelo avanço civilizatório, o reconhecimento de um estado de inquietação generalizado e em si mesmos, resultado da ordem social que somente se reproduz se mantiver todos sob ferrenho controle. Se isso pode ser aplicado a esse grupo de pessoas "beneficiadas", o que dizer de todas as mulheres e homens que não têm a mesma "sorte" e que nem o básico à existência têm garantido (segurança, habitação, saúde, alimentação, educação); tal contingente aumenta continuamente por conta da tendência global, cada vez mais acentuada, de concentração da riqueza produzida socialmente. Além da insatisfação psicológica, vive-se em permanente estado de luta pela sobrevivência.
Seja como for, parece prevalecer uma situação na qual os indivíduos não sabem o que fazer com o descontentamento, pois estão deformados e desfigurados em sua psique. Isso porque a linha de separação mínima que opõe interioridade e exterioridade tende a ser apagada pelas exigências de adaptação e de desempenhos eficientes, nem sempre em conformidade com as expectativas pessoais. Junto com esse apagamento é eliminado ou apaziguado o característico tensionamento existente naqueles que guardam ou tentam guardar alguma autonomia (relativa) da realidade objetiva. É essa tensão, presente no interior dos indivíduos, mais a ação política organizada de grupos e classes sociais dois dos elementos essenciais que produziram as transformações sociais pretéritas. No entanto, na sociedade unidimensional do capitalismo avançado, a oposição que se desenvolve com base nas tendências inconformistas tende a ser sufocada e os inconformados tendem a ser integrados ou exterminados. Assim, resta um sentimento de revolta.
E, desse modo, temos a confluência da violência inerente ao capitalismo com a explosão pulsional da agressão, potencializada pelos avanços técnico, tecnológico e científico — há muitos instrumentos, desenvolvidos progressivamente, utilizados para perpetrar ambas (violência social e agressão individual). De acordo com Marcuse (2018)MARCUSE, Herbert. Dossiê Herbert Marcuse (ensaios reunidos). Dissonância, Campinas, v. 2, n. 1. 2, jun. 2018., a energia pulsional é transferida para os dispositivos mecânicos, elétricos, eletrônicos etc., o que afeta o psiquismo, já que a agressão não depende tão somente do uso da força física e do contato direto com a vítima, mas do empenho da inteligência na busca dos melhores e mais eficientes meios de uso da violência sem que as mãos do agressor fiquem sujas. A hipótese do autor é a de que a satisfação pulsional, dessa maneira, é reduzida e, por fim, interrompida. A repetição e escalada da agressão é consequência de tal situação, qual seja, a busca permanente de gratificação que nunca se realiza, pois a fonte de frustração não é atacada — a ordem social repressora e castradora. Também o sentimento de culpa, que aqui poderia se converter em um freio à violência, é enfraquecido, uma vez que a agressão é mediada pelo aparato tecnológico, político e tecnológico. Portanto, além de não proporcionar a ação política efetiva, visando reprimir a agressão que acontece nas interações sociais imediatas, diretas e cotidianas (por exemplo, a violência doméstica e contra a mulher, bem como as mortes decorridas de acidentes de trânsito), a racionalidade tecnológica converte a agressão em ação racional e institucional do Estado e do aparato burocrático e político.
[…] a utilização de instrumentos de agressão é tão antiga quanto a própria civilização, mas há uma diferença decisiva entre a agressão tecnológica e as formas mais primitivas. Estas últimas não apenas quantitativamente diferentes (mais fracas): que requeriam a ativação e o engajamento do corpo até um grau muito mais alto do que os instrumentos automáticos ou semiautomáticos de agressão. A faca, a "marreta", mesmo o revólver são muito mais "parte" do indivíduo que os utiliza e eles o relacionam mais proximamente com o seu alvo. […] Em contraste, a agressão tecnológica não é um crime. O motorista em alta velocidade de um automóvel ou barco a motor não é chamado de assassino mesmo se ele o for; e, certamente, os engenheiros de lançamentos de mísseis não são. […] Os novos modos de agressão destroem sem ficar com as mãos sujas, o corpo sujo, a mente incriminada. O assassino continua limpo, tanto física quanto mentalmente. A pureza do seu trabalho mortal obtém sanção adicional se for dirigida contra o inimigo nacional no interesse nacional. (Marcuse, 2018MARCUSE, Herbert. Dossiê Herbert Marcuse (ensaios reunidos). Dissonância, Campinas, v. 2, n. 1. 2, jun. 2018., p. 38)
É pela repetição ad nauseam da agressão que os indivíduos buscam, sem alcançar, aplacar suas dores e seus sofrimentos. E é justamente isso que alimenta a sociedade estabelecida, que, por sua vez, promete e não cumpre a liberdade, a autonomia, a justiça, a felicidade e a satisfação das necessidades individuais. A forma pela qual se intenciona reduzir as tensões sociais (por meio da produção de frágeis e falsos consensos) e o tratamento dispensado aos conflitos (repressão, punição e coação) produzem a insatisfação e o sentimento aborrecido de que quase nada é possível fazer para modificar a sociedade, justamente porque é imposto a submissão do Eu, que se vê impotente. Mas não é tudo: o indivíduo dependente e submisso ao aparato tecnológico e político é impelido a aniquilar o outro (metafórica e literalmente); por conseguinte, erguem-se obstáculos quase intransponíveis à experiência livre e espontânea com o não idêntico, o que seria de grande valor para a formação e o fortalecimento do Eu maduro. No lugar disso, impõem-se a integração, a adaptação, a obediência e a sujeição, o que leva à inércia, não produto da harmonia com o todo, mas resultado da atrofia das faculdades humanas e da consciência acerca da impotência ante o mundo natural e social. Parece prevalecer o imperativo "deixa eu me proteger, pois não há nada a fazer". Em muitas ocasiões, proteção e agressão são reduzidas uma à outra.
EDUCAÇÃO POLÍTICA E RESISTÊNCIA
Dando seguimento e relembrando o que foi apenas anunciado no início deste ensaio — mesmo com todas as limitações e os empecilhos que cercam a ação educativa das escolas, é possível realizar algo, contrapor-se e enfrentar a violência por meio da educação, desde que esta assuma uma conotação política ou, nas palavras de Adorno (1995ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995., p. 137), "[…] o centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita. Isto só será possível na medida em que ela se ocupe da mais importante das questões sem receio de contrariar quaisquer potências." —, apresentam-se considerações sobre a relação entre violência e educação à luz de algumas formulações dos autores da teoria crítica da sociedade (Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse). Longe de o conjunto a seguir se constituir em uma teoria pedagógica a orientar a prática docente, a finalidade é produzir uma reflexão que possibilite vislumbrar maneiras de fortalecer um dos objetivos históricos da educação escolar,4 4 Reconhece-se que historicamente a instituição escolar se constituiu no lócus principal da educação na sociedade moderna, o que inclui a formação cultural, a assimilação de conteúdos humanísticos, técnicos e científicos e determinados valores políticos, como liberdade e democracia. Reconhece-se também que essa mesma instituição nem sempre realiza essas finalidades, muito ao contrário, pois não só a violência social se manifesta na escola, como, outrossim, sua dinâmica interna produz formas de agressividade direcionadas a certos grupos de pessoas. Mesmo assim, seu potencial para se contrapor à barbárie e à violência socializada permanece vivo e poderia ser desenvolvido, caso a educação política fosse levada à sério. a saber: a educação política promotora da consciência social afinada com a autoconsciência e a formação intelectual e da personalidade, em contraposição à ideologia da escola, que estipula duas posições extremadas no que se refere à relação escola e mundo social (Adorno, 1995ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.).
A primeira posição versa sobre a necessidade de os estabelecimentos de ensino estarem abertos, sem qualquer restrição, ao externo, portanto, buscando sempre a adequação às demandas provenientes da sociedade, invariavelmente oriundas dos âmbitos econômico e tecnológico, o que se manifesta na busca incessante, levada adiante por educadores e especialistas, por diminuir a suposta defasagem da educação relativamente ao estágio de desenvolvimento das forças produtivas e do trabalho. Isso, conforme Adorno (1995)ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995., faz com que a educação renuncie a aspectos da formação e do amparo a ser proporcionado aos estudantes, uma vez que a exposição às obrigações societárias é direta e sem mediações, condicionando a ação educacional desde fora e sem levar em consideração as reais necessidades de estudantes e professores, bem como o potencial de renovação cultural presente nos espaços escolares. A segunda, de outra parte, estabelece que o fechamento da escola para a vida social é uma virtude, isto é, sua responsabilidade seria a de evitar que determinadas tendências influenciassem o trabalho junto às crianças e aos jovens, assim, supostamente estariam todos protegidos das nefastas forças exteriores. Ambas as posições compõem a ideologia da escola, cuja principal característica é ocultar suas contradições, justamente porque não tomam a educação, na modernidade, como uma forma de mediação e uma prática social que mantém relação com a sociedade e, ao mesmo tempo, guarda especificidade e racionalidade próprias. É com base nessas advertências que são definidos os termos nos quais a educação política poderia se desenvolver:
[…] a única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência. […] Assim, tenta-se simplesmente começar despertando a consciência quanto a que os homens são enganados de modo permanente, pois hoje em dia o mecanismo da ausência de emancipação é o mundus vult decipi em âmbito planetário, de que o mundo quer ser enganado. A consciência de todos em relação a essas questões poderia resultar dos termos de uma crítica imanente […]. (Adorno, 1995ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995., p. 183)
O autor chama a atenção para dois problemas a serem enfrentados no âmbito da educação: a manipulação a que todos estão submetidos na indústria cultural, na política e no trabalho e a persistência das condições que, continuamente, geram a barbárie no seio da civilização e a irracionalidade em meio à ação racional, especialmente no plano econômico (devastação dos recursos naturais e exploração predatória de pessoas e recursos naturais).
As considerações precedentes parecem suficientes para o entendimento acerca do que é a educação política, aqui assumida, e das possibilidades de ela estar voltada ao enfrentamento da violência e da agressividade social e escolar. Na sequência, são explorados quatro trabalhos dos autores que são referências para as reflexões elaboradas neste ensaio, a saber: as formulações de Marcuse (1964/1969MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1964/1969.) sobre ditadura educacional, presentes na obra Ideologia da sociedade industrial; Ideias sobre educação política (Horkheimer, 1963/1972HORKHEIMER, Max. Ideas sobre la educación política. In: HORKHEIMER, Max. Sociedad en transición: estudios de filosofía social. Barcelona: Planeta-Agostini, 1963/1972. p. 79-87.); três conferências sobre educação proferidas nos anos de 1968, 1975 e 1976 (Marcuse, 2020MARCUSE, Herbert. Escritos sobre educación y Filosofía. Medellín: Ennegativo, 2020.); e A reforma escolar: um movimento cultural (Benjamin, 1912/1993BENJAMIN, Walter. La metafísica de la juventud. Barcelona: Paidós, 1912/1993.).5 5 A primeira data entre parênteses se refere ao ano em que o trabalho foi escrito e/ou publicado. A segunda se refere ao ano de publicação das obras consultadas.
Considera-se fundamental, para a reflexão sobre as implicações da educação política no combate à violência, tanto na escola quanto nos demais espaços onde há interação social e ação deliberada visando a formação da consciência dos indivíduos, recorrer à crítica de Herbert Marcuse (1969)MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1964/1969. ao autoritarismo. Para ele, é fundamental continuar perguntando "quem educa os educadores?" E justamente porque se opõe à tendência presente na cultura e na educação burguesas que serviu de pretexto para a dominação da classe trabalhadora e dos povos submetidos ao imperialismo europeu e estadunidense. Já que, supostamente, os outros (todos aqueles que não estão submetidos aos padrões sociais dominantes e à racionalidade capitalista) são incivilizados, ignorantes, selvagens etc., seria legítimo, dessa perspectiva, obrigá-los a se converterem aos ideais do Iluminismo. O questionamento de Marcuse (1969)MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1964/1969. aponta para dois aspectos:
-
quem poderia garantir que os "cultos" estão de posse da verdade, uma vez que são exatamente os mesmos que impõem e se beneficiam da dominação? E
-
a liberdade somente pode ser produto e obra dos que pretendem a libertação.
Essas considerações levam a mais perguntas do que respostas. Se a emancipação — e a educação que se ocupa dela — não resulta do trabalho de uns poucos iluminados, como é possível conceber uma ação educativa que promova àqueles — que, sistemática e eficazmente, foram e são objeto de dominação e opressão — as circunstâncias para a libertação e autonomia, uma vez que os indivíduos não são livres para criar as condições de liberdade? Aí está o cerne de toda educação política. E Marcuse (1969)MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1964/1969. insiste que a resposta só pode ser formulada pelos próprios indivíduos, ainda que disponham de poucas ferramentas para tal. De certa maneira, a educação que tenha como fim a liberdade já é em si política. Nas palavras de Marcuse (1969MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1964/1969., p. 207) acerca da resistência à irracionalidade do sistema (e que podemos estender à educação):
[…] os processos dialéticos envolvem consciência: reconhecimento e captura das potencialidades libertadoras. Assim, envolve liberdade. A consciência "não-livre" no quanto é determinada pelas exigências e pelos interesses da sociedade estabelecida; no quanto a sociedade estabelecida é irracional, a consciência se torna livre para a mais elevada racionalidade histórica somente na luta contra a sociedade estabelecida. A verdade e a liberdade do pensamento negativo têm sua base nessa luta.
Interessa chamar atenção para a crítica que o autor tece em relação ao que denomina de "ditadura educacional": a transmissão de valores arbitrária e abstratamente definidos por aqueles que exercem o poder político e econômico. Nesse sentido, a educação digna desse nome é aquela que reconhece e esclarece as relações de poder e as determinações estruturais e, ao mesmo tempo, é resistência às formas de opressão e violência.
Na mesma esteira de se pensar em uma educação política que se contraponha ao autoritarismo, Horkheimer (1972)HORKHEIMER, Max. Ideas sobre la educación política. In: HORKHEIMER, Max. Sociedad en transición: estudios de filosofía social. Barcelona: Planeta-Agostini, 1963/1972. p. 79-87. postula que não se trata da ação que simplesmente apele ao compromisso dos estudantes com determinados princípios e valores definidores da democracia, pois, em geral, são percebidos como vazios de conteúdos, como fantasias ou mesmo como falsos, uma vez que a realidade vivida na escola e fora dela mostra constantemente a fragilidade e a impossibilidade da concreção dos ideais democráticos. Nesse sentido, ensinar sobre solidariedade, por exemplo, pode ter o efeito contrário em um ambiente que opera com base na competitividade. Em lugar de mero palavrório que, em geral, assume o caráter de educação moral, seria de grande valia encarar a educação como um processo social de fomento das condições e situações contrárias às tendências que impedem a realização dos fins educacionais, proporcionando toda a amplitude da experiência com cultura, a qual não se resume ao conteúdo estabelecido no currículo e nas disciplinas escolares (Horkheimer, 1972HORKHEIMER, Max. Ideas sobre la educación política. In: HORKHEIMER, Max. Sociedad en transición: estudios de filosofía social. Barcelona: Planeta-Agostini, 1963/1972. p. 79-87.).
Essa deve ser uma das principais preocupações dos educadores, porque um dos problemas a ser enfrentado, conforme o autor, é exatamente a falta de amplitude da experiência proporcionada na cultura de massa e nos meios de comunicação. As pessoas, inclusive os adultos, se deparam com inúmeros obstáculos e, em muitos casos, já não são capazes de realizar experiências, uma vez que estas dependem de existir disposição para tal e de ser possível algum grau de espontaneidade, o que não se verifica em razão das imposições que obrigam todos a terem desempenhos eficientes. Para se observar como a experiência propiciada na escola é pouco ampla e impõe escolhas limitadas ao alunado, basta citar duas situações presentes no ensino médio. A primeira diz respeito à mais recente reforma curricular dessa etapa da educação básica, realizada a partir de Medida Provisória (MP 746/2016 — Brasil, 2016aBRASIL. Poder Executivo. Medida Provisória n. 746, de 2016. 2016a. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2112490. Acesso em: 16 fev. 2024.
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
) e confirmada pelo Congresso Nacional — conversão da MP em Projeto de Lei (PVL 34/2016 — Brasil, 2016bBRASIL. Comissão Mista da MPV 746/2016. Projeto de Lei de Conversão n. 34, de 2016. 2016b. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2119066. Acesso em: 16 fev. 2024.
https://www.camara.leg.br/propostas-legi...
). Como resultado, temos o denominado Novo Ensino Médio, que estipula aos estudantes a escolha e a definição de itinerários formativos distintos entre si. Chama-se a atenção para o fato de jovens com 14 ou 15 anos "escolherem" um determinado percurso em detrimento de outros, o que indica claramente a restrição de suas experiências na escola.
A segunda situação se refere a uma recomendação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), expressa no documento divulgado há mais de uma década, intitulado "Educação artística e cultural nas escolas da Europa" (Eurycide; EACEA, 2010EURYDICE; EACEA. Educação artística e cultural nas escolas da Europa. Lisboa: EURYDICE, Unidade Portuguesa, EACEA (Agência de Execução Relativa à Educação, ao Audiovisual e à Cultura), 2010.). O texto indica abertamente que o ensino de arte e o contato com as mais variadas manifestações culturais devem estar atrelados à preocupação de preparar os jovens para a suposta complexidade do mundo do trabalho, verificada a partir da reestruturação do modo de produção capitalista e dos processos produtivos, nas últimas décadas do século XX, o que impôs o desenvolvimento de competências, habilidades e conhecimentos em sintonia com essa "nova" realidade, que necessita de trabalhadores cada vez mais inventivos e criativos, características que poderiam ser promovidas em contato com tal conteúdo. Aqui também se verifica a restrição da experiência, desta feita com a instrumentalização da formação artística e cultural na escola, que deve seguir sempre em uma direção pré-determinada de antemão.
A amplitude da experiência, à qual se refere Horkheimer (1972)HORKHEIMER, Max. Ideas sobre la educación política. In: HORKHEIMER, Max. Sociedad en transición: estudios de filosofía social. Barcelona: Planeta-Agostini, 1963/1972. p. 79-87., depende da efetivação da educação política não restrita à apropriação de certos conteúdos formais e ao ajustamento à ordem social, como na fórmula "educação para a cidadania". Se tudo isso é indispensável à vida em sociedade, por não ser suficiente, é igualmente fundamental proporcionar o aprofundamento necessário ao domínio técnico, à capacidade de lidar com o mundo social e natural e à formação intelectual e da personalidade. E isso é alcançado não obrigando os estudantes a escolherem muito cedo o caminho a trilhar, mas ampliando e tornando cada vez mais complexas as relações com o outro e o não idêntico, enfim, com toda a diversidade que caracteriza a experiência humana.
De outra parte, à educação política cabe mostrar todas as formas de dominação, opressão e violência; isso se for levado a sério o objetivo de produzir as condições de luta contra o racismo, os preconceitos de todos os tipos, o fascismo, a misoginia, a LGBTIfobia, o machismo etc., bem como evidenciar que as pessoas podem ser e são objeto de manipulação, mesmo quando a democracia parece funcionar. Do mesmo modo, é essencial realçar os aspectos psicológicos que fazem com que os indivíduos defendam interesses contrários e alheios aos seus, quando submetidos a estratégias de persuasão e convencimento que se valem de suas fraquezas. Enfim, o que Horkheimer (1972)HORKHEIMER, Max. Ideas sobre la educación política. In: HORKHEIMER, Max. Sociedad en transición: estudios de filosofía social. Barcelona: Planeta-Agostini, 1963/1972. p. 79-87. ressalta é a necessidade de mostrar para o alunado que muitas reações individuais são projeções que visam ocultar nossas limitações, imputando nos outros o que é negativo em nós. O problema é que, ao fazer isso, o indivíduo faz a adesão a interesses que não são os seus, já que foi sistematicamente manipulado e enganado com a finalidade de bloquear a possibilidade de desvendar as reais razões de suas dificuldades.
De outra perspectiva, embora com muitos pontos em comum com Horkheimer, Marcuse (2020)MARCUSE, Herbert. Escritos sobre educación y Filosofía. Medellín: Ennegativo, 2020. também enfatiza que uma das maneiras de reverter a tendência prevalecente na sociedade (e na escola) é promover a educação política, quer dizer, uma educação não afinada com as tendências destrutivas, sustentáculos do modelo econômico capitalista. Em primeiro lugar, seria necessário reorientar a formação docente, de modo que os professores se constituíssem como indivíduos incapazes de tolerar a violência e conscientes de suas causas objetivas, sendo educados, eles próprios, para resistir e lutar por uma forma pacificada de existência.
Para o autor, a educação é contraditória porque nela atuam duas forças contrárias, estando, ao mesmo tempo, a favor e contra a ordem estabelecida. O risco é a captura completa da educação pelas tendências agressivas e regressivas, como se assiste nas tentativas empreendidas, por setores ultraconservadores e reacionários, de controle total sobre o trabalho dos professores, acusando-os e justificando tal controle com a suposta doutrinação que estes realizariam no que se refere à sexualidade, orientação política e religião. Assim, se faz necessário pôr em movimento as forças contrárias a essas tendências, resistir e desnudar a aparência de neutralidade, objetividade, liberdade intelectual e tolerância presente nas instituições de ensino. Em outros termos, não é possível um posicionamento ético, por parte dos educadores, que não seja em favor de Eros (vida) contra Thanatos (morte) (Marcuse, 2020MARCUSE, Herbert. Escritos sobre educación y Filosofía. Medellín: Ennegativo, 2020.).
A referência de Marcuse é a universidade e sua recomendação é tornar a educação politicamente orientada e avessa a irracionalidade do sistema econômico. Dessa maneira, não se deveria permitir pesquisas que reforcem o modelo de agressividade contra a natureza, outros povos e grupos sociais distintos dos hegemônicos, bem como investigações que sirvam unicamente para incrementar os lucros e a produtividade da indústria, sem qualquer consideração por fatores de outra ordem, tais como a extinção da desigualdade. Também é necessário impedir a propagação de ações, programas e políticas educacionais racistas, machistas, sexistas, imperialistas e de reforço da exploração econômica e da dominação social. Nesse sentido, é essencial o ensino e a pesquisa sobre os movimentos sociais e de contestação da ordem, além das "[…] teorias críticas e radicais na história, na literatura e na filosofia, incluindo as heresias e outros movimentos perseguidos […]" (ibidem, p. 40, tradução livre do espanhol), bem como a análise crítica do fascismo e do imperialismo. Para o autor, a educação política é aquela que põe em evidência a intolerância dos movimentos agressivos e destrutivos (ibidem).
Ademais, a reforma da universidade deveria introduzir um novo conceito de aprendizagem e de ensino e também o compromisso existencial com a emancipação humana e o combate a tudo aquilo que contribui para a perpetuação da destruição, da violência, da opressão e da desigualdade:
Insistimos na objetividade desse propósito. O interesse comum de todas as pessoas, não só do proletariado! […] Queremos aprender os fatos e como interpretá-los, mas queremos aprender todos os fatos, especialmente aqueles usualmente suprimidos ou ocultados. Em resumo, queremos aprender mais, não menos. Não queremos destruir as instituições de ensino estabelecidas, mas reconstruí-las. Não desescolarizar a sociedade, mas reescolarizá-la. (ibidem, p. 49, tradução minha do espanhol)
São esses os termos nos quais a reforma da universidade deveria acontecer, de acordo com Marcuse (2020)MARCUSE, Herbert. Escritos sobre educación y Filosofía. Medellín: Ennegativo, 2020., que reconhece a crescente necessidade de indivíduos educados com alguma qualificação técnica, tecnológica e/ou científica, imposta pelo avanço das forças produtivas, dependentes cada vez mais de desempenhos eficientes dos trabalhadores e empregados, de par com o aumento expressivo da massa de desempregados e subempregados — as duas faces de uma das moedas do progresso; a outra moeda apresenta as faces produção de riqueza material e destruição dos recursos naturais. A efetivação da reforma projetada pelo autor seria a forma encontrada de resistir tanto às tendências econômicas quanto à agressividade e violência inerentes a elas.
Para concluir, apenas mais uma pequena nota sobre o mesmo tema, caro a outro pensador da teoria crítica da sociedade, Walter Benjamin. Em 1912, ainda em seus anos de juventude, o autor assevera que a reforma escolar é também um movimento cultural. Para ele, se a educação que acontece nos estabelecimentos de ensino, na sociedade de massas, por óbvio, está voltada para as novas gerações, então, é exatamente na permanente tensão entre docentes e estudantes que está a verdadeira riqueza do processo educacional. De um lado, a escola promove a educação por meio da difusão da cultura e da promoção de conhecimentos, valores e princípios que incrementam e intensificam o desenvolvimento progressivo da humanidade, assim, dando sustentação à própria cultura; de outro, para que tal desenvolvimento aconteça, temos a necessidade de constante renovação — é esse processo que conferiria dinamismo à escola e à cultura, quer dizer, o tensionamento entre o estabelecido e o que está por vir.
Ora, são os estudantes que trazem os ares da renovação para o interior da escola, pois, mais do que os professores, que podem se blindar no fato de a educação formal estar cada vez mais institucionalizada, aqueles são os depositários das tendências em movimento na cultura e na sociedade. Isso não significa que devemos converter a inovação e a renovação imediatamente em valores positivos e objetivos desejáveis, mas indica tão somente que, na educação, os conflitos não deveriam ser neutralizados com estratégias que, na maioria das vezes, no lugar de solucioná-los, apenas retiram sua visibilidade e/ou estabelecem-se falsos consensos. É por essa razão que não se pode virar as costas para as questões sociais, inclusive, porque estas também estão presentes na escola, afetando o trabalho dos professores e a socialização de estudantes. É esse o sentido da reforma escolar, compreendida como um movimento cultural, proposto por Benjamin (1993BENJAMIN, Walter. La metafísica de la juventud. Barcelona: Paidós, 1912/1993., p. 51-52, tradução minha do espanhol):
O vínculo mais estreito que se verifica entre a cultura e a reforma escolar está na juventude. A escola é uma instituição encarregada de conservar para a humanidade o patrimônio produzido e conquistado por ela, oferecendo-o continuamente para as novas gerações. Não é só isso: a escola armazena o passado, embora deva mirar para aquilo que é atual. Mas, de cara com o futuro, ela não pode oferecer mais que uma estrita atenção e um profundo respeito pelo novo. Já a juventude, a cujo serviço a escola se entrega, oferece a ela o futuro. As novas gerações recebem o influxo da escola; elas são inseguras em relação a tudo o que é real e a tudo que se refere à consciência. Provavelmente são egoístas e ignorantes, espontâneas e incultas (por isso devem ir à escola). No entanto, encontram-se encharcadas do que é antecipação do futuro. E a cultura do futuro é a única meta da escola e, por isso, deve ir ao encontro do futuro contido em germe na juventude. Inclusive deve deixar a juventude fazer-se: deve possibilitar e impulsionar a liberdade. Por essas razões, a mais urgente necessidade da pedagogia moderna não é outra que a criação de um espaço adequado para a cultura se autodesenvolver.
Para o autor, a escola pode oferecer o passado às novas gerações, enquanto a juventude oferece o futuro à escola. Esse seria o mote das reformas escolar e cultural e da educação política. Os estudantes como os protagonistas com os educadores, pois somente dessa maneira desfrutarão da amplitude da experiência. Se o porvir é a meta da escola, então, sua ação educativa e política implica em proporcionar e impulsionar a liberdade de crianças, adolescentes e jovens. Trata-se da liberdade, produto da experiência com a cultura, com a diversidade, com a imaginação, com a espontaneidade, com o não idêntico, com os conflitos, as tensões e as crises gerados na mixórdia presente na escola, o que, por sua vez, resulta do processo de formação vivido em toda a sua plenitude.
Por fim, não se pode nutrir a ilusão de que basta a implementação da educação política, nos termos e princípios aqui preconizados, para que a agressividade deixe de fazer milhões de vítimas mundo afora. Como explanado, as causas e motivações da violência social podem ser encontradas na realidade objetiva e na predominância de um modelo econômico que impõe continuamente a luta pela vida e a autopreservação. Portanto, repetindo uma vez mais as palavras de Adorno (1995)ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. sobre a relação entre indivíduo e sociedade, entre condições objetivas e subjetividade, a chave da transformação está na objetividade e na capacidade de os indivíduos inventarem outra coisa dela; e a educação pode apenas produzir um clima propício à consciência de que é necessário resistir ao poder avassalador do capital e das forças sociais que são suas parceiras e aliadas. Esta não constitui uma tarefa menor e não se pode menosprezar as consequências das ações educativas que resultem em pessoas incapazes de desferir "cotoveladas" (Adorno, 1995ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.). O autor aponta uma necessidade premente, qual seja, fazer ruir as bases da competitividade tão característica das relações escolares, mas que contribui para a promoção generalizada da barbárie. Enfim, parece inadiável e decisivo o exercício constante de trazer à luz as motivações da violência social e suas manifestações na escola. Assim se justifica a educação política.
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Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.
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A exemplo da exploração de outras formas de mobilidade urbana, além do automóvel como meio de transporte individual.
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Em muitos desses casos, a violência e a repressão podem levar à morte dos transgressores, fato patente e facilmente perceptível numa simples passada de olhos no noticiário diário.
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Para ilustrar, recorre-se ao fenômeno da compulsão de muitos pelos produtos tecnológicos que corporificam a ideia da inovação e da necessidade permanente de progresso material, convertidas em valores "indiscutíveis" das sociedades modernas.
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Reconhece-se que historicamente a instituição escolar se constituiu no lócus principal da educação na sociedade moderna, o que inclui a formação cultural, a assimilação de conteúdos humanísticos, técnicos e científicos e determinados valores políticos, como liberdade e democracia. Reconhece-se também que essa mesma instituição nem sempre realiza essas finalidades, muito ao contrário, pois não só a violência social se manifesta na escola, como, outrossim, sua dinâmica interna produz formas de agressividade direcionadas a certos grupos de pessoas. Mesmo assim, seu potencial para se contrapor à barbárie e à violência socializada permanece vivo e poderia ser desenvolvido, caso a educação política fosse levada à sério.
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A primeira data entre parênteses se refere ao ano em que o trabalho foi escrito e/ou publicado. A segunda se refere ao ano de publicação das obras consultadas.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
15 Nov 2021 -
Revisado
01 Abr 2023 -
Aceito
12 Abr 2023