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CIÊNCIAS DA SAÚDE: integração ou isolamento

INTRODUÇÃO

Na permanente busca de aperfeiçoamento dos sistemas universitários ao redor do mundo, busca provavelmente mais intensa no contexto das Ciências da Saúde, apareceram, nas últimas quatro décadas, várias modalidades de articulação/ integração entre as unidades dedicadas à formação de pessoal no campo da saúde. Inúmeros trabalhos anteriores documentaram essa evolução, alguns tratando especificamente da experiência levada a cabo na Universidade de Brasília, uma das primeiras propostas com desenho estrutural e programático adrede preparado para um modelo integrado e multiprofissional.

Igualmente, outros artigos analisaram o rompimento precoce dessas inovações educativas, primeiro com o rechaço ao ensino integrado pôr sistemas orgânicos, com a volta a um esquema disciplinar tradicional. Mais tarde com o abandono como no caso de Brasília, de uma orientação predominantemente comunitária do sistema de atenção, para retomar ao ensino em ambiente hospitalar especializado.

Por mais que o tema pudesse ser motivo de ampla discussão, é pouco provável que ao retomá-lo fosse possível recuperar algo do processo já repudiado por seus próprios professores, depois de haver alcançado reconhecimento internacional. Brasília antecedeu Mac Master, Maastricht, Bershiva e Xochimilco, entre alguns dos projetos inovadores de maior repercussão em todo o mundo, podendo mesmo havê-los superado em alguns aspectos, mas não foi capaz de manter a liderança que estas outras experiências alcançaram, no tocante aos enfoques pedagógicos e de orientação comunitária.

Quero, por isto, separar a inovação funcional que introduziu o modelo didático-pedagógico integrado pôr sistemas orgânicos e o programa de atenção básica, do que ficou como organização estrutural da Faculdade de Ciências da Saúde, modelo em parte dependente da própria concepção da Universidade de Brasília, que na área da saúde deu um passo ainda mais avançado, com a clara separação entre o orgânico-estrutural e o funcional-acadêmico e gerou com isto um maior potencial para outras abordagens alternativas.

No momento este último resquício das inovações iniciais encontra-se em tela de juízo, enfrentando um movimento separatista promovido pôr docentes do que, em uma escola clássica, corresponderia à área médica. Esgotadas as resistências substantivas representadas pelas inovações educativas e assistenciais, seria agora oportuno romper com a estrutura integrada e completar a tentativa de recuperar totalmente o padrão tradicional da Faculdade de Medicina isolada, “para que possa desenvolver todo seu potencial”, como proclama o projeto elaborado para este fim?

Não é raro que situações que se apartam do "status quo" sejam frequentemente questionadas com a demanda de antecedentes que justifiquem o experiência inovadora. Mas, o mais sério e difícil de aceitar qualquer rejeição quando esta ocorre por influência de grupos corporativos, tratando de inviabilizar modelos estruturais que visam superar a rigidez da organização acadêmica clássica, emprestando-lhe grande flexibilidade funcional para abertura ou fechamento dos mais diversos cursos, sem que isto chegue a afetar a estrutura orgânica que se mantêm estável.

Preferem, certamente, perpetuar a rigidez orgânica e funcional, identificando-se com uma estabilidade esclerozante e com o poder que lhes concede a estrutura disciplinar, ambos, permitindo-lhes mais facilmente manter seus feudos acadêmicos. Para fazer frente a tal situação, propomo-nos a analisá-la a sob distintos enfoques teórico-conceituais e em diferentes níveis de profundidade superando a abordagem empírica cm que se baseia a proposta desintegradora.

NÍVEIS DE PROFUNDIDADE DA ANÁLISE

Inicialmente, num plano funcional sistêmico chama a atenção a quantidade de recursos humanos e materiais que se multiplicam nas diversas disciplinas das carreira, do campo da saúde, fato que pôr si só e com base em uma orientação essencialmente eficientista, justifica a alternativa de agrupá-los cm unidades pluri-profissionais, reunindo grupos com diferentes níveis de desenvolvimento e distintos graus de envolvimento na docência, na pesquisa e nos serviços. A alteração nesses casos limita-se a categoria de inovação, na qual, a redistribuição de horários c uma ótima utilização dos recursos humanos e materiais, torna possível o alcance de um melhor aproveitamento dos processos cm curso.

Sem pretender alterações de maior profundidade, tal intervenção pode facilitar a introdução de ajustes funcionais, permitindo oferecer opções alternativas ao longo de qualquer carreira e possibilitando saídas laterais para cursos mais curtos, com o que facilita uma maior diversificação do mercado de trabalho. Obviamente, esse dispositivo acaba com a permanência continuada de todas as carreiras e facilita a abertura de novas linhas de diversificação profissional, que podem responder a demandas limitadas pôr um certo número de anos, sendo extintos posteriormente ou substituídas pôr novas opções.

Essa abertura no plano funcional permite que a inovação orgânica possa ser acompanhada de experiências didático pedagógica, e de reorientação curricular, gerando vários enfoques multidisciplinares, como a abordagem pôr sistemas orgânicos, o ensino modularizado sobre objetos de transformação, o ensino baseado na solução de problemas, os estudos independentes centrados na capacidade e motivação do estudante, etc. Essas abordagens pedagógicas, entretanto, independem dos modelos estruturais, embora sua implementação possa ser viabilizada pela flexibilidade por eles gerada.

Enquanto a abordagem no plano anterior era essencialmente quantitativa, num nível de maior profundidade de análise é possível observar o potencial político-estratégico da estrutura integrada, na qual alteram-se as relações entre os atores, tanto no contexto das disciplinas básicas das diversas carreiras, como no campo de prática profissional. A simples convivência nos mesmos espaços de trabalho permite o desenvolvimento de uma nova cultura acadêmica, muito mais centrada nas práticas que compartem que no corporativismo de profissões específicas.

A distribuição desses recursos em unidades interdisciplinares pode facilitar uma maior interação entre distintas especialidades e deve contribuir para uma mais extensa disseminação da pesquisa científica e eventual reorientação curricular dos programas de formação. Favorece com isto uma distribuição mais equilibrada do conhecimento, permitindo que carreiras mois avançadas no desenvolvimento de novos conhecimentos apoiem o reforço de carreiras com menor tradição cientifica. No caso específico da Medicina caberia indagar o quanto ela poderia contribuir para um maior avanço científico de algumas das demais carreiras da área da saúde e não tratar de livrar-se da responsabilidade de compartir com elas o nível de desenvolvimento já alcançado.

Com a ênfase aqui coiceada nos aspectos de natureza qualitativa e a tendência à horizontalização das equipes interdisciplinárias, é possível que os atores sociais interessados na introdução de mudanças futuras estabeleçam novs relações de forças em projetos de intervenção de maior amplitude. O "processo dinâmico interpessoal e dialogal, que conduz à convergência de objetivos e coopcração na ação", como querem os líderes da separação, é justamente a resultante da mudança estrutural no nível das relações sociais que decorre da interação e compromisso de trabalho conjunto das equipes disciplinarias.

Num último plano de análise, ainda mais profundo, é possível admitir alterações, de maior transcendência, da própria essência do conhecimento com base nos seus determinantes histórico-sociais. Neste caso a estrutura orgânica integrada pode facilitar uma abordagem transdisciplinária, superando a dicotomia do conhecimento vigente e gerando uma verdadeira articulação biológico social.

Esta abordagem é mais relevante pela preocupação atual de incorporar o novo paradigma da saúde como parte integrante da qualidade de vida e componente fundamental do desenvolvimento humano. Com isto, a consideração dos fatores determinantes da saúde passa a orientar a adoção de melhores práticas baseadas na produção social da saúde, com ênfase nos ambientes saudáveis, sob uma ótica de intersetorialidade, integrando a promoção, prevenção, recuperação e reabilitação, em suas devidas proporções.

Com isto, queremos ressaltar o potencial da Faculdade de Ciências da Saúde para alternativas futuras de alterações que se afastam bastante do modelo hegemônico da prática médica e podem constituir respostas viáveis ao esgotamento das possibilidades atuais desse mesmo modelo médico. Não significa, em absoluto, a negação da prática vigente, senão que pelo contrário, constitui-se na estratégia para seu progresso continuado a custa da superação dos excessos, tanto de oferta como de demanda, aproveitando, em sua totalidade cada uma das abordagens da atenção à saúde, e não somente aquelas destinadas à recuperação da doença.

Esta transformação, incrente ao título do próprio Centro de Ciências da Saúde, embora dependente de um plano de análise de maior profundidade, constituí a essência do empreendimento e, se não foi alcançada na fase empírica de implantação da unidade pelo apego predominante a aspectos metodológicos e disputas de interesses pessoais, não significa que esteja rechaçada de tudo. A estrutura integrada, ainda vigente, mantém o seu potencial e permite a sua consideração alternativa no contexto de várias outras reformas ou novos saltos qualitativos, como pode ocorrer com a reforma do setor saúde, a grande prioridade concedida à reorientação do treinamento do médico de família e, para não estendermos mais este análise e cobrir mais amplamente todo o campo bio-médico, a eventual influência futura do próprio projeto genoma.

CONCLUSÕES

A mesma relevância referida acima realça a importância da saúde coletiva como marco de referência de uma verdadeira Faculdade de Ciências da Saúde e este fato pode explicar a resistência que se observa em alguns contextos.

Os médicos, provavelmente pôr uma motivação subconsciente, sempre mantiveram certo grau de preocupação nas suas relações com a saúde coletiva. Obviamente, não a podem negar mas, desde de tempos imemoriais procurar,1m manter controle sobre ela. Num passado mais recente, com Abrahan Flexner em 1915, a decisão da criação da primeira Escola de Saúde Pública, orientou-se a solução de vinculá-la à um Hospital de ensino- o de John Hopkins. Posteriormente, com o programa de Leavell Clark trataram de enquadrar toda sua amplitude num modelo de dependência médica predominante e, logo, em Colorado Springs, na metade do século, introduziram a proposta da medicina preventiva como outro dos intentos de exercer controle sobre a saúde. Já nos nossos dias, o advento da epidemiologia clínica evidenciou a apropriação pelos médicos de um dos mais importantes instrumentos de trabalho da saúde pública. Estes, entre muitos outros, são exemplos que denotam aquela preocupação.

Entretanto, independente de linhas de subordinação que se possam estabelecer num sentido ou no outro, é forçoso admitir que no caso em tela, saúde é a floresta e medicina é a árvore. Não é admissível concentrar-se no último sem tomarem conta o primeiro, quando na realidade ns características do primeiro podem também influenciar este último.

Na atualidade tudo que aceito como mais moderno na formação profissional em saúde, aponta na direção descrita nos três níveis de intervenção referidos nos parágrafos anteriores. O avanço que se possa alcançar estará situado na razão direta do aprofundamento dessa mesma intervenção, desde uma simples inovação até a total transformação. Estaria implícito, obviamente, que um movimento em direção contrária seria a negação de toda e qualquer possibilidade de um desenvolvimento progressista, ajustado à evolução natural da ciência e técnica em saúde. Seria um verdadeiro “avanço para o passado”.

A proposta da Escola Médica autônoma renega a situação de “excepcionalidade” da atual Faculdae de Ciências da Saúde sem tomar em conta o caráter positivo e de vanguarda que tal excepcionalidade oferece. Pretende realçar a expressão acadêmica de sua restrita comunidade de ensino e pesquisa, rechaçando a importante e enriquecedora interação com as demais carreiras da área. Projetaram isto uma sensação de superioridade ao realçar sua dimensão acadêmica e importância social, a qual consideram deva ser aproveitada exclusivamente em seu benefício.

E, nesse excesso de conservadorismo, alcançam o extremo da negação do desenvolvimento de práticas de saúde, ao destacar a consolidação do Hospital Universitário cuja atividade indicam “conferir as características essenciais da área acadêmica” (em desmedro, diríamos, dos novos paradigmas de promoção da saúde e ênfase na saúde da família).

Admitem, por fim, que tal estratégia facilitaria “o surgimento de lideranças acadêmicas e abririam caminho parta captação de recursos para a melhoria do curso, viabilizando a construção de instalações físicas ajustadas às características acadêmicas do projeto”, hipótese otimista. Na medida em que as prioridades consideradas na distribuição de recursos normalmente valorizam os projetos mais inovadores.

Essa pequena amostra de argumentação é suficiente para evidenciar seu total afastamento das tendências mais modernas da evolução da formação na área da saúde e justifica o apelo que aqui deixamos para que “voltem para o futuro”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1998
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