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REVENDO UMA EXPERIÊNCIA DE AUTO-AVALIAÇÃO DO ESTUDANTE DE MEDICINA

ERA UMA VEZ...

É indiscutível que os métodos usuais de avaliação do aprendizado se voltam preferentemente à área cognitiva, segundo critérios e modelos ideológicos (in)definidos e (mal) escolhidos pelo professor. Mais recentemente há uns 30 anos, com a incorporação de certos conceitos desenvolvidos a partir de teorias psicológicas - trabalhos de BLOOM, colaboradores e seguidores - surgiu o discurso das destrezas (o domínio psicomotor) e das atitudes (o domínio afetivo).

Mantida apenas a análise estrita e formal dos conhecimentos supostamente adquiridos adociada ou não pela incipiente avaliação de destrezas e atitudes, persistia uma posição autoritário-paternalista do professor em todo o processo de avaliação. O aluno continuava mero objeto de toda a sistemática; não tinha poder em sua avaliação.

Discutidos freqüentemente esses problemas conceituais, AMANCIO e cols.11. AMÂNCIO, A.; LAZZARO, N. & QUADRA, A. A. F. Auto-avaliação do estudante de medicina. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS MÉDICAS. 12., São Paulo, 1974. Anais. Rio de Janeiro, 1976. p. 177-186., em 1971, idealizaram uma investigação tendo por fulcro a seguinte indagação: “A auto-avaliação dos estudantes de medicina teria correlação com aquela realizada pelos seus professores?”. A operacionalização do projeto ocorreu ao longo do curso de Propedêutica Médica para os alunos do que então se denominava 3º ano do curso médico da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ.

Apresentaram-se ao curso, naquele ano, 50 estudantes que foram diretamente supervisionados por 4 instrutores, constituindo o grupo em estudo.

O instrumento constou de uma ficha de 15 itens gerais (assiduidade, pontualidade, expansão do vocabulário médico, relação com os colegas etc.), entregue a cada professor e a cada aluno no início de cada mês. O professor deveria conferir ao aluno, sob sua supervisão, graus que variavam entre ótimo, bom, regular e sofrível. Por seu turno, o aluno deveria se auto-avaliar segundo os mesmos itens e a mesma gradação: submetidos igualmente à mesma subjetividade e ausência de explicitação, quer quanto aos itens, quer quanto à gradação. Os dados eram colhidos independentemente, guardados ao final de cada mês e apurados somente ao término de todo o estudo.

A análise do material baseou-se em duas diferentes propostas de tratamento estatístico. O primeiro plano considerou a concordância segundo o método de construção de pares procurando determinar a magnitude das diferenças por meio do coeficiente de Spearman. A segunda aproximação, transformando escalas ordinais em numerais, pretendeu estudar diferenças entre o conjunto de professores e o de alunos por testes clássicos de diferenças de médias e de posições.

Em ambas as técnicas, houve estrita concordância: alunos e professores procediam de modo idêntico. O aluno se auto-avaliava de forma muito próxima daquela em que o avaliava o professor; mais ainda, o aluno se colocava no conjunto da turma em posição bastante semelhante à que o professor o classificava.

A re-leitura daquela investigação permite a um co-autor a tentativa de discutir os principais pontos que induziram, por um lado, a sua realização e, por outro, condicionaram a interpretação de então e a continuidade da reflexão sobre o problema.

Na época, não se tinha ainda a compreensão clara da articulação entre a forma de organização da produção e o projeto geral da universidade e ainda era um jargão comovente reduzir a relação professor-aluno à mesma dimensão da que se dá entre capitalista e proletário. Em algum sentido, inclusive muito surpreendente e elucidador para os autores, a investigação deixou patente, por sucessivas extrapolações, que alunos e professores provêm de um mesmo estrato de classe social, comungando determinadas concepções e preconceitos originados de sua inserção na própria formação social.

Anos mais tarde, pôde ser concluído que: “...o estudante muito em breve será médico . . . aspira e está seguro de ser herdeiro de uma posição profissional distinguida e, como o seu professor, provém dos segmentos sociais que fornecem os estratos tecno-burocráticos que sustentam a classe dominante e o poder vigente”22. QUADRA, A. A. F. Relação médico-paciente: o ovo da serpente. Rev. Bras. Educ. Med., 4 (2): 3-9, maio/ago. 1980..

“O MAIS ALTO DOS TORMENTOS É SER JULGADO SEM LEI” (CAMUS)

Na escola médica, a preocupação com o questionamento do processo de avaliação é, ao menos, modesta; quando existe, aparece intoxicada pela necessidade de clara definição de objetivos, organizados em listinhas, como exigido pela Pedagogia Médica dos anos 60,33. BRIDGE, E. M. Pedagogia médica. Washington, OPS, 1965. 336 p.),(44. MILLER, G. E. (Org.) Ensino e aprendizagem nas escolas médicas. São Paulo, Editora Nacional, 1976. 330 p. operacionalizadas por meio das múltiplas escolhas ou da instrução programada. Em síntese: a historieta sobre o cavalo-marinho, que MAGER55. MAGER, R. F. Objetivos para o ensino efetivo. 3. ed., Rio de Janeiro, SENAI, 1973. xi. utiliza como prefácio, transformou-se em moral da fábula a ser seguida.

Embora o educador médico jamais tenha meditado profundamente sobre o processo de avaliação, algumas questões são constantes, principalmente, o baixo índice de reprovações e uma espécie de deplorável cumplicidade entre alunos e professores.

Citando apenas alguns exemplos ilustrativos de tal nível de preocupação, vejamos o seguinte excerto: “...só não se graduam aqueles que por decisão própria abandonam o curso ou morrem durante o mesmo. Isso pode ser animador; poderia significar um elevado índice de competência da juventude... Ao mesmo tempo, representaria do ângulo pedagógico, o melhor indicador da eficácia da escola. Sabemos, entretanto, que tal fato, infelizmente, tem explicação menos entusiasmadora. A tolerância irresponsável do professor, quando avalia o estudante, é um dos mais importantes co-fatores dessa situação. Muitas vezes, a pouca exigência dos docentes em relação aos estudantes explica-se pela autocrítica do desempenho do professor ao longo do curso...”66. BEVILACQUA, F. Panorama do ensino médico no Brasil. Med. de Hoje, 2 (17): 336-443, jul. 1976.. Tratar-se-ia de um estranho e solitário momento de auto-crítica não exercida no restante das atividades docentes ou profissionais.

A referência a “auto-crítica pedagógica” remete, de imediato, ao pensamento de COATS que estabelece, nesse particular: “A mania de avaliar o desempenho dos estudantes seria um evento salutar, se fosse um recurso de auto­crítica pedagógica. Mas, tal como é, tende a apresentar um libelo difamatório sobre as capacidades dos avaliados, o que, com excessiva freqüência, tem o efeito de uma profecia que se realiza a si mesma, convencendo às suas vítimas de que elas sofrem de incapacidades que, na verdade, não são delas, mas das instituições”77. COATS, K. A educação como experiência permanente. In: BUCKMAN, P. (Org.) Educação sem escolas. Rio de Janeiro, Eldorado, 1973..

Os próprios resultados da investigação, que servem de cenário aos presentes comentários identificaram alunos que eram considerados “desviantes” pelos professores e que, mais grave, estavam plenamente convencidos de sua situação. Nesse terreno, basta citar o excelente trabalho de SCHNEIDER88. SCHNEIDER, D. Alunos excepcionais: um estudo de caso de desvio. In: VELHO, G. (Org.) Desvio e divergência: uma crítica da patologia social. 2. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1977. p. 52-81. sobre os “alunos excepcionais” ou “atrasados especiais”, exemplos marcantes do que é a pedagogia a serviço da exclusão. Mais uma vez, o desvio, o estigma, a violência parecem significativamente influenciados pelos valores que a escola, na qualidade de homogeneizadora do saber e difusora dos valores dominantes, tem que preservar. Tal violência encontra na escola médica um campo restrito para seu exercício, posto que já realizadas inúmeras decantações99. CASTRO, C. L. M. de Características de los aspirantes a estudiar medicina en el Brasil. Educ. Méd. y Salud, 2 (1): 35-49; enero/marzo, 1968., mas há suficientes exemplos de que o já denunciado pacto entre professores e alunos atua também no sentido de descobrir e reprimir os que não parecem ter as características próprias ao esculápio, ou seja, pessoas sem as credenciais necessárias para adquirir o saber convertido em mercadoria-propriedade privada1010. ILLICH, I. A sociedade desescolarizada. In: BUCKMAN, P. (Org.) Educação sem escolas . Rio de Janeiro, Eldorado , 1973. p. 23-24..

Voltando ainda ao tema do “reprovado” na escola médica, há referência bastante significativa nas memórias de MICHALANY: “Nos meus tempos de estudante de medicina, as turmas eram de 50 alunos... Apesar disso, naquela ocasião, deixar para a 2.a época uma boa parte da turma e reprovar dois ou três de cada série, era freqüente. Enquanto o aluno não soubesse bem a matéria, ficaria marcando passo”1111. MICHALANY, J. O ensino da medicina de ontem e de hoje. Persp. Méd. 3 (1): 5-11, 1977.. E transformando passado em presente: “...devido ao eficiente ensino de Anatomia Patológica na Escola Paulista de Medicina durante o ano de 1976 - até o Professor Titular colaborou nas aulas práticas - foi possível retornar ao rigor da aprovação como antigamente. Mais da metade da turma, cerca de 71 alunos, ficaram para exame final, e destes, 22 (mais ou menos 30%) ficaram para recuperação, tendo havido 3 reprovações. Graças ao bom ensino e à dedicação de todos os docentes, e diga-se de passagem, até com sacrifício da pesquisa, nenhum al uno teve a coragem de fazer qualquer reclamação”1111. MICHALANY, J. O ensino da medicina de ontem e de hoje. Persp. Méd. 3 (1): 5-11, 1977.. Ou seja, voltava-se à grande eficiência de sempre: 2,3% de reprovados, taxa usual de outros programas que não se gabam de ser tão rígidos, impolutos ou isentos de qualquer reclamação.

A expressão bastante curiosa de que “enquanto o aluno não soubesse bem a matéria, ficaria marcando passo” denuncia o caráter custodial dos que se julgam aptos a decidir o que é sagrado, o que é profano1212. ILLICH, I. Sociedade sem escolas. 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1973. p. 54., revelando de maneira evidente as já sediças questões de interação saber-poder, da qual a avaliação do aprendizado seria o apêndice policial de que se valem os donos do “legítimo”.

“MARCHARÃO E NÃO SE ESGOTARÃO” (ISAÍAS, 40,33)

Parece hoje ingênuo discutir a necessidade do estudante de medicina participar de seu processo de avaliação. Naquela ocasião, levando às últimas conseqüências a transposição mecânica dos esquemas de produção material, só a “tomada do poder” por parte dos estudantes representaria uma mudança radical no sistema de produção de médicos. Assim, os alunos se apropriariam dos instrumentos de controle do ensino, passando a se transformar em sujeitos de sua própria transformação.

Tratava-se, de certo, de visão parcial e inocente de um fenômeno complexo. Ficavam encobertas toda a inculcação ideológica e toda a seleção social já cumpridas, bem como a própria origem de classe. Uma eventual contra-posição estudante versus professor, que não se identificou por ocasião da investigação11. AMÂNCIO, A.; LAZZARO, N. & QUADRA, A. A. F. Auto-avaliação do estudante de medicina. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS MÉDICAS. 12., São Paulo, 1974. Anais. Rio de Janeiro, 1976. p. 177-186., no máximo seria uma espécie de exercício de psicodrama, pouco convincente e destinado a permanecer como efetiva oposição a qualquer transformação que não seja do interesse da fração de classe social a que pertencem e do grupo dominante a que ardentemente desejam servir.

Mais do que a um a precisa definição de objetivos educacionais, a concepção de avaliação deve estar organicamente ligada à idéia de mudança; no entanto, os esquemas de avaliação continuam sendo o reflexo de uma escola voltada à preservação dos interesses das classes dominantes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    AMÂNCIO, A.; LAZZARO, N. & QUADRA, A. A. F. Auto-avaliação do estudante de medicina. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS MÉDICAS. 12., São Paulo, 1974. Anais Rio de Janeiro, 1976. p. 177-186.
  • 2
    QUADRA, A. A. F. Relação médico-paciente: o ovo da serpente. Rev. Bras. Educ. Med, 4 (2): 3-9, maio/ago. 1980.
  • 3
    BRIDGE, E. M. Pedagogia médica Washington, OPS, 1965. 336 p.
  • 4
    MILLER, G. E. (Org.) Ensino e aprendizagem nas escolas médicas São Paulo, Editora Nacional, 1976. 330 p.
  • 5
    MAGER, R. F. Objetivos para o ensino efetivo 3. ed., Rio de Janeiro, SENAI, 1973. xi.
  • 6
    BEVILACQUA, F. Panorama do ensino médico no Brasil. Med. de Hoje, 2 (17): 336-443, jul. 1976.
  • 7
    COATS, K. A educação como experiência permanente. In: BUCKMAN, P. (Org.) Educação sem escolas Rio de Janeiro, Eldorado, 1973.
  • 8
    SCHNEIDER, D. Alunos excepcionais: um estudo de caso de desvio. In: VELHO, G. (Org.) Desvio e divergência: uma crítica da patologia social. 2. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1977. p. 52-81.
  • 9
    CASTRO, C. L. M. de Características de los aspirantes a estudiar medicina en el Brasil. Educ. Méd. y Salud, 2 (1): 35-49; enero/marzo, 1968.
  • 10
    ILLICH, I. A sociedade desescolarizada. In: BUCKMAN, P. (Org.) Educação sem escolas . Rio de Janeiro, Eldorado , 1973. p. 23-24.
  • 11
    MICHALANY, J. O ensino da medicina de ontem e de hoje. Persp. Méd 3 (1): 5-11, 1977.
  • 12
    ILLICH, I. Sociedade sem escolas 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1973. p. 54.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1984
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