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Juracy C. Marques: Primórdios e expansão da pós-graduação stricto sensu em educação na região Sul

ENTREVISTAS

Juracy C. Marques: Primórdios e expansão da pós-graduação stricto sensu em educação na região Sul

Lucídio Bianchetti

Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Educação

Professora Juracy! É uma satisfação estar aqui com a senhora. Em nome da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e da editoria da Revista Brasileira de Educação, agradeço sua disponibilidade. O objetivo desta entrevista é contribuir, com base na história tanto pessoal quanto institucional para o entendimento sobre a criação e a expansão da pós-graduação em educação, tendo como âncora geográfica a região Sul, mais especificamente a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), bem como sobre a criação e a presença da ANPEd nesse processo. Para iniciar a entrevista, gostaria que a senhora se apresentasse brevemente, situando tanto a sua inserção pessoal como fazendo menção aos primórdios da pós-graduação stricto sensu em educação nessa região do país.

Bom, é uma alegria relembrar os bons tempos dos inícios da década de 1970, quando algumas pessoas estavam empenhadas em criar não só a pós-graduação, mas, sobretudo, a pesquisa em educação no Brasil, resgatando inclusive alguns aspectos de pesquisa que já existiam na época, por esforços de Anísio Teixeira.

Nós já tínhamos pós-graduação na UFRGS, nesse período. A pós-graduação teve início com a reforma universitária, foi implantada em 1970, e em 1971 já tínhamos uma comissão para pós-graduação em educação na UFRGS. Eu era a única doutora, por concurso de livre-docência. E então, juntamente comigo, foram convidadas várias pessoas que tinham mestrado no exterior para fazer parte dessa comissão. A reitoria - era pró-reitor de pesquisa o professor Gerhard Jacob - não aceitou e então foi contratada uma doutora argentina - Eva Van Ditermann - para vir assessorar, ser consultora e, por fim, acabou coordenando por seis meses a implantação da pós-graduação em educação na UFRGS.

Nesse meio tempo, quando Eva estava coordenando a implantação, fui convidada para passar cinco semanas em Washington, como consultora da Organização Mundial de Saúde (OMS), sessão pan-americana (Pan-American Health Organization - PAHO). Então, recebi um telegrama (as comunicações não eram tão fáceis como hoje!) do diretor da Faculdade de Educação, professor Roberto Fachin, dizendo que eu devia me apresentar imediatamente, interromper minha missão na PAHO, porque a professora Eva Van Ditermann tinha sido convidada para uma missão no Panamá e não retornaria mais. Respondi que sim, que aceitava a incumbência, mas que tinha de terminar o que estava fazendo, e que estava faltando só uma semana. Como tinha certa facilidade, reuni ainda em Washington materiais possíveis sobre pós-graduação em educação, dentre as universidades que se localizam nos arredores, e retornei.

Imediatamente, com o apoio da CAPES [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] e da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFRGS (hoje separadas), consegui que contratássemos quatro professores visitantes com doutorado. Porque senti, desde logo, que minha "liderança" não surtiria efeito, por predominar aquela idéia de que eu, doutora, estava querendo fazer valer um título, e não, democraticamente, conjugar os esforços. Ao mesmo tempo, achava que nós tínhamos que valorizar o título, uma vez que estávamos nos propondo a fazer um programa de pós-graduação que viesse a titular. Então, nessa ocasião, veio um professor chileno (os chilenos estavam imigrando, em razão dos problemas políticos que existiam lá) e um professor salvadorenho, também expulso por razões políticas do seu país. E também vieram dois norte-americanos: o professor Chesterfield, de Los Angeles, e o professor Hartmut Günther, um alemão com formação nos Estados Unidos, que acabou ficando no Brasil.

Com esses quatro doutores - e veja bem: quatro homens (havia também a questão de gênero, lembro que alguns de má vontade diziam: "Nós temos que tirar essa mulher daí"; era uma maneira de dizer que eles não aceitavam uma liderança que não fosse forte, masculina etc.) -, com estes quatro professores visitantes e com o auxílio daquelas pessoas que eram minhas amigas e que só tinham mestrado, começou um programa forte. Primeiro só com mestrado, iniciado em 1972. Começamos organizando um curso que se chamava "reciclagem" ou "familiarização", que era voltado principalmente para a pesquisa, porque todos queriam pesquisar mas ninguém sabia como fazer; assim, queríamos homogeneizar um pouco as dez vagas com as quais começaríamos o mestrado. A primeira pessoa que defendeu dissertação de mestrado foi orientada por mim: um professor muito conhecido, professor Juan Mosquera, hoje coordenador da Pós-Graduação em Educação da PUC-RS [Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul]. Ele fez uma dissertação (mas era uma tese, na verdade) sobre os vestibulandos, o quanto o vestibular representava um desafio, até uma tortura para os adolescentes, colocando não só o sofrimento psicológico que isso acarretava para os adolescentes e para suas famílias, mas também o contexto de competição e de seletividade elitista que o vestibular representava. Foi um excelente começo. Isso marcou muito a pós-graduação, porque as dissertações que vieram depois tinham que se pautar por esse modelo de profundidade e abrangência, já em uma abordagem com aporte interdisciplinar, e não apenas calcado numa teoria psicológica ou sociológica ou filosófica, seja qual delas se eleja. O professor Juan Mosquera, depois, continuou a trabalhar conosco e ajudou nessa implantação também. Isso sempre com muito apoio da CAPES, por parte do professor Darci Closs, e da UFRGS, pelo estímulo do professor Gerhard Jacob.

Com sua licença, vou fazer a primeira interrupção. Pela sua exposição até aqui, conseguimos visualizar, mesmo que ainda de forma introdutória, a implantação do Programa de Pós-graduação na UFRGS. Depois voltaremos a esta questão. Antes de avançarmos, gostaria de pedir para que a senhora recuasse um pouco na história e fizesse uma análise, agora em uma perspectiva mais abrangente, da implantação da pós-graduação stricto sensu no Brasil. Pelas leituras que fizemos, a CAPES, criada em 1951, é, certamente, um dos marcos, um dos fatores desencadeadores...

Na verdade, a pós-graduação stricto sensu até 1970 existia com alguns cursos bastante precários no Rio de Janeiro e em São Paulo. No Sul não havia nada. E, naturalmente, com todo o ímpeto com que a Reforma Universitária foi implantada, por parte de algumas pessoas havia também muita contrariedade pelos problemas políticos etc., mas se queria aproveitar o momento de força, digamos assim, para fazer valer uma idéia. E essa idéia era a pós-graduação stricto sensu. O professor Darci pensou primeiro que se devia regionalizar. Então criou creio que sete regiões de pós-graduação no Brasil, em todas as áreas. Não participei diretamente dessa tentativa ou desse programa de regionalização. Participou Tarcísio Della Senta, uma figura extraordinária, que colaborou na UFRGS durante dois anos, implantando uma área de concentração chamada planejamento educacional, quando não existia nada disso no Brasil. Existia planejamento educacional na área urbanística, tanto é que nos apoiamos no curso de urbanismo da UFRGS. O professor Franciscone, por exemplo, um urbanista muito reconhecido, nos ajudou bastante. O Tarcísio e o Gilberto Medeiros eram assessores do Darci Closs, porque essa era uma área que envolvia todas as áreas, não era da educação, era de todas as pós-graduações. Eu não estava envolvida nisso, estava voltada à área da educação. Qualquer dúvida que eu tivesse, telefonava diretamente para a CAPES, inclusive para resolver problemas de verba. A idéia da regionalização frutificou por um certo tempo, mas depois desvaneceu, e aí ficaram realmente as pós-graduações junto às universidades.

No início, nós nos reunimos convocados pela CAPES, pelo professor Darci Closs. Os coordenadores da pós-graduação eram escolhidos diretamente pelos reitores. Nessas reuniões não éramos muitos, talvez 14 ou 15, não mais que isso, havendo coordenadores e pessoas que pretendiam ser coordenadores ou que estavam desejando criar a sua própria pós-graduação.

Na primeira reunião convocada pela CAPES - dos coordenadores de pós-graduação ou das lideranças, porque nem todos eram coordenadores, até porque não existiam os cursos, eles estavam em planejamento - verificaram-se alguns aspectos muito curiosos. Primeiro, havia uma total dispersão, isto é, não havia focos temáticos, tanto dentro das pós-graduações que estavam sendo propostas quanto no panorama geral das pesquisas no Brasil. A idéia chave era, e persiste até hoje, que não existe pós-graduação sem pesquisa. Então, a base da pós-graduação tinha que ser um núcleo, um centro bem estruturado de pesquisa. Daí o nosso empenho com os professores visitantes na UFRGS, que foram financiados pela CAPES, inicialmente, e mais tarde pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] (os contratos eram por dois anos, renováveis por mais dois), de realmente dar ênfase à pesquisa e começar a delinear certos focos que vinham muito pelo tipo de seleção que fazíamos dos professores convidados, já havendo alguns focos importantes que precisávamos desenvolver. Curiosamente, um dos focos era a educação rural, coisa que hoje não se coloca mais, pelas condições demográficas que assumiu o país; outro foco muito acentuado era a discussão teórica.

A grande discussão teórica era de fenomenologia, behaviorismo, e uma terceira corrente na qual eu me incluo, que era uma busca de método mais do que de conteúdo. Havia os conteudistas e havia os processualistas, ou os voltados para o método. Então, pesquisa não depende tanto do conteúdo, depende do método que se utiliza para a aproximação de qualquer fenômeno que se queira estudar. Essa era a idéia que presidia a nossa pós-graduação naquele momento, diferente de outros que acentuavam mais a parte de conteúdo.

Havia também, não sei se persiste ou não, a questão dos marxistas, que queriam uma revolução. Quando Moacir Gadotti voltou de Genebra, após seu doutorado, as "brigas" se acentuaram nessa área de marxistas e não-marxistas. Por injunções do cargo e pelo fato de estar muito presente dentro dessa programação, eu viajava muito para congressos internacionais e para encontros nacionais de cunho internacional que se faziam no Brasil; viajava a pedido da CAPES, para "inspecionar" os programas que se estavam organizando, orientar, fazer consultoria. Internacionalmente, a idéia de socialismo, marxismo, já não era preponderante como era no Brasil. Foi um momento histórico, quando se lutava contra a ditadura. Diga-se, de passagem, que alguns de nós na UFRGS nos eximimos desse compromisso com a ditadura e colocamos a ciência, ou a pesquisa, ou a área da educação, como prioridade. Costumava dizer: "O meu partido é a educação"; e não nos envolvíamos. Eu sabia, e me diziam os próprios alunos, que eu tinha espiões na aula. Dizia: "Mas que bom que os espiões estão se educando" e não dava a mínima importância se era espião ou não. Eu não tinha essa preocupação.

Muito mais tarde, agora, quando eu vou a congressos, encontro alguns ex-alunos que estão muitos bem colocados (o melhor jeito de avaliar o nosso trabalho no longo prazo é saber onde estão os nossos ex-alunos; tenho quatro ex-alunos que hoje são professores titulares em universidades norte-americanas), e particularmente uma delas me cobrou nestes termos: "Como é que você nunca nos alertou que havia uma ditadura que censurava, que essa ditadura torturava?" E eu, ingênua e candidamente, respondo: "Eu não sabia". E isto é a pura verdade: eu não tinha a menor consciência do que estava acontecendo, do ponto de vista político, do ponto de vista de coisas com as quais obviamente eu não concordaria. Eu concordava era com os avanços que a pós-graduação estava fazendo, que foram notáveis, e acho até certo ponto injusto quando me falam nisso, me cobram de não ter alertado. Eu gostaria de cobrar também de não terem me alertado. Eu não sei quem poderia dar explicações, pois as ligações com Brasília, de nossa parte, eram via CAPES. A nossa era uma aliança de apoio afetivo. Nós queremos fazer pós-graduação, nós vamos fazer pós-graduação, a despeito de tudo que está aí. E, até certo ponto, conseguimos. Quando nas reuniões eu me mostrava um pouco ingênua, otimista demais, colegas conversavam comigo: "Tu não estás sabendo...", e me contavam o que estavam tramando contra mim nos bastidores, coisa que em qualquer grupo humano existe, quando há luta pelo poder. Eu não lutava pelo poder, eu lutava pela pós-graduação e pela UFRGS, sobretudo. Nesse processo de criação dos programas houve apoios que foram decisivos, como da Vera Candau (PUC-Rio) e da Julieta Calazans (Fundação Getúlio Vargas-Rio de Janeiro), uma vez que nas suas instituições já havia pós-graduação.

Com esses apoios, e mais a Regina Maluf, que era jovem, enérgica, fazendo sua carreira, que, como eu, vinha da psicologia, e com os apoios obtidos em São Paulo, que era e continua sendo um centro forte e independente, consegui navegar na onda das peripécias naturais e históricas. Fiz excelentes ligações com Maria Amélia Goldberg, da Fundação Carlos Chagas, que era muito boa nessa parte de pesquisa e nos ajudou muito, porque tínhamos esse eixo de ação voltado para a pesquisa, e era muito difícil porque as pessoas, em geral, entendiam que qualquer coleta de dados era pesquisa; não tinham a noção de ter um pressuposto teórico, uma teoria por trás, que tem de testar, que tem de divulgar, tem de ter rigor naquilo que faz.

Criamos grupos de pesquisa, antes de o CNPq instituir o grupo de pesquisa como sua estratégia de fomento. Criamos os chamados grupos de pesquisa com a idéia, muito bem aceita, de que cada professor orientador teria no seu grupo de pesquisa os seus orientandos, e mais auxiliares de pesquisa que ele convidaria entre seus alunos de graduação, inclusive de outras áreas do conhecimento. Eu tive gente que pesquisava genes, que vinha da área da genética. No meu grupo de pesquisa tive alunos da sociologia, das ciências sociais, que estavam pesquisando imigração italiana no interior de Caxias. Então a coisa ficou muito mais bonita, muito mais desafiadora, quando saímos de uma certa entropia que havia se instalado dentro daquela posição de eu, eu, eu. Quer dizer, democratizou o conhecimento e se enriqueceu. Eu tinha psiquiatras dentro do meu grupo de pesquisa, porque eu ensinava metodologia da pesquisa para eles. Começamos - e acho que fomos pioneiros, e talvez eu seja uma das pioneiras - a idéia de grupo de pesquisa, e isso, sem dúvida, nos fortaleceu muito. Tínhamos que superar o nosso maior déficit, que era a dispersão. Tínhamos que encontrar um foco, e o foco que eu propus para aquele primeiro grupo de pesquisa era orientação pedagógica e serviço. A idéia de que não podíamos ficar só na teoria, tínhamos de ir às escolas, que a nossa coleta de dados teria de ser nos locais onde a educação estava acontecendo. E isso também deu uma reviravolta, porque foi o primeiro momento em que nos demos conta de que havia uma teoria de uma prática, e que teoria e prática andavam juntas, e que a prática poderia ser teoria. Foi nessa época que lemos a Pedagogia do oprimido, do Paulo Freire, e recordo, com um misto de nostalgia e triunfo, que comprei este livro em Londres e trouxe para o Brasil, para o meu grupo de pesquisa.

Como eu era uma das pouquíssimas pessoas que tinha domínio do inglês, tinha maior trânsito na área internacional. Participava de muitos eventos, não só como convidada, procurava apresentar trabalhos em congressos internacionais e podia divulgar o que nós estávamos fazendo. Aproveitava esses encontros para convidar professores estrangeiros. Uma das pessoas que veio ao Brasil três vezes, duas vezes convidada por mim, foi Basil Bernstein, já falecido, e fui convidada para seus seminários de sociologia da educação na Universidade de Londres. Portanto, essa coisa de não ser local, de poder abranger o mundo, de ter uma ambição de fazer pelo menos o mínimo em relação ao máximo que está acontecendo no exterior, alavanca e motiva para enfrentar os desafios.

Professora, eu queria voltar a uma questão que já foi apontada anteriormente, qual seja, a do surgimento da CAPES como "campanha", que dá uma idéia da primazia da formação de professores em relação à formação de pesquisadores. Então, parece-me que nós, na curta história da pós-graduação stricto sensu em educação, tivemos dois paradigmas: num primeiro momento, a formação de professores para suprir os quadro das instituições; depois a senhora fala de um voltar-se para a formação do pesquisador. É possível aprofundar um pouco mais esta questão?

Era tão forte essa preocupação de formar doutores e mestres no primeiro momento foram mestres, principalmente - que toda a literatura em educação se voltava para a questão do ensino, para a atuação do professor. Essa é uma das pautas nas minhas publicações nos quase vinte livros que tenho publicados, a maioria deles esgotados, porque se entendia que o importante era a aprendizagem, e não o ensino. E isso eu já defendia, tanto é que meu primeiro livro se chama Ensinar não é transmitir. Estava então apoiada em Piaget, uma corrente que depois se torna forte na Faculdade de Educação da UFRGS. Aliás, é forte até hoje, através do Fernando Becker, meu ex-orientando de mestrado; sua dissertação, muito boa, não foi sobre Piaget, foi sobre lógica, pois nada melhor do que discutir lógica do ponto de vista metodológico. E ele assumiu essa liderança, tanto nacional como internacionalmente.

Tínhamos, ainda, toda a questão da formação de professores, professores para o ensino superior, que era a proposta da CAPES. Mas, como tínhamos o programa das licenciaturas, tínhamos que nos preocupar com o professor do ensino fundamental, do ensino médio. Essas eram questões que discutíamos muito. Tínhamos reuniões semanais que se mantêm até hoje, curiosamente, no mesmo dia e mesma hora que eu institui. Então, nos tornamos cada vez mais afinados com certas idéias, e em oposição em relação a outras, mas esse debate era extremamente rico, e nós aprendíamos com os outros colegas e com os alunos também. Hoje a minha convicção é que o que importa é a aprendizagem, porque no ensino uns ensinam aos outros, e você se auto-ensina, na medida que faz reflexões ou se recolhe à sua bagagem e reavalia.

As pessoas que se detêm naqueles primórdios até hoje me taxam, me rotulam, de behaviorista. E eu nunca fui behaviorista, a ponto de, em uma aula em Stanford, na Escola de Educação, na qual fui aluna por um ano, um professor ter me convidado a não fazer a sua disciplina porque eu disse que acreditava no inconsciente. Para ele, era um pecado capital que uma pessoa cientista acreditasse no inconsciente e quisesse trabalhar com o inconsciente dentro das propostas pedagógicas pelas quais se deveria lutar. Meus professores de Stanford eram famosos: Albert Bandura, Lee Cronbach, Ernest Hilgard são professores-pesquisadores de primeiríssima linha, mas estávamos no auge do behaviorismo como ciência, quando a psicologia queria deixar de ser um apenso da filosofia.

Foi por essa época que a CAPES propôs uma inspeção no nosso programa. Pedi que mandassem o Joel Martins, da área de fenomenologia da PUC-SP, cujas referências me foram dadas pelo Dermeval Saviani, na época também da PUC-SP e meu colega no Comitê de Educação do CNPq. Joel veio, e foi excelente, porque nos mostrou que éramos positivistas, que tínhamos que sair do positivismo para poder entrar na linha humanística - o que queríamos. Foram três dias - era para ele ficar um dia! - em que fizemos um mergulho em nossas convicções pedagógicas, e aquilo revolucionou o grupo; não revolucionou o Brasil, revolucionou o grupo. O Joel era muito carinhoso, muito terno, ele sabia fazer as contradições se tornarem menos agressivas ou menos hostis e nos conquistava para pensar numa outra linha, pelo menos provisoriamente, e isso nos ajudou muitíssimo. Daí abriu-se uma possibilidade de repensar o nosso programa, fez-se uma reforma de currículo e foi quando se implantou o doutorado.

Nessa direção, a senhora identifica que a mudança de paradigma da formação do professor para formar o pesquisador tem a ver com o surgimento do doutorado?

Sim, tem a ver com o surgimento do doutorado, porque se repensou toda a área e se verificou que um doutor em educação é mais que um professor, mais que alguém que ensina, é alguém que pensa. E que pensa de uma forma original, trazendo contribuições, principalmente de modelos e de teorias, e vê hipóteses de sugestões de melhoria em termos mais amplos, Brasil/mundo, e não apenas local. Mas eu gostaria de frizar que o intercâmbio nacional e internacional foi o que nos robusteceu. Quer dizer, sair do casulo, se abrir para o que está aí, ver outras culturas, outros horizontes de compreensão, isso ajudou muito, no sentido de não ficar encastelado dentro de uma proposta rígida. Acho que continua sendo um problema sério, pois, em alguns momentos, pelo que tenho acompanhado de alguns programas, eles estão muito "ensimesmados", achando que são os donos da verdade, que têm as respostas, e não se abrem para ouvir outras possibilidades em relação a soluções que a educação requer, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, pois ela está em crise em toda parte. Quer dizer: acreditam nas suas próprias convicções de maneira quase fundamentalista, são fanáticos naquilo que pensam.

Professora Juracy, agora vou sugerir interrupção do seu raciocínio nessa direção, encaminhando para uma focalização mais particular à ANPEd, buscando resgatar aspectos do processo da sua criação. Pelas minhas leituras, pude perceber que havia áreas (de economia, por exemplo) que haviam criado a sua associação. Quanto à criação da ANPEd, parece-me que a CAPES desempenhou um papel indutor...

De verba, de dinheiro para caminhar de um lado para o outro, de agências de financiamento. Isso foi muito importante.

Pediria para a senhora explicitar mais a gênese desse processo da CAPES buscando incentivar, induzir a organização de associações e, particularmente, o caso da ANPEd.

A ANPEd foi das primeiras que a CAPES induziu. Tanto isso é fato que a ANPPEP [Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Psicologia], vai surgir muito depois, e a psicologia já era profissão regulamentada, já tinha os cursos, mas vai surgir muito depois, até como um braço da educação, porque estimulada pelo CNPq, e não pela CAPES. Mas a ANPEd, não. A ANPEd é estimulada diretamente pela CAPES e, como já disse anteriormente, apoiada nas coordenações dos programas. Mais tarde, o distanciamento dos coordenadores obrigou a ANPEd a se organizar. Nessa fase de transição, em que a CAPES se retira e os coordenadores deixam de ter poder na ANPEd, ela começa a fazer emergir as suas próprias lideranças. Há muita polêmica, muito debate, muito confronto, e disso resulta que cada reunião da ANPEd terminava com um manifesto, com uma proposta, com um documento que era encaminhado para todos os órgãos, inclusive para a Presidência da República. Isso deu positivamente visibilidade à pós-graduação em educação. É óbvio que as idéias contraditórias, as idéias que se colocam dentro de diferentes perspectivas, estimulam o pensamento, são de uma riqueza incalculável, e isso levava a que, no retorno, nas suas pós-graduações, houvesse confronto interno também, com o representante da ANPEd, com o coordenador, com os colegas que não tinham ido às reuniões anuais. Em determinado momento a associação foi vista como mais um órgão do governo, de burocratização, de imposição, de orientação, de fiscalização. Os professores não queriam ser representantes da ANPEd, não queriam participar das reuniões, porque as reuniões eram dominadas por três ou quatro figuras que se confrontavam, tendo subjacente a questão de mais ou menos marxismo dentro das propostas envolvidas. E, naturalmente, havia uma rejeição total: não é marxista, não interessa, e boicota, e mina, e tira, e assim por diante. E se estabelecem lutas acirradas. Com isso se cria a idéia de que a educação é sobretudo política, e as pessoas começam a se antenar nos aspectos políticos da educação. Criam grupos de militância política dentro da pós-graduação, e isso fortalece, num certo sentido, e enfraquece no outro. E aqueles que continuavam com a idéia de que o que importa é a pesquisa, a experimentação, a verificação das idéias, que todas as teorias são provisórias, que elas respondem às necessidades e quando não responderem há que procurar outras teorias porque aquelas não servem mais porque caducaram, essas idéias ficam descartadas. Surge com muita força a idéia de que o importante são as articulações, as negociações, no sentido de fortalecimento daqueles líderes que estão no poder. Até que tomamos conhecimento de Foucault e incorporamos a idéia de que o poder não é, que o poder se exerce, e passamos a lutar de novo para fazer certas aproximações, inclusive com os opositores, no sentido de fazer a coisa funcionar. Mas a questão política foi muito marcante, principalmente depois da abertura dos anos de 1980.

Antes de começarmos a entrevista falávamos sobre o surgimento da ANPEd e a senhora fez referência a um episódio da primeira eleição da associação. Isso tem a ver com a primeira diretoria? Dá para aprofundar este ponto?

Na primeira reunião da ANPEd, que foi no Rio de Janeiro, estava por trás a idéia de quem é doutor e de quem não é doutor. Eu era doutora por livre-docência, e sou até hoje; depois fiz pós-doutorado. Não tinha muito prestígio na pós-graduação quem tinha doutorado por livre-docência, não tinha Ph.D. Então, quem tinha Ph.D. nos Estados Unidos da América tinha mais prestígio. Só depois é que voltou a influência européia, e aqueles que tinham doutorado, como Moacir Gadotti em Genebra, Vera Candau na Espanha, passaram a ter aquele respeito que o Ph.D. tinha. Portanto, essa luta de quanto a educação no Brasil é européia ou norte-americana é uma luta que não acabou e que ressurge quando menos se espera. Tem havido episódios interessantes. Volta e meia sou convidada para orientar brasileiros que estão estudando na Europa, que estão estudando nos EUA, como co-orientadora, porque querem coletar dados do Brasil e estão fora do Brasil. Houve um episódio que ilustra esse ponto de vista: era uma pessoa na França que, olhando o meu currículo Lattes, me escolheu como co-orientadora e a universidade aceitou e me convidou. Eu disse que sim, que até podia co-orientar, contanto que ela me mandasse uma primeira proposta sobre o que ela queria. Era de uma cidade de São Paulo. Então, o que ocorreu foi que a proposta dela tinha tudo a ver com o objetivo de mostrar que as teorias, a cultura ou a ciência européia eram superiores à norte-americana e que nós tínhamos que combater o americanismo, não explicitamente, mas nas entrelinhas. Respondi dizendo que lamentava muito, mas que minha formação científica se devia em muito aos EUA, que tinha sido convidada pelo governo norte-americano várias vezes, que era ex-aluna da Universidade de Stanford, e que na Europa fui apenas professora visitante, inclusive na Suécia, mas não tinha familiaridade com isso que ela chamava de psicologia européia e que, portanto, declinava do honroso convite, considerando que outras pessoas seriam melhores que eu para fazer isso. Não faz dois anos que esse episódio ocorreu. Essa coisa de antiamericanismo e de resgatar a ciência européia por meio da célula de influência da pós-graduação é algo politicamente relevante neste momento, como era no passado.

E a senhora identifica nesse episódio da organização inicial da associação e da eleição da primeira diretoria da ANPEd também esse conflito?

Também esse conflito. Porque nós tínhamos, já naquele grupo dos coordenadores de pós-graduação, várias pessoas formadas na Europa e algumas formadas na USP [Universidade de São Paulo], porque a USP já tinha o seu doutorado à sua maneira, que depois vai se enquadrando no sistema nacional de pós-graduação, a duras penas, na independência e na hegemonia que a USP sempre gozou em termos de Brasil. Nós costumávamos dizer aqui no Sul que São Paulo era um país à parte. Muita gente se formou em São Paulo, não somente do Sul, mas os próprios doutores da USP, e eles mesmos tomavam partido: ou prónorte-americanos ou pró-europeus, dependendo das áreas. A área, por exemplo, da psicologia experimental, mais ligada ao behaviorismo, sempre foi mais norte-americana.

Avançando um pouco mais, a senhora poderia falar um pouco a respeito da primeira eleição da diretoria da ANPEd. Afinal, teve eleição?

A CAPES, através do seu diretor, professor Darci Closs, convocou uma reunião no Rio de Janeiro, na Fundação Getúlio Vargas, dos coordenadores de pós-graduação ou daqueles que estavam coordenando futuras implantações (como já foi referido). Éramos mais ou menos 15 pessoas. Deveria sair dali um presidente da ANPEd, que faria os estatutos da associação, que já estavam delineados pela própria discussão, em que os coordenadores seriam as pessoas chaves para manter a instituição viva, atuante e decisiva nas políticas...

Fazendo uma articulação com a política maior.

Com a política maior que a CAPES estava criando, implantando em todas as áreas do conhecimento. Educação era apenas uma das áreas. Havia um representante da CAPES que não se manifestava quanto às idéias, que fazia anotações para fazer um relatório à diretoria. Naquela reunião foi nomeada a professora Vera Candau como coordenadora. Depois de muitas articulações, foram tirados dois candidatos para presidente: Jacques Veloso e Juracy Marques. Ocorreu que o professor Jacques Veloso foi eleito com uma diferença grande de votos. E ele então, como primeiro presidente da pró-fundação da ANPEd (que só seria fundada com a elaboração do estatuto, que depois se passou a chamar de regimento), seria um presidente interino até que se fizesse o regulamento. Com isso o Jacques Veloso, como presidente eleito, escolheu como colaboradoras a Julieta Calazans e a Vera Candau. Naturalmente, eu, que havia perdido a eleição, não fui convidada para fazer parte desse pequeno comitê, embora eles mandassem depois esse regulamento para todos os coordenadores e eu tenha discutido alguns pontos desse possível futuro regulamento. Então as reuniões da ANPEd passaram a ser de dois em dois anos, e depois passou a ser anual. E ficou estabelecido, também, que nunca seria no mesmo local, que mudaria o local e que a sede da ANPEd seria o local onde estava o seu presidente. Isso ficou estabelecido logo de saída. Depois, então, vieram os desenvolvimentos, até que a ANPEd se ampliou, os coordenadores deixaram de ser figuras centrais, criaram-se os representantes etc. A reunião em si, aparentemente, foi muito cordial. Mas saímos dali com uma pessoa eleita, eleita por aqueles que estavam ali. E estavam algumas das figuras que hoje ainda são atuantes na área da educação e são pessoas que tiveram decisiva influência nos rumos da ANPEd. Mas subjacentes estavam aqueles que tinham certas desconfianças de que alguns coordenadores eram porta-vozes do governo autoritário, e queriam dilapidar a influência autoritária e passar então a gozar de uma maior autonomia e independência. Havia uma luta constante contra o poder. E algumas vezes, equivocadamente, rotulavam as pessoas ligadas ao poder, outras vezes nem desconfiavam que aqueles que pareciam tão avançados, tão independentes, eram os que estavam, de fato, ligados ao poder. Houve um momento quase shakespeariano dessa dinâmica estabelecida, do ponto de vista de quem é quem e com que identidade.

Havia muito interesse em saber quem é quem e, ao mesmo tempo, havia, da parte de alguns, uma atividade muito intensa de publicações. Em cada reunião eles distribuíam cópias dos seus artigos que já estavam publicados ou seriam publicados, sempre em revistas menores, porque o problema das revistas em educação era um problema muito complicado. Foi resolvido, acredito, nos últimos cinco anos, quando a CAPES começou a classificar as publicações. Isso retardou muito a visibilidade da pós-graduação em termos das ações que eram empreendidas.

Professora Juracy, é muito importante, em termos de análise da história da ANPEd, essa possibilidade de visualização de como foi esse processo. A senhora poderia relatar como foi essa reunião? Os coordenadores foram chamados e lhes foi dito: "É preciso que seja criada uma associação". Foi algo assim? Como foi esse processo?

A CAPES deu muita liberdade, tanto é que quem coordenou a reunião foi uma colega, Vera Candau, escolhida pelo grupo. A CAPES pagou passagens, pagou diárias, mandou o representante, mas foi como se dissesse "agora vocês se virem". Havia muita liberdade, e essa liberdade fez emergir as questões políticas que estavam subjacentes nos diálogos que se travavam. Costumávamos dizer que tínhamos apoio financeiro da CAPES, tínhamos apoio técnico dos professores mais experientes, que em geral eram da USP ou da PUC-Rio, que também tinha uma boa tradição de pesquisa em pós-graduação, mas que precisávamos criar entre nós uma rede de apoio afetivo. E isso se conseguiu, em parte, com algumas coisas e o livro Psicologia educacional: contribuições e desafios, publicado pela editora Globo de Porto Alegre, em 1980, traduz um pouco esta idéia de apoio afetivo, porque não tinha e-mail, o telefone era precário, as cartas eram demoradas, mas nós tínhamos a garra no sentido de fazer contatos e estabelecer pactos do ponto de vista de fazer avançar a pós-graduação. Então, sobrepujávamos as limitações que a própria estrutura organizacional nos impunha. E com isso foi-se avançando. Assim, a ANPEd, na sua origem, é extremamente democrática. Depois eu sei que houve uma fase, da qual participei, em que era dominada por algumas figuras, como ocorre nas federais. Nas universidades particulares - que têm estrutura, têm dono, têm quem manda, e a obediência é um valor - você tem que se adaptar a isso, caso contrário você não sobrevive. Já nas federais a liberdade é tão ampla que as pessoas se adonam, criam feudos, se apossam das áreas, invadem espaços, quer dizer, há um "vale tudo" do ponto de vista organizacional. Costumo dizer: "me dê a organização de uma particular boa, como é a PUC-RS, e me dê o recurso humano de uma federal do Rio Grande do Sul que faço um programa de pós-graduação de alto nível".

E nós tínhamos na ANPEd, no seu início, um forte aporte das particulares, principalmente da PUC-SP. Dermeval Saviani era um dos representantes, o Joel Martins era outro. A UNICAMP [Universidade Estadual de Campinas] estava surgindo, ainda não tinha a força que depois adquiriu, e as estaduais de São Paulo, incluindo a USP. Então, quebrava aquela maneira de ser das federais, que têm uma maneira peculiar de ser, que é rica, propiciadora do desenvolvimento dos recursos humanos, ímpar no sentido de estimular a carreira, mas que, muitas vezes, faz uma contradição entre o interesse institucional e o interesse individual, ficando assim o que vale para mim e o que vale para a instituição. E aí se criam conflitos quase insuperáveis.

Professora Juraci, vou retomar uma questão que foi apenas apontada, mas que penso ser interessante aprofundar. A senhora identifica um momento em que, na ANPEd, o coordenador e o representante de área se tornaram duas pessoas com funções diferentes. Poderia explicar melhor?

Diferentes e, às vezes, em oposição. No começo eram só os coordenadores dos cursos, em seguida houve uma proposta, não me lembro de onde veio, acho que de São Paulo, segundo a qual os coordenadores não poderiam ser os representantes dos cursos na ANPEd, porque eles estavam comprometidos com as autoridades, com o legalismo e com o formalismo que representavam a organização. Assumia-se que tinha de ser uma representação do corpo docente. Então decidimos, numa reunião memorável, que os coordenadores teriam uma reunião dentro cada reunião da ANPEd, mas que não seriam mais os representantes dos cursos na ANPEd, e mais, deviam ser discretos nas propostas, nas críticas, nas sugestões, para deixar que o corpo docente assumisse. Eu, na UFRGS, tinha um problema, porque havia muitos estrangeiros, e não achava que os estrangeiros fossem nos representar. Lembro que eu me impus: "Não, a primeira reunião, eu sou a representante". Não porque eu quisesse que fosse eu, era porque achava que não podia colocar um estrangeiro representando a pós-graduação. Porque até certo ponto sou nacionalista. Assim que foi possível se fez isso, e aí eu acho que a ANPEd inicialmente perdeu força, porque não tinha mais a presença do coordenador, que podia assumir determinadas decisões que são tomadas pelo coletivo; embora eles estando presentes, havia um certo pacto de silêncio dos coordenadores. Nas reuniões dos coordenadores já não havia liberdade de discussão, porque os representantes poderiam participar das reuniões dos coordenadores. Os coordenadores sentiam-se fiscalizados, acompanhados. O nível de liberdade de discussão diminuiu muito, e havia sempre um representante da CAPES nessas reuniões.

Professora, gostaria de direcionar a sua manifestação e análise para uma situação atual, mas que, parece pelas suas colocações, já vem de mais longe. Na 27ª Reunião Anual da ANPEd (novembro de 2004), na reunião do Fórum Nacional de Coordenadores de Programas de Pós-Graduação - reunião que antecede a Reunião Anual da Associação - um dos itens da pauta foi exatamente a relação entre o Fórum e a diretoria da ANPEd. O que presidiu essa discussão foi exatamente uma argumentação no sentido de que o Fórum tinha pouca autonomia, ou que estava muito "atrelado" à diretoria da ANPEd. Então, gostaria que a senhora retomasse e nos ajudasse a entender em que momento se dá essa divisão entre o representante e o coordenador, uma vez que, como a senhora afirmou, chegaram a estar em oposição. Além da relação entre os dois, há a relação com a diretoria da ANPEd. Na 27ª Reunião Anual, por exemplo, chegou-se a uma situação complicada dessa relação - diria, de quase confronto -, a ponto de uma mudança regimental ser encaminhada para a Assembléia, a fim de que esta se manifestasse sobre a necessidade de mudança do regimento para tornar o Fórum mais autônomo. Como ou qual é a gênese, a constituição desse processo?

É inegável que havia todo um problema de contexto. Em 1970 nós vivíamos em um regime autoritário, tínhamos um governo autoritário, recebíamos ordens da reitoria, ou da pró-reitoria, ou da CAPES, ou do CNPq. Não era uma sugestão; era uma ordem. E nós, por nossa vez, como coordenadores, tínhamos que dar ordens. Então, fica assim o "paraíso do autoritarismo". Eu sou uma das pessoas que apoiariam e estimulariam que houvesse um representante independente do coordenador. Que fosse porta-voz do corpo docente e do programa, e não porta-voz do governo ou da reitoria ou da pró-reitoria ou da própria Faculdade de Educação. Que fosse representante do grupo. Então, com isso se quis fazer valer o surgimento de um pensamento mais coletivo e menos calcado na liderança formal. Nessa altura nós já tínhamos aprendido que a liderança formal é uma liderança possível, mas nem sempre a mais importante, a mais verdadeira. Havia nos programas um certo medo de assumir a representação, para não entrar em conflito com a universidade, com a coordenação etc. Até que as pessoas se sentiram mais fortalecidas, até pelo apoio do coordenador, e assumiram seu papel, mas isso custou um tempo, e com isso se passou a entender que essa oposição fazia parte do nosso processo de crescimento. E que nós tínhamos que aceitar que o conflito, a oposição e a divergência não são más, antes representam algo que acaba robustecendo, fortalecendo as possibilidades futuras que aquele programa tem. O que é ruim é quando o conflito fica ocultado, disfarçado, mascarado, porque ele fica minando as ações possíveis que o programa tem que fazer para cumprir sua missão. Claro que isso provoca até sofrimento muitas vezes, incorpora um certo nível de estresse, mas "não há crescimento sem sofrimento". Um pouco de sofrimento não faz mal a ninguém, quando é bem dosado.

Com isso, acho que a ANPEd se fortaleceu. Tanto é assim que a ANPEd nunca deixou de ser uma referência para as lideranças, dentro das associações nacionais de pós-graduação. As que vieram depois copiaram o modelo da ANPEd ou da ANPOCS [Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais], que é outra associação muito forte. Uma das que surgiram logo depois foi a ANPAD [Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração], que hoje é muito sólida em suas propostas e exigências. Mas daí as áreas também foram se caracterizando com as suas culturas próprias, com os seus jargões, e a educação é uma área extremamente livre, porque é por natureza multidisciplinar. Não adianta você querer fazer educação fazendo apoio teórico em uma área, seja ela qual for, sociologia, filosofia, psicologia, qualquer outra área; ultimamente as da neurologia, da biologia, que estão crescendo muito; na última década a biologia deu um salto. A educação é fundamentalmente multidisciplinar. Somos mais tolerantes em relação a divergências teóricas porque lidamos com material que vem de todas as áreas. Quando você pensa que o professor dos quatro primeiros anos da educação fundamental dá aulas de ciências, você tem que pensar que a ciência, física, química, biologia, matemática estão juntas. Quando ele/ela dá aulas de ciências sociais, a sociologia, a política, a antropologia estão juntas. Então, a educação é multidisciplinar, e isso é um mundo, é um vasto mundo, e nós temos que aprender um termo novo, que é ser resiliente, quer dizer, aberto, tolerante, disposto a aceitar as diferenças. A resiliência é uma qualidade do educador, sob pena de ele ficar tocando na mesma tecla uma eternidade. Nós não podemos tocar a mesma tecla. Essa é uma das virtudes, e aí vem o pecado da educação: como ela é desse mundo, vasto mundo, ela acaba se prendendo a determinada área que forma seu porto seguro. Então o educador tende a fazer o seu grupo de pesquisa baseado na sua pesquisa de doutorado, e fica vinte, trinta anos fazendo aquilo, e só aquilo, e acaba se fechando para outras propostas, inclusive cortando o diálogo. O que é ruim do ponto de vista da área pode ser muito bom para a carreira do pesquisador. São contradições, conflitos, pecados com os quais a educação tem que aprender a conviver ou tentar se curar.

Há um gosto, uma inclinação da área da educação pela novidade. Uma atração pelo diferente, um certo fascínio por quem está falando outra coisa. Quer dizer, o pensamento divergente passa a ser um modo de projeção do pesquisador, enquanto em outras áreas o pensamento convergente é entendido como robustecimento da área. Isso quer dizer que nós não queremos convergência, queremos de novo aquela dispersão pela qual lutamos contra para poder organizar a área da educação no Brasil, e que começa a reaparecer dentro dessa multidisciplinaridade que se vai criando novamente.

Professora, em diversos momentos da sua fala aparece a questão da relação entre universidade e professores e outras instituições da sociedade em um contexto de ditadura, de regime autoritário. Gostaria de levantar agora uma questão de ordem mais geral nesta direção. Nós temos uma curta história da pós-graduação stricto sensu, se formos pensar em número de anos. Apesar disso, o Brasil exibe números que impressionam: são 31 mil mestres formados por ano; são oito mil doutores formados em todas as áreas... Pois bem. A pós-graduação é gestada, desenvolvida, implementada neste período que é caracterizado como um período de exceção, de autoritarismo. Então, gostaria de ouvir uma manifestação sua, uma análise dessa relação entre uma história da pós-graduação num contexto de regime de exceção. O que a senhora destacaria desse período? O que percebe como interessante? Quais foram os impedimentos e o que favoreceu a construção do que é hoje a história da pós-graduação stricto sensu no Brasil?

Penso que foi um momento bem aproveitado pelas lideranças da pós-graduação, principalmente pela mentalidade que preside os modos de funcionamento do cientista. Eu hoje tenho mais clareza sobre o papel do cientista como alguém que tem uma maneira de pensar que lhe é peculiar, que é uma das posições possíveis dentro das multidivisões de mundo em que estamos mergulhados, em que estamos inseridos. Os cientistas, a meu ver, aproveitaram a possibilidade, ainda que reduzida, que o governo autoritário nos concedia em podermos ser fiéis à ciência, e com isso então se conseguiu articular um novo paradigma de pesquisa e de pós-graduação brasileiro.

Quando houve a destituição de Darci Closs e entrou Cláudio Moura Castro, este tinha e tem o espírito alicerçado na ciência, uma cabeça voltada para a lógica científica, embora, de origem, seja economista. E ele veio e tentou fazer outras mudanças na CAPES, e foi quando entrou a idéia de avaliação. Isso, a meu ver, veio reforçar a pós-graduação, e alguns achavam que o Cláudio Moura Castro ia acabar com a pós-graduação. Não, ao contrário, robusteceu. Penso que qualquer pessoa de trabalha na pós-graduação não pode ter visão estreita, mas sim uma multivisão de mundo, e tem de ter resiliência, tem que ser elástico na sua tolerância a idéias que não correspondem exatamente com as suas. Não quer dizer que as adote imediatamente, porque seria impossível. Ele mantém a sua posição ou modifica, ou agrega, ou descarta, mas ele está sempre em mudança. Um indivíduo que não muda não pode trabalhar com educação, porque é uma área que requer uma mudança contínua para corresponder aos n contextos que se impõem. Assim, eu diria que a pós-graduação culturalmente depende, em primeiro lugar, da instituição em que ela está inserida, seja universidade, seja centro de pesquisa, seja laboratório, seja um núcleo, seja lá o que for, mas tem de estar inserida, não pode estar solta, sem as amarras de referenciais básicos. Segundo, precisa se articular fortemente com as agências de fomento e financiamento que, no caso do Brasil, são principalmente CNPq, CAPES, FINEP, algumas vezes as organizações internacionais, no caso da educação e da psicologia, a Fulbright, a Fundação Ford, a Fundação Kellogg, tem de estar entrosado com essas lideranças. Depois com as instituições internacionais, UNESCO, OEA, e tem de comparecer aos fóruns de discussões mais amplas, tem que dar visibilidade não só ao que se está fazendo, mas compreender, verificar, avaliar o que está acontecendo em outras latitudes. Então, a pós-graduação é uma área extremamente exigente, porque ela é um macromundo, mas ao mesmo tempo você se movimenta em um micromundo, que é o dos vínculos que você estabelece com seus pares, seus alunos, seus colaboradores, com sua equipe, e esses vínculos são mais duradouros do que a própria função que você exerce como educador. Porque são vínculos humanos, que acontecem, como acabou de ocorrer, com uma ex-aluna, que eu nem me lembro mais quem era, que faz 20 anos que foi minha aluna, me pedindo socorro porque está com problemas de saúde; e eu não posso me negar a isso do ponto de vista moral, nem do ponto de vista institucional. Assim, os vínculos que você estabelece, seja com os colegas ou com os alunos, seja com as instituições, são fundamentais, não existem num vazio. A pós-graduação é, sobretudo, um movimento coletivo no macro e interpessoal no micro, e isso tudo tem que ser atendido ao mesmo tempo, você tem de ter abertura, uma maneira de ser que lhe possibilite se movimentar nessas várias esferas. Se não for assim você não cumpre a função, e a pós-graduação brasileira nasceu desse modo, porque nasceu por meio da liderança de cientistas com admiráveis qualidades humanas e sociais.

Apesar do contexto, do invólucro autoritário...

Procuravam-se brechas e essas brechas eram encontradas, às vezes agressivamente, às vezes sutilmente, às vezes mascaradamente, mas elas foram encontradas, a meu ver, de uma forma ética. Eu, pessoalmente, não me considero desleal, seja com os grupos dos quais participei, seja com os próprios governos aos quais servi. No regime autoritário, uma coisa que aprendi e que me serviu para o resto da vida foi orçamento, contabilidade, controle orçamentário; os coronéis eram excelentes nisso. Eu trabalhava na Faculdade de Economia da UFRGS, colaborava na formação de professores do ensino comercial e usava as técnicas orçamentárias como exemplo. Onde eles aprenderam contabilidade eu não sei, mas eles tinham um controle orçamentário de uma clareza e de uma transparência tais que eu nunca mais me enredei com editais e pedidos de financiamento. Eu realmente aprendi, assim como aprendi inglês, aprendi a fazer orçamento e a lidar com as instituições de financiamento e fomento, que são bem complicadas, sendo necessário um certo preparo para lidar com elas.

Em resumo, diria que é isto, que alguns dos problemas que tínhamos há quarenta anos atrás persistem: nós não fomos capazes de resolver. Como educadora, por exemplo, tenho várias frustrações, uma delas é que, como a população se expandiu muito e de uma maneira demográfica não prevista do ponto de vista, por exemplo, da redução do tamanho das famílias, do movimento reverso, antes rural-urbano agora urbano-rural, não existe mais educação rural porque o transporte e a comunicação aumentaram muito, não existe o que acontecia quando iniciei o magistério: eu ministrava aulas numa classe chamada uniclasse, na qual havia 5ª série, 4ª série, 3ª série, 2ª série e 1ª série todas juntas, e eu tinha de lidar com piolhos, cáries, espinhas dos meus alunos. Isso tudo melhorou muito. A cárie, depois que passaram a usar flúor na água; o piolho, depois que descobriram o remédio - hoje a criança chega em casa com piolhos e a mãe já sabe que remédio usar; antigamente não sabia, colocava querosene na cabeça das crianças e não adiantava nada; as espinhas, por causa da alimentação e de todos os cuidados de higiene com a pele, já não são grandes problemas. Hoje os problemas são outros. Hoje o problema é dieta, o problema é corpo e como cultivar o corpo, evitando a obesidade. Do ponto de vista social, a violência, em todos os seus matizes, trazendo conflitos antes impensáveis e conseqüências trágicas, como o terrorismo, o medo, a insegurança. Mas, de qualquer forma, o que quero dizer é que, com as dificuldades, as peripécias que se enfrenta ao longo de uma carreira longa como a minha, eu tenho frustrações e superações. Uma das frustrações é não poder, depois de 40 anos de atividades dentro da área da educação, conseguir educar no sentido que lutei dentro da minha sala de aula para fazer as pessoas terem mais autoconfiança, otimismo e alegria. Um professor estrangeiro, meu amigo, diz que eu sempre gosto de dizer que os meus alunos são grandes pesquisadores, que estão fazendo isso ou aquilo; e ele me perguntou assim: "Quantos dos teus alunos de escola primária estão hoje em prisões?". Eu não soube responder. Deve ter alguns. "Quantos entraram para a delinqüência e a bandidagem?" Também não sei. "Você não tem noção porque se apega ao sucesso e tem uma tendência a negar o fracasso." E nós, educadores das décadas de 1950, 1960, falhamos muito em muitos aspectos. Porque as nossas teorias eram falhas e nós não sabíamos. Tínhamos o que o Aroldo Rodrigues chama de otimismo ingênuo. Então ficamos muito mais maliciosos do ponto de vista de ficar atentos aos deslizes, aos desvios, às fraquezas, às deficiências, ficamos muito mais sensíveis a isso, mas não encontramos as soluções que deveriam e que poderiam ser encontradas. Mas, em educação como em qualquer outra área, a luta continua e acho que essa luta vale a pena, porque as gratificações e as alegrias de poder ajudar pelo menos um entre os vinte alunos que estão naquela turma já é uma coisa compensadora do esforço. Eu sou uma pessoa que acredita na educação e acho que, quanto mais educada é a pessoa, mesmo que ela esteja desempregada e em situação de sofrimento, ela há de viver melhor.

Professora Juracy, para fecharmos esta nossa conversa: se nós passamos de um paradigma que formava professores para suprir quadros institucionais para um paradigma que buscou focalizar a pesquisa como âncora central da pós-graduação, quais são suas projeções a respeito da pós-graduação em educação no Brasil?

Eu acho que a pós-graduação tem futuro assegurado porque o conhecimento é inesgotável, porque quando se pensa ter encontrado as grandes respostas surgem outras e outras perguntas. Então, a chave da questão é formarmos pessoas, pesquisadores, pensadores que tenham o gosto de continuar aprendendo, que queiram fazer da sua vida uma busca de mais e melhor aprendizagem, não só para melhorar a sua qualidade de vida, a sua posição dentro dos micromundos em que se inserem e dos macromundos com os quais têm contato, como também terem consciência de que, de alguma maneira, ainda que mínima, contribuem para uma melhor condição de vida do ser humano na Terra.

Realizada em Porto Alegre, dezembro de 2004

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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