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Estudo de raios cósmicos utilizando uma câmara de nuvens de baixo custo

Cosmic ray study using a low cost cloud chamber

Resumos

A partir de imagens de raios cósmicos obtidas com uma câmara de nuvens de baixo custo, são apresentados, discutidos e classificados os principais fenômenos observados em tal experimento.

câmara de nuvens; partículas elementares; raios cósmicos


Using images from cosmic rays interactions obtained with a low cost cloud chamber, the main observed phenomena in such an experiment are presented, discussed and classified.

cloud chamber; elementary particles; cosmic ray


ARTIGOS GERAIS

Estudo de raios cósmicos utilizando uma câmara de nuvens de baixo custo

Cosmic ray study using a low cost cloud chamber

Caio Laganá1 1 E-mail: caiolagana@gmail.com.

Instituto de Física Teórica, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", São Paulo, SP, Brazil

RESUMO

A partir de imagens de raios cósmicos obtidas com uma câmara de nuvens de baixo custo, são apresentados, discutidos e classificados os principais fenômenos observados em tal experimento.

Palavras-chave: câmara de nuvens, partículas elementares, raios cósmicos.

ABSTRACT

Using images from cosmic rays interactions obtained with a low cost cloud chamber, the main observed phenomena in such an experiment are presented, discussed and classified.

Keywords: cloud chamber, elementary particles, cosmic ray.

1. Introdução

A grande distância entre prática e teoria é, muitas vezes, um fator limitante no aprendizado de física. Em sua estada no Brasil, David Bohm observou "tendências nos estudantes brasileiros de desprezo ao trabalho manual, concentração em assuntos matemáticos avançados e crença de que a física desenvolve-se por atos de genialidade" [1]. Felizmente, o desenvolvimento da indústria e o consequente barateamento de certos materiais tornou possível a construção de experimentos de baixo custo capazes de ilustrar parte da teoria presente nos livros texto didáticos. Nesse aspecto, talvez um dos casos mais interessantes seja a câmara de nuvens: um detector simples mas que é capaz de mostrar diretamente a existência de partículas subatômicas.

Este trabalho apresenta o funcionamento de uma câmara de núvens e disponibiliza, em versão eletrônica online, o material de apoio para a sua construção e utilização [2]. Além disso, a partir de imagens de traços de partículas cósmicas obtidas com o experimento, é feita uma análise da física envolvida no arranjo, onde são apresentados, discutidos e classificados os principais fenômenos presentes em uma câmara de nuvens.

2. A Câmara de nuvens

A câmara de nuvens foi o primeiro detector capaz de mostrar traços produzidos por partículas subatômicas. Ela foi inventada por Charles Wilson em 1911 [3], e amplamente utilizada no estudo de partículas elemen tares [4-6], tendo como um de seus maiores trunfos a descoberta do pósitron por Anderson em 1932 [7].

Apesar do surgimento de outros tipos de detectores ao longo do século XX, mais versáteis e de melhor resolução, a câmara de nuvens manteve-se atual, tento sido objeto de pesquisa tanto na área de partículas elementares [8 , 9] como no estudo de interação de partículas carregadas com a matéria [10-12] e em física nuclear [13, 14].

2.1. Arranjo e funcionamento

Um desenho esquemático da câmara de nuvens é mostrado na Fig. 1. Um recipiente de vidro (A) é apoiado sobre uma placa metálica (F) parcialmente submersa numa mistura de álcool comum e gelo seco (G), que se encontra armazenada em um recipiente de isopor (H). Um reservatório (D) mantém um pedaço de papel (B) afixado na parte superior interna do vidro constantemente embebido em álcool isopropílico (C).


Como o papel está à temperatura ambiente, o álcool contido nele evapora, preenchendo todo o recipiente de vidro. A parte do vapor mais próxima à placa metálica se resfria, pois a placa está em contato com a mistura de álcool e gelo seco a -78.5 ºC. Ao resfriar, a densidade do vapor aumenta, e ele acaba por se condensar sobre a placa, ao mesmo tempo que mais vapor presente na parte inferior da câmara se resfria. Esse processo dá origem a um ciclo de convecção,2 2 A câmara de nuvens baseada nesse ciclo de convecção foi desenvolvida por Langsdorf em 1936 [ 15], e tem a vantagem de operar ininterruptamente por horas, ao contrário do aparato original de Wilson, que funcionava através da expansão do vapor contido nela, produzindo traços apenas em intervalos de alguns segundos. onde o álcool está constantemente evaporando do papel na parte superior da câmara e se condensando sobre a placa metálica na parte inferior.

O principal interesse nesse ciclo é o estado do vapor imediatamente acima da placa (até uma altura de ~1 cm), onde ele se encontra supersaturado. Quando uma partícula carregada passa pelo vapor supersaturado de álcool, ela ioniza as moléculas que estão em seu caminho. A ionização, por sua vez, induz a condensação das gotículas de álcool, formando um traço que, quando iluminado por um conjunto de LED's (E), pode ser observado a olho nu.

Como o tempo de duração de um traço é muito curto (da ordem de 1 s), uma câmera de vídeo digital foi utilizada para registrar os eventos. Assim, a obtenção das imagens e análise dos traços foi feita posteriormente a partir das filmagens. Todas as imagens apresentadas neste trabalho tiveram suas cores invertidas para facilitar a visualização.

3. Classificação e análise dos principais fenômenos presentes em uma câmara de nuvens

A câmara de nuvens só é capaz de registrar traços de partículas carregadas. Existem duas principais fontes destas partículas que podem ser observadas com uma câmara de nuvens: materiais radioativos (Tabela 1) e raios cósmicos (Tabela 2). Este trabalho tratará de raios cósmicos.

Raios cósmicos são predominantemente prótons ou núcleos leves provenientes de processos estelares que chegam até a Terra. Ao encontrarem a atmosfera superior, essas partículas colidem com as moléculas do ar, produzindo, em seguida, uma cascata de partículas elementares em um processo conhecido como "chuveiro de partículas" [17, 18]. A maioria das partículas que compõem o chuveiro se desintegra rapidamente ainda na alta atmosfera, mas algumas delas (Tabela 2) vivem o suficiente para atingirem o nível do mar, podendo ser observadas na câmara de nuvens.

O chuveiro iniciado pelos prótons é uma fonte riquíssima para o estudo das partículas elementares e, ainda que ao nível do mar restem praticamente apenas múons e elétrons, tais partículas apresentam uma grande diversidade de fenômenos físicos interessantes. Os principais deles serão detalhados a seguir.

3.1. Partículas de baixa energia

Partículas com energia da ordem de 0.05 MeV são comumente observadas em uma câmara de nuvens exposta a raios cósmicos, e podem ser identificadas através de um comportamento característico: a grande quantidade de desvios em sua trajetória (Fig. 2). Tal comportamento será discutido a seguir.3 3 Outra maneira de se obter a energia dessas partículas seria utilizando um campo magnético, entretanto tal método não foi empregado ao longo deste trabalho.


A seção de choque diferencial do espalhamento de um elétron por um núcleo é dada pela Eq. [19]

onde T é a energia cinética do elétron espalhado, E sua energia total e θ o ângulo com que o elétron foi espalhado em relação à direção em que ele se propagava (ver Tabela 3 para valores dos demais parâmetros). Como dσ/dΩ é proporcional a 1=E2, quanto menor a energia do elétron, maiores as chances dele sofrer uma colisão, dando origem aos desvios na trajetória.

Integrando a Eq. (1) em θ para determinar a seção de choque total4 4 Como a seção de choque diverge para θ = 0, a integral foi feita a partir de θ =3 º. Dessa forma, para fins de análise, são considerados apenas desvios na trajetória maiores que 3º, que é aproximadamente a melhor resolução que se tem nas imagens. σ, é possível obter o caminho livre médio,5 5 O caminho livre médio é a distância média que uma partícula percorre antes de sofrer uma colisão. Na presente análise, uma "colisão" é qualquer desvio maior que 3 º. l, para elétrons em vapor de álcool, dado pela equação

onde ρ é a densidade do vapor de álcool. Um gráfico de l como função da energia cinética é mostrado na Fig. 3.


Utilizando uma régua para medir as distâncias que a partícula da Fig. 2 percorre antes de sofrer um desvio, obtém-se o caminho livre médio dessa partícula, estimado em l =0.04 cm. Utilizando o gráfico da Fig. 3, conclui-se que a energia dessa partícula, supondo-a um elétron ou múon, é da ordem de 0.05 MeV. Em sua maioria, tais partículas não têm origem cósmica, mas são provenientes de um fenômeno secundário que acontece na câmara de nuvens: são elétrons de ionização. 6 6 Elétrons provenientes dos chuveiros costumam ter energia mais alta, uma vez que sua principal fonte é o decaimento do múon, que, em repouso, produz elétrons com energias em torno de 53 MeV [18].

3.2. Elétrons de ionização

Quando uma partícula energética passa próxima a um átomo, ela pode arrancar algum de seus elétrons, dando origem a um elétron de ionização (Fig. 4). Elétrons de ionização são comuns, e compõem a maior parte das partículas de baixa energia (≈ 0.05 MeV) observadas na cãmara.


O número de elétrons de ionização com energia cinética T arrancados (por centímetro) por múons de energia cinética T0 é dado pela Eq. [18]

O gráfico da Eq. (3) pode ser visto na Fig. 5 (linha cheia, eixo da esquerda).


Elétrons de ionização tipicamente percorrem apenas alguns centímetros até depositarem toda sua energia no vapor de álcool e pararem. Um gráfico da distância máxima percorrida por um elétron de ionização (Dmax) como função da sua energia cinética pode ser visto na Fig. 5 (linha tracejada, eixo da direita). 7 7 O gráfico da Fig. 5 correspondente a distância máxima percorrida por elétrons em vapor de álcool foi feito a partir de um ajuste parabólico a dados experimentais extraídos de [20].

A partir da Fig. 5, observa-se que, apesar da abundância de elétrons de ionização de baixa energia (T< 0.01 MeV), tais elétrons deixam traços muito curtos, Dmax < 1 mm, de forma que não podem ser observados; conforme a energia dos elétrons ionizados aumenta, a distância máxima percorrida por eles também cresce, entretanto a probabilidade deles serem arrancados diminui.

O balanço entre número de elétrons arrancados e distância máxima percorrida concentra a energia dos elétrons de ionização tipicamente observados na câmara de nuvens em torno de 0.05 MeV. Esse valor é compatível com a energia estimada através do caminho livre médio para tra¸ cos como os das Figs. 2 e 4.

3.3. Prótons

Alguns prótons secundários produzidos nos chuveiros atingem o nível do mar [17], podendo ser observados na câmara de nuvens. Tais eventos são relativamente raros (≈ 0.9 m-2s-1sr-1 [18]), mas têm um traço bem característico: reto e extremamente forte, como mostra a Fig. 6.


A explicação para esse traço característico deixado pelo próton na câmara de nuvens vem da descrição da interação de partículas carregadas com a matéria.

Quando uma partícula carregada passa pelo vapor de álcool, ela deposita energia predominantemente através da ionização das moléculas do vapor. A taxa de deposição de energia em função da energia cinética T é dada pela fórmula de Bethe-Bloch [18],

onde m é a massa da partícula incidente e I a energia de ionização da molécula de álcool. O gráfico correspondente à Eq. (4) pode ser visto na Fig. 7.


Por terem uma massa maior, prótons não relativísticos (T < mp ≈ 103 MeV) depositam muito mais energia no vapor de álcool do que os múons, portanto ionizam mais moléculas, deixando um traço mais espesso.

Para altas energias (T > 1 GeV) a deposição de energia do próton e do múon tende a ser a mesma (notar a escala logarítmica do gráfico), de forma que a distinção entre múons e prótons não pode ser feita a partir da intensidade do traço.

3.4. Partículas de alta energia

A produção de partículas de alta energia em laboratório não é uma tarefa simples, no entanto elas estão presentes em certa abundância nos raios cósmicos, e é um privilégio poder estudá-las com um arranjo tão simples como a câmara de nuvens. Esta seção é dedicada ao estudo de partículas energéticas.

Traços retos, como os da Fig. 8, são característicos de partículas energéticas (T > 100 MeV), pois elas têm menos chances de colidirem com as moléculas do vapor de álcool, dando origem a um traço praticamente sem desvios.


Uma análise através do caminho livre médio permite concluir apenas que a energia dessas partículas deve ser maior que 1 MeV, já que elas atravessam a câmara inteira (10 cm) sem desvios, entretanto não é possível estimar o valor exato de sua energia.

Nesse ponto, um olhar cuidadoso sobre as Figs. 2 e 8 revela algo interessante: o traço das partículas energéticas (Fig. 8) é muito mais fraco que das de baixa energia (Fig. 2), o que está de acordo com a equação de Bethe-Bloch, que prevê que partículas energéticas ionizam menos que as de baixa energia.

Quantitativamente, para que a ionização seja baixa e o traço das partículas energéticas fique fraco, a energia dessas partículas deve ser superior a 100 MeV.

Segundo o Review of Particle Physics do Particle Data Group [18], a distribuição de energia de múons ao nível do mar tem uma média em torno de 4 GeV, e seu fluxo é de, aproximadamente, 1 cm-2min-1. A energia dos elétrons costuma ser menor, de forma que apenas 30% deles têm energia superior a 80 MeV [17].

Apêndice Constantes e parâmetros utilizados

4. Conclusão

Este trabalho fez uma análise da física envolvida na câmara de nuvens, utilizando imagens de partículas cósmicas obtidas com o experimento como base e motivação do estudo. Foi possível classificar os principais fenômenos observados na câmara de nuvens em quatro casos: 1) Partículas de baixa energia, 2) Elétrons de ionização, 3) Prótons e 4) Partículas de alta energia.

Cada um desses fenômenos produz um traço característico que pode ser identificado e entendido a partir do conteúdo apresentado neste trabalho. Além disso, o matérial disponível na rede [2] serve de apoio para a construção de uma câmara de nuvens, possibilitanto ao leitor investigar por conta própria a teoria aqui discutida.

Agradecimentos

Agradeço à prof. Sandra Padula e ao prof. Hélio Takai por instrutivos esclarecimentos e fortes motivações.

Recebido em 6/5/2010; Aceito em 13/6/2011; Publicado em 28/9/2011

  • [1] Olival Freire Jr., Michel Paty e Alberto Luiz da Rocha Barros, Estud. Av. 8, 20 (1994).
  • [2] C. Laganá, sites.google.com/site/caiolagana/ cloud-chamber-construcao
    » link
  • [3] N.N. Das Gupta and S.K. Ghosh, Rev. Mod. Phys. 18, 2 (1946).
  • [4] Carl D. Anderson and Seth Neddermeyer, Phys. Rev. 50, 4 (1936).
  • [5] Carl D. Anderson and Seth Neddermeyer, Rev. Mod. Phys. 11, 3-4 (1939).
  • [6] Carl D. Anderson, Phys. Rev. 41, 4 (1932).
  • [7] Carl D. Anderson, Phys. Rev. 43, 6 (1933).
  • [8] A.F. Clark, H.F. Finn, N.E. Hansen and D. E. Smith, Phys. Rev. D 10, 9 (1974).
  • [9] A.L. Hodson et. al, Phys. Rev. 96, 4 (1954).
  • [10] Kiyotaka Kakazu and Shuichi Matsumoto, Phys. Rev. A 42, 9 (1990).
  • [11] B.V. Sreekantan, S.C. Tonwar and P.R. Viswanath, Phys. Rev. D 28, 5 (1983).
  • [12] I. Saavedra, Nuclear Instruments 3, 2 (1958).
  • [13] M. Vlasov, M.B. Fedorov and V.P. Vertebnii, Ukrain. Fiz. Zhur. 6, 6 (1961).
  • [14] N. D'Angelo, Phys. Rev. 114, 1 (1959).
  • [15] A. Langsdorf, Rev. Sci. Instr. 10, 91 (1939).
  • [16] National Nuclear Data Center www.nndc.bnl.gov/ chart
    » link
  • [17] K.F. Peter Greider, Cosmic Rays at Earth (Elsevier, New York, 2001).
  • [18] K. Nakamura, A.L. Hodson, J. Ballam, W.H. Arnold, D.R. Harris, R. Ronald Rau, George T. Reynolds and S.B Treiman, J. Phys. G. 37, 075021 (2010).
  • [19] David J. Griffths, Introduction to Elementary Particles, (Wiley-VCH, Weinheim, 2008).
  • [20] National Institute of Standards and Technology, physics.nist.gov/PhysRefData
    » link
  • [21] http://www.engineeringtoolbox.com/ thermal-conductivity-d_429.html
    » link
  • 1
    E-mail:
  • 2
    A câmara de nuvens baseada nesse ciclo de convecção foi desenvolvida por Langsdorf em 1936 [
    15], e tem a vantagem de operar ininterruptamente por horas, ao contrário do aparato original de Wilson, que funcionava através da expansão do vapor contido nela, produzindo traços apenas em intervalos de alguns segundos.
  • 3
    Outra maneira de se obter a energia dessas partículas seria utilizando um campo magnético, entretanto tal método não foi empregado ao longo deste trabalho.
  • 4
    Como a seção de choque diverge para θ = 0, a integral foi feita a partir de θ =3
    º. Dessa forma, para fins de análise, são considerados apenas desvios na trajetória maiores que 3º, que é aproximadamente a melhor resolução que se tem nas imagens.
  • 5
    O caminho livre médio é a distância média que uma partícula percorre antes de sofrer uma colisão. Na presente análise, uma "colisão" é qualquer desvio maior que 3
    º.
  • 6
    Elétrons provenientes dos chuveiros costumam ter energia mais alta, uma vez que sua principal fonte é o decaimento do múon, que, em repouso, produz elétrons com energias em torno de 53 MeV [18].
  • 7
    O gráfico da
    Fig. 5 correspondente a distância máxima percorrida por elétrons em vapor de álcool foi feito a partir de um ajuste parabólico a dados experimentais extraídos de [20].
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011

    Histórico

    • Aceito
      28 Set 2011
    • Revisado
      13 Jun 2011
    • Recebido
      06 Maio 2010
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