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Distorção da obra eletromagnética de Ampère nos livros didáticos

Distortion of Ampère's electromagnetic work in the textbooks

Resumos

Analisamos como alguns livros didáticos representativos apresentam a obra eletromagnética de Ampère. Mostramos que as informações apresentadas são distorcidas e que não correspondem à realidade histórica. Isto leva a uma visão errônea da evolução da física e da formulação de suas leis.

eletrodinâmica; lei de Ampère; força de Ampère; livros didáticos


We analyze how some representative textbooks present Ampère's electromagnetic work. We show that this information is distorted and does not correspond to the historical facts. This leads to an erroneous view about the evolution of physics and about the formulation of its laws.

eletrodynamics; Ampère's law; Ampère's force; textbooks


ARTIGOS GERAIS

Distorção da obra eletromagnética de Ampère nos livros didáticos

Distortion of Ampère's electromagnetic work in the textbooks

J.P.M.C. Chaib; A.K.T. Assis1 1 E-mail: assis@ifi.unicamp.br.

Instituto de Física Gleb Wataghin, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil

RESUMO

Analisamos como alguns livros didáticos representativos apresentam a obra eletromagnética de Ampère. Mostramos que as informações apresentadas são distorcidas e que não correspondem à realidade histórica. Isto leva a uma visão errônea da evolução da física e da formulação de suas leis.

Palavras-chave: eletrodinâmica, lei de Ampère, força de Ampère, livros didáticos.

ABSTRACT

We analyze how some representative textbooks present Ampère's electromagnetic work. We show that this information is distorted and does not correspond to the historical facts. This leads to an erroneous view about the evolution of physics and about the formulation of its laws.

Keywords: eletrodynamics, Ampère's law, Ampère's force, textbooks.

1. Introdução2 2 Uma versão anterior deste trabalho foi apresentada no X Encontro de Pesquisa em Ensino de Física ocorrido em Londrina, PR, de 15 a 19 de agosto de 2006: J.P.M.C. Chaib e A.K.T. Assis, "Apresentacão Distorcida da Obra de Ampère nos Livros Didáticos".

Nosso objetivo neste artigo é o de analisar como alguns livros-texto representativos apresentam as leis magnéticas e de interação entre condutores no caso de correntes constantes. Veremos que são apresentadas distorções históricas que não correspondem à realidade dos fatos.

Kuhn apresenta uma descrição clara dos objetivos e da estrutura dos livros didáticos adotados em ciências,3 3 Ver Ref. [1], p. 178. nossa ênfase:

Os exemplos precedentes colocam em evidência, cada um no contexto de uma revolução determinada, os começos de uma reconstrução histórica que é regularmente completada por textos científicos pós-revolucionários. Mas nessa reconstrução está envolvido algo mais do que a multiplicação de distorções históricas semelhantes às ilustradas acima. Essas distorções tornam as revoluções invisíveis; a disposição do material que ainda permanece visível nos textos científicos implica um processo que, se realmente existisse, negaria toda e qualquer função das revoluções. Os manuais, por visarem familiarizar rapidamente o estudante com o que a comunidade científica contemporânea julga conhecer, examinam as várias experiências, conceitos, leis e teorias da ciência normal em vigor tão isolada e sucessivamente quanto possível. Enquanto pedagogia, essa técnica de apresentação está acima de qualquer crítica. Mas, quando combinada com a atmosfera geralmente a-histórica dos escritos científicos e com as distorções ocasionais ou sistemáticas examinadas acima, existem grandes possibilidades de que essa técnica cause a seguinte impressão: a ciência alcançou seu estado atual através de uma série de descobertas e invenções individuais, às quais, uma vez reunidas, constituem a coleção moderna dos conhecimentos técnicos. O manual sugere que os cientistas procuram realizar, desde os primeiros empreendimentos científicos, os objetivos particulares presentes nos paradigmas atuais. Num processo freqüentemente comparado à adição de tijolos a uma construção, os cientistas juntaram um a um os fatos, conceitos, leis ou teorias ao caudal de informações proporcionado pelo manual científico contemporâneo. Mas não é assim que a ciência se desenvolve.

Como conseqüência, alguns fatos históricos são distorcidos, conscientemente ou não, pelos livros didáticos. Com isto, muitas vezes se oculta a disputa de paradigmas que existiu em uma dada época. Estas distorções acontecem a ponto de se creditar idéias a autores que não as conceberam. Também se chega a estabelecer uma ordem histórica das concepções de forma errônea para que, no final das contas, a seqüência estabelecida pelo livro didático se enquadre coerentemente com a idéia de acúmulo linear de conhecimento.

Como exemplo desta linha editorial dominante, explicitaremos as contradições históricas encontradas em alguns livros didáticos usados no decorrer da formação do físico, desde sua graduação até seu doutoramento. Os exemplos escolhidos são representativos daquilo que se encontra em diversos outros livros similares. Em particular, lidaremos com aspectos da eletrodinâmica clássica relacionados com a interação entre ímãs e correntes, e também com a interação entre dois condutores transportando correntes constantes. Mais especificamente, trataremos da lei circuital magnética e da força de Ampère.

Neste caso, usualmente é traçada uma linha da evolução da eletrodinâmica obedecendo à seqüência Oersted, Biot-Savart, Ampère, Faraday e Maxwell. Cada um acrescentando formalmente uma determinada parcela de conhecimento para o acúmulo e desenvolvimento da ciência do eletromagnetismo.

O que temos de ponto passivo entre todos os livros e os documentos históricos é que os trabalhos sobre a eletrodinâmica tiveram um salto qualitativo a partir de um artigo de Oersted de 1820 intitulado Experiências Sobre o Efeito do Conflito Elétrico sobre a Agulha Magnética, [2]. Neste trabalho Oersted apresenta sua descoberta fundamental da deflexão de uma agulha magnética por um circuito próximo no qual circula uma corrente constante. Entre os vários filósofos da natureza que, logo após saberem do trabalho de Oersted, passaram a estudar a relação entre o galvanismo (efeitos produzidos por uma corrente elétrica) e o magnetismo, destacam-se Jean-Baptiste Biot, Félix Savart e André-Marie Ampère.

2. Análise de alguns livros didáticos representativos

Começamos agora nossa análise de alguns livros-texto relevantes.

Purcell destaca que Ampère deu uma formulação matemática completa e elegante da interação de correntes estacionárias e da equivalência entre a matéria magnetizada e sistemas de correntes permanentes.4 4 Ver Ref. [3], p. 162. No entanto, não explicita quais os resultados matemáticos que o físico francês alcançou. Nas Seções 5.1 e 5.2 de seu livro, p. 139 a 142, Purcell apresenta um resumo dos resultados experimentais de Oersted e de Ampère. Mas afirma que não vai adotar a apresentação histórica dos fenômenos e leis: Nós podemos apenas dizer que a história real mostra claramente um caminho que vai desde a agulha magnética de Oersted até os postulados de Einstein. Neste capítulo e no cap. 6 seguiremos esse caminho quase em sentido contrário.5 5 Ver Ref. [3], p. 140. Esta apresentação da física em sentido contrário aos acontecimentos históricos impede que sejam discutidas as contradições epistemológicas que ocorreram ao longo do tempo. Com isto, Purcell mantém a idéia de que o processo de construção das leis que descrevem os efeitos naturais é linear. A visão histórica atrapalharia a concepção didática do livro baseada neste fundamento.

Tipler,6 6 Ver Ref. [4], p. 205 e 207. afirma:

As primeiras fontes de campo magnético conhecidas foram os ímãs permanentes. Um mês depois de Oersted anunciar a descoberta de que a posição da agulha de uma bússola é afetada por uma corrente elétrica, Jean Baptiste Biot e Felix Savart usaram um ímã permanente para medir a força nas proximidades de um fio comprido e analisaram os resultados em termos do campo magnético produzido por elementos de corrente ao longo do fio. André-Marie Ampère levou adiante estes experimentos e mostrou que um fio percorrido por corrente também experimenta uma força na presença de um campo magnético e que dois fios percorridos por uma corrente elétrica se atraem ou se repelem mutuamente, dependendo do sentido da corrente. (...) A Eq. (29-3), conhecida como lei de Biot-Savart, também foi formulada por Ampère.

Essa equação 29-3 tem a seguinte forma

Nessa expressão dB é o campo magnético gerado no ponto r = r pelo elemento de corrente Id localizado na origem do sistema de coordenadas. Esta é a maneira moderna de se expressar a lei de Biot-Savart no sistema internacional de unidades e em notação vetorial. Queremos chamar a atenção aqui para a cronologia apresentada por Tipler e para sua afirmação de que Ampère também formulou esta lei. Isto não corresponde à realidade. Também não é correto afirmar que Biot e Savart analisaram os resultados em termos do campo magnético produzido pelo fio. Em nenhum momento mencionaram o conceito de campo, apenas falaram da força exercida pelo fio sobre as moléculas magnéticas do ímã.

Prestemos atenção nas datas.7 7 Ver Ref. [5], p. 23, 118 e 140, e Ref. [6], p. 236-238. Em 4 de setembro de 1820 Arago informa a Academia de Ciências francesa sobre a descoberta de Oersted, repetindo a experiência de Oersted perante a Academia em 11 de setembro. Ampère apresenta para a Academia diversos resultados experimentais nas reuniões de 18 e 25 de setembro, assim como em 2 e 9 de outubro de 1820. Entre outras coisas, mostrou experimentalmente que dois fios paralelos transportando correntes constantes se atraem ou se repelem dependendo da direção das correntes. Em 20 de outubro do mesmo ano Ampère publica seu artigo sobre a ação mútua entre duas correntes elétricas. Apenas dez dias depois, em 30 de outubro, Biot e Savart anunciam seus primeiros resultados sobre o torque exercido por um longo fio retilíneo com corrente constante atuando sobre um pequeno ímã. Ou seja, Ampère apresentou seus primeiros trabalhos antes de Biot e de Savart. Logo, está incorreto afirmar que Ampère levou adiante as experiências de Biot e de Savart.

Além disso, Ampère não chegou a nenhuma expressão para o campo magnético devido a um elemento de corrente. Em vez disso, ele trabalhava com a força à distância entre dois elementos de corrente I1d

1 e I2d
2. E chegou ao final de suas pesquisas na seguinte expressão para esta força, em notação vetorial moderna e no sistema internacional de unidades8 8 Ver Ref. [7], p. 70.

Percebe-se que, ao contrário do que foi afirmado, Ampère produziu seu trabalho independentemente de Biot e de Savart, chegando aos primeiros resultados antes de Biot e de Savart. E mais, estes dois trabalhos foram baseados em princípios epistemológicos diferentes. Enquanto que o trabalho de Biot e de Savart descreve a força exercida por um elemento de corrente elétrica sobre um pólo magnético, a força de Ampère descreve uma ação à distância entre os elementos de corrente de dois fios pertencentes a circuitos diferentes. Já a Eq. (1), por outro lado, trata de uma nova entidade conceitual que não foi introduzida por Biot, por Savart, nem por Ampère, a saber, o campo magnético.

Ampère chegou a afirmar explicitamente que era contrário à idéia de uma matéria elétrica (de certa forma análoga ao campo magnético de hoje em dia) circulando ao redor de um fio com corrente. Citamos aqui alguns trechos de sua obra principal publicada em 1827, intitulada Teoria Matemática dos Fenômenos Eletrodinâmicos Deduzida Unicamente da Experiência,9 9 Ver Ref. [8], p. 175-8. com tradução para o inglês em:10 10 Ver Ref. [5], p. 155 a 157.

11 11 Páginas 175-6 do original em francês (entre colchetes vão nossas palavras). A época marcada pelos trabalhos de Newton na história das ciências não é somente [o período] das descobertas mais importantes que o homem fez sobre as causas dos grandes fenômenos da natureza, é também a época onde o espírito humano abriu uma nova rota nas ciências que tem por objeto estudar estes fenômenos.

Até então tinha-se quase que exclusivamente procurado as causas [dos fenômenos naturais] no impulso de um fluido desconhecido que arrastava as partículas materiais seguindo a direção de suas próprias partículas. E para todo lugar onde se via um movimento giratório, imaginava-se um turbilhão no mesmo sentido.

Newton nos ensinou que este tipo de movimento deve, como todos os que a natureza nos oferece, ser reduzido pelo cálculo a forças agindo sempre entre duas partículas materiais seguindo a reta que as une, de maneira que a ação exercida por uma delas sobre a outra seja igual e oposta à ação que esta última [partícula] exerce ao mesmo tempo sobre a primeira. Conseqüentemente não se pode, quando se supõem estas duas partículas invariavelmente ligadas entre si, resultar qualquer movimento [do centro de massa do sistema] devido à ação mútua entre elas.

12 12 Páginas 177-8 do original em francês (entre colchetes vão nossas palavras). Não parece que este caminho [newtoniano] - o único que pode conduzir a resultados independentes de toda hipótese - seja preferido pelos físicos do resto da Europa, tal como é [preferido] pelos franceses. E o sábio ilustre [Oersted] que viu pela primeira vez os pólos de um ímã transladados pela ação de um fio condutor em direções perpendiculares à direção do fio, concluiu que a matéria elétrica girava em torno deste, e empurrava os pólos no sentido de seu movimento, precisamente como Descartes girava a matéria de seus turbilhões no sentido das revoluções planetárias. Guiado pelos princípios da filosofia newtoniana, reduzi o fenômeno observado pelo Sr. Oersted - como se fez com respeito a todos os fenômenos do mesmo gênero que nos oferece a natureza - às forças agindo sempre ao longo da reta que une as duas partículas entre as quais as forças se exercem.

Ou seja, para explicar o torque sobre a agulha imantada de uma bússola, que faz com que ela fique perpendicular a um longo fio com corrente com o qual está interagindo (se desprezarmos a ação devida ao magnetismo terrestre), Ampère não utiliza nenhuma matéria circulando o fio. Também não utiliza nenhum campo magnético dando voltas no fio (como estamos acostumados a fazer usando a regra da mão direita). Em vez disto, Ampère explica o fenômeno utilizando forças de ação e reação entre o fio com corrente e as correntes microscópicas dentro da agulha magnetizada, forças estas ao longo da reta que une cada par de elementos de corrente, Eq. (2).

Usamos tão freqüentemente a noção de um fio com corrente gerando campo magnético que achamos que Ampère já pensava assim. Como vimos acima, em vez disso ele combatia essa noção. Um dos responsáveis por nossa visão deturpada nesse aspecto é, sem dúvida alguma, o conteúdo dos livros-texto atuais. Feynman, Leighton e Sands, por exemplo, dão a entender que o objetivo principal de Ampère era o de entender como uma corrente elétrica gera um campo magnético,13 13 Ver Ref. [9], p. 13-3. nossa ênfase: Gostaríamos agora de tentar descobrir as leis que determinam como estes campos magnéticos são criados. A questão é: Dada uma corrente, qual campo magnético ela gera? A resposta a esta questão foi determinada experimentalmente por três experiências críticas e por um argumento teórico brilhante dado por Ampère. Por mais que esta seja uma pergunta introdutória e com o intuito didático, seu peso epistemológico é muito grande. Talvez a melhor frase descrevendo o real objetivo de Ampère fosse algo como: Dada uma corrente elétrica, como ela atua em outra corrente elétrica? Ou então: Qual é a força que um fio com corrente exerce sobre outro fio com corrente? A pergunta apresentada por Feynman, Leighton e Sands não é epistemologicamente equivalente a estas duas perguntas que acabamos de descrever. Elas embutem diferentes concepções sobre a natureza, sobre suas entidades fundamentais, sobre como estas entidades ou grandezas atuam entre si etc.

O conflito de paradigmas é evidente. A Eq. (2) é discrepante em relação à linha de pensamento da física atual, que descreve os fenômenos naturais através de uma interação mediada por campos. Oersted, Faraday e Maxwell defendiam que as interações eletromagnéticas eram intermediadas por um ente material, seja ele chamado de vórtice ou de éter. Ampère, por outro lado, descrevia as interações eletrodinâmicas por ação à distância entre elementos de corrente, sem qualquer mediação.

Hoje em dia se descreve a interação entre dois elementos de corrente através da noção de campo magnético na forma

Aqui o termo dB2 é justamente o campo magnético definido pela Eq. (1).

Estas duas formulações, Eqs. (2) e (3), não são diferentes apenas do ponto de vista filosófico. A força de Ampère obedece à terceira lei de Newton na forma forte (ação e reação ao longo da reta que une os dois elementos de corrente), enquanto que a Eq. (3) em geral não obedece à lei de ação e reação nem mesmo na forma fraca.

Porém, quando ambas as forças são integradas ao longo de dois circuitos fechados que estão interagindo entre si, pode-se manipulá-las analiticamente de modo que o resultado final torna-se idêntico. Isto é, embora a expressão da força entre dois elementos de corrente dada por Ampère seja diferente da expressão dada pela Eq. (3), a força entre dois circuitos fechados, obtida pela integração das duas expressões, é a mesma, a saber

Disto surge uma grande confusão. Vários livros apresentam a Eq. (4) como sendo a força de Ampère:14 14 Ver Refs. [10], p. 166, [11], p. 253, [12], p. 218, e [13], p. 177. Mas de fato a Eq. (4) pode ser obtida por integração tanto partindo da força de Ampère, Eq. (2), quanto da Eq. (3), juntamente com o campo magnético dado pela Eq. (1).

Halliday, Resnick e Walker, na quarta edição de seu livro apresentam a Eq. (1) acima como sendo a lei de Biot e Savart, [14]. Depois afirmam:15 15 Ver Ref. [14], p. 190.

Podemos calcular o campo magnético criado por qualquer distribuição de corrente, usando a lei de Biot-Savart - o equivalente magnético da lei de Coulomb. Novamente, em casos difíceis, temos de recorrer ao cálculo numérico, usando um computador. Entretanto, voltando-se à Tabela 37-2 e examinando as equações do eletromagnetismo reunidas (equações de Maxwell), não encontraremos a Lei de Biot-Savart entre elas. Em seu lugar encontramos a lei de Ampère, inicialmente desenvolvida por Andre Marie Ampère (1775-1836).

O que os autores chamam de lei de Ampère é apresentada logo abaixo desta citação, a saber

Nesta expressão i é a corrente líquida englobada pela curva fechada na qual se faz a integral de linha do campo magnético. Em termos diferenciais esta lei pode ser escrita como

Aqui J é a densidade volumétrica de corrente.

No entanto, em seu trabalho mais importante, [8], não há sinal de que Ampère tenha formulado esta lei na forma diferencial nem na forma integral. Então, quem a formulou? O primeiro a chegar nas Eqs. (5) e (6) no caso de correntes constantes não foi Ampère mas sim o próprio Maxwell, em 1855, em seu primeiro artigo sobre eletromagnetismo16 16 Ver Ref. [15], p. 242-245. .

Esta informação é omitida na maioria dos livros. Somando-se a isto o fato de que não é apresentada, nem historicamente, a formulação alternativa de Ampère para a força entre elementos de corrente, leva-se a acreditar que foi realmente Ampère que concebeu as Eqs. (5) e (6).

Em sua sexta edição, Halliday, Resnick e Walker se corrigem ao se referirem à Eq. (5): Esta lei, que pode ser deduzida a partir da lei de Biot-Savart, tradicionalmente é creditada a André Marie Ampère (1775-1836), cujo nome foi dado à unidade SI de corrente elétrica. Entretanto, na verdade a lei foi desenvolvida pelo físico inglês James Clerk Maxwell.17 17 Ver Ref. [16], p. 169. Porém não elucidam qual foi a contribuição de Ampère, nem o motivo de ter sido dado o nome de Ampère à unidade de corrente no Sistema Internacional de Unidades.

Segundo Purcell,18 18 Ver Ref. [3], p. 68. nossa expressão entre colchetes, A palavra 'rotacional', introduzida por Maxwell, lembra-nos que um campo vetorial com rot F diferente de zero [Ñ × F ¹ 0], tem circuitação, ou vorticidade. Alguns porta-vozes da teoria do éter defendiam que a ação de uma corrente criava um vórtice, ou seja, um redemoinho do meio material ao redor do fio com corrente. Este vórtice, por sua vez, causaria a interação do fio com um ímã próximo ou com um outro fio com corrente.19 19 Ver Refs. [2], p. 121, e [17]. Sendo assim, não fica difícil entender porque Maxwell se empenhou em formalizar as equações da eletrodinâmica em termos de rotacionais e divergentes de campos, chegando finalmente na Eq. (5).

Porém, esta equação estava incompleta. O próprio Maxwell corrigiu-se acrescentando mais um termo à Eq. (5), resultando na equação

Esta última equação pode ser derivada tanto da força de Ampère quanto da Eq. (1), levando-se em consideração a equação de conservação de cargas.20 20 Ver Ref. [7], p. 84-86.

Ora, torna-se contraditório afirmar, como fizeram Feynman, Leighton e Sands, que até o trabalho de Maxwell, as leis conhecidas da eletricidade e magnetismo eram aquelas que estudamos nos Capítulos 3 até 17. Em particular, a equação para o campo magnético de correntes estacionárias era conhecida unicamente como × B = J e0c2.21 21 Ver Ref. [9], p. 18-1. Afinal de contas, foi o próprio Maxwell quem encontrou esta equação, como vimos acima.

No entanto, vários autores insistem em atribuir diretamente ou indiretamente a Ampère a autoria das Eqs. (5) e (6). Com isto reforçam a idéia de que Maxwell teve a perspicácia de notar que estas equações estavam incompletas, chegando na forma final da Eq. (7).22 22 Para exemplos desta falsa concepção ver, por exemplo, Refs. [12], p. 348-349, [13], p. 237-239, e [18], p. 323.

Porém, se introduzirmos um pouco de contexto histórico, parece que na verdade Maxwell buscava uma formulação de campos para a eletrodinâmica. Com isto em mente chegou inicialmente na Eq. (5), corrigindo-a em seguida até chegar na Eq. (7).

3. Conclusão

Nota-se então que os livros didáticos trazem erros que reforçam a idéia de linearidade na história da ciência. Ou seja, onde os conceitos antigos estão superados pelos novos. Desse modo se pode inferir que não vale a pena entrar em detalhes históricos a respeito dos conceitos considerados ultrapassados. De fato é uma tarefa difícil para um livro didático explicitar o caminho da ciência enquanto uma trajetória tortuosa e não como um acúmulo linear. Contudo a contradição e o debate não podem ser encarados como algo fora do comum ou prejudicial à classe, ao livro, à ciência ou à formação dos estudantes. De outra forma estaremos nos educando para termos uma prática sectária, na qual se impede o surgimento de idéias novas e criativas, promovendo apenas um pensamento único.

Diz-se que aprendemos com o passado para evitar os erros do futuro. Mas pelo fato do aluno de física ter pouco contato com os textos históricos, fatalmente será doutrinado dentro de uma visão estreita sobre a construção da ciência propriamente dita. E o cientista terá, em sua formação, uma lacuna crítica a respeito de sua própria profissão.

Com este artigo, esperamos ter contribuído para colocar em discussão o problema e minimizar este dano.

Agradecimento

J.P.M.C. Chaib agradece à Funcamp - Unicamp pelo apoio financeiro concedido através de uma bolsa de doutorado durante a qual foi realizado este trabalho.

Recebido em 9/3/2006; Aceito em 28/11/2006

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  • 1
    E-mail:
  • 2
    Uma versão anterior deste trabalho foi apresentada no X Encontro de Pesquisa em Ensino de Física ocorrido em Londrina, PR, de 15 a 19 de agosto de 2006: J.P.M.C. Chaib e A.K.T. Assis, "Apresentacão Distorcida da Obra de Ampère nos Livros Didáticos".
  • 3
    Ver Ref. [1], p. 178.
  • 4
    Ver Ref. [3], p. 162.
  • 5
    Ver Ref. [3], p. 140.
  • 6
    Ver Ref. [4], p. 205 e 207.
  • 7
    Ver Ref. [5], p. 23, 118 e 140, e Ref. [6], p. 236-238.
  • 8
    Ver Ref. [7], p. 70.
  • 9
    Ver Ref. [8], p. 175-8.
  • 10
    Ver Ref. [5], p. 155 a 157.
  • 11
    Páginas 175-6 do original em francês (entre colchetes vão nossas palavras).
  • 12
    Páginas 177-8 do original em francês (entre colchetes vão nossas palavras).
  • 13
    Ver Ref. [9], p. 13-3.
  • 14
    Ver Refs. [10], p. 166, [11], p. 253, [12], p. 218, e [13], p. 177.
  • 15
    Ver Ref. [14], p. 190.
  • 16
    Ver Ref. [15], p. 242-245.
  • 17
    Ver Ref. [16], p. 169.
  • 18
    Ver Ref. [3], p. 68.
  • 19
    Ver Refs. [2], p. 121, e [17].
  • 20
    Ver Ref. [7], p. 84-86.
  • 21
    Ver Ref. [9], p. 18-1.
  • 22
    Para exemplos desta falsa concepção ver, por exemplo, Refs. [12], p. 348-349, [13], p. 237-239, e [18], p. 323.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jun 2007
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Aceito
      28 Nov 2006
    • Recebido
      09 Mar 2006
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