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Sentidos de Política, Práticas e Inclusão na Educação Especial

Meanings of Policy, Practices and Inclusion in Special Education

RESUMO

Este texto ancora-se em alguns resultados de pesquisa, em processo de finalização, com o objetivo de expor análises endereçadas aos sentidos de política, práticas e inclusão na constituição de uma hipótese como Educação Especial Moderna, captados na Declaração de Incheon, de 2015, no Marco de Ação da Educação 2030, de 2016, e, no caso brasileiro, na Base Nacional Comum Curricular, de 2018. Na condição de fontes, a Declaração, o Marco e a Base procedem a jogos de palavras que incidem sobre teorizações políticas, educacionais e curriculares que, desde finais do século XX e início do XXI, priorizam a subjetivação das relações entre indivíduos, sociedades e projetos de escolarização. A composição da subjetivação alicerça-se no indivíduo como ser criativo em potencial, possuidor da subjetividade; trata-se, assim, de um conjunto de características individuais e singulares que, apesar de construídas socialmente, subsidiam certa capacidade singular de julgamento, orientadora das suas escolhas, da sua racionalidade e das tomadas de posições.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação Especial; Modernidade; Educação Especial Moderna

ABSTRACT

This text is anchored in some research results, in the process of being finalized, with the purpose of exposing analyses addressed to the meanings of policy, practices and inclusion in the constitution of a hypothesis as Modern Special Education, captured in the 2015 Incheon Declaration, in the 2016 Education 2030 Framework for Action, and, in the Brazilian case, in the 2018 Common Core State Standards. As sources, the Declaration, the Framework and the Common Core play on words that focus on political, educational and curricular theorizations which, since the end of the 20th century and the beginning of 21st, have prioritized the subjectivation of the relations between individuals, societies and schooling projects. The composition of subjectivation is based on the individual as a potential creative being, possessor of subjectivity; thus, it involves a set of individual and singular characteristics which, despite being socially constructed, support a certain unique capacity for judgment, guiding choices, rationality and stances.

KEYWORDS
Special Education; Modernity; Modern Special Education

1 Introdução

Este texto ancora-se em alguns resultados de pesquisa3 3 Apoiada pelo CNPq e desenvolvida no Grupo de Estudos e Pesquisas Observatório de Cultura Escolar. em processo de finalização (Silva, 2021Silva, F. C. T. (2021). Textos/Documentos Curriculares Locais (2017 a 2023): escritas, discursos e comparações entre as histórias individuais e a história coletiva. CNPQ: Bolsa Produtividade em Pesquisa, Processo 305205/2020-0.), com a perspectiva de expor análises endereçadas aos sentidos de política, práticas e inclusão na constituição de nossa hipótese como Educação Especial Moderna, captados na Declaração de Incheon, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura ([Unesco], 2015)Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2015). Declaração de Incheon: Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000233137_por
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, no Marco de Ação da Educação 2030 (Unesco, 2016Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2016). Educação 2030: Marco de ação: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000243278_por
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) e, no caso brasileiro, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Ministério da Educação, 2018Ministério da Educação. (2018). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base.http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf
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), chamada, aqui, de Base, na condição de fontes4 4 Por terem sido produzidas pelos seres humanos ou por trazerem vestígios de suas ações e interferência nas agências e nas instituições. .

Realizamos a análise intercambiando estruturas mentais ou cognitivas elaboradas para guiar o mundo social, desde os anos 2000 e, especificamente, na Educação Especial, pela adoção de um vocabulário próprio na identificação do público-alvo escolar, protagonizado pela noção de inclusão e de diversidade, alicerçado em uma semelhança abstrata aos movimentos que reivindicam o reconhecimento da diferença, capaz de abstrair-lhe de todos os seus pertencimentos.

A abstração constitui-se como agente de reconversão de estratégias em um macrocampo, o campo das relações internacionais, globalizadas. Nesse campo, as fontes eleitas informam, além de recomendações, os jogos de palavras acerca de teorizações políticas, educacionais e curriculares, desde finais do século XX e início do XXI. Com isso, desencadeia-se uma “obrigação moral”, ou uma necessidade de correspondência entre os proponentes e o país, ao mesmo tempo que prioriza a subjetivação das relações entre indivíduos, sociedades e projetos de escolarização.

A composição da subjetivação alicerça-se no indivíduo como ser criativo em potencial, possuidor da subjetividade, pois abarca um conjunto de características individuais e singulares que, apesar de construídas socialmente, lhe fornecem certa capacidade singular de julgamento, orientadora de suas escolhas, de sua racionalidade e das tomadas de posições.

O indivíduo passa a ser identificado por sua biografia, construída na/pela socialização e, no caso dos com deficiência, por sua história, circunscrita a uma Educação Especial que parece não ter sido capaz de interpelar os espaços sociais por onde os indivíduos interagem, bem como ser suportada por um habitus5 5 Elemento gerador de práticas, tendo como ponto de partida a dicotomia agente social (indivíduo) e sociedade (estruturas estruturadas e estruturas estruturantes), em uma relação dialética entre interioridade e exterioridade (Bourdieu, 2008). - individual e um habitus-coletivo (Bourdieu, 1996Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: sobre a teoria da ação. Papirus.), nutridos além dos avanços e retrocessos consagrados do pensamento social ocidental.

O pensamento social ocidental encontra-se consolidado em um mundo social, particularizado em projetos de escolarização, cada vez mais definidos como o lugar de interação social entre agentes, mas ocupado por agentes determinados pelo conjunto de capitais detidos (capital econômico, social, cultural), que forma os trunfos simbólicos no espaço social (Bourdieu, 1996Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: sobre a teoria da ação. Papirus.).

Retraduzimos o espaço em um espaço intermediado por aquilo que, nos limites deste texto, tomamos como trunfos, quais sejam, as disposições do ensinar e do aprender suportadas, nas nossas fontes, como instrumentais, ao que chamamos de modernidade na/da Educação Especial. Isso porque essas disposições se assentam no desenvolvimento de competências e habilidades, ao mesmo tempo em que são informadas pela manutenção de práticas dependentes de pedagogias centradas na “autoridade dos procedimentos e atividades” formatados na crença em adaptações, adequações e flexibilizações.

As adaptações são organizadas pelo reforço do aprendizado individual, sob uma lógica de compensação quantitativa, delineada pela resposta às dificuldades manifestadas pelas áreas de deficiência; adequações compreendidas como um conjunto de modificações do planejamento, objetivos, atividades e formas de avaliação no currículo como um todo, ou em aspectos dele, para acomodar estudantes com deficiência; e flexibilizações voltadas às adequações de objetivos, à adoção de metodologias alternativas de ensino, ao redimensionamento do tempo e espaço escolar, entre outros aspectos, para que esses alunos exerçam o direito de aprender em igualdade de oportunidades e de condições.

Imersas na crença, reconhecidas como formas de violência simbólica, as adaptações situam a cumplicidade da Educação Especial com a aposta na fabricação das biografias requeridas, respaldadas por competências e habilidades, que tornem possível a alocação social desses indivíduos segundo os discursos dominantes, legitimamente reconhecidos.

Tais discursos são projetados em um mercado acadêmico-científico, corporificado no volume e na estrutura de capitais, funcionalizado na condição moderna de inclusão, por meio de modalidade de ensino, que perpassa por todos os segmentos da escolarização (da Educação Infantil ao Ensino Superior), responsável pela realização do Atendimento Educacional Especializado (AEE), constituído como recurso e serviço, particularmente no caso brasileiro.

Os locutores desprovidos de competência legítima se encontram de fato excluídos dos universos sociais onde ela é exigida, ou então, se veem condenados ao silêncio. Por conseguinte, o que é raro não é a capacidade de falar, inscrita no patrimônio biológico, universal e, portanto, essencialmente não distintivo, mas sim a competência necessária para falar a língua legítima, que, por depender do patrimônio social, retraduz distinções sociais na lógica propriamente simbólica dos desvios diferenciais ou, numa palavra, da distinção. (Bourdieu, 1996Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: sobre a teoria da ação. Papirus., p. 42)

Assim, urge a necessidade da interpretação e do enfrentamento dessa forma de modernidade, que nos parece de uma matriz epistemológica e que está a constituir-se, mesmo que incompatível com os ideais da inclusão e da equidade (Ball & Collet-Sabé, 2022Ball, S., & Collet-Sabé, J. (2022). Against school: an epistemological critique. Discourse: Studies in the Cultural Politics of Education, 43(6) 985-999. https://doi.org/10.1080/01596306.2021.1947780
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). Para tanto, este texto está organizado, além destas notas, em duas partes. Na primeira, estão registradas nossas análises e reflexões sobre os sentidos de política, práticas e inclusão, relacionadas à constituição diferenciada e suas repercussões no campo da Educação Especial, suportando a modernidade da hipótese. Na segunda, referenciada pelas fontes, incursionamos pela lógica do predomínio discursivo sobre teorizações políticas, educacionais e curriculares que, desde finais do século XX e início do XXI, informam a Educação Especial Moderna.

2 Método

Este estudo utiliza o sistema de pensamento bourdieusiano, que se concentra nas relações entre poder, cultura e desigualdade social, aproximado da produção discursiva, particularizada, aqui, nas fontes eleitas. Isso porque elas colocam em curso, para a Educação Especial, mudanças de orientação, de organização e de proposição de formação como característica do exercício de produção ideológica.

É uma produção imersa em relações de forças simbólicas, constitutivas do mercado linguístico, capazes de informar o sistema de símbolos, códigos de comunicação e interação, por onde apreendemos os sentidos em projeção.

2.1 Sentidos de política, práticas e inclusão “jogados” no campo da Educação Especial

Utilizamos, aqui, o jogo, por reconhecê-lo como atividade coletiva que existe e se perpetua pela contribuição conjunta e, diante disso, pelo investimento que carrega, que diz respeito a uma parte essencial do ser humano e de seu ser social. Cada jogo tem seu investimento emocional e, na forma como o apreendemos, porta a energia simbólica, que nos parece o mais forte incentivador dos produtos humanos.

Esse incentivo, no campo da Educação Especial, se encontra no jogo com as redes de relações entre posições objetivas, cujos sentidos de política, práticas e inclusão estão imersos nas estruturas sociais a partir de conceitos-chave, vistos como reforçadores do encontro das tramas lógicas, ou problemáticas, que evidenciam a presença de uma estrutura subjacente ao social. Isso ocorre entre a apreensão e a evidência, aceitando a existência de estruturas objetivas, independentes da consciência e da vontade dos agentes. Essa independência está relativamente presente nos sentidos de política, uma vez que, em sua gênese, o tempo e o espaço estavam determinados pela/para a iluminação do soberano e do regime, isto é, da monarquia. Na sequência, com a queda dos regimes monárquicos, aproximou-se do Estado, no contexto da formação dos Estados nacionais.

Tal gênese, segundo Rémond (2003)Rémond, R. (2003). Por uma história política. FGV., garante à política maior atenção às relações de poder estatais e demonstra o peso que suas decisões têm no cotidiano das pessoas, bem como a forma como as enfrentam, percebem as alianças e analisam as consequências envoltas na arena da política. Decorre dessa arena o registro de que, pela passagem por essas decisões, se constitui a crise da economia liberal, quando o Estado é chamado à intervenção, mesmo que diante da alteração da sua capacidade de influência.

Acresce-se, a isso, a ampliação dos domínios do Estado, principalmente pelas áreas de atuação em que passa a ter, como função, a gestão de políticas públicas como a educação, a saúde e a cultura. Tal ampliação nos remete à informação de que “o político não refere às verdadeiras realidades, quando ele tem por objeto geri-las” (Rémond, 2003Rémond, R. (2003). Por uma história política. FGV., p. 22), esbarrando no que Bourdieu (2002)Bourdieu, P. (2002). Esboço de uma teoria da prática: precedido de três estudos de etnologia kabila. Celta. nomina como “ilusão racionalista”.

Essa ilusão orienta formas de pensar a política, distanciadas dos sentidos incorporados em parte dos discursos, presentes nas fontes, imersos em situações ideais de justiça, de existência, de diálogo próprios “de como devíamos pensar o mundo em que estamos imersos”.

São situações ideais, que rejeitamos, pelo afastamento da política como fenômeno histórico-social, unicamente produto das ações do Estado, suas agências6 6 Forjada na percepção de agentes sociais dotados de alta autonomia e isentos de condicionamentos objetivos à sua ação (Bourdieu, 2000). e instituições7 7 Sistema hierarquizado de poder e privilégio, determinado tanto pelas relações materiais e/ou econômicas (salário, renda) como pelas relações simbólicas (status) e/ou culturais (escolarização) entre os indivíduos (Bourdieu, 2000). , endereçadas aos indivíduos a partir de uma lógica segundo a qual as ações devem ser procuradas na racionalidade dos agentes. A rejeição encontra eco na incorporação das formações de sentido como tributárias das suas condições de produção, resultantes de constrangimentos estruturais.

Deriva desses constrangimentos a nossa imersão nos sentidos de práticas, posicionados no campo educativo, pelo distanciamento dos modos de perceber, de sentir, de fazer, de pensar, que nos levam a agir de determinada forma em uma circunstância dada, imersas em restrições inculcadas e aceitas. Ou mesmo pela falta de indícios para o estabelecimento da relação imediata entre o papel dos projetos de escolarização, da reprodução e da legitimação das desigualdades sociais no contexto do capitalismo.

O imediatismo é informado, também, pela observação acerca da devolução das regras, em forma de ações práticas, em sintonia com o habitus do indivíduo, onde reside a criatividade do agente diante da sociedade. Tal criatividade é substituída pela necessidade de responder ao aprender a fazer (Delors, 2010Delors, J. (2010). Os quatro pilares da educação. In J Delors (Ed.), Educação: um tesouro a descobrir: relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI (1ª ed., pp. 31-32). UNESCO, Fundação Faber Castell. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000109590_por
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), referido essencialmente na aplicação dos conhecimentos teóricos em práticos.

São aqueles mesmos conhecimentos, problematizados em seus sentidos políticos, imersos em constrangimentos estruturais. Em relação à Educação Especial e suas práticas, esses constrangimentos alimentam-se de (des)encontros de perspectivas de escolarização, de um lado, incorporados em pressupostos teóricos sobre desvantagens educacionais dos indivíduos (seus pais e comunidades), centrados na deficiência perpassada pela marginalidade socioeconômica e cultural e, de outro, na defesa de que a desigualdade é desencadeada por características associadas a políticas e à instituição escolar (discriminação institucional).

No reconhecimento desses lados, por força da necessidade de leitura da complexidade do mundo social, tendo como ferramenta científica as “práticas” das ações humanas, recorremos à praxiologia (Bourdieu, 2000Bourdieu, P. (2000). O poder simbólico. Bertrand Brasil.). Nessa condição, a praxiologia apreende a prática humana no encontro do habitus com o campo, levando o agente social a desenvolver um senso prático. Em síntese, acontece em um contexto de contínua luta para a significação e a ressignificação da “verdade”, ou da doxa.

Usando-a, aqui, identificamos conteúdos dos/nos sentidos de inclusão, que perpassam pela mudança de paradigmas, pela reformulação das ações políticas e pela necessidade de se repensarem os projetos de socialização, uma vez que expressam condicionamentos materiais e simbólicos que agem sobre nós (sociedade e indivíduos) em uma complexa relação de interdependência.

A par disso, as formas de inclusão derivadas desses conteúdos estão projetadas para uma nova sociedade, justa (meritocrática), moderna (centrada na razão e nos conhecimentos científicos) e democrática (fundamentada na autonomia individual). Essas projeções respondem pela pressuposição de uma relação dialética entre sujeito e sociedade, de relação de mão dupla entre habitus individual e a estrutura de um campo, socialmente determinado. As ações, os comportamentos, as escolhas ou as aspirações individuais não derivam de cálculos ou planejamentos; são, antes, produtos da relação entre um habitus e as pressões e os estímulos de uma conjuntura (Setton, 2002Setton, M. da G. J. (2002). Família escola e mídia: um campo com novas configurações. Educação e Pesquisa, 28(1), 107-116. https://doi.org/10.1590/S1517-97022002000100008
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), vista como suporte à inclusão social e/ou escolar e, provavelmente, no campo educativo. Segundo Bourdieu (1998)Bourdieu, P. (1998). Homo Academicus. Siglo XXI., provavelmente é

por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da escola libertadora, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural. (p. 41)

Salientamos que essa aparência e esse tratamento são plenamente atendidos por quem se encontra previamente socializado nesses mesmos valores. Daí o poder simbólico de o capital econômico ainda exercer, por meio do Estado, das agências e das instituições, considerável poder para espalhar os sentidos de políticas, práticas e inclusão pela sociedade, ou projetos de escolarização, o que visibiliza possibilidades de acesso a cargos, empregos e vagas nas universidades - por meio das cotas -, como capazes de reduzir as desigualdades que acometem grupos minoritários/segregados/beneficiados.

Em conjunto, os sentidos não só repõem a necessidade do enfrentamento da modernidade, mas nos coloca diante das defesas de Touraine (1994)Touraine, A. (1994). Crítica da modernidade. Vozes. e das atuais, trazidas por Bauman (2007)Bauman, Z. (2007). Vida Líquida. Jorge Zahar., por acentuarem a ascensão do indivíduo na sociedade como uma de suas marcas. Tais defesas transitam entre o reconhecimento de que não se trata da “pura mudança, sucessão de acontecimentos, ela é difusão dos produtos da atividade racional, científica, tecnológica, administrativa” (Touraine, 1994Touraine, A. (1994). Crítica da modernidade. Vozes., p. 17) e, diante disso, “tendo derretido tudo que era sólido e profanado tudo que era sagrado, [...] introduziu a era da permanente desarmonia entre as necessidades e as capacidades” (Bauman, 2008Bauman, Z. (2008). A Sociedade Individualizada. Jorge Zahar., p. 79).

A modernidade, em sentido amplo, distingue o presente do passado pela variedade das profundas rupturas que gera, projetando o padrão de sociabilidade em torno de “três pilares fundamentais”, a saber: diferenciação/complexificação social, secularização e separação entre público e privado (Tavolaro, 2005Tavolaro, S. (2005). Existe uma modernidade brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 20(59), 5-22. https://doi.org/10.1590/S0102-69092005000300001
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). Esses pilares são impostos sobre algumas premissas, entre elas: a secularização das instituições e da sociedade, a ênfase na racionalização e na procura do novo, a tecnologia, a emergência do indivíduo (e do individualismo), um mercado competitivo e um Estado centralizado.

Dos pilares às premissas, compreendemos que a modernidade se encontra na edificação do que estamos chamando de Educação Especial Moderna, inserida na dinâmica da revolução científico-tecnológica, cada vez mais competitiva, em constante busca de novos consumidores e da intensificação do individualismo. Tal inserção é operada com a Declaração (Unesco, 2015Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2015). Declaração de Incheon: Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000233137_por
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), informada pelo Marco (Unesco, 2016Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2016). Educação 2030: Marco de ação: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000243278_por
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) e fomentada pela Base (Ministério da Educação, 2018Ministério da Educação. (2018). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base.http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf
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), com pauta nas articulações entre política, práticas determinantes para a inclusão, a igualdade e a qualidade em favor das aprendizagens ao longo da vida para todos. As articulações carregam uma espécie de ambição política, que faz das aprendizagens a base dos desenvolvimentos social e econômico, propostas como aquisição de competências e habilidades que tornem possíveis o funcionamento e a interação de todos com o mundo ao seu redor.

Nesse “todos” reside a abordagem moderna dessa educação, capaz de essencializar e concentrar-se nas dificuldades em relação ao padrão escolar, reposicionando medidas específicas de apoio e adotando uma abordagem universalista, cujas práticas dizem considerar as capacidades dos sistemas escolares de serem acessíveis e de oferecerem, portanto, uma visão ampliada dos públicos escolares.

3 Discussão

Interessa-nos, aqui, retratar a hipótese da Educação Especial Moderna, tornada uma estratégia educacional, também orientada pela oportunidade de os indivíduos com deficiência explorarem seus próprios modos de pensar, fazer e ser, orientados efetivamente para um fim pré-especificado.

Esse fim está informado nas fontes compulsadas (Declaração, Marco e Base). Para analisá-lo, entendemo-lo submetido à ideologia de uma comunidade científica, de autores desconhecidos8 8 Formado por grupos que constituem a dinâmica constante da política. , cujos princípios se pautam na produção de projetos de escolarização construídos na meritocracia, centrados na razão [do mercado], nos conhecimentos científicos e na autonomia individual.

No funcionamento dessa ideologia, apreendemos os sentidos como produtos históricos, ao mesmo tempo que desconstruídos diante das coerções e dos controles do mundo social, responsáveis pela secundarização das formas distintas e particularizadas, especificamente do campo da Educação Especial, com suas regras e regularidades. Desconstrução e secundarização mantidas na Declaração (Unesco, 2015Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2015). Declaração de Incheon: Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000233137_por
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), ao registrar o seguinte compromisso:

em caráter de urgência, com uma agenda de educação única e renovada, que seja holística, ousada e ambiciosa, que não deixe ninguém para trás. Essa nova visão é inteiramente captada pelo ODS 4 “Assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” e suas metas correspondentes. (p. 1)

Sob a perspectiva dessa agenda, fundada na urgência e na promoção de oportunidades, assistimos à imposição da presença do finalismo, contrário à própria estrutura do campo, definida pelo estado de relações de força entre os protagonistas em luta - indivíduos ou instituições - e pela estrutura da distribuição do capital específico.

A distribuição também é singularizada no sentido de inclusão, ajustado ao de equidade, considerados alicerces de uma agenda de educação transformadora, com a função de “enfrentar todas as formas de exclusão e marginalização, bem como disparidades e desigualdades no acesso, na participação e nos resultados de aprendizagem. Nenhuma meta de educação deverá ser considerada cumprida a menos que tenha sido atingida por todos” [Declaração] (Unesco, 2015Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2015). Declaração de Incheon: Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000233137_por
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Entre o enfrentamento e o cumprimento, reclamamos que a estrutura da distribuição do capital específico se encontra subsumida na base das transformações do próprio campo e se manifesta, por sua vez, por intermédio de estratégias de conservação ou de subversão da estrutura que ela mesma produz (Bourdieu, 2008Bourdieu, P. (2008). A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In M. A. Nogueira, & A. Catani (Orgs.), Escritos de educação: Pierre Bourdieu (1ª ed., pp. 39-64). Vozes.). Isso porque não se considera que as possibilidades de transformação variam de acordo com a posição ocupada pelos agentes e, portanto, estão distantes da proposição de uma educação de qualidade que promova

criatividade e conhecimento e também assegura a aquisição de habilidades básicas em alfabetização e matemática, bem como habilidades analíticas e de resolução de problemas, habilidades de alto nível cognitivo e habilidades interpessoais e sociais. Além disso, ela desenvolve habilidades, valores e atitudes que permitem aos cidadãos levar vidas saudáveis e plenas, tomar decisões conscientes e responder a desafios locais e globais por meio da educação para o desenvolvimento sustentável (EDS) e da educação para a cidadania global (ECG) [Declaração]. (Unesco, 2015Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2015). Declaração de Incheon: Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000233137_por
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, p. 4)

As acepções EDS e ECG, centrais no Marco (Unesco, 2016Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2016). Educação 2030: Marco de ação: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000243278_por
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), são acrescidas de enfoques estratégicos que preveem o fortalecimento de políticas, planos, legislações e sistemas para a promoção dessas educações como meio de inclusão, voltadas aos países membros, mesmo àqueles em situação de emergência, até 2030.

A par disso, os objetivos globais voltam-se ao resguardo de uma educação primária e secundária completa, gratuita, justa e de qualidade, preparadora de todas as crianças, já na primeira infância, para a educação ao longo de toda a vida. Depreendemos, desse resguardo e preparo, certa conexão com a Declaração (Unesco, 2015Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2015). Declaração de Incheon: Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000233137_por
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), na manutenção dos sentidos de política, revestidos das ações e das estratégias combinadas para materializá-las, ao mesmo tempo que limitados aos programas nominados de transferência de renda, de oferta de merenda, de saúde, de transporte e de distribuição de materiais didáticos.

Para dar forma a esses programas, são chamados governos e parceiros, de um lado, para instituírem planejamentos e ambientes sensíveis à garantia da oferta de educação gratuita e da remoção de barreiras (relacionadas a custos) e, de outro, para a formação de professores e o monitoramento dos currículos, com o intuito de que o ensino e a aprendizagem causem o mesmo impacto.

Governos e parceiros são idealizados como formuladores de políticas para o campo educativo e, nesse contexto, educação como prática, adequadamente financiada, por parcerias robustas para a garantia do direito às aprendizagens. Contudo, na formulação das parcerias, constatamos a presença dos sentidos em conjunto, na proposição de metas específicas, mensuráveis e aplicáveis globalmente, traduzidas como metas locais, por meio de parcerias e de financiamentos das partes interessadas, sendo necessário “estabelecer padrões de excelência intermediários adequados, por meio de um processo inclusivo, com total transparência e responsabilização, de forma a engajar todos os parceiros, para que o governo assuma a liderança e haja um entendimento comum” [Declaração] (Unesco, 2015Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2015). Declaração de Incheon: Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000233137_por
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, p. 12).

Tal entendimento se restringe a um modo de conhecimento teórico do mundo social, para nós erguido sobre distanciamentos estratégicos da percepção das dicotômicas estruturas da realidade, traduzidas pelos jogos de interesses entre governos e parceiros, produtos de condicionamentos. Os condicionamentos estão informados pelo fim pré-especificado, formatado na tentativa de ajustamento à estrutura social existente, sempre remetendo a toda e qualquer busca de justiça, de equidade e de inclusão como parte da redução das desigualdades, mas sem alterar a sua estrutura geradora.

Nessa remessa, identificamos que o crescimento educacional, gerador de indivíduos mais conscientes politicamente, de um lado, responde à posse de práticas mais qualificadas e avançadas moralmente e, de outro, é fomentado por habilidades e competências. Para a qualificação e o avanço, as práticas encontram-se sob a perspectiva do que será ensinado, de forma que os itens aprendidos tenham função para a vida, que possam ser utilizados de imediato ou em situações futuras do cotidiano e que estejam vinculados ao aumento do modo de funcionamento no meio onde se vive. As habilidades e as competências identificam-se em como se processa o tempo, como se dá o amadurecimento das estruturas cognitivas e como elas são potencialmente trabalhadas.

Dito de outra forma, a diferenciação e a complexificação social são asseguradas em modos alternativos de educação e aprendizagens, com o reconhecimento e o crédito do Estado, voltados à garantia da flexibilidade, desde a oferta de educação gratuita até a modificação da forma de definir padrões e revisar currículos.

Nesse trajeto entre a oferta e a modificação, deparamo-nos com a Base (Ministério da Educação, 2018Ministério da Educação. (2018). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base.http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf
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), operadora dos sentidos, justificada na necessidade de atualizar os conhecimentos formativos a que todos têm direito de acesso, ou seja, conteúdos da subjetivação.

Um ensino de qualidade, que busca formar cidadãos capazes de interferir criticamente na realidade para transformá-la, deve também contemplar o desenvolvimento de capacidades que possibilitem adaptações às complexas condições e alternativas de trabalho que temos hoje e a lidar com a rapidez na produção e na circulação de novos conhecimentos e informações, que têm sido avassaladores e crescentes. (Ministério da Educação, 1997Ministério da Educação. (1997). Parâmetros Curriculares Nacionais: Introdução. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
, p. 34, ênfase adicionada)

Para o acesso a eles, o espaço escolar e o espaço social são construções, de tal modo que os agentes, ou os grupos, sejam distribuídos em função de sua posição, ampliadas e particularizadas de acordo com os dois princípios de diferenciação que, em sociedades mais desenvolvidas, são, sem dúvida, os mais eficientes, isto é, o capital econômico e o capital cultural.

Esses capitais passam a ser orientadores das escolhas, da racionalidade e das tomadas de posições, tanto daqueles que se diferenciam como daqueles que querem se diferenciar, pressupondo, por práticas discursivas, a interação entre os agentes, sua história de vida e seu dispositivo cognitivo, formadores de visões de mundo, preferências e gostos. Contudo, essa interação dá lugar à redução dos agentes ao domínio de algo que é exteriorizado a eles, sob a forma de comportamento e, especificamente, como conteúdo.

Tal exteriorização responde, também, aos direitos de acesso aos conhecimentos formativos como de todos e para todos, configurados, portanto, em individuais e universais, veiculados como forma de garantia das lutas por reconhecimento. Lutas que reputamos como parte fundamental da vida social, mas nas quais identificamos que o que está em jogo ainda perpassa pelo acúmulo de alguma forma de capital, reposicionando a lógica da reprodução, com o seu reconhecido poder de preservação.

Desse reconhecimento, opera-se o desenvolvimento dos sistemas de avaliações, para avaliar resultados de aprendizagens, por meio da modificação e da regulamentação de legislações, currículos de projetos de escolarização e formação de professores para tais projetos, fazendo surgir a figura do Estado-educador, indicando que governos e partes interessadas devem atuar juntos no planejamento e na execução das metas. Essas metas encontram-se na configuração da Base (Ministério da Educação, 2018Ministério da Educação. (2018). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base.http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf
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), informadas desde a responsabilidade pelo monitoramento, em atenção à construção de mecanismos efetivos de responsabilização junto à sociedade civil [Declaração] (Unesco, 2015Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2015). Declaração de Incheon: Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000233137_por
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf...
).

A Declaração (Unesco, 2015Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2015). Declaração de Incheon: Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000233137_por
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), o Marco (Unesco, 2016Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2016). Educação 2030: Marco de ação: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000243278_por
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) e a Base (Ministério da Educação, 2018Ministério da Educação. (2018). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base.http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf
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) evidenciam a responsabilização como marcador simbólico que expressa distinção (Bourdieu, 1979Bourdieu, P. (1979). La distinction: critique sociale dujugement. Minuit.), mostrada quando expressa a cultura dominante que, por sua vez, contribui para a integração real da classe dominante, por meio do habitus, assegurando a comunicação imediata entre todos os seus membros e os distinguindo das demais classes sociais.

Sob essa perspectiva, a Educação Especial Moderna vem se desenhando na mesma esteira da educação transformadora, respondendo ao reconhecimento das desigualdades estruturais endêmicas, da escola e da sociedade, perpetuadas na exclusão e no aumento da vulnerabilidade de determinados grupos populacionais, entre eles os com deficiência, dotando, para concretizar esse propósito, as mesmas ferramentas questionáveis.

Essas ferramentas, ao longo do tempo, transitam entre os princípios presentes nos diálogos com o campo educativo, em uma espécie de secularização, circunscritas às bases didáticas e organizativas do currículo, nos níveis organizacional e pedagógico. No primeiro, objetificados na diferenciação dos patamares de exigência dentro de um mesmo currículo e, no segundo, nas diferenciações de estratégias, percursos e modos de organização do trabalho de ensinar e aprender em face das aprendizagens comuns.

Em suma, independentemente dos motivos que se encontrem na sua origem, praticamente essas ferramentas insistem no reconhecimento de que os fatores limitadores do desenvolvimento da “antiga” Educação Especial estão sendo enfrentados na Educação Especial Moderna. Vemos essa insistência remetida à existência de um campo de poder, na construção de um conhecimento racional da dominação, por meio da relação entre as instituições de educação, os governos e os grandes parceiros, traçando suas características diante das defesas trazidas pelas fontes.

Exatamente nesse campo do poder, os custos emocionais e vivenciais de uma história constituída em um mundo social conhecido desaparecem diante de todo o aparato institucional imposto na/pela legitimidade e força social (instituições, agências, parceiros, governos etc.), que desempenham papel crucial na formação de agentes singulares que atuarão em um projeto de sociedade, também singular.

Esse valor, estimado pela força social, entra em confronto com questões públicas para a coletividade e as preocupações dos indivíduos em nossa época e, no caso da Educação Especial Moderna, compromete-se com o entrelaçamento entre os aspectos de ordem política (modelo social) e os que compõem a vida do sujeito com deficiência, tornando efetivas as requisições da promoção da criação de mercados de “oportunidades de aprendizagem” (Pronko, 2022Pronko, M. (2022). Criando mercados de “oportunidades de aprendizagem”: a corporação financeira internacional e o exemplo da Coursera. Revista Trabalho Necessário, 20(42), 1-21. https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.54021
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).

Tais mercados se tornam sofisticados por sistemas discursivos, ancorados na revolução científico-tecnológica, operada na superação da separação entre o público (Estado) e o privado (parceiros), enfatizando uma educação transformadora, que não deixe ninguém para trás. Educação introdutora da lógica dessa modernidade, em que se tenta ocultar a ideologia, mas que se compromete, de forma intencional ou não, com as enunciações dialógicas, presentes nas fontes compulsadas. Para Bourdieu (2008)Bourdieu, P. (2008). A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In M. A. Nogueira, & A. Catani (Orgs.), Escritos de educação: Pierre Bourdieu (1ª ed., pp. 39-64). Vozes.,

embora seja legítimo tratar as relações sociais - e as próprias relações de dominação - como interações simbólicas, isto é, como relações de comunicação que implicam conhecimento e o reconhecimento, não se deve esquecer que as trocas linguísticas - relações de comunicação por excelência - são também relações de poder simbólico onde se atualizam as relações de força entre os locutores ou seus respectivos grupos. Em suma, é preciso superar a alternativa comum entre economicismo e o culturalismo, para tentar elaborar uma economia das trocas simbólicas. (p. 24)

A economia é suportada, quase sistematicamente, por uma espécie de transcendental histórico comum, que se torna imanente a todos os seus “agentes”, ao cabo de um longo processo de incorporação, instituindo e inculcando formas simbólicas comuns de pensamento, contextos sociais da percepção, do entendimento ou da memória, formas educativas e sociais de classificação, na dinâmica de um mundo social voltado à concorrência, com novos consumidores saídos do individualismo, ditos comprometidos com a heterogeneidade e as diferenças culturais.

Trata-se de uma suposta visão renovada e ampliada, em ligação estreita com praticar uma educação para todos, enfatizada pela criação das próprias categorias, noções e termos por meio dos quais se nomeiam a sociedade e o mundo. Não se trata apenas de identificar e tornar visível o processo pelo qual se cria a “modernidade”, que acaba por tomar impossível pensar e nominar outras “ideologias”, no plano da qualificação, de domínios educativos alargados, do emprego, da proteção social, quando não alcançamos o exercício das funções distributivas e redistributivas.

4 Conclusões

Resta-nos, agora, estabelecer algumas reflexões, na condição de notas, no exercício de síntese das análises endereçadas aos sentidos de política, práticas e inclusão na constituição de nossa hipótese como Educação Especial Moderna.

No final do século XX, o campo educativo reorientou-se a partir de princípios registrados em Relatórios, Declarações, Leis, Decretos e, obviamente, currículos oficiais, transformando profundamente o capitalismo, as sociedades e seus projetos educativos. Pouco depois dessas transformações, fomos iniciados na imersão em propostas e ideias de modernização da educação, visíveis nos registros nominados, por meio da política e das práticas, mesmo diante de debates sobre as complexas relações entre os capitais, as lutas pela autoridade científica e, em destaque, para a rede de ligações estruturais e funcionais que entrelaça os projetos de escolarização às estratégias de manutenção de posições de prestígio no jogo (Bourdieu, 2008Bourdieu, P. (2008). A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In M. A. Nogueira, & A. Catani (Orgs.), Escritos de educação: Pierre Bourdieu (1ª ed., pp. 39-64). Vozes.).

Esse entrelaçamento se encontra objetivado nas instituições ou nos indivíduos, cujo interesse se dá como o investimento em um jogo, criado e reforçado simultaneamente pelo próprio jogo. Quanto ao prestígio é retratado na racionalização e na procura do novo, na tecnologia, na emergência do indivíduo (e do individualismo), no mercado competitivo, delineado pelo Estado, as agências e as instituições que contribuem para a reprodução dos instrumentos de construção da realidade social, regulando práticas e impondo classificação.

Então, como nesse cenário a Educação Especial se moderniza, basta a entendermos aproximada, nas análises precedentes, das estruturas cognitivas incorporadas, legitimadas em atos de união dos sentidos investigados, ou na separação dos quesitos para o alcance do fim pré-especificado. Os quesitos refletem-se na constituição da educação inclusiva, que surge sem a investigação profunda das permanências e das rupturas dentro do campo educativo e dos espaços sociais, impondo mudanças nas maneiras de fazer e de reconhecer poder e capital simbólicos.

Parte da educação inclusiva, proposta como transformadora, resulta do cruzamento dos sentidos de política e práticas, mas, indiscutivelmente, a inclusão, alçada a orientação nacional oficial, responde às exigências do setor produtivo e às demandas da maioria diversa, dissimulando a dominação e ocultando a presença do particular.

Quando vista além daquilo que se encontra na superfície, a Educação Especial Moderna, sinônimo de educação inclusiva, não estaria informada apenas pelo potencial da transformação, ou mesmo do fim pré-estabelecido, subsumidos aos processos de escolarização (acesso, inclusão, permanência, enfrentamento e redução da evasão) e de escolaridade (distribuição menos injusta de conhecimentos científicos).

Não se trata apenas de reconhecer a educação inclusiva como “a” modernidade da Educação Especial, tampouco problematizá-la, mas, sim, de reconhecer que, na estrutura social vigente e em seus processos produtivos, a Educação Especial não pode ser justificada, uma vez que, relativizando sua capacidade de apreender a totalidade dos sentidos, torna a educação para todos insustentável.

Por fim, a modernidade não é inexorável na sua trajetória de desenvolvimento, e os sentidos comprovam como estes estão longe de serem lineares. Ao considerarmos as estruturas estruturantes e estruturadas, permitimo-nos compreender como a reprodução e a mudança social têm lugar em distintos espaço/tempo e que tendências precisam ser analisadas, como aqui fizemos.

  • 3
    Apoiada pelo CNPq e desenvolvida no Grupo de Estudos e Pesquisas Observatório de Cultura Escolar.
  • 4
    Por terem sido produzidas pelos seres humanos ou por trazerem vestígios de suas ações e interferência nas agências e nas instituições.
  • 5
    Elemento gerador de práticas, tendo como ponto de partida a dicotomia agente social (indivíduo) e sociedade (estruturas estruturadas e estruturas estruturantes), em uma relação dialética entre interioridade e exterioridade (Bourdieu, 2008Bourdieu, P. (2008). A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In M. A. Nogueira, & A. Catani (Orgs.), Escritos de educação: Pierre Bourdieu (1ª ed., pp. 39-64). Vozes.).
  • 6
    Forjada na percepção de agentes sociais dotados de alta autonomia e isentos de condicionamentos objetivos à sua ação (Bourdieu, 2000Bourdieu, P. (2000). O poder simbólico. Bertrand Brasil.).
  • 7
    Sistema hierarquizado de poder e privilégio, determinado tanto pelas relações materiais e/ou econômicas (salário, renda) como pelas relações simbólicas (status) e/ou culturais (escolarização) entre os indivíduos (Bourdieu, 2000Bourdieu, P. (2000). O poder simbólico. Bertrand Brasil.).
  • 8
    Formado por grupos que constituem a dinâmica constante da política.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2024
  • Revisado
    07 Jun 2024
  • Aceito
    11 Jun 2024
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