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A noção de integração docente-assistencial: planejadores de saúde como intelectuais orgânicos.

INTRODUÇÃO

Durante as últimas três décadas o setor saúde na América Latina tem sido invadido por sucessivas “ideologias sanitárias”, normalmente geradas nos EUA e difundidas pelo continente através da chamada dependência tecnológica. Após a Segunda Guerra Mundial, no bojo de uma profunda mudança de orientação no ensino médico dos países latino-americanos (da tradição européia para a influência norte-americana), apareceu o movimento da medicina preventiva como a solução para os problemas de saúde do continente.11. AROUCA.Antonio Sérgio. O Dilema Preventivista. Tese de Doutoramento, UNICAMP, S. Paulo, 1975 (mimeo.). Como parte da sua proposta a medicina preventiva oferecia uma visão “integral” do paciente, propunha uma nova unidade de prática, a família, e apresentava um novo conceito de saúde e doença.22. lbd. Ver tb. RODRIGUES DA SILVA, Guilherme. Origens da Medicina Preventiva como disciplina do ensino médico. Rev. Hosp. Clin. Fac. Med. S. Paulo, 28:91-96, 1973. Tal proposta encontrava-se intimamente relacionada à teoria do “ciclo vicioso da saúde e doença”, que não se tinha desenvolvido no interior da escola médica mas sim relacionava-se com algumas teorias econômicas de desenvolvimento e modernização.33. AROUCA, A. S. Problemas e perspectivas das reformas em saúde. Palestra no Encontro Nacional sobre Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Salvador-BA, agosto, 1978.

Entretanto, se por um lado o movimento preventivista implicava em uma nova ideologia que conseguia atenuar alguns aspectos da crise da medicina norte-americana nas décadas de 30 e 40, por outro lado ela revelou certas contradições internas como parte do seu próprio processo histórico, principalmente no que concerne à sua prática.44. AROUCA, A. S. O Dilema . . . op. cit. O modelo alternativo desenvolvido então, a chamada medicina comunitária ou saúde comunitária, representava uma proposta de operacionalização do conhecimento preventivista, ao tempo em que enfatizava algumas funções político-ideológicas dos programas de saúde mais relacionadas ao tipo de populações-alvo consideradas.55. Ver principalmente PAIM, Jairnilson. Medicina Comunitária: Introdução a uma análise crítica. Saúde em Debate, 1:9-12, 1976; Tb. DONNANGELO, Maria Cecília e PEREIRA, Luís. Saúde e Sociedade. São Paulo, Duas Cidades, 1976. Devido às suas características particulares, a ideologia da medicina comunitária foi transplantada aos países do Terceiro Mundo inicialmente sob a forma de programas de demonstração, financiados por agências e fundações internacionais de saúde, e posteriormente os seus conceitos básicos foram introduzidos nas políticas oficiais de saúde de algumas nações, conforme discutimos em outra oportunidade.66. ALMEIDA FILHO, Naomar de. Community Medicine and Dependent Development in Latin America. Seminar on Medical Anthropology, Univ. North Carolina, 1979.

Como parte de tal processo de transplantação, muitos elementos têm sido acrescentados ao modelo original, de modo a adaptá-lo a diferentes contextos, tais como a ênfase sobre a extensão de cobertura, uma noção de participação comunitária um tanto diferente e, sobretudo, a idéia de integração docente-assistencial.77. Sobre a noção de extensão da cobertura, ver OPS. Processos de extensión de la cobertura de servicios de salud. Tema 18, Discussiones Técnicas, Washington, 1976. Uma interessante abordagem crítica, também utilizando categorias gramscianas, foi feita por PELLEGRINI FILHO, Alberto e RIVERA, Francisco. A questão agrária e a extensão de cobertura dos serviços de sáude no campo. Rio, PESES, 1978 (xerox). A noção de participação comunitária é apresentada por HEVIA, Patrício. Modelos de participación de la comunidad en los programs de salud. Ed. Med. Salud., 11(3):258-275, 1977. Para um aporte crítico, ver principalmente DONNANGELO, M. C. e PEREIRA, L. op. cit. Os conceitos básicos da Integração Docente Assistencial podem ser encontrados em OPS/OMS. Princípios básicos para el desarrollo de la educación médica en la America Latina y el Caribe. Informe final. Ed. Med. Salud. 10(2):109-139, 1976. Esta última tem se tornado tão importante que ultimamente vem sendo tratada independentemente da medicina comunitária, talvez constituindo-se em uma nova e fundamental perspectiva no campo do planejamento de saúde naqueles países.88. Conf. MACEDO, Carlyle. Recursos Humanos para Assistência Simplificada e IDA. Anais, IX Conferência das Escolas de Saúde Pública da América Latina, Fund. Oswaldo Cruz, Rio, 1976; tb. PAHO/WHO. Health Manpower Planning. A Comparative Study in Four Countries. Washington, DHEW Publ. 78-94, 1978. Apesar das suas origens no interior de escolas médicas, esta noção tem assumido um a importância cada vez maior entre administradores e planejadores que atuam no sistema oficial de saúde daqueles países.99. No Brasil, como um exemplo muito ilustrativo, pode-se mencionar o PPREPS, conduzido pelo Ministério da Saúde com apoio do Ministério da Educação e Cultura e da Organização Panamericana da Saúde, que tem o seguinte objetivo: “a promoção e o apoio-a experiências de integração docente-assistencial em saúde, com o propósito de adequar a formação dos profissionais de saúde aos requerimentos de sistemas regionalizados e integrados de serviços que correspondam às necessidades da população e operem com a sua participação”. (MACEDO, C. Recursos Humanos para a Saúde. Congresso Brasileiro de Higiene, XIX, São Paulo, novembro 1977. xerox, p. 26.)

O propósito do presente trabalho é analisar a apresentação da idéia de integração docente-assistencial em um grupo profissional específico, administradores e planejado res de saúde, a fim de abordar algumas das condições objetivas que a geraram e que ela reflete, tanto a nível institucional como ao nível sócio-político mais amplo.

ASPECTOS CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS

Como um pré-requisito básico ao desenvolvimento da análise proposta, poderíamos considerar a sugestão de Lichtman de que a tarefa é revelar os modos específicos de mistificação que permeiam as instituições sociais, relacioná-los entre si, à ideologia e ao desenvolvimento básico da vida econômica”.1010. LICHTMAN, Richard. Marx’s Theory of Ideology. Social. Rev. 23: 45-76, 1975, p.64. Nesse sentido, a concepção de intelectualidade orgânica de Antonio Gramsci significa uma orientação, potencialmente mais rica, para guiar tal tentativa de análise .

De acordo com Gramsci, a burguesia mantém o seu domínio através da formação e da reprodução de dois tipos de intelectuais com responsabilidades ideológicas específicas: intelectuais tradicionais e intelectuais orgânicos. Os primeiros não têm as suas atividades tão diretamente relacionadas com as demandas práticas da ordem capitalista porque eles normalmente representam setores obsoletos do pensamento burguês, não mais capacitados a funcionar como uma vanguarda ideológica. Esta tarefa é reservada para os intelectuais orgânicos que, de fato, reproduzem e modernizam a ideologia a serviço da hegemonia burguesa.1111. Esta parte da obra de Gramsci pode ser encontrada principalmente no seu OS INTELECTUAIS E A ORGANIZAÇÃO DA CULTURA (Rio, Civilização Brasileira, 1979), porém outros dos seus elementos são apresentados em CONCEPÇÃO DIALÉTICA DA HISTÓRIA (Rio, Civilização Brasileira , 1978) e Lettere dal Carcere (Torino, Einaudi, 1961). A melhor defesa do pensamento gramsciano é sem dúvida o apaixonado livro de Maria Antonietta Macciochi, A Favor de Gramsci (Rio, Paz e Terra, 1976).

Para Gramsci, o papel histórico da intelectualidade é desenvolver um trabalho sutil de homogeneizar a consciência, sendo a conquista dos intelectuais tradicionais de importância crucial para este processo já que a manutenção da hegemonia encontra-se estreitamente associada à capacidade da ideologia burguesa superar contradições através da sua própria atualização. O intelectual tradicional é geralmente aquele que ainda representa uma ideologia que já teria sido desmascarada e, portanto, não possui mais utilidade. Os intelectuais, dessa forma, devem ser resgatados do seu atraso, precisam ser conquistados e assimilados a fim de melhor servirem ao grupo hegemónico. De acordo com Gramsci, uma das funções do intelectual orgânico da burguesia é ruminar e digerir qualquer tipo de pensamento, incluindo a ideologia mais indigesta, “mesmo quando tudo parece indicar que o grupo dominante nunca será capaz de assimilar e controlar as novas forças expressas pelos fatos”.1212. GRAMSCI, A. Lettere . . . op. cit. p. 673. Isto quer dizer que eles possuem uma dupla função, qual seja a de absorver o impacto de novas ideologias que revele m contradições internas do modo dominante e a de utilizar o material produzido por aquelas ideologias (normalmente corno denúncia) para reforçar a hegemonia da classe à qual eles pertencem.

Apesar de ter analisado em profundidade a formação de uma intelectualidade orgânica para a classe operária, Gramsci não se dedicou muito às funções particulares que os intelectuais orgânicos da burguesia desempenhariam na sua atividade social cotidiana, como também não se deteve em outras aplicações desta concepção além dos sindicatos e dos partidos. Entretanto, se o poder da hegemonia ideológica da classe dominante baseia-se no seu padrão amplo de organização ao influenciar todas as formas de prática social, tal como estabelecida por sua análise das sociedades civil e política, e se os intelectuais são os “peritos em legitimação” (suas próprias palavras), então este referencial traz em si uma justificativa para o seu uso na descrição e análise de contextos como uma “burocracia sanitária”, povoada por intelectuais orgânicos do setor saúde. Em outras palavras, tentaremos aplicar os seus conceitos sobre um modelo social e político amplo a um contexto particular, tratado como um modelo reduzido (e não reducionista) da estrutura social que ele reflete nas suas relações internas.

No campo da saúde, o marco referencial aqui proposto foi primeiro sugerido por Sérgio Arouca, então mais preocupado em abordar teoricamente a “evolução” medicina preventiva - saúde comunitária.1414. AROUCA, A.S. O Dilema . . . op. cit. p. 239. Mais recentemente, Cordeiro e Quadra, utilizaram-no para analisar as tendências de reformas curriculares nas escolas médicas, restringindo-se a um tratamento teórico e conceitual da questão.1515. CORDEIRO, Hésio e Quadra, Antonio. O Feitiço das Reformas Curriculares no Ensino Médico. Rev. Bras. Ed. Méd. 2(2):15-22, 1978. De fato, na área específica, este referencial ainda não foi usado em estudos baseados em material empírico.

A noção em estudo tem sido referida, pelo menos em português, por meio de três expressões principais: “Integração Docente-Assistencial, “Regionalização Docente-Assistencial” e “Integração Ensino-Serviço”. No restante do presente trabalho, estes termos serão designados por IDA (Integração Docente-Assistencial), já que eles são aqui considerados como sinônimos, por não estarmos. preocupados com as diferenças, de resto extremamente sutis, existentes entre os seus significados. Os indivíduos que forneceram os dados e a instituição que se constituiu no local de coleta não serão identificados, de modo a preservar o caráter confidencial das informações. A fim de facilitar a referência, a instituição em foco será tratada por todo o texto como AS (Agência de Saúde).

Este estudo foi conduzido em uma AS da região Nordeste do Brasil entre janeiro e maio de 1978. A AS em questão é uma instituição de saúde pública que emprega mais de dois mil funcionários em todos os níveis. Destes, vinte e um foram identificados como planejadores ou administradores de saúde por sua educação formal ou com base nas suas atividades na época da coleta. A amostra final considerou somente aqueles dezesseis que estavam de fato envolvidos no planejamento, administração, condução ou gerência de qualquer tipo de programa de saúde à época do trabalho de campo.

As informações foram coletadas por meio de observação participante1616. Existe uma volumosa bibliografia sobre este método, característico da Antropologia. Para uma orientação geral, ver: JAHODA, Marie et alli. (eds.). Research. Methods in Social Relations. New York, Dryden, 1951; EPSTEIN, AL (ed.). The Craft of Social Anthropology. London, Tavistock, 1967; e DENZIN, Norman. The Research Act. Chicago, Aldine, 1970. conduzida enquanto o autor trabalhava como membro da equipe de um programa especial de saúde. Todos os informantes foram objeto de “conversas” repetidas e informais, que eram usualmente guiadas para assuntos relacionados à IDA ou saúde comunitária.1717. Uma técnica similar consiste no “weekly-talking”, conforme ilustrado por Clement, Dorothy et alii. Moving Closer: An Ethnography of a Southern Desegregated School. Chapel Hill, Univ. North Carolina, 1978. Apenas um dentre eles sabia do verdade iro objetivo desses contatos disfarçados como “bate-papo” entre colegas, porém, ao final da coleta, o autor terminou sendo considerado como alguém interessado em tais questões pelo motivo de que pretenderia aplicá-las ao “seu” programa. Anotações nunca eram realizadas durante as conversas, mas logo em seguida o autor escrevia um relatório detalhado sobre o que havia sido discutido, tentando ao máximo preservar as citações. Avaliações periódicas do material já coletado serviam para formar uma matriz conceituai onde cada novo conteúdo era acrescentado como um novo ponto a ser explora do em conversas subseqüentes. Tão logo determinados pontos básicos foram identificados, o que aconteceu após o primeiro mês de observação participante, o foco das conversas mudou para a opinião dos informantes sobre pontos específicos mencionados por alguns deles, sem qualquer menção à sua fonte de origem. A despeito da valiosa contribuição de muitos dos comentários dos informantes, a análise subseqüente representa a nossa própria destilação dos pontos de vista coletados.

A APRESENTAÇÃO BÁSICA DA NOÇÃO DE IDA

A noção de Integração Docente-Assistencial (IDA) tal como expressa pelos técnicos de saúde atingidos por este estudo implica em alguns problemas de delimitação conceituai. Entretanto, para a grande maioria dos informantes, o termo IDA ou equivalente parece apresentar algumas características básicas comuns. Em outras palavras, o termo tem um mesmo sentido básico para quase todos eles.

1 - Em primeiro lugar, os informantes reconhecem uma relação indispensável com modelos regionalizados de prestação de serviços, baseados em níveis de complexidade crescente. Admitem, quase todos, que a IDA seria impossível em uma organização de saúde que não fosse estruturada segundo princípios de racionalidade administrativa; deste modo, pode-se supor que também não acreditam na possibilidade de uma integração efetiva entre ensino e prestação de serviços antes da estruturação de um sistema de saúde montado sobre estes princípios.

Esta constatação conduz a um tema de capital importância para a presente análise: a atitude frente à viabilidade da proposta integracionista. Cinco dos 16 técnicos entrevistados manifestaram absoluta descrença, baseando-se principalmente no argumento, conforme enunciado por um deles, de que “se as experiências que falharam foram realizadas no tempo que isto era moda, quanto mais agora que deixou de ser”. Outro refere que, de fato, nada muda; essa proposta “já esteve fazendo rebuliço por aqui e foi esquecida”, e que a AS permanece a mesma. “Já veio a Medicina Preventiva, a Medicina Integral, a Medicina Comunitária, a Regionalização Docente/Assistencial, só queria saber qual a próxima novidade.” Este tipo de opinião é mais freqüente entre os informantes mais velhos e de sexo masculino, três dos quatro técnicos com idade superior a 40 anos.

No outro extremo, constata-se uma atitude mais positiva frente a questão, entre os indivíduos mais jovens. Dos sete informantes de faixa etária de 20 a 30 anos, um confessa-se radicalmente des­crente, outro não tem opinião formada e o restante confia na viabilidade da proposta. Um deles considera “como se fosse uma evolução, as propostas vão se somando; assim, a Medicina Comunitária acrescentou algo à Medicina Preventiva e a Integração Docente/Assistencial deve acrescentar à Medicina Comunitária”. Esta visão otimista é talvez mais acentuada nos envolvidos com a coordenação de programas: “Acho que os estudantes poderiam até mesmo ter funções específicas dentro da equipe de saúde, desempenhando um papel intermediário entre o médico e o pessoal de nível auxiliar, melhorando o nível da assistência, além, é claro, de melhorar o nível do ensino”.

Algumas pessoas não têm opinião formada. Um deles confessa que conhece pouco sobre o assunto, desculpando-se pelo “pouco tempo para estudar”. Outro coloca que, “como tudo, a Integração/Assistencial tem prós e contras e que, por isto, não posso dizer se acredito ou não na sua viabilidade”. Outro ainda refere que existe um número muito grande de “fatores que podem interferir no desenvolvimento de programas dessa natureza” e que isto “impede dizer se acredito ou não, pois não é uma questão de crer ou descrer, é muito mais complicado”.

2 - Em segundo lugar, surge outro elemento constante na maioria dos depoimentos: a validade da proposta em função de uma maior aproximação com a realidade local de saúde. Este ponto pressupõe a insuficiência da formação cumprida na Universidade, caracterizando-a como afastada da realidade, e a IDA poderia muito bem cumprir esta função de “ponte”.

Apenas dois dos informantes não lembraram espontaneamente este aspecto. Registrou-se uma interessante colocação por parte de um dos entrevistados: “Acho que a esse respeito a integração pode ser até prejudicial e atrapalhar o sistema de prestação de serviços, porque a Universidade sempre exige da instituição que adapte o seu padrão de assistência ao currículo que ela ensina”; “Acho que devia ser justamente o contrário, porque nós é que estamos enfrentando a realidade”.

Por outro lado, alguns lembraram a questão do mercado de trabalho, sugerindo que o distanciamento da realidade existente na Universidade prejudicava fundamentalmente a inserção do recém­graduado no sistema de saúde. Conforme um deles: “o estudante procura sempre, por conta própria, um treinamento qualquer fora da escola, aquela coisa de encostar no cirurgião ou no clínico experimentado, para depois inclusive dividir a clientela”.

3 - Em terceiro lugar, o último dos elementos conceituais da IDA, como percebida pelos informantes, foi a necessidade de supervisão realizada pelos próprios prestadores de serviços. Alguns deles colocaram claramente que o deslocamento de docentes da Universidade para os Centros de Saúde (citaram exemplos) era uma “falsa integração”.

É interessante assinalar que a referência a este elemento do conceito de IDA estava quase sempre associada a duas questões sobre a viabilidade: primeiro, à sobrecarga de trabalho que acarretaria para o médico e a consequente questão da complementação salarial; segundo, à capacidade do profissional há muito afastado dos “problemas acadêmicos” de fornecer uma supervisão realmente efetiva para os alunos. Tal vinculação freqüentemente conduzia a uma “racionalização” que fundamentava a descrença (revelada ou não) na viabilidade do projeto integracionista, que se estruturava da seguinte maneira, conforme claramente enunciado por um dos “descrentes”: “Só seria uma verdadeira integração Docente/Assistencial se a supervisão da atuação do estudante no serviço fosse integralmente fornecida pelos responsáveis pela prestação dos serviços. Mas de fato, o que aconteceria é que esses médicos, primeiro não teriam tempo e segundo não teriam capacidade de ensinar e explicar realmente a sua atuação”. Em resumo, admite-se que a IDA é uma proposta plenamente viável, porém, para se constituir em uma verdadeira integração, seria necessário que a supervisão fosse exercida pelos prestadores o que, aí sim, é que seria inviável. Segundo este raciocínio, a viabilidade da verdadeira IDA encontra-se comprometida por um seu elemento básico, a de delegação da função docente aos profissionais. Deve-se mencionar que esta mesma argumentação foi empregada de maneira diferente por três dos que confessavam acreditar na proposta de integração.

Além destes elementos comuns da delimitação do conceito de IDA entre os técnicos entrevistados, deve-se destacar um outro conteúdo que representa uma opinião mais específica, se bem que também presente em quase todos os depoimentos. Trata-se do motivo pelo qual se tem procurado enfatizar nesta e em outras oportunidades, a Integração Docente/Assistencial. A maior parte dos entrevistados afirma que a Universidade está “superlotada” e “que esse reboliço de Regionalização Docente/Assistencial” seria uma tentativa de solucionar uma série de crises internas da área de saúde da Universidade. Segundo um dos mais jovens: “Uma indicação a favor dessa hipótese pode ser a coincidência da moda docente/assistencial com o aumento acelerado do número de vagas, sem crescimento da capacidade real da Faculdade de Medicina”.

Alguns levam este tipo de interpretação mais longe sugerindo que a ênfase na IDA coincide também com as crises financeiras, além das crises de lotação, no sistema de ensino médico. Assim, a proposta integracionista também poderia se constituir em mais uma maneira de reduzir os gastos da escola com formação do aluno, do que mesmo uma tentativa de atualização da Universidade nesta área.

ALGUNS PONTOS ESPECÍFICOS

Além desses temas básicos da representação vigente na amostra estudada, cuja importância se fundamenta basicamente no critério da maioria, outros conteúdos merecem ser destacados por seu valor potencial para o melhor conhecimento da imagem que os planejadores de saúde da AS fazem da IDA. Tais conteúdos são em seguida apresentados sob a forma de enunciados, que se complementam com algumas características do tipo de informante que o transmite, além de se tentar identificar alguns dos seus aspectos conceituais e alguns dos seus elementos de origem.

1 - A IDA é proposta por um grupo de técnicos que acumulam funções docentes, pretendendo dessa maneira desincumbir-se simultaneamente de ambas.

Esta opinião é expressa principalmente pelos funcionários mais antigos, nenhum deles com alguma vinculação docente.

De acordo com a maioria dos depoimentos, as tentativas de integração, esparsamente realizadas, têm sido de fato resultado da iniciativa pessoal de professores da Universidade que exercem algum cargo no sistema do Governo Estadual. Por outro lado, também reportam estágios isolados por articulação espontânea de alunos interessados em disciplinas específicas. Quanto à intenção dos técnicos/docentes, é importante assinalar que a experiência docente/assistencial, realizada no início da década de 70, foi realmente desenvolvida por um grupo de professores da Faculdade de Medicina que ao mesmo tempo exerciam funções a nível central na AS, o que pode ter se constituído em um elemento de origem dessa opinião sobre a IDA. Este aspecto histórico poderia também ser responsável por algumas menções sobre o caráter “academicista” das propostas da IDA.

2 - A IDA é uma iniciativa que sempre parte da Universidade e tem a finalidade de resolver os seus problemas internos.

Este enunciado, ao contrário do anterior, expressa uma opinião predominante entre os técnicos mais jovens, que se reconhecem convencidos da viabilidade do projeto integracionista. Ao acentuar o caráter unilateral da proposta, pelo menos quanto à sua origem, revelam uma vontade de participação em todos os níveis do processo de desenvolvimento da IDA, inclusive no seu planejamento e programação. A segunda parte da proposição pode demonstrar, por um lado, uma tentativa de análise das determinantes causais da iniciativa, ou, por outro lado, uma expressão de antagonismo frente à proposta de integração.

Uma das entrevistas referiu claramente a sua disponibilidade para a participação em um programa dessa ordem, indicando uma pretensão de carreira acadêmica como o principal motivo. Esta mesma levantou um ponto importante que, de maneira diferente, compareceu no depoimento de outros informantes, jovens principalmente. “Acho que desde a fase de planejamento de qualquer programa de Integração Docente/Assistencial se deveria consultar os principais interessados, que são os alunos, que deveriam participar de todo o desenvolvimento do programa. É um fato que as coisas referentes aos cursos, matérias, currículos, etc., já vêm prontas, são impostas de cima para baixo.” E conclui: “Só que isso não ocorre só com os estudantes, mas também com as instituições que realmente prestam serviços, já que eles também não participam, quando muito nas fases finais do processo, para acertar detalhes operacionais, etc.”

3 - Os programas de IDA são desenvolvidos pela Universidade, financiados por fundações ou instituições externas. O Estado é convocado a investir no programa, dentro do seu orçamento, enquanto que a Universidade com parece apenas com o fundo específico da programação integrada. Quando o financiamento se esgota, ela (a Universidade) “tira o corpo fora” e o Estado tem de arcar sozinho com as despesas de manutenção do programa ou então suportar uma estrutura desviada de suas funções assistenciais.

Esta é a descrição de um processo que alguns informantes referem suceder com a maior parte dos programas conjuntos com instituições universitárias, não apenas no setor de ensino, como principalmente, nos setores de assistência e pesquisa. Como esta opinião foi mais freqüente entre aqueles técnicos que, a exceção de um, negaram ter participado em qualquer das tentativas de IDA anteriores, é de se supor que esta idéia não repouse sobre exemplos concretos, tendo portanto uma presumida base testemunhal como, por exemplo, a proposição. O último programa docente/assistencial de importância na Universidade foi realmente financiado por uma fundação estrangeira, porém alguns dos informantes que endossaram esta proposição curiosamente negaram conhecer este e outros detalhes do referido programa. Outros, a respeito deste assunto, mencionaram conhecer exemplos de iniciativas semelhantes em outras áreas do país, sem no entanto conseguir localizá-los.

O segundo item desta proposição também não aparenta relacionar-se com alguma experiência ou conhecimento prévio dos informantes. De fato, nenhum deles conseguiu informar detalhes da parte orçamentária dos programas de IDA desenvolvidos a nível local ou em outras áreas do país. É interessante assinalar que os dois únicos técnicos que referiram ter participado do programa docente/assistencial de 1971, não mencionaram espontaneamente este conteúdo ou outro semelhante.

Quanto à última parte da proposição, percebe-se a idealização de um confronto entre a Universidade e o Estado, que se realizaria nesse espaço de relações representado pelo programa docente/assistencial. A IDA, neste caso, teria cumprido não uma função integrativa e sim se tornado palco de conflito, pelo qual a Universidade seria a principal responsável. Esta interpretação é fortalecida pelo uso freqüente, por parte dos informantes que enunciaram esta proposição, da expressão popular “tira o corpo fora” para designar o comportamento da instituição universitária no desfecho da relação ensino/serviço.

Deve-se finalmente acrescentar que estes conteúdos foram mais freqüentemente enunciados pelos técnicos na faixa etária média (30 a 40 anos), sem estarem necessariamente associados com um maior ceticismo em relação ao projeto integracionista.

Conforme afirmou um deles: “Se o Estado investe recursos em programas que trazem melhorias para a saúde da população, esta é a sua obrigação. A solução do problema talvez esteja na possibilidade dele (o estado) manter o treinamento dos alunos, que não podemos negar que podem ser de muita utilidade em um sistema racionalizado de saúde, depois do programa financiador e mesmo a Universidade terem tirado o corpo fora”.

4 - A implantação do programa IDA, devido às necessidades de supervisão, poderia “engarrafar” as agências de saúde com um excessivo número de profissionais, professores e alunos.

O temor de um prejuízo para o funcionamento dos serviços foi muito mais destacado por técnicos mais velhos e sem vinculação acadêmica e também por aqueles que têm uma atuação mais direta junto à programação de rotina do complexo estadual de saúde. Por outro lado, observa-se este mesmo receio entre aqueles que revelam menor conhecimento teórico sobre a proposta integracionista, por isto colocando a proposição sempre de maneira interrogativa: Será que a IDA prejudicará a rotina?

Um outro ponto a destacar neste enunciado é a atribuição implícita das tarefas de supervisão (pólo docente da integração) aos professores, que para isto teriam de comparecer aos estabelecimentos de saúde, “engarrafando-os”. Esta observação revela, até um certo ponto, desconhecimento da proposta integracionista; porém esta crença pode estar baseada nas experiências locais anteriores de IDA que utilizavam, fundamentalmente, docentes deslocados para a assistência aos pacientes e supervisão dos alunos.

5 - Os alunos engajados em um programa de IDA não teriam qualificação técnica para desempenhar funções assistenciais.

Esta afirmação supõe, basicamente, que o ensino médico é insuficiente e ineficaz, sugerindo que o seu produto intermediário, o estudante de medicina, e, por extensão, o seu produto final, o médico, não estariam em condições de prestar serviços de saúde. Alguns explicitam mais a questão colocando ambos (o estudante e o médico) como realizadores de uma prática, conforme afirma um dos entrevistadores, “não adaptada à nossa realidade subdesenvolvida, onde ainda permanecem muitos problemas de saúde pública, enquanto se ensina uma medicina sofisticada, baseada mais em casos de doenças crônicas ou raras”.

Esta opinião é inespecífica, na medida em que técnicos de vários grupos etários, com e sem vinculação acadêmica, trabalhando em vários setores diferentes, defendem argumentos que a apóiam. Em contrapartida, urna grande parcela do grupo de informantes sustenta uma posição justamente oposta a este e ao enunciado anterior.

6 - A introdução de programas de IDA no sistema de saúde acarretaria uma melhoria na qualidade dos serviços prestados, devido ao maior volume de conhecimento veiculados e a própria presença do estudante como um elemento “persecutório”, positivo para o profissional que atua no setor. Tal opinião não coincide necessariamente com a crença na viabilidade do projeto integracionista, tendo sido externada inclusive por dois técnicos que se reconheciam céticos a esse respeito. Encontra-se associada com a idade, sendo predominante entre os mais jovens, com a atitude positiva frente a IDA e com a condição de docentes ou candidato a docente.

Este conteúdo é duplamente otimista ao deixar explícito, por um lado, a melhoria na qual idade da assistência, e ao deixar implícito, por outro lado, a melhoria na qualidade do ensino. Em resumo, conforme admite um dos mais “entusiastas” “a Regionalização Docente/Assistencial deve trazer benefícios para todos, tanto para nós que estamos diretamente ligados com a extensão de programas de saúde, quanto para os alunos, os professores e a Universidade”.

Quanto ao segundo termo do enuncia do, observa-se a expectativa de dois mecanismos de elevação de qualidade dos serviços prestados: Um pedagógico e outro, pode-se dizer, repressivo. O primeiro pressupõe que a Universidade terá a responsabilidade de uma “educação permanente” dos profissionais da rede assistencial, através da formação de agentes multiplicadores, com a capacitação de técnicos que por sua vez capacitarão os alunos. “É necessário a formação de uma hierarquia de ensino um pouco diferente da atual, é preciso racionalizar o sistema do ensino médico, uma hierarquia de ensino onde o nível mais baixo da pirâmide seja o próprio técnico prestador de cuidados e que se torna o contato direto do aluno com a realidade.” E interessante assinalar a analogia deste modelo “racionalizado” de ensino e o modelo de prestação de serviços, hierarquizado segundo níveis de complexidade crescente, conhecido como Medicina Comunitária.

Em segundo lugar, a proposta de emprego do estudante como elemento “persecutório” frente à prática dos profissionais apresenta-se como uma gradação, de acordo com o nível de coerção exercido pela presença do aluno. Esta vai desde a afirmação de que “a simples presença do aluno pode fazer com que o médico tenha de estudar para não fazer feio na frente deles”, até a proposta de um papel formal de fiscalização do exercício dos prestadores de serviços, com os alunos atuando como membros episódicos ou temporários do subsistema de controle do sistema de saúde. Este último tipo de opinião se completa com as propostas de racionalização total do sistema ensino/serviço, com a hierarquização e conseqüente burocratização de ambos os pólos da presumida integração.

IDA E SEUS INTELECTUAIS ORGÂNICOS

Um ponto de partida básico para a presente análise é considerar IDA como, primeiro, uma representação ideológica, uma forma de ideologia entendida a partir do conceito de “falsa-consciência1818. LICHTMAN, R. op. cit. Para uma abordagem clássica porém eclética, ver MANNHEIM, Karl. Ideology and Utopia (New York, Harcourt, 1936), onde uma análise da intelectualidade, aproximada à de Gramsci sob muitos aspectos, pode ser encontrada.” e em segundo lugar, como um produto intelectual que tem sido transmitido - e por conseguinte reproduzido - no interior das instituições de saúde de países do Terceiro Mundo.

Inicialmente, existe suficiente similaridade entre as diferentes noções de IDA, tal como apresentadas pelos informantes, justificando pensá-la como uma idéia particular e reconhecida partilhada por eles. A despeito do variado grau de confiança na sua viabilidade, ficou claro que todos os informantes relacionam o termo com o bem conhecido movimento da medicina comunitária e também que eles acreditam que o propósito da IDA é abordar a realidade de saúde diretamente, através de agências de serviços de saúde ao invés de escolas médicas isoladas. Desta última opinião deriva uma idéia de dominância da prática sobre a escolarização, que se revela muito vinculada às preocupações dos planejadores sobre a viabilidade do projeto “integrativo”.

Conforme analisada por Donnangelo e Arouca, a IDA é meramente uma “nova” forma de organização do cuidado médico enraizada diretamente na medicina preventiva via projeto da prática comunitária. Para Arouca, “a hipótese que está contida em todo o esquema da medicina preventiva é que a mudança nos serviços de saúde se faz através da escola”.1919. AROUCA, A. S. Problemas e ... op. cit. Donnangelo cita o trabalho de Lathem “Community Medicine: Teaching, Research and Health Care” (notem a ordem dos objetos de atuação apresentados): “it has become clear that education cannot be separated from the system of health care for which it is designed. Thus the system has become an unavoidable and quite legitimate concern of the university” (em inglês no original).2020. DONNANGELO. M. C. op. cit. p. 87. Ambas as citações, formuladas por um crítico e per um defensor respectivamente, mostram que para a ideologia de IDA original a dimensão do ensino vem em primeiro lugar, ao contrário da opinião mais corrente entre aqueles planejadores de saúde. Assim, a ocorrência de um tal “desvio” do pensamento original poderia ser melhor explicado pela sua função de construir quase que um mecanismo de defesa tipo racionalização, no que concerne às próprias preocupações dos indivíduos sobre a viabilidade do projeto integrativo em vista das suas experiências passadas ou das suas posições burocráticas.

Um critério válido para a identificação de dois distintos padrões grupais parece ser a atitude geral com relação àquela proposta, naturalmente com as suas variações internas a cada grupo. A atitude positiva é coincidente com outros conteúdos ideológicos que podem ser facilmente identificados com o mencionado movimento da medicina comunitária. O padrão oposto (ou melhor, as várias atitudes de negação) não pode ser analisado em termos de uma única origem, já que ele é composto por diferentes e, às vezes, antagônicas noções sobre organização de saúde e educação médica. Enquanto o primeiro grupo apresenta algumas características de uma iniciativa de reforma médica, o segundo grupo parece constituir-se em uma desorganizada coleção de atitudes e crenças que a Antropologia Tradicional poderia rotular como “resistência à mudança”.

Os achados aqui apresentados sugerem a existência de um grupo relativamente comprometido com um pensamento tipo reforma-médica. De fato, muitos dos que disseram acreditar na viabilidade da proposta estavam a defender, por um lado, a adoção de um sistema nacional de saúde ou, por outro lado, reformas menos radicais como a implantação de programas de saúde comunitária sem modificações mais profundas na estrutura dos serviços de saúde do país. Em geral, eles têm estado envolvidos em algum tipo de trabalho prático com essa finalidade, e a IDA pode significar, para os primeiros, um valioso instrumento intermediário, e para os outros, pode representar um importante conceito em apoio ao seu movimento “inovativo”. Uma diferença dessa ordem não é tão relevante, porque na prática muitas das propostas atuais de organização do sistema nacional de sáude brasileira tem se inspirado em modelos de assistência simplificada.2121. BRASIL, Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde. XIX Congresso Brasileiro de Higiene, São Paulo, outubro, 1977. Em resumo, essas pessoas estão realmente funcionando como uma força modernizadora no interior da instituição de saúde em estudo, e como tal, elas podem ser designadas como intelectuais orgânicos.

Entre aqueles conteúdos específicos relacionados a este padrão, a proposição número 6 compreende a opinião mais entusiástica e representativa. Ela também representa duas interessantes conseqüências de tal otimismo, como sugestões para a sua utilização na prática: a) uma solução administrativa, que pretende “racionalizar tudo”; e b) uma solução autoritária, que resultaria no uso do estudante como um mecanismo de controle interno da estrutura. (É desnecessário acentuar que ambas as propostas são mais complementares do que exclusivas.) Também a proposição número 3 foi expressa por alguns desses intelectuais orgânicos, mais como uma sugestão para a correção de outros experimentos de IDA que teriam falhado no passado devido a dificuldades de financiamento. Atém disso tudo, uma das maiores diferenças entre a noção de IDA prevalente na AS abordada e o original no selo da ideologia da medicina comunitária, tal como discutida acima, parece ser o pólo dominante de tal integração, na medida em que os informantes “desejam” uma IDA comandada por profissionais de serviços de saúde ao invés de controlada por professores universitários.

Nesta altura, torna-se possível esboçar o seu projeto de reforma, apenas organizando algumas pistas oferecidas pela apresentação da noção em estudo. Primeiro, para o grupo orgânico, o programa de IDA deve ser uma iniciativa de agências de saúde ao invés de escolas médicas; conseqüentemente, toda a sorte de apoio externo deveria ser canalizada pela estrutura dos serviços de saúde, a fim de que os fundos possam ser integrados ao seu orçamento regular. Então, o programa de saúde racionalizado teria uma estrutura paralela de treinamento organizada também de acordo com os princípios administrativos, que poderia ou não ser usada como um mecanismo adicional de controle do sistema. Ao nível da relação estudante/prática, a mudança maior seria a inteira transferência de funções docentes para os profissionais de serviço. Dentro dos limites da informação disponível, nem o papel da universidade neste tipo de programa nem o seu relacionamento com a estrutura de serviços de saúde mais ampla são de certo modo definidos.

O grupo “não-tão-otimista” é formado principalmente por pessoas que podem ser identificadas corno intelectuais tradicionais. Esta é uma identificação de caráter negativo e pode ser derivada das seguintes razões: Todos aqueles técnicos e planejadores são funcionários do aparelho estatal de saúde, assim, eles se encontram diretamente subordinados ao sistema político, preenchendo por conseguinte os requisitos estabelecidos por Gramsci para descrever a intelectualidade a serviço da classe dominante. Alguns deles foram identificados como intelectuais orgânicos, conforme vimos acima; portanto, o restante tem de ser dado como intelectuais tradicionais, já que o esquema analítico empregado incluía apenas estas duas categorias. De fato, como já havíamos acentuado anteriormente, existem poucos elementos nas opiniões defendidas por estes últimos que poderiam ser entendidos como um pensamento unificado, exceto pela sua desconfiança geral com relação ao projeto IDA. Assim, as suas proposições encontram-se enfraquecidas, no sentido de que eles sequer se esforçam para defender os seus próprios argumentos, parecendo somente preocupados com características individuais (proposição 1), ou alegando uma falta de conhecimento (proposição 4), ou mesmo portando-se defensivamente (proposição 5). Entretanto, não é de modo algum indispensável uma homogeneidade de pensamento entre intelectuais tradicionais, porque o principal critério para classificá-los poderia ser de natureza histórica, ou seja, o fato de que alguém foi anteriormente um intelectual orgânico dentro da estrutura de saúde e nunca teria se comprometido com novas idéias desenvolvidas no interior daquela área particular da esfera política.

A esta altura impõe-se uma questão muito importante: como descrever as relações entre esses dois grupos? O próprio Gramsci nos fornece uma resposta geral: “uma das mais marcantes características de todo grupo social que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista ‘ideológica’ dos intelectuais tradicionais”.2222. GRAMSCI, A. Os Intelectuais ... op. cit. p. 9. Com relação ao nosso contexto particular, podemos considerar que um tal processo de assimilação encontra-se em curso. Conforme discutido acima, muitos daqueles que inicialmente garantiram a sua confiança na viabilidade da proposta posteriormente mostraram sinais de resistência à idéia, tão logo tiveram uma chance de falar sobre objeções mais específicas. Isto pode representar tanto uma atitude negativa original que está sendo modificada (e que emerge aqui e ali) como uma aceitação superficial de uma nova idéia como resultado de algum tipo de pressão institucional. De qualquer modo, ambas as alternativas apóiam a hipótese geral de um processo de conquista daqueles intelectuais tradicionais.

Dentro das expectativas do modelo reduzido aqui porposto, muitos sinais de um esforço orgânico de “digestão ideológica” do projeto integrativo original podem ser identificados. Na mesma medida em que alguns aspectos de modelos progressistas de assistência à saúde (como os experimentos chinês e chileno)2323. Sobre o sistema de saúde da República Popular da China, ver, entre muitas obras disponíveis, SIDEL, Victor e SIDEL, Ruth. A Healthy State. New York, Pantheon, 1977. Sobre a experiência chilena, ver principalmente WAITZKIN, HOWARD e MODELL, H. Medicine, Socialism and Totalitarianism: lessons from Chile. N. England J. Med. 291:171-177, 1974; e tb. NAVARRO, VICENTE. What does Chile mean? an analysis of events in the health sector before, during and after Allende’s administration. Milbank Mem. Found. Quart. 52:130-145, 1974. foram assimilados pela ideologia da saúde comunitária, terminando até mesmo como parte da política oficial de saúde de regimes autoritários, muitas variantes da IDA que vêm compondo propostas de maior consistência teórica podem ser absorvidas pela atual ideologia dominante no campo da saúde. A tarefa de realizar a assimilação, neste caso particular, tem sido reservada para intelectuais como aqueles atingidos pelo presente estudo, e a sua luta inicial deve ser travada contra os seus pares, que se constituem em intelectuais tradicionais no seio da instituição. Em outras palavras, eles lutarão para homogeneizar a ideologia institucional persuadindo aqueles passíveis de persuação, e isolando aqueles que, por alguma razão, não têm condição de aceitar a novidade.

A lógica do processo pode ser melhor apreendida considerando-se contradições intrínsecas e particulares da ideologia em questão. Assim, aquele grupo de intelectuais orgânicos, como uma dimensão da sua própria atividade, e além de desempenhar as suas funções administrativas (também descritas por Gramsci como funções orgânicas),2424. GRAMSCI, A. Os Intelectuais . . . op. cit. p. 12-13. enfrentará muitas outras ideologias que terão de ser digeridas, e eles terão de construir muitos artefatos conceituais para fazer tais ideologias digeríveis, antes de talvez terminarem como intelectuais tradicionais do futuro. De fato, conforme assinalado por Gramsci, a situação não é assim tão simples, porque o mesmo intelectual pode ser simultaneamente orgânico e tradicional, dependendo de qual ângulo, em termos de interesses de classe, seja analisada a sua atuação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Urna crítica potencial à abordagem aqui tentada poderia enfatizar o caráter geral da noção gramsciana de intelectualidade orgânica, que não seria facilmente aplicável a contextos específicos como agências de saúde. Talvez de fato seja um tanto perigoso considerar tal contexto como um “modelo reduzido” da sociedade mais ampla, na medida em que alguns aspectos particulares das AASS podem se tornar mais relevantes do que as suas funções gerais de instituição social, aparato administrativo, fonte ideológica, ou, de acordo com alguns autores, aparelho ideológico de Estado. Por outro lado, no que se refere à obra gramsciana, não existem objeções ao uso desta base conceitual para o entendimento do desempenho específico de certos tipos de intelectual orgânico. Portanto, a partir deste referencial teórico, a única maneira de invalidar a presente abordagem será argumentar que planejadores de saúde e outros profissionais da área não são intelectuais, ou que eles não pertencem aos grupos dominantes.

Em conclusão, algumas orientações, com vistas a um esforço sério de propiciar transformações fundamentais nos sistemas de atenção à saúde, podem ser derivadas da presente análise. Em primeiro lugar, esta interpretação reforça a perspectiva que invalida a idéia de que mudanças específicas no campo da saúde poderiam se difundir para o corpo social mais amplo, que por si só se constitui em uma das obras-primas produzidas pela intelectualidade orgânica do setor. Em segundo lugar, ela propõe um marco conceitual útil para a compreensão de como e porque a mesma idéia ou proposta básica de assitência à saúde assume funções quase que antagônicas em relação à saúde da população, apesar de pequenas (mesmo imperceptíveis) e poucas diferenças entre os respectivos discursos, que são o produto final do trabalho daqueles intelectuais. Em terceiro lugar, mesmo que aparentemente esta seja uma visão pessimista de um setor da sociedade política que se autoperpetua, de fato urna tal interpretação carrega em si toda uma teoria de ação, que leva em consideração a dinâmica dos relaciona­ mentos entre intelectuais a fim de criticar, neutralizar e confrontar a sua atividade, através da formação de uma intelectualidade orgânica a serviço das forças sociais emergentes.2525. IBD. Ver tb. Concepção ... op. cit. p. 156-157.

Ainda uma palavra final sobre um possível desenvolvimento adicional do presente estudo em busca de uma maior aproximação entre o conceito gramsciano e o material empírico e a sua análise: Por um lado, talvez valesse a pena um maior detalhamento da especificidade do confronto (na arena particular de conflito que se apresenta como a proposta IDA) entre o aparelho de organização dos serviços de sáude e a instituição escolar, em todas as suas dimensões de aparelho ideológico de estado.2626. ALTHUSSER, Louis. Ideologia y Aparatos Ideológicos del Estado. Estudios lnterdisciplinários, 1:101-137, 1973. Por outro lado, poder-se-ia desenvolver uma análise sobre o tema baseada em uma melhor sistematização do conceito de ideologia e como o projeto “integrativo” a ela se articularia, para a partir daí ilustrar, com o discurso dos entrevistados, as particularidades da criação, desenvolvimento, estabelecimento e difusão de uma “ideologia” precisa em suas relações com uma prática institucional que possui funções bastante bem delimitadas. Evidentemente que qualquer uma destas alternativas extrapola o âmbito e os objetivos do presente trabalho, podendo no entanto ser resgatada como proposta complementar, aproveitando inclusive algumas hipóteses de trabalho geradas no presente estudo.

Referências e Citações Bibliográficas.

  • 1
    AROUCA.Antonio Sérgio. O Dilema Preventivista Tese de Doutoramento, UNICAMP, S. Paulo, 1975 (mimeo.).
  • 2
    lbd. Ver tb. RODRIGUES DA SILVA, Guilherme. Origens da Medicina Preventiva como disciplina do ensino médico. Rev. Hosp. Clin. Fac. Med S. Paulo, 28:91-96, 1973.
  • 3
    AROUCA, A. S. Problemas e perspectivas das reformas em saúde. Palestra no Encontro Nacional sobre Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Salvador-BA, agosto, 1978.
  • 4
    AROUCA, A. S. O Dilema . . . op. cit
  • 5
    Ver principalmente PAIM, Jairnilson. Medicina Comunitária: Introdução a uma análise crítica. Saúde em Debate, 1:9-12, 1976; Tb. DONNANGELO, Maria Cecília e PEREIRA, Luís. Saúde e Sociedade São Paulo, Duas Cidades, 1976.
  • 6
    ALMEIDA FILHO, Naomar de. Community Medicine and Dependent Development in Latin America. Seminar on Medical Anthropology, Univ. North Carolina, 1979.
  • 7
    Sobre a noção de extensão da cobertura, ver OPS. Processos de extensión de la cobertura de servicios de salud. Tema 18, Discussiones Técnicas, Washington, 1976. Uma interessante abordagem crítica, também utilizando categorias gramscianas, foi feita por PELLEGRINI FILHO, Alberto e RIVERA, Francisco. A questão agrária e a extensão de cobertura dos serviços de sáude no campo. Rio, PESES, 1978 (xerox). A noção de participação comunitária é apresentada por HEVIA, Patrício. Modelos de participación de la comunidad en los programs de salud. Ed. Med. Salud, 11(3):258-275, 1977. Para um aporte crítico, ver principalmente DONNANGELO, M. C. e PEREIRA, L. op. cit Os conceitos básicos da Integração Docente Assistencial podem ser encontrados em OPS/OMS. Princípios básicos para el desarrollo de la educación médica en la America Latina y el Caribe. Informe final. Ed. Med. Salud 10(2):109-139, 1976.
  • 8
    Conf. MACEDO, Carlyle. Recursos Humanos para Assistência Simplificada e IDA. Anais, IX Conferência das Escolas de Saúde Pública da América Latina, Fund. Oswaldo Cruz, Rio, 1976; tb. PAHO/WHO. Health Manpower Planning A Comparative Study in Four Countries Washington, DHEW Publ. 78-94, 1978.
  • 9
    No Brasil, como um exemplo muito ilustrativo, pode-se mencionar o PPREPS, conduzido pelo Ministério da Saúde com apoio do Ministério da Educação e Cultura e da Organização Panamericana da Saúde, que tem o seguinte objetivo: “a promoção e o apoio-a experiências de integração docente-assistencial em saúde, com o propósito de adequar a formação dos profissionais de saúde aos requerimentos de sistemas regionalizados e integrados de serviços que correspondam às necessidades da população e operem com a sua participação”. (MACEDO, C. Recursos Humanos para a Saúde. Congresso Brasileiro de Higiene, XIX, São Paulo, novembro 1977. xerox, p. 26.)
  • 10
    LICHTMAN, Richard. Marx’s Theory of Ideology. Social Rev. 23: 45-76, 1975, p.64.
  • 11
    Esta parte da obra de Gramsci pode ser encontrada principalmente no seu OS INTELECTUAIS E A ORGANIZAÇÃO DA CULTURA (Rio, Civilização Brasileira, 1979), porém outros dos seus elementos são apresentados em CONCEPÇÃO DIALÉTICA DA HISTÓRIA (Rio, Civilização Brasileira , 1978) e Lettere dal Carcere (Torino, Einaudi, 1961). A melhor defesa do pensamento gramsciano é sem dúvida o apaixonado livro de Maria Antonietta Macciochi, A Favor de Gramsci (Rio, Paz e Terra, 1976).
  • 12
    GRAMSCI, A. Lettere . . . op. cit p. 673.
  • 13
    O Conceito de hegemonia pode ser encontrado principalmente no Concepção . . . (op. cit.) e Lettere ... (op. cit.), mas tb. em Note Sul Machiavelli, sulla política e sulo Stato moderno (Torino, Einaudi, 1966).
  • 14
    AROUCA, A.S. O Dilema . . . op. cit. p. 239.
  • 15
    CORDEIRO, Hésio e Quadra, Antonio. O Feitiço das Reformas Curriculares no Ensino Médico. Rev. Bras. Ed. Méd 2(2):15-22, 1978.
  • 16
    Existe uma volumosa bibliografia sobre este método, característico da Antropologia. Para uma orientação geral, ver: JAHODA, Marie et alli. (eds.). Research. Methods in Social Relations. New York, Dryden, 1951; EPSTEIN, AL (ed.). The Craft of Social Anthropology London, Tavistock, 1967; e DENZIN, Norman. The Research Act Chicago, Aldine, 1970.
  • 17
    Uma técnica similar consiste no “weekly-talking”, conforme ilustrado por Clement, Dorothy et alii. Moving Closer: An Ethnography of a Southern Desegregated School Chapel Hill, Univ. North Carolina, 1978.
  • 18
    LICHTMAN, R. op. cit. Para uma abordagem clássica porém eclética, ver MANNHEIM, Karl. Ideology and Utopia (New York, Harcourt, 1936), onde uma análise da intelectualidade, aproximada à de Gramsci sob muitos aspectos, pode ser encontrada.
  • 19
    AROUCA, A. S. Problemas e ... op. cit.
  • 20
    DONNANGELO. M. C. op. cit. p. 87.
  • 21
    BRASIL, Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde. XIX Congresso Brasileiro de Higiene, São Paulo, outubro, 1977.
  • 22
    GRAMSCI, A. Os Intelectuais ... op. cit. p. 9.
  • 23
    Sobre o sistema de saúde da República Popular da China, ver, entre muitas obras disponíveis, SIDEL, Victor e SIDEL, Ruth. A Healthy State New York, Pantheon, 1977. Sobre a experiência chilena, ver principalmente WAITZKIN, HOWARD e MODELL, H. Medicine, Socialism and Totalitarianism: lessons from Chile. N. England J. Med 291:171-177, 1974; e tb. NAVARRO, VICENTE. What does Chile mean? an analysis of events in the health sector before, during and after Allende’s administration. Milbank Mem. Found. Quart 52:130-145, 1974.
  • 24
    GRAMSCI, A. Os Intelectuais . . . op. cit. p. 12-13.
  • 25
    IBD. Ver tb. Concepção ... op. cit. p. 156-157.
  • 26
    ALTHUSSER, Louis. Ideologia y Aparatos Ideológicos del Estado. Estudios lnterdisciplinários, 1:101-137, 1973.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1980
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