Resumos
Apresenta-se uma contextualização teórica sobre a Estratégia Saúde da Família (ESF) e se discutem suas possíveis fortalezas e fragilidades. O texto foi construído com base em uma revisão da literatura com estratégia de busca definida e reflexão crítica sobre os textos selecionados. Destaca-se como um ponto importante a tentativa de resposta ao desafio de reorientar o modelo de atenção à saúde – em sua dimensão político-operacional – que emergiu em 1994, quando o Ministério da Saúde implantou o Programa Saúde da Família (PSF), que, posteriormente, passou a ser considerado a estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde, a ESF. Alguns aspectos apontam um avanço alcançado com a implementação da ESF, destacando-se a reorganização da Atenção Primária à Saúde (APS), o espaço-tempo da visita domiciliar e a alteridade e a produção do acolhimento na APS. Apesar dos inegáveis avanços, seus princípios e práxis ainda não são uma completa realidade no cotidiano dos serviços de saúde, destacando-se especialmente o desafio de compreender e praticar a integralidade na APS, o desafio da valorização e da adequação do perfil dos profissionais/trabalhadores da ESF, a formação, a inserção e a práxis do agente comunitário de saúde, e a dificuldade de trabalho em equipe nas unidades da ESF.
Sistema de Saúde; Atenção Primária; Educação Médica; Estratégia Saúde da Família
This paper presents a theoretical background of the Family Health Strategy (ESF) and discusses its possible strengths and weaknesses. The text is based on a literature review with a defined search strategy and critical reflection on selected texts. An important point that is highlighted is the attempt to respond to the challenge of reorienting the health care model – in its political-operational dimension – which emerged in 1994 upon the Ministry of Health’s implementation of the PSF, which was subsequently considered the framework strategy for municipal health systems, the ESF. Some aspects indicate an advance made with the implementation of the ESF, underlining the reorganization of Primary Health Care, the space-time of home visits and the alterity and production of reception into Primary Health Care. Despite the undeniable advances made, its principles and practices are yet to become a complete reality in the everyday routine of health services, especially considering the challenge of understanding and practicing comprehensive Primary Health Care, the challenge of recovering and shaping the profile of ESF staff, the training, insertion and practices of the community health agent, and the difficulty in optimizing teamwork in ESF units.
Health System; Primary Health Care; Medical Education; The Family Health Strategy
INTRODUÇÃO
Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir.
(Gilles Deleuze, Crítica e clínica)
O modelo de atenção à saúde no Brasil foi historicamente pautado na assistência médica, de tessitura curativa e individual, inscrita no paradigma biomédico, que privilegia as tecnologias duras e reconhece a saúde como a simples ausência de doença. A tentativa de ultrapassagem desse paradigma convergiu para a criação e a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, uma vez que o modelo de serviços de saúde era insuficiente para a abordagem dos principais problemas de saúde da população brasileira.
O SUS surgiu como uma tentativa de resposta às transformações ocorridas no bojo da sociedade brasileira, consubstanciadas no movimento nacional pela democratização do País, no qual se buscavam também mudanças radicais no até então ineficiente, insuficiente e caótico sistema sanitário existente1. Nesse contexto, o Movimento da Reforma Sanitária buscava a reorganização da política de saúde vigente e a instituição de um sistema de saúde que proporcionasse a efetiva participação e o controle social, reconhecendo a saúde como um direito social. As diretrizes do SUS – construídas nesse processo – se consolidaram com a Constituição Federal de 1988, considerada um marco na história da saúde do País, na medida em que estabeleceu: (a) a universalização da cobertura e do atendimento; (b) a descentralização das ações e dos serviços de saúde; (c) a equidade no acesso a estes como princípios básicos2-3.
Desta feita, a Atenção Primária à Saúde (APS) – a porta de entrada principal dos indivíduos e de suas famílias para o sistema de saúde –, conhecida no Brasil como Atenção Básica, passou a conceber, em meados de 1994, a Saúde da Família como o modo prioritário para organização do sistema, em consonância com os preceitos do SUS. Inicialmente, propôs-se o Programa Saúde da Família (PSF) como domínio (re)estruturante da APS, com base em ações de promoção da saúde, de prevenção de eventos mórbidos, de assistência e de recuperação com qualidade, o que favoreceu maior aproximação entre os serviços e a população2,3. Atualmente, o PSF tornou-se a estratégia – Estratégia Saúde da Família (ESF) – prioritária de reformulação do modelo assistencial e de cuidado à saúde na Atenção Primária2.
A ESF tem sido considerada um cenário privilegiado para a formação médica, conforme bem delimitado nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina, ora vigentes, e nas Diretrizes para o Ensino na Atenção Primária à Saúde na Graduação em Medicina4:
Um marco reconhecido na política educacional brasileira é a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)1, as quais flexibilizam as organizações curriculares, possibilitando a construção de projetos político-pedagógicos (PPP) mais condizentes com o pensamento contemporâneo. A política de saúde no Brasil também experimenta um marco em sua história recente com a Constituição Federal de 1988, que instituiu em todo o território nacional um sistema universal e único de saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS). Dentre inúmeras proposições contundentes, a Constituição definiu que a ordenação da formação de recursos humanos também é competência do SUS. A Atenção Primária à Saúde (APS) é ponto de convergência entre estas duas políticas, na medida em que as DCN apontam para uma integração com o sistema de saúde e com as necessidades de saúde da população, descentralizando o ensino da medicina dos hospitais à rede de saúde, tendo, na Estratégia de Saúde da Família (ESF), o modelo prioritário para a (re)organização da APS e toda a atenção à saúde no país.(p.144)
Dessa forma, a ESF trabalha a promoção da saúde como possibilidade de articulação transversal, o que confere visibilidade aos fatores que colocam a saúde da população em risco e às diferenças entre necessidades, territórios e culturas presentes no País, visando à criação de mecanismos que reduzam a vulnerabilidade, defendam a equidade e incorporem a participação e o controle social na gestão das políticas públicas5-6.
Com base nestas breves considerações, o presente artigo – um ensaio crítico, parte da dissertação de mestrado do autor principal – tem como objetivo apresentar uma contextualização teórica sobre a Estratégia Saúde da Família (ESF), bem como discutir suas possíveis fortalezas e fragilidades. O texto éinspirado na obra Crítica e clínica, de Deleuze, mormente ao se considerar que “a literatura é uma saúde”7.
MÉTODO
Utilizou-se como método uma estratégia de busca definida, destacando-se que o texto foi construído com base na análise crítica de referências disponíveis na literatura científica nacional.
Os artigos utilizados foram buscados na Scientific Electronic Library Online(SciELO Brasil – http://www.scielo.br/) e na Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs – http://lilacs.bvsalud.org/). Os termos – identificados por meio da pesquisa no âmbito dos Descritores de Ciências da Saúde (DeCS – http://decs.bvs.br/) – foram organizados nas seguintes estratégias de busca:
Estratégia 1 – “Sistema Único de Saúde” + “Atenção Básica”;
Estratégia 2 – “Sistema Único de Saúde” + “Programa Saúde da Família”;
Estratégia 3 – “Sistema Único de Saúde” + “Estratégia Saúde da Família”.
A busca permitiu a obtenção de 1.644 citações, distribuídas de acordo com a Tabela 1.
Os critérios de inclusão para seleção dos artigos foram: publicações no período de 1994 – ano de implantação do Programa Saúde da Família no País – a 2011; disponibilidade do texto completo para leitura; abordagem centrada nos debates acerca da Atenção Primária à Saúde, do PSF e/ou da ESF, com foco no SUS. Em relação aos artigos selecionados, adotou-se, inicialmente, como critério de exclusão: eliminar a literatura repetida nas bases de dados pesquisadas.
Além dos 51 artigos selecionados – escolhidos em concordância com os critérios de inclusão –, foram consultados outros artigos – de conhecimento prévio dos autores e/ou identificados nas referências dos textos selecionados na busca bibliográfica –, livros-textos e documentos oficiais, sempre priorizando o debate brasileiro sobre o assunto.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Após a leitura e delimitação dos conceitos centrais dos artigos selecionados, as informações foram organizadas nas seguintes seções: (1) O movimento da Reforma Sanitária Brasileira e o advento do SUS; (2) O desafio de reorientar (efetivamente) o modelo de atenção à saúde; (3) Estratégia Saúde da Família: fortalezas – ou sobre a clínica; (4) Estratégia Saúde da Família: fragilidades – ou sobre a crítica; e (5) Considerações finais.
O movimento da Reforma Sanitária Brasileira e o advento do SUS
A Conferência Internacional sobre a Atenção Primária à Saúde, realizada em Alma-Ata (atual Cazaquistão) em 1978, reafirmou e revitalizou a saúde como um dos direitos fundamentais do homem, com impacto sobre os movimentos sociais no Brasil. Nesse momento, delimitava-se o campo da saúde coletiva e seu objeto de saber-fazer, passando o processo saúde-doença a ser foco de intervenções coletivas e não apenas individuais8-10.
A articulação paulatina de movimentos sociais brasileiros começou a ocorrer nesse contexto. Sindicatos diversos debatiam a precarização da saúde no País e reforçavam as reivindicações de soluções prementes para os problemas surgidos com o modelo de saúde existente. A necessidade de uma transformação na saúde foi apoiada por diversos grupos sociais e segmentos populares – estudantes, pesquisadores, profissionais da saúde e gestores, dentre outros –, que alimentavam a luta pelos direitos civis e sociais entendidos como inerentes à democracia tão buscada8,9.
Na década de 1980, iniciou-se um movimento ampliado e cada vez mais intenso e articulado de contestação do sistema de saúde governamental, buscando-se a democratização do mesmo, a participação popular efetiva, a universalização dos serviços, a defesa do caráter público e a descentralização do sistema de saúde11. Em 1985, com o advento da Nova República, finda o regime militar em crise, e as lideranças do movimento sanitário assumem posições estratégicas nas instâncias de responsabilidade pela política de saúde brasileira. De 17 a 21 de março de 1986, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília, surgiam os princípios norteadores da Reforma Sanitária e a ampliação do conceito de saúde, cerne para a criação de um Sistema Único de Saúde (SUS), separando as amarras da saúde em relação à previdência9.
Desta perspectiva, à medida que essas propostas nasciam da sociedade e alcançavam o poder público por meio dos movimentos sociais, o SUS se consubstanciava paulatinamente como conquista do povo brasileiro, vociferando a ideia de que todas as pessoas têm direito à saúde, e este direito está ligado à cidadania12.
O SUS foi constituído por princípios e diretrizes, genuínos arcabouços para seu funcionamento e organização, sendo um instrumento de afirmação dos direitos sociais no País. A Constituição Federal de 1988, a Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990 – também conhecida como Lei Orgânica da Saúde, por organizar e regular as ações de serviços de saúde no território nacional – e a Lei 8.142, de dezembro de 1990 – que estabeleceu a participação popular no SUS e as transferências intergovernamentais de recursos financeiros da saúde – formam os pilares do arcabouço legal do SUS, organizando-o e tornando-o factível13-15.
Esse conjunto de leis – resultante das lutas contra a ditadura militar e dos embates pela hegemonia na condução do processo de redemocratização – institucionalizou a participação social organizada no processo decisório das políticas sociais, revigorando e criando novos espaços de participação democrática da sociedade, dentre os quais se destaca a criação dos conselhos de saúde, existentes hoje nos 5.564 municípios brasileiros16.
Os princípios do SUS, constituídos no processo de construção democrática do sistema de saúde, são12,17:
Universalidade − Pressupõe o direito à saúde para todos e o acesso às ações e aos serviços de saúde em todos os níveis de complexidade da assistência; a saúde é um direito e não a prestação de um serviço ao qual se tem acesso por uma contribuição ou pagamento de qualquer espécie. Contrapõe-se à ideia anterior de seguro social;
Equidade − Implica a adoção da igualdade não como ponto de partida dos debates sobre a justiça, mas, sim, como ponto de chegada18; propõe tratar desigualmente os desiguais – como na fórmula aristotélica –, para alcançar uma sociedade mais justa e atentar para as suas necessidades individuais e coletivas;
Integralidade − Talvez o princípio mais complexo do SUS, costuma ser concebido como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema. Segundo Mattos19, a integralidade possui distintos sentidos no campo da saúde: (i) histórico, de contraposição à dicotomia da saúde pública e da assistência médica no País; (ii) sentido epistemológico da concepção de saúde para prática em saúde integral; (iii) sentido de planejamento em saúde e de políticas focadas na atenção integral; e (iv) sentido das relações de trabalho, educação e saúde, formação e gestão do trabalho em saúde19.
Além do papel estruturante dos princípios, deve-se destacar que o SUS se organiza com base nas seguintes Diretrizes17,20:
Descentralização − Corresponde à distribuição de poder político – bem como das responsabilidades e recursos – da esfera federal para a estadual e a municipal; isto significa uma “desconcentração” do poder da União – editada por meio das NOB-SUS – para os estados e municípios brasileiros;
Regionalização e hierarquização − Ambas estão dispostas na Lei 8.080, enfatizando o território como local determinante de perfis populacionais, indicadores epidemiológicos e condições de vida, que devem nortear as ações e os serviços de saúde em determinada região. Imbricada com o princípio da integralidade, a rede de ações e serviços de saúde deve incluir desde ações de promoção e prevenção até ações de alta complexidade, abrangendo recursos diagnósticos, internações e procedimentos cirúrgicos diversos, dentre outros. Já a hierarquização prevê que os serviços se saúde sejam organizados em níveis de complexidade tecnológica crescente, de forma a garantir o processo de referência e contrarreferência, embora muitas vezes dicotomize – de forma inadequada – os serviços em trabalho – supostamente – “simples” (Atenção Primária à Saúde) e trabalho “complexo” (nos hospitais).
O SUS é, assim, fruto de um longo debate por melhores condições de saúde21, o qual criou a necessidade de imprimir uma nova forma de produzir e distribuir as ações e os serviços de saúde. Embora sejam consideradas uma condição necessária ao funcionamento do sistema de saúde, as dimensões político-jurídica e político-institucional não garantem, por si sós, a potência de criação proposta pelo SUS21.
O desafio de reorientar (efetivamente) o modelo de atenção à saúde
A tentativa de resposta ao desafio de reorientar o modelo de atenção – em sua dimensão político-operacional – emergiu em 1994, quando o Ministério da Saúde implantou o PSF, que, em 1998, passou a ser considerado como a estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde, a ESF. O PSF foi criado com base em experiências advindas de outros países – como Cuba, Canadá e Inglaterra –, que apresentavam sistemas de saúde melhor estruturados e com qualidade reconhecida. Nessa discussão, a APS consiste no espaço de cuidado à saúde mais próximo dos usuários do SUS, considerando a territorialização como ponto de partida e lócus de proximidade entre usuários e equipe de saúde12,22.
O PSF foi precedido pela criação do Programa Agentes de Saúde (PAS) – no Ceará, em 1987 – e pelo Programa Agentes Comunitários de Saúde (Pacs – 1991). Inicialmente, o PSF foi justificado pela necessidade de substituir o modelo sanitário hegemônico –historicamente voltado para a doença e para o cuidado médico individualizado, curativo, médico-centrado e tendo o hospital como cenário de solução para todo e qualquer problema de saúde – por um novo modelo, sintonizado com os princípios da universalidade, equidade e integralidade. O PSF, agora definido como ESF, consolida a proposta de desenvolver novas ações, consideradas “humanizadas, tecnicamente competentes, intersetorialmente articuladas e socialmente apropriadas”23 (p.9), por considerarem que o indivíduo que adoece precisa ser visto de forma integral e não de modo fragmentado ou isolado de seu contexto familiar/social e de seus valores ou como órgãos sem corpo24. Trata-se, pois, de uma lídima tentativa de estabelecer “uma outra língua no interior da língua”7(p.275) do saber-fazer próprio da saúde.
Reconhece-se, desta feita, que a ESF surgiu como modalidade estruturante e inovadora dos sistemas municipais de saúde, potencializando o reordenamento do modelo de atenção vigente21, fortalecendo a APS como porta de entrada preferencial dos serviços de saúde e com a perspectiva de se construir uma nova clínica – ampliada – no espaço-tempo da APS, propondo a ultrapassagem das práticas convencionais de saúde25,26. Trata-se de uma estratégia que busca substituir a forma de pensar e praticar saúde, na medida em que a ESF traz no centro de sua proposta a expectativa de reorientação do modelo assistencial a partir da APS, com vistas ao desenvolvimento de um novo paradigma – integral, humanizado e compromissado com o atendimento de necessidades e com a garantia do direito à saúde da população27 –, transpondo a visão fragmentada do ser humano para uma compreensão integral na dimensão individual, familiar e coletiva.
Destacam-se, ainda, nesta esfera, os aspectos sublinhados por Franco e Merhy28, para os quais a mudança do modelo assistencial curativo requer, fundamentalmente, a interferência nos microprocessos do trabalho em saúde – ou seja, transformação das relações micropolíticas –, nas concepções desta forma de trabalho e a construção de novas relações entre usuários e profissionais – e destes entre si –, como uma potente tentativa de transformá-los em sujeitos, ambos produtores do cuidado em saúde28, propostas estas que estariam em consonância com a ESF.
Lidando e tendo como base a lógica da articulação entre vigilância, atenção, proteção e gestão da saúde, a ESF representa a saúde centrada no usuário na concepção de qualidade de vida e da promoção da saúde, com foco na importância do conceito de autonomia / empoderamento (empowerment) – definido como o processo por meio do qual os indivíduos ou comunidades adquirem maior controle sobre as decisões e ações que afetam sua saúde, ampliando as possibilidades de controle dos aspectos significativos relacionados à sua própria existência29,30 – e garantindo o envolvimento e a participação da população nos programas de saúde. Na realidade, o educador brasileiro Paulo Freire31 já expressava e debatia a importância da educação como uma estratégia e prática de “libertação” para os cidadãos, termo este que, resguardado seu significado, é correlacionado ao que Sen propõe como empowerment. Em consonância com os conceitos de libertação e empowerment apresentados, Garrafa32 inclui o termo “emancipação”, que, além de reforçar a ideia de alforria, independência e libertação, carrega consigo o sentido político de que a inclusão social e a justiça podem ser conquistadas e construídas mediante as práticas e ações de sujeitos emancipados.
Por propor um modelo usuário-centrado, a práxis da ESF, orientada pela intersetorialidade e fortalecimento da cidadania, tem como base a atenção centrada nas necessidades do usuário – e não mais no procedimento –, facilitando o acesso através da vigilância da saúde, da busca ativa e do acolhimento, e o estabelecimento de uma nova relação profissional de saúde e usuário, com responsabilização e estabelecimento de vínculo33-35. O foco passa a ser a promoção da saúde, que permite a combinação de estratégias – ações do Estado, da comunidade, dos indivíduos, do sistema de saúde e de parcerias intersetoriais – e articula de forma transversal os mecanismos para redução das situações de vulnerabilidade e controle social36.
Desde sua implantação, a ESF vem sendo analisada sob díspares perspectivas, o que tem permitido destacar suas fortalezas – campo da clínica(ampliada) – e suas fragilidades – espectro da crítica –, como será comentado a seguir.
Estratégia Saúde da Família: fortalezas – ou sobre aclínica
Alguns aspectos descritos na literatura apontam um avanço alcançado com a implementação do PSF e a adoção deste como uma estratégia no País, destacando-se a reorganização da APS, o espaço-tempo da visita domiciliar e a alteridade e a produção do acolhimento na APS.
A reorganização da Atenção Primária à Saúde
A reorganização da APS – como proposta da ESF – se faz mediante ações de promoção de saúde, prevenção de riscos e de doenças, assistência e recuperação com qualidade, o que, sem dúvida, favorece a aproximação entre os serviços e a população37. Nesse sentido, a ESF destaca-se enquanto estratégia inovadora e reestruturadora das ações e serviços de saúde38, já consolidada como a política de saúde prioritária do governo federal brasileiro. As propostas da Vigilância à Saúde ou da Produção Social da Saúde – princípios a serem trabalhados pela ESF – superam os modelos assistenciais vigentes, implicando uma redefinição do sujeito, do objeto e a consolidação do SUS. De fato, alguns estudos revelam que de 1998 a 2004 houve uma expansão importante da ESF em todas as regiões brasileiras, mas com cobertura maior nos municípios com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo, fato que tem se modificado ao longo do tempo34. Outros já evidenciam que a ESF – e seu foco na APS – tem significativo impacto sobre os diversos indicadores de saúde, reduzindo gastos totais com melhora do acesso aos serviços de saúde e de qualidade global da atenção; ademais, facilita a detecção precoce dos problemas relacionados à saúde, corrobora a diminuição das internações e ainda reduz o uso de cuidados desnecessários de atenção especializada à saúde33,39.
O espaço-tempo da visita domiciliar
A ESF, além de incorporar e reafirmar os princípios do SUS, desenvolve suas ações especialmente em três esferas – usuário, família e território –, para o que se torna essencial o trabalho em equipe. Nesse contexto, a ESF considera a importância da família em seu espaço social, abordando seu contexto socioeconômico e cultural, compreendendo que é nela que ocorrem as interações e conflitos que influenciam diretamente o processo saúde-doença. Dentre as atividades preconizadas pela ESF, as visitas domiciliares (VD) se destacam como intervenção capaz de consubstanciar ações preventivas, curativas, de promoção e de reabilitação dos indivíduos em seu contexto familiar, por permitirem maior aproximação entre os profissionais e a realidade de vida e a dinâmica dessas famílias40. Neste particular, destaca-se o estudo realizado por Cruz e Bourget40 num território de abrangência de uma Unidade Básica de Saúde localizada na zona leste do município de São Paulo. Os autores detectaram alguns aspectos interessantes sobre a percepção das famílias quanto às visitas domiciliares realizadas pelos membros da equipe de saúde, com destaque para os ACS40:
(1) a VD percebida como meio facilitador de aproximação das necessidades da população, contribuindo para o acesso ao serviço de saúde no próprio domicílio e a cuidados individualizados, o que ampliava o princípio da equidade;
(2) a VD considerada como prática rotineira e importante, constituindo uma ação de trabalho no cuidado às famílias atendidas, permitindo acompanharin loco a situação de saúde de cada um de seus membros e dar maior orientação ao indivíduo e sua família, não sendo um simples espaço de monitoramento – ou subtração da autonomia –, mas, sim, uma esfera privilegiada para o diálogo e a troca de saberes;
(3) a VD compreendida como instrumento de humanização da atenção à saúde e aplicação das tecnologias leves, possibilitando o resgate da valorização de conceitos fundamentais de vínculo, humanização, corresponsabilização e respeito às famílias, e, igualmente, o aperfeiçoamento da confiança, da comunicação e da escuta qualificada.
A visita domiciliar propicia também a oportunidade de orientar e esclarecer os indivíduos, além de fornecer subsídio para que as famílias atendidas tenham condições de se tornar corresponsáveis pelo cuidado à saúde40.
A alteridade e a produção do acolhimento na Atenção Primária à Saúde
A Política Nacional de Humanização (PNH) tem o acolhimento como uma de suas diretrizes e facetas mais visíveis na APS, pelas cosequências diretas que pode determinar (i) no acesso dos usuários e (ii) no processo de trabalho com vistas a atender todos aqueles que buscarem o serviço de saúde. Tida como a maior potencialidade das experiências com o acolhimento na APS, a redução da demanda reprimida na rede primária também pode ser explorada no bojo do encontro trabalhador/usuário, a qual, quando adequada, possibilita um processo de mudança nas práticas de saúde, reafirmando a utilização das tecnologias leves41.
O acolhimento preconizado na APS – reconhecidamente um dos pilares da ESF – pode ainda ser enriquecido pelo destaque à alteridadehumana. Trata-se de um dos conceitos centrais da Antropologia, que incorpora a noção de humanidade plural e aceita a diversidade de culturas que carreiam suas próprias complexidades e maturidade, adotando o ponto de vista do outro, buscando experimentar a realidade cultural alheia e reconhecendo o outro não apenas como objeto, mas também como um sujeito relacional em sua singularidade42. A alteridade no acolhimento permite, então, a pactuação, criando possibilidades de enfrentamento das situações do cotidiano, e o acolhimento do outro como sujeito em seu sofrimento; nesta perspectiva, há um intenso movimento de resistência à objetivação do outro, sendo um dos caminhos para alcançar a integralidade da atenção em saúde e, por conseguinte, das práticas em saúde tradicionais até então adotadas18,41,43,44.
A composição do acolhimento/alteridade associa na forma exata o discurso da inclusão social, da defesa do SUS, a um arsenal técnico potente que vai desde a reorganização dos serviços de saúde e passa por um processo de mudanças na gestão das unidades. Propõe inverter a lógica de organização e funcionamento do serviço de saúde, com base em princípios que devem garantir a todas as pessoas que procurarem o serviço de saúde a acessibilidade universal; a reorganização do trabalho, a fim de deslocar seu eixo central do médico para uma equipe multiprofissional – equipe de acolhimento – e qualificar a relação trabalhador-usuário, que deve se pautar em parâmetros humanitários, de solidariedade e cidadania. A equipe de acolhimento passa a ser o centro da atividade no atendimento aos usuários, e os profissionais não médicos passam a usar seu arsenal tecnológico, o conhecimento, para a assistência e escuta da população usuária da unidade45.
Estratégia Saúde da Família: fragilidades – ou sobre acrítica
A ESF surgiu para construir uma nova perspectiva em relação à APS, substituindo o modelo biomédico por novas práticas de atenção e cuidado à saúde, rompendo com modos de operar convencionais e gerando maior interação e respeito entre profissionais e usuários. Desde a implantação do SUS – mormente, decorridos mais de 20 anos –, vários progressos têm sido alcançados no desenvolvimento da APS, inclusive com o aumento da cobertura assistencial em áreas antes desassistidas4,46. Sem embargo, apesar dos inegáveis avanços obtidos com o SUS e a implantação do PSF, seus princípios orientadores ainda não são uma completa realidade no cotidiano dos serviços de saúde46, destacando-se especialmente: (i) o desafio de compreender e praticar a integralidade na APS; (ii) o desafio da valorização e adequação do perfil dos profissionais/trabalhadores da ESF; (iii) a formação, a inserção e a práxis do agente comunitário de saúde; (iv) a dificuldade de trabalho em equipe nas unidades da ESF.
O desafio de compreender e praticar a integralidade na Atenção Primária à Saúde
Dentre os princípios e diretrizes do SUS, a integralidade é o menos visível na trajetória das práticas do SUS – na perspectiva de diferentes autores –, tendo em vista que as mudanças no sistema em relação à integralidade não têm sido tão evidentes e acontecem de forma sutil46,47, constituindo, ainda, um nó crítico a equacionar.
A lógica da assistência na APS presente no cotidiano dos serviços ainda prioriza aspectos preventivos – de reabilitação e acompanhamento de determinadas enfermidades, como, por exemplo, hipertensão arterial sistêmica e diabetesmellitus –, mantendo também o objetivo maior de prevenir agravos. Tal postura decorre de uma abordagem “economicista” da saúde, que visa, na realidade, prevenir ou minimizar os agravos geradores de maiores gastos48.
A proposta para sobrepujar os desafios para efetivar a atenção e o cuidado integral à saúde começa pela reorganização dos processos de trabalho na rede primária e vai se somando a outras ações de atenção à saúde. No caso da APS, a construção da integralidade do cuidado supõe a redefinição das práticas, no sentido de criar vínculos, acolhimento e autonomia que valorizem a singularidade dos sujeitos como pontos de partida para qualquer intervenção. A compreensão e o exercício da integralidade como articulação entre as diferentes dimensões do cuidado – promoção, prevenção, tratamento e recuperação – em saúde devem ter como referência a prática de um cuidado integrado em saúde. Evidencia-se um esforço que deve partir, inicialmente, dos trabalhadores e dos gestores da saúde48.
Para alcançar a integralidade no sistema de saúde, é necessário também que os gestores municipais, estaduais e federais priorizem este princípio, verificando no cotidiano de gestão e na operação do sistema de saúde se seus pressupostos têm sido aplicados4.
O desafio da valorização e da adequação do perfil dos profissionais/trabalhadores da ESF
A formação, o desempenho e a gestão dos recursos humanos afetam consideravelmente a qualidade dos serviços prestados e o grau de satisfação dos usuários. Assim, a formação e a educação dos profissionais para abordagem do processo saúde-doença – com enfoque na saúde da família – são um dos desafios para o êxito do modelo sanitário proposto pelo SUS. A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) ressalta a necessidade de melhorar o serviço prestado à população pelos profissionais de saúde, com base na qualificação, na capacitação e no aprimoramento do desempenho49-51.
Em contrapartida, a evidência científica aponta a crise de situação de trabalho dos profissionais/trabalhadores da saúde atuantes no âmbito do SUS, a qual abrange desde a questão salarial e de carreira até a carência de recursos técnicos e materiais51.
Os profissionais de saúde da APS têm indicado vários aspectos desmotivadores, dentre eles: dificuldade de trabalhar interdisciplinarmente e reconhecer as incertezas e indeterminações das relações com os usuários; relacionamento interno com a equipe de saúde e inexistência de responsabilidade coletiva pelos resultados do trabalho; falta de transporte e de material; precariedade da infraestrutura da unidade; reuniões improdutivas e de baixa resolubilidade; excesso de demanda para a oferta disponível; contrato de trabalho na modalidade temporária e não por concurso público; baixa remuneração; alta rotatividade de profissionais; acúmulo de mais de um vínculo de trabalho. Tais aspectos são apontados como razões para não considerarem o trabalho na ESF como atividade principal51-53. Elementos semelhantes foram observados em estudo realizado por Gomes e Silva54, sendo delineados por diversos autores como dilemas da relação expansão/precarização do trabalho no contexto do SUS54,55.
Para complicar mais ainda este cenário, percebe-se o distanciamento entre o setor educacional e a prática no contexto da ESF52,56 e a falta de treinamento dos profissionais para trabalhar segundo os princípios da APS.
Um estudo realizado por Scorel et al.57, em 2007, em dez municípios com população acima de cem mil habitantes de quatro regiões do Brasil, apontou um número baixo de profissionais de nível superior das equipes com formação específica para atuação em APS e poucos profissionais com especialização em saúde pública e coletiva ou com formação voltada para saúde da família – número inferior a 30%. Dentre os fatores que motivaram a escolha dos profissionais pela atuação no PSF destacaram-se a vontade de trabalhar junto a comunidades pobres e a possibilidade de a ESF reorganizar a atenção no âmbito municipal57.
Para valorização e melhoria do desempenho dos profissionais de saúde que atuarem na APS51,57, são fundamentais medidas tais como: qualificação e capacitação do profissional de saúde, remuneração adequada, novas formas de contratos de trabalho que garantam mais estabilidade e fortaleçam o vínculo empregatício, além da melhoria das condições de trabalho e infraestrutura dos serviços e unidades.
A formação, a inserção e a práxis do Agente Comunitário de Saúde
Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), integrantes essenciais da equipe da ESF, não constituem mero suporte para a execução de determinadas ações em saúde. Pelo contrário, são considerados personagens-chave na implantação de políticas voltadas para a reorientação do modelo de atenção à saúde preconizado pelo SUS. Embora suas atribuições sejam bem definidas – em concordância com o descrito na Política Nacional de Atenção Básica 2007 –, estudos realizados com equipes de saúde da ESF em Cajuri (MG), Campinas (SP) e Araçatuba (SP) apontaram que os ACS têm se deparado com dificuldades para cumprir suas atribuições58-60.
Alguns dos paradoxos relacionados à práxis dos ACS detectados nos estudos de Gomes et al.58 e Saliba et al.60 foram: (i) alto grau de intervencionismo na vida das pessoas realizado por estes agentes – o que reproduz, mesmo sem que estes tenham conhecimento, processos de captura instaurados no âmbito das sociedades, característicos das sociedades de controle61,62; (ii) impossibilidade de realizar as VD em todas as famílias cadastradas; (iii) a atitude de alguns ACS de favorecer o modelo clientelista ou facilitar o acesso a pessoas mais próximas ou afins à Unidade Básica de Saúde; (iv) baixos salários dos agentes; (v) falta de capacitação desses agentes; (vi) sobrecarga de atividades nas Unidades e desvalorização do trabalho dos agentes; (vii) falta de receptividade de alguns moradores da comunidade e relacionamento com outros profissionais da equipe, não se sentindo aceitos. Estes aspectos são referidos como entraves que cursam como desmotivadores para os ACS consultados nos estudos citados58,60.
É esperado que o ACS seja protagonista na construção de vínculos entre a comunidade, as pessoas e as famílias com os serviços de saúde e que intermedeiem o saber (ciências da saúde) e a cultura da sociedade (território onde está inserido e trabalha), desempenhando o papel de mediador social, dando voz ou sendo a voz da comunidade dentro do serviço de saúde das unidades, uma vez que estes agentes se sentem responsáveis pelos problemas identificados na comunidade e se solidarizam com o sofrimento das pessoas. O espaço em que vivem é, na realidade, o mesmo onde atuam, e as pessoas de suas realidades sociais são as mesmas a quem dirigem suas ações de cuidado, conforme bem descrito por Nascimento e Correa59.
Nesse sentido, é inevitável que a formação/educação permanente da equipe multiprofissional, em especial dos ACS, seja fundamental para que estes busquem atender às necessidades das famílias, focando as ações de saúde para além das práticas curativas. Tal capacitação deve ser realizada com metodologias ativas63, deve se basear na lógica do modelo da produção social da saúde e enfatizar os princípios do SUS. Assim, seria uma das formas de instrumentalizar os ACS e ajudá-los a incorporar em suas práticas a autonomia e a segurança necessárias para contribuir efetivamente com a consolidação desse novo sistema58,59. Outra forma de superar as dificuldades vivenciadas pelos ACS seria a supervisão e orientação adequadas ao processo de trabalho deles, o que proporcionaria a identificação de seus sofrimentos e angústias oriundos do apoio às formas de lidar com os problemas cotidianos. Com isto, considera-se que seria despertada nestes profissionais uma consciência crítica, que os tornaria melhores protagonistas e corresponsáveis pela produção do cuidado integral em saúde60 junto com os demais membros da ESF.
A dificuldade de trabalho em equipe nas unidades da ESF
A composição das equipes do PSF tem se modificado ao longo do tempo. Inicialmente, as equipes eram compostas por um médico, uma enfermeira, um auxiliar de enfermagem e de cinco a seis agentes comunitários de saúde64. Em 2000, as equipes passaram a incorporar um odontólogo e um atendente de consultório dentário ou um técnico de higiene bucal. Ademais, em 2008, o Ministério da Saúde – dentro do escopo de apoiar a inserção da ESF na rede de serviços e ampliar a abrangência, a resolutividade, a territorialização, a regionalização, bem como a ampliação das ações da APS no Brasil – criou os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), mediante a Portaria GM nº 154, de 24 de janeiro de 2008. Um Nasf deve ser constituído por uma equipe na qual profissionais de diferentes áreas de conhecimento atuam, em conjunto com os profissionais das equipes de Saúde da Família, compartilhando e apoiando as práticas em saúde – assistente social; professor de educação física; farmacêutico; fisioterapeuta; fonoaudiólogo; médicos especialistas (acupunturista, ginecologista, homeopata, pediatra, psiquiatra); nutricionista; psicólogo; e terapeuta ocupacional65.
A totalidade das ações demandadas no campo da saúde não pode se realizar pela ação isolada de um único profissional. Surge a necessidade de recomposição dos trabalhos especializados, tanto no interior de uma mesma área profissional quanto na relação interprofissional. Contudo, a proposta dessa recomposição em direção da atenção integral não se tem mostrado possível pela mera alocação de novos recursos humanos, de diferentes áreas profissionais, num mesmo local de trabalho. Investigações recentes sobre o trabalho em equipe na ESF revelaram ausência de responsabilidade coletiva do trabalho – como já descrito –, baixo grau de interação entre as categorias profissionais; manutenção das representações sobre hierarquia entre profissionais; fragmentação do processo de trabalho; realização de ações justapostas e isoladas, havendo, assim, o risco de os profissionais se isolarem em seus “núcleos de competência”45,66.
Quando é prejudicada a interação entre os membros da equipe de saúde, em especial na APS, entendida enquanto dimensão comunicativa que permeia as ações, surgem as inquietações sobre a comunicação no interior da equipe. Esta, em diversos casos, se restringe à troca ou transmissão de informações técnicas, sendo pouco referidas situações em que se exercite a discussão crítica sobre os problemas e necessidades da equipe e da população na busca de consensos coletivos. Sem a prática comunicativa, que perpassa a busca pelo consenso entre os profissionais da equipe, ficam comprometidos o trabalho cotidiano, a construção e a execução de um projeto comum pertinente às necessidades dos usuários66,67.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao propor novos modos de conceber os problemas de organizar a atenção à saúde no Brasil, a ESF não menospreza nem invalida os conhecimentos das teorias biológicas e biomédicas, mas apresenta e aponta seus limites explicativos e a insuficiência destas quando consideradas isoladamente para organizar as respostas sociais ao cuidado integral à saúde. Com efeito, a abordagem reducionista, que não leva em conta outros fatores que influenciam o processo saúde-doença, tais como ambiente físico e desigualdades sociais, perde parte de suas forças, pois a promoção de saúde implica um processo mais abrangente e contínuo52,68,69.
A implementação da ESF incorpora e reafirma os princípios do SUS, trabalhando a lógica de equipes multiprofissionais, com território definido e população adscrita. Ademais, a proposta da vigilância em saúde amplia o olhar sobre a valorização da relação entre os profissionais da equipe de saúde e os usuários/famílias, além de preconizar a prestação da assistência integral, completa e contínua, por meio do conhecimento da realidade, da identificação dos problemas das comunidades sob sua responsabilidade e da elaboração do planejamento local. Segundo o Ministério da Saúde, a ESF deve priorizar as ações de proteção e promoção à saúde dos indivíduos e de suas famílias – desde crianças até adultos – com o apoio recente do Nasf, para obtenção da atenção à saúde integral e contínua. Esse é o paradigma da assistência individual e coletiva, com ações ditas abrangentes, que devem englobar desde a prevenção e a promoção até a recuperação e a reabilitação.
Mesmo com o reconhecido movimento de cidadania e direito à saúde, construído no bojo da ESF, problemas distintos ainda têm limitado o avançar da estratégia para consolidação e reorganização efetiva do SUS no território brasileiro. Em alguns espaços de gestão e de atenção, ainda não se valoriza a intersetorialidade como condição para uma APS mais abrangente, o que envolve a compreensão da saúde como fenômeno indissociável do desenvolvimento econômico e social, dando significado à necessidade de enfrentar os determinantes sociais dos processos saúde-doença. Questões complexas – como investimentos inconsistentes em recursos humanos, remuneração inadequada dos profissionais que trabalham na área, contratação de profissionais qualificados e com perfil para atuar na APS, melhoria das estruturas física e tecnológica das unidades de saúde e comprometimento dos profissionais e da gestão dos serviços de saúde – ainda são aspectos renegados para a solução de transtornos que impedem que a ESF se concretize como força motriz e dê novos rumos ou contornos à efetivação do SUS que desejamos. Destaca-se que todas estas ordens de problemas redundam em questões de natureza bioética, que devem ser abordadas com os referenciais teóricos da disciplina70, com o objetivo de construir melhores soluções.
A despeito de sua posição de vanguarda, após mais de 19 anos de existência, surgem questionamentos quanto à prática cotidiana da ESF na reformulação do sistema de saúde, uma vez que este, não raras vezes, mantém hegemônico o tradicional modelo biomédico, que corrompe o processo de trabalho cotidiano22. Lidar com as peculiaridades na APS requer a consideração dos diversos desafios políticos que ainda existem para o pleno desenvolvimento do SUS e da ESF, os quais incluem também conflitos morais que comprometem os propósitos do SUS.
Aposta-se que, com a ampliação de um debate ético-político, alicerçado na perspectiva bioética, há de se conseguir sensibilizar gestores, equipes e usuários para um sistema de saúde mais justo e responsável com o cuidado integral e a cidadania, coerentes com os princípios do SUS e da própria proposta da ESF para libertação/empoderamento dos sujeitos envolvidos. Em última análise, trata-se do problema de escrever – na medida em que o escritor, como proposto por Deleuze emCrítica e clínica, “inventa na língua uma nova língua... Ele traz à luz novas potências gramaticais ou sintáticas”7 (p. 9) – com a ESF uma nova linguagem para o SUS, criando novas línguas para o cuidado à saúde.
Esta é a resposta: a língua não dispõe de signos, mas adquire-os criando-os, quando uma língua age no interior de outra língua para nela produzir uma língua, uma língua insólita, quase estrangeira7. (p.113).
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Recebido do Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Curso de Graduação em Medicina e do Curso de Graduação em Fisioterapia do Unifeso, e do Departamento de Medicina e Enfermagem da UFV. Este artigo é parte da dissertação de L. C. S. Motta, a qual se refere ao projeto de pesquisa Bioética na formação do profissional de saúde: construindo discursos e práxis no espaço-tempo da estratégia saúde da família, subsidiado pelo CNPq e pela Funarbe.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2015
Histórico
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Recebido
20 Abr 2014 -
Aceito
10 Mar 2015