Acessibilidade / Reportar erro

Em busca da sabrosura e do sabor: encontros possíveis entre método antropológico e performance

RESUMO

O artigo propõe articulações entre método antropológico e performance a partir de dados coletados em uma investigação sobre a dança de salsa na cidade do Rio de Janeiro. O texto narra mudanças na abordagem da salsa, centrando-se em dois modos específicos e distintos praticados em duas academias de dança de salão. A literatura sobre salsa costuma privilegiar sua estrutura sonora, deixando de lado outros estímulos sensoriais. Em contraste, no presente texto se realiza uma abordagem etnográfica da dança de salsa atrelada a noções de performance. Assim, procura-se trazer contribuições para a pesquisa em dança a partir de uma perspectiva antropológica.

Palavras-chave:
Etnografia; Performance; Dança; Salsa; Rio de Janeiro

ABSTRACT

The goal of this article is to make connections between anthropological methods and performance based on data collected in research about salsa dancing in the city of Rio de Janeiro. The text describes changes in the approach to salsa and focuses on two different dance styles practiced in two ballroom dance schools. The literature on salsa tends to favor its sound structure, leaving aside other sensory stimuli. In contrast, this article presents an ethnographic approach to salsa dancing based on notions of performance. Thus, the purpose is to contribute to dance research from an anthropological perspective.

Keywords:
Ethnography; Performance; Dance; Salsa; Rio de Janeiro

RÉSUMÉ

L’article suggère des liens entre la méthode anthropologique et la performance à partir de données recueillies dans une recherche sur la salsa à Rio de Janeiro. Le texte décrit les changements dans l’approche de la salsa et se concentre sur deux types de danse spécifiques et distincts pratiqués dans deux centres de danse de salon. Les études sur la salsa mettent généralement en évidence leur structure sonore, en laissant de côté les autres impulsions sensorielles. Ce texte suggère, en revanche, une approche ethnographique de la danse salsa liée aux notions de performance. Par conséquent, l’article se donne comme objectif de apporter des contributions à la recherche sur la danse dans une perspective anthropologique.

Mots-clés:
Ethnographie; Performance; Danse; Salsa; Rio de Janeiro

O presente artigo traz reflexões sobre trabalho antropológico e noções de performance a partir do estudo empírico que integrou minha pesquisa de doutorado: a caribenha dança de salsa praticada nas salas de aula de academias de dança de salão e nos bailes na cidade do Rio de Janeiro. No decorrer deste texto, busco interrogar os múltiplos sentidos de performance advindos do processo de construção de uma situação etnográfica em dança. A performance é assumida como uma janela analítica que possibilita apreender a intensa chamada sensível que a salsa convoca. Chamo a atenção para o caráter transformativo, antes que acabado ou fechado, dessa categoria. Assim, procuro apontar as possibilidades de uma investigação em dança através da lente antropológica, ressaltando os alcances de noções de performance quando articuladas ao trabalho de campo.

O texto narra duas mudanças na minha posição como etnógrafa das danças e se divide em três partes. Na primeira, enquanto observadora situada nas beiras da pista de dança, arrisco uma definição de salsa articulada à marca colonial que caracteriza o Caribe, berço territorial da salsa. Algumas reflexões sobre performance são proveitosas para abordar bailes e shows de salsa no Rio de Janeiro. Na segunda parte do artigo, já no papel de etnógrafa/aprendiz de salsa, proponho analisar a performance de salsa como processo, destacando as regras e expectativas dos participantes. Minha atenção se centra, nesta parte, em dois modos específicos e diferenciados de dança de salsa praticada em academias cariocas de dança de salão. Finalmente, a terceira parte traz uma breve reflexão sobre as possibilidades e contribuições dos vínculos entre trabalho antropológico e performance, sempre a partir da situação etnográfica aqui apresentada.

Os dados que aqui apresento se derivam do contato com praticantes de salsa em 2017 e 2018. Ao longo desse período, tive conversas informais e fiz entrevistas junto aos dançarinos, assim como participei em bailes e aulas de dança, ora como integrante da plateia, ora como performer no palco. Esses dados se enquadram em uma investigação empreendida entre 2016 e 2019 que incluiu a pesquisa em fontes escritas e audiovisuais além do acompanhamento aos praticantes de salsa no Rio. Entretanto, essa delimitação não determina um começo, antes do qual eu supostamente teria definido o conjunto conceitual analítico a ser aplicado em campo, nem anuncia o fim, o qual daria início à fase de análise dos dados coletados. Como pretendo discutir aqui, ao longo do período mencionado houve mudanças na abordagem e relações com os interlocutores da pesquisa, e, portanto, nas questões que passei a considerar e analisar.

Nesse sentido, a abordagem etnográfica que apresento aqui segue a trilha dos autores que assumem o trabalho de campo antropológico como forma de produção de conhecimento (Goldman 1999GOLDMAN, Márcio. Alguma antropologia. Rio de Janeiro: Dumará, 1999. ; Pedroso Lima; Sarró, 2006PEDROSO LIMA, Antónia; SARRÓ, Ramon. Já dizia Malinowski: sobre as condições da possibilidade da produção etnográfica. In: PEDROSO LIMA, Antónia; SARRÓ, Ramon (org.). Terrenos metropolitanos. Ensaios sobre produção etnográfica. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2006. P. 17-34.; Peirano, 2014PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, a. 20, n. 42, jul./dez. p. 377-391, 2014.). Para esses autores, fazer Antropologia não significa apenas utilizar a pesquisa empírica como matéria central de análises posteriores. O fazer etnográfico se alimenta da possibilidade de estranhamento, da capacidade de se surpreender com o que ocorre em campo.

Nessa perspectiva, o trabalho antropológico é também um trabalho criativo, demandando, desse modo, a disposição do etnógrafo para reformular experiências de campo anteriores ou interpelar conceitos previamente assumidos. Como mostro ao longo do texto, as noções de performance articuladas aos atos de fala e aos múltiplos níveis de comunicação inseridos nestes me ajudaram a enxergar e analisar os primeiros contatos com os interlocutores da pesquisa. Já outras noções, que transitam pelo ritual e pela terminologia teatral, foram reconsideradas à luz das interações que ocorrem no momento da dança. Portanto, a abordagem etnográfica que apresento aqui se confronta com noções prévias, tanto quanto é reformulada por essas no decorrer dos múltiplos contatos com os interlocutores da pesquisa.

A Salsa nas Beiras da Pista de Dança

Nos relatos sobre suas origens, a salsa aparece fortemente articulada à produção discográfica comandada pela gravadora Fania Records, sediada na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Embora esse selo não fosse o único responsável pelo auge da salsa no fim da década de 1960 (Guadalupe-Pérez, 2015GUADALUPE-PÉREZ, Hiram. Salsa underground neoyorquina: más allá de Fania. In: COLÓN MONTIJO, César (org.). Cocinando suave: ensayos de salsa en Puerto Rico. Caracas: Fundación Editorial El perro y la rana, 2015. P. 187-206.), sua hegemonia no mercado internacional de música contribuiu a construir uma narrativa que descreve a salsa como uma metáfora caribenha, composta de variações e frestas, evocativa dos temperos, molhos, sabores, cheiros, sons e danças do Caribe (Colón Montijo, 2015COLÓN MONTIJO, César. ¡Se escucha la olla!. In: COLÓN MONTIJO, César (org.). Cocinando suave: ensayos de salsa en Puerto Rico. Caracas: Fundación Editorial El perro y la rana, 2015. P. 17-28.). Desse modo, sempre de acordo com o imenso repertório textual e audiovisual associado à salsa, esta poderia ser narrada como uma chamada sensível que condensa e sintetiza a experiência caribenha.

O que significa falar em experiência caribenha? O antropólogo Sidney Mintz sugere considerar especialmente as bases da empreitada colonial, definitivas no que conhecemos hoje como Caribe. Segundo o autor, a história do Caribe tem sido praticamente uma história colonial, sedimentada em cima da escravidão e da plantation form enquanto alicerces da produção e fluxo de mercadorias, o que resultara numa vivência modernizante na região, séculos antes da modernidade europeia (Mintz, 1996MINTZ, Sidney W. Enduring Substances, Trying Theories: The Caribbean Region as Oikoumene. The Journal of the Royal Anthropological Institute, Londres, v. 2, n. 2, p. 289-311, jun. 1996.). Diz o autor:

Os processos desencadeados pelo estabelecimento de plantações no Novo Mundo nunca pararam. Entretanto, em suas primeiras fases ultramarinas, esses processos se concentravam em uma área delimitada, que incluía as relativamente minúsculas colônias caribenhas. Isso foi o que esses empreendimentos renovados alcançaram ao mobilizarem recursos, adaptando-se à expropriação da força de trabalho, produzindo as primeiras verdadeiras mercadorias do capitalismo, alimentando os primeiros proletários e mudando a mentalidade de tantas pessoas, de ambos os lados do Atlântico, que incorporavam uma modernidade nascente (Mintz, 1996MINTZ, Sidney W. Enduring Substances, Trying Theories: The Caribbean Region as Oikoumene. The Journal of the Royal Anthropological Institute, Londres, v. 2, n. 2, p. 289-311, jun. 1996., p. 296, tradução minha)1 1 “The processes set in motion by the creation of the New World plantations have never stopped. But in their earliest overseas phases, they were concentrated within a definable area, of which the relatively tiny Caribbean colonies were a part. It was what these reborn enterprises achieved in mobilizing resources, adapting to stolen labour, producing capitalism's first real commodities, feeding the first proletarians, and changing the outlooks of so many people on both sides of the Atlantic, that embodied a dawning modernity” (Mintz, 1996, p. 296). .

Evidentemente, não se trata de negar o período anterior à invasão europeia ocorrida entre os séculos XV e XVII. O que quero ressaltar aqui é que o que chamamos de Caribe torna-se inteligível como aglomerado de povos e territórios a partir dos empreendimentos imperiais, esses culturalmente diversos. Os povos caribenhos, migrantes forçados, submetidos a violentos processos de mudança, foram incorporando maneiras particulares de viver a individualidade e as relações, gerando uma “[...] visão transmutada do mundo” (Mintz, 1996MINTZ, Sidney W. Enduring Substances, Trying Theories: The Caribbean Region as Oikoumene. The Journal of the Royal Anthropological Institute, Londres, v. 2, n. 2, p. 289-311, jun. 1996., p. 296 tradução minha).

A empreitada colonial caribenha e seu laboratório de modernidade imprimiram singularidade à região. Longe dos centros de produção científica, o Caribe não se encaixava nos sistemas classificatórios da Antropologia das primeiras décadas do século XX. Os povos caribenhos pouco se assemelhavam aos primitivos da Bali examinada pelo casal Mead-Bateson; tampouco eram formalmente parecidos com os africanos estudados por E.E. Evans-Pritchard, para mencionar apenas dois exemplos de autores clássicos, igualmente destacados na disciplina pelas suas abordagens, inovadoras à época, em cima das danças (Trance..., 1952TRANCE and dance in Bali (documentário). [S.l.: s. n.], 1952. 1 vídeo (22 min.). Produção: Margareth Mead e Gregory Bateson. Publicado pelo canal Library of Congress. Available at: <https://www.youtube.com/watch?v=Z8YC0dnj4Jw>. Accessed on: Nov. 1st, 2019.
https://www.youtube.com/watch?v=Z8YC0dnj...
; Evans-Pritchard, 2014EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. A dança. In: CAVALCANTI, Maria Laura (org.). Ritual e performance: 4 estudos clássicos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014. P. 21-38.). Embora no Caribe as ascendências africanas sejam evidentes, a intensidade brutal da escravidão e da economia assentada sobre essa, geraram formas híbridas e singulares, como tem sido explorado por variados autores (Quintero Rivera 1998QUINTERO RIVERA, Ángel G. Salsa, sabor y control! Sociología de la música “tropical”. México D.F.: Siglo XXI, 1998.; 2009QUINTERO RIVERA, Ángel G. Cuerpo y cultura. Las músicas “mulatas” y la subversión del baile. Madrid: Iberoamericana, 2009.; Díaz Quiñones, 2007DÍAZ QUIÑONES, Arcadio. Caribe y exilio en La isla que se repite de Antonio Benítez Rojo. Orbis Tertius, Buenos Aires, v. 12, n. 13, 2007. Available at: <https://www.orbistertius.unlp.edu.ar/article/view/OTv12n13d02>. Accessed on: Mar. 25, 2020.
https://www.orbistertius.unlp.edu.ar/art...
).

Sob essa perspectiva, as precoces modernidades caribenhas atravessam e ultrapassam os territórios nacionais desenhados nos mapas. Não por acaso, Miguel Rondón, autor de um livro imperdível na bibliografia em cima da salsa, assinala que a cidade de Nova Iorque, locus fundamental de produção de salsa, é a fronteira mais ao norte do Caribe (Rondón, 2015RONDÓN, César Miguel. El libro de la salsa: crónica de la música del Caribe urbano. Caracas: 2015.). Do mesmo modo, o sociólogo peruano Aníbal Quijano refere-se à região caribenha como uma geografia do som e da dança, que abrange as Antilhas, as costas do sudeste dos Estados Unidos, tanto quanto as do nordeste brasileiro, os litorais da Colômbia, do Peru, da Venezuela e do Equador (Quijano, 2009QUIJANO, Aníbal. Fiesta y poder en el Caribe: Notas a propósito de los análisis de Ángel Quintero. In: QUINTERO RIVERA, Ángel G. Cuerpo y cultura. Las músicas “mulatas” y la subversión del baile. Madrid: Iberoamericana, 2009. P. 33-36. )2 2 É arriscado imaginar como caribenho o Nordeste brasileiro, dado que as influências do Caribe talvez não sejam evidentes em alguns Estados. Do mesmo modo, pode ser difícil pensar como caribenho o litoral peruano, situado no Oceano Pacífico e cujos povos vêm reconfigurando-se à luz de variadas críticas à constituição da nação peruana. Ver, por exemplo, Arizaga (2005). Entretanto, a proposta de Quijano sobre o alargamento do Caribe pode ser interpretada como um convite para considerarmos os fluxos, impactos e trânsitos por vezes ocultos nos projetos de construção dos Estados-nação modernos. Quijano chama a atenção para os efeitos da história colonial compartilhada além das modernas fronteiras nacionais. .

A partir dessa noção ampliada do Caribe, cujo cerne é a experiência escravista junto à opacidade das ficções nacionais, busco me afastar de formas de enxergar a situação etnográfica aqui proposta enunciadas por interlocutores diversos. Nos primórdios da pesquisa, foi-me sugerido, em um evento acadêmico onde apresentei as primeiras ideias em cima do trabalho de campo, que refletisse sobre os possíveis pastiches que resultariam do fato da salsa ser uma dança importada no Brasil. Seguir tal proposta suporia, além de fazer juízos de valor a priori da prática dos dançarinos no Rio, atribuir a essa dança a condição de cópia, um espelho distorcido da salsa dançada no Caribe, do qual, segundo a noção mais disseminada, o Brasil não faria parte. Além disso, assumir essa trilha implicaria conceder aos dançarinos qualidades que os habilitariam ou não para dançar salsa, porque inerentes a seu pertencimento nacional. Segundo essa lógica, os estrangeiros no Brasil e de origem caribenha, dançarinos ou não, estariam capacitados para praticar salsa; já aquela dançada pelos brasileiros remeteria a uma reprodução mal feita. Vale dizer que os dançarinos atuantes nas academias de dança de salão não enxergam sua atividade pela lente dessa hierarquia valorativa.

Outra opinião que ouvi sobre a dança de salsa no Rio foi sobre o papel que teriam os latinos ou a comunidade latina na dança de salsa na capital fluminense. Quando se disseminaram na segunda metade do século XX nas universidades e políticas oficiais nos Estados Unidos, as categorias referentes ao mundo latino tornaram-se um modo de enunciação privilegiado das populações oriundas principalmente das Antilhas e que foram se estabelecendo em diferentes cidades dos Estados Unidos, dentre elas Nova Iorque. Essas cidades testemunharam, assim, uma nova leva de imigrantes, não mais transportados em navios negreiros, mas empurrados para as oportunidades de emprego vislumbradas em terras continentais. Com efeito, grande parte dos músicos que integraram as primeiras produções discográficas divulgadas sob o rótulo salsa eram latinos, como eram latinos os dançarinos que atuavam nos numerosos clubes e casas de shows. Desse modo, nas reflexões escritas e audiovisuais sobre a salsa, essa aparece como referência fundamental da experiência da diáspora, comandada principalmente pelos latinos3 3 A coletânea de Lise Waxer et al (2002) oferece um excelente exemplo de análises em cima da salsa em língua inglesa e desde a perspectiva da atuação da população latina. .

Entretanto, quando mencionada, muito eventualmente, por colegas de profissão e interlocutores de pesquisa, tal categoria parecia perder os claros contornos que tem em terras norte-americanas. A categoria podia incluir ora os brasileiros, ora os habitantes dos países cuja língua oficial é o castelhano, ora as populações nacionais que dividem fronteiras com o Brasil. Não havia unanimidade a respeito das heterogêneas, e por vezes contraditórias, referências que a categoria parecia abranger quando associada aos praticantes de salsa no Rio. O único acordo possível era que Latino é aquele cantor que interpreta versões em português de sucessos de reggaeton, repertório associado, como a salsa, à região caribenha. Pergunto-me, portanto, se o transporte de categorias do mundo latino para outros contextos, histórias e até línguas, não implicará na perda da sua força explicativa. Embora essas categorias considerem fenômenos migratórios, sua pertinência reside na capacidade de reconhecer tipos específicos de migração, especificamente os deslocamentos originados nas Antilhas e em países centro-americanos continentais, tendo os Estados Unidos como destino.

De qualquer maneira, pasticho, dança importada, comunidade latina não ressoavam particularmente nas maneiras como os dançarinos no Rio - brasileiros ou não - encaram sua prática. Orientados pelas exigências do ambiente da dança de salão, os praticantes de salsa no Rio realizam um processo de seleção de informações e recursos ao seu alcance para criar uma dança de salsa que tenha uma assinatura própria. Assim, a dança de salsa no Rio não é concebida como um produto transplantado ou como objeto acabado, mas resultado de um trabalho criativo que admite transformações, como tento mostrar na segunda parte deste artigo.

À época em que surgiram as questões acima relatadas, associadas às primeiras tentativas de construir as perguntas de pesquisa e, por conseguinte, o próprio campo, eu vinha observando a dança das beiras da pista, voltando meu interesse para a elucidação de um contexto histórico que me permitisse situar a prática dos dançarinos para além do que observava na pista. Como mencionei no início do texto, a salsa passa pela ativação olfativa, gustativa, táctil, como proposta e resposta a estímulos corporais. A expectativa de improviso e a criatividade individual são esperadas e anunciadas, sendo que cada instrumento das orquestras de salsa deve desenvolver seu som em torno da clave ou núcleos rítmicos, ora em 3-2, ora em 2-3. Traduzidos para fonemas, o 3-2 pode ser algo como pá-pá-pá (pausa) pá-pá, enquanto 2-3 enuncia pá-pá (pausa) pá-pá-pá. Os pesquisadores Marisol Berríos-Miranda (2002)BERRÍOS-MIRANDA, Marisol. Is salsa a musical genre? In: WAXER, Lise (org.). Situating salsa: global markets and local meanings in Latin American popular music. New York: Routledge, 2002. P. 23-50. e Ángel Quintero Rivera (1998)QUINTERO RIVERA, Ángel G. Salsa, sabor y control! Sociología de la música “tropical”. México D.F.: Siglo XXI, 1998. são alguns dos autores que analisam a importância da polirritmia, do improviso e da criatividade na salsa. Esses valores também sustentam uma parte significativa do repertório de música popular, como assinalado por Oliveira (2015)OLIVEIRA, Allan de Paula. O ouvido dançante: a música popular entre swings y cangotes. El oído pensante, Buenos Aires, v. 3, n. 2, p. 07-27, 2015. Available at: <http://ppct.caicyt.gov.ar/index.php/oidopensante/article/view/6184/45454575759499>. Accessed on: Mar. 12, 2020.
http://ppct.caicyt.gov.ar/index.php/oido...
.

Esta noção de salsa privilegia a estrutura sonora e domina nas reflexões sobre a mesma. Embora para tantos salseros e salseras - são assim chamados todos aqueles e tudo aquilo afeiçoado ou pertencente à salsa - a música perca todo e qualquer sentido diante da ausência de bailantes, os relatos sobre a salsa estão voltados para as atividades particularmente associadas à produção sonora das orquestras. O passado da salsa é alinhado por episódios envolvendo músicos, discos, shows e privilegiando a salsa ao vivo.

Já sobre os dançarinos de salsa, não dispomos de muitas informações senão a partir da década de 1990. Até esse momento, o que sabemos é que aqueles que ganhavam a vida com a dança de salsa ou afins tinham na música ao vivo sua principal fonte de renda, uma vez que eram contratados pelos agentes das orquestras para se apresentarem junto às bandas (McMains, 2015MCMAINS, Juliet. Spinning mambo into salsa: Caribbean dance in global commerce. New York: Oxford, 2015.). Esta articulação era frequente, ainda mais no período de momentânea opulência das primeiras décadas do ambiente salsero. Segundo Cristopher Washburne (2015)WASHBURNE, Christopher. Salsa y drogas en Nueva York: estética, prácticas performativas, gubernamentales y tráfico ilegal de drogas. In: COLÓN MONTIJO, César (org.). Cocinando suave. Ensayos de salsa en Puerto Rico, 2015. P. 75-108., a salsa esteve, desde seus inícios, articulada ao tráfico internacional de drogas, particularmente de cocaína.

O autor aponta que a busca de modos de lavagem do dinheiro procedente do tráfico, resultou na produção de bandas e shows de salsa e na abertura e manutenção de numerosas casas noturnas (Washburne, 2015WASHBURNE, Christopher. Salsa y drogas en Nueva York: estética, prácticas performativas, gubernamentales y tráfico ilegal de drogas. In: COLÓN MONTIJO, César (org.). Cocinando suave. Ensayos de salsa en Puerto Rico, 2015. P. 75-108.). Na década de 1990, diante das transformações nas políticas de combate ao tráfico do governo norte-americano, houve mudanças. Frequentes batidas policiais nas casas noturnas, apreensões, prisões de músicos e empresários, locais fechados ou sob investigação, contratação formal dos músicos, até então pagos majoritariamente mediante acordos verbais e muitas vezes em espécie, sinalizaram os novos rumos do negócio da salsa (Washburne, 2015WASHBURNE, Christopher. Salsa y drogas en Nueva York: estética, prácticas performativas, gubernamentales y tráfico ilegal de drogas. In: COLÓN MONTIJO, César (org.). Cocinando suave. Ensayos de salsa en Puerto Rico, 2015. P. 75-108.).

Na mesma época, as escolas dedicadas ao ensino de dança se consolidaram, privilegiando habilidades e formas de interação focadas na codificação, segundo assinala Hernán Morel no contexto do ensino do tango em Buenos Aires (Morel, 2011MOREL, Hernán. Estilos de baile en el tango salón: una aproximación a través de sus evaluaciones verbales. In: CAROZZI, María Julia (org.). Las palabras y los pasos: etnografías de la danza en la ciudad. Buenos Aires: Gorla, 2011. P. 189-222.). Em detrimento dos mestres que haviam aprendido de maneira autodidata, os praticantes especializados ganharam centralidade, junto aos nascentes festivais, campeonatos e congressos de salsa (McMains, 2015MCMAINS, Juliet. Spinning mambo into salsa: Caribbean dance in global commerce. New York: Oxford, 2015.). Surgiu, assim, um mercado movimentado por dançarinos formados em repertórios sonoros específicos e treinados para mostrar uma dança avaliada segundo os padrões de burocratização (Weber, 1964WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. 2. ed. Madri: Fondo de Cultura Económica, 1964.) que caracterizam os eventos competitivos. Nesse contexto, a dança de salsa passa a ser incorporada nas academias brasileiras de dança de salão4 4 Na década de 1980 e especialmente nos 1990 o ambiente da dança de salão brasileira também experimentou importantes transformações, ligadas às tendências do mercado internacional de dança. Segundo Felipe B. Veiga (2011) essas mudanças resultaram no fortalecimento de correntes específicas de ensino e proliferação de inúmeras academias de dança pela cidade, mobilizando um mercado de dança, de caráter altamente personalista e organizado em hierarquias de ritmos (Veiga, 2011). No novo mercado de dança, uma dimensão de exibição de ritmos da dança de salão, aquela dos espetáculos destinados a públicos contemplativos e em cenários particulares, também ganhará centralidade. .

De modo a aprofundar os contatos iniciais com os praticantes de salsa, tornei a comparecer a bailes organizados nas academias de dança de salão, assim como a shows promovidos pelas orquestras de salsa no Rio. Ficava nas beiras da pista, recusando qualquer convite à dança. Nunca me senti muito à vontade na dança a dois, que é o formato mais comum para se dançar salsa. Embora à época não quisesse experimentar a dança em par salsera, interessava-me especialmente indagar suas possibilidades comunicativas. Das beiradas da pista, intrigavam-me as trocas não verbais que possibilitam a dança e a partir das quais essa se desenrola, numa sucessão de gestos, interjeições e rodopios.

Um primeiro sentido de performance serviu como lente para enxergar a agência dos participantes da dança. Como sabemos, Richard Bauman é um dos autores que se inspiraram nas análises derradeiras do antropólogo Victor Turner (2005)TURNER, Victor. Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experiência (primeira parte). [Tradução Herbert Rodrigues]. Cadernos de Campo, São Paulo, a. 14, v. 13, n. 13, p. 177-185, 30 mar. 2005. Available at: <http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50265>. Accessed on: May 12, 2018.
http://www.revistas.usp.br/cadernosdecam...
para propor, sob a rubrica de performance, modelos de análise da ação humana que buscassem abordar, a um tempo só, preocupações artísticas, antropológicas e filosóficas. Bauman propõe considerar as performances como modalidades de fala, apontando seu caráter eminentemente comunicativo (Bauman, 1984BAUMAN, Richard. Verbal art as performance. In: BAUMAN, Richard (org.). Verbal art as performance. Illinois: Waveland Press, 1984. P. 3-58.). Inspirado na noção austiniana performative acts e seus efeitos transformativos da realidade (Austin, 1962AUSTIN, John Langshaw. How to do things with words. Oxford: Clarendon, 1962.) e nos múltiplos níveis da comunicação propostos por Gregory Bateson (1998)BATESON, Gregory. Pasos hacia una ecología de la mente. Buenos Aires: Lohlé-Lumen, 1998. , Bauman sugere considerar as variadas dimensões de expressão incorporadas na performance, da qual emergem sentidos particulares (Bauman, 1984BAUMAN, Richard. Verbal art as performance. In: BAUMAN, Richard (org.). Verbal art as performance. Illinois: Waveland Press, 1984. P. 3-58.). Capacidade criadora, participantes diversos e com múltiplos níveis de agência, intensas relações entre o verbal e o não verbal, constituem, para Bauman, a performance.

No estágio inicial do trabalho de campo, tal abordagem foi proveitosa para verificar fronteiras porosas. Por um lado, há distinções quanto às funções dos participantes de shows e bailes. Por exemplo, há espaços mais ou menos delimitados para integrantes de orquestras, Djs e dançarinos. Por outro lado, as próprias funções podem mesclar-se. O improviso salsero inclui não apenas os momentos de solo instrumental, chamado fraseo, ou do canto, denominado soneo, como também breves sequências de passos de salsa executados pelos integrantes da orquestra que assistem ao solo do colega. Além disso, é usual que aqueles que ocupam a pista de dança batam palmas em clave no decorrer do show.

Assim, embora possamos reconhecer com relativa facilidade quem são os músicos e quem são os dançarinos, a performance salsera se realiza justamente pela miríade de estímulos corporais que demanda dos seus participantes. O corpo é, simultaneamente, meio e objeto, técnica e instrumento de realização da salsa. Lembro aqui das derradeiras reflexões de Maurice Merleau-Ponty (2014)MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2014.. Preocupado por levar as análises fenomenológicas para o campo do sensível, esse filósofo assinala que a apreensão e realização da realidade só são possíveis mediante a visão e o movimento, um dependendo do outro, estimulando pensamentos, nos remetendo aos nossos pontos de vista, “[...] não basta pensar para ver: a visão é um pensamento condicionado, nasce ‘por ocasião’ do que acontece no corpo, é ‘excitada’ a pensar por ele. Ela não escolhe nem ser ou não ser, nem pensar isso ou aquilo” (Merleau-Ponty, 2014MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2014., p. 24, grifos do autor). Dessa forma, podemos entender o sensível como uma intrusão, uma imposição, nas quais aquilo que chamamos de pensamentos se entrecruza permanentemente com aquilo que chamamos de sentidos, produzindo agência. As reflexões de Merleau-Ponty são pertinentes aqui porque nos convidam a assumir uma perspectiva ampla da ação humana. Para esse filósofo, movimentos, sentidos e pensamentos não se realizam separada e autonomamente. Desse modo, dualidades tais como mente/corpo ou natureza/cultura, perdem sua força enquanto categorias analíticas, podendo se tornar inclusive definições mistificadoras da experiência humana.

A Salsa no Meio da Pista de Dança

No decorrer da pesquisa, minha posição de etnógrafa da dança de salsa mudou. Como mencionei, preferia examinar a dança a distância, nas beiras da pista. Isso suscitava alguma desconfiança entre os frequentadores dos eventos salseros. Nos bailes e shows são mal vistos aqueles que perambulam pela pista querendo puxar conversa e recusando qualquer convite à dança. Essa se constrói principalmente nos rodopios e movimentos de pés e braços do par. Na pista, os dançarinos não buscam prolongar os intercursos verbais.

Como via que minhas tentativas de estender conversas com os dançarinos eram falidas, optei por participar, como aluna, de turmas de salsa organizadas por professores que havia conhecido em bailes e shows. Tornei-me, assim, etnógrafa/aprendiz de dança por nove meses. Das beiradas da pista de dança, pulei para o centro desta, passando a participar de outro modo da performance salsera que se realiza em bailes e shows. Passei a interagir com um modo de conhecer que, além da visão e o ouvido - privilegiados na observação de bailes e shows - demandava movimentos de pés, braços e ombros. Esse modo de conhecer também exige uma nova memória, construída a partir da minha interpretação em cima dos meus movimentos e da observação dos movimentos dos colegas de dança, assim como das instruções verbais escutadas5 5 Vale aqui um breve esclarecimento metodológico em relação à minha posição de etnógrafa/aprendiz de dança. Não creio que dançar, corpo a corpo, junto aos dançarinos implique necessariamente num acesso privilegiado ao mundo da dança, possibilitando apreender saberes de outro modo ininteligíveis ou inapreensíveis. Ao frequentar aulas de dança como aluna não almejei sentir o que os dançarinos sentem quando dançam nem procurei pensar como eles. Embora uma sorte de transferência sensível possa de fato acontecer, ela não garante o aprimoramento ou a profundidade de qualquer análise antropológica, como discutido por Strathern (2014), Fravet-Saada (2005), Goldman (2003), entre outros. Ao começar a dançar, minha intenção foi, paradoxalmente, favorecer, estimular e prolongar o contato verbal. Na minha nova posição, os dançarinos passaram a me enxergar de forma horizontal, como colega de dança, se sentindo à vontade para refletir em cima da sua prática. .

Por fim, esse modo de conhecer está submetido aos procedimentos de organização e padronização das academias de dança de salão. Distanciei-me do ambiente de aprendizado informal que domina nas regiões do mundo onde a salsa se incorporou às culturas populares. Nessas regiões, a dança de salsa cumpre um papel de destaque na apreensão de regras de comportamento público, principalmente no que tange ao gênero. Segundo narrativas dos salseros caberia às mulheres a iniciação das crianças na salsa6 6 Our latin thing, produção audiovisual lançada pela Fania Records em 1972, é um excelente exemplo da importância do ambiente familiar e doméstico - que encontra na rua sua extensão - nas narrativas salseras (Our..., 1972). .

As brincadeiras infantis mediadas pela dança logo se transformam em um jogo de iniciação sexual, longe de casa e comandado pelos homens, nos clubes de dança e música. Podemos estabelecer um paralelo com outras danças populares: o acesso às gafieiras e dancings, tradicionais salões de baile cariocas, significara para seus antigos frequentadores a passagem para a vida adulta, informa Felipe B. Veiga (2011)VEIGA, Felipe Berocan. “O Ambiente Exige Respeito”: etnografia urbana e memória social da Gafieira Estudantina. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. . De modo semelhante, para os dançarinos de tango mais velhos, os salões de baile eram espaços de competição masculina e disputa pela atenção das mulheres, segundo relata María Julia Carozzi (2012)CAROZZI, María Julia. Más acá del triunfo en París: la revolución didáctica en la difusión del baile del tango en el cambio de milenio. Antropolítica, Niterói, n. 33, p. 25-50, 2012. Available at: <http://www.revistas.uff.br/index.php/antropolitica/article/view/137>. Accessed on: Oct. 31, 2019.
http://www.revistas.uff.br/index.php/ant...
. Como tantas outras danças populares, a salsa narra, acima de tudo, um cortejo heterossexual, com cada integrante do par desempenhando um papel específico que possibilita a dança.

No ambiente das academias, as aulas de dança a dois constituem espaços privilegiados de aprendizado de modos de interação em cima do gênero. No salão de dança, aqueles autoidentificados como homens se transformam em cavalheiros, e aquelas autoidentificadas como mulheres tornam-se damas7 7 O exame detalhado sobre as questões relacionadas ao gênero na salsa excede o escopo deste artigo. Isso não impede de lembrarmos das conhecidas reflexões de Judith Butler em relação ao gênero como ato performático, sancionado por convenções históricas e aprovado por uma audiência social (Butler, 1998). Para a autora, não há uma representação de gênero no sentido de manifestação de algo que estaria oculto ou pertenceria aos domínios da vida privada. Enquanto atuados, os atos de gênero criam o gênero, ou, inversamente, o último não existiria sem os primeiros (Butler, 1998). Nesse sentido, quando os salseros dançam, eles não estão imitando papéis de gênero que existiriam fora do momento da dança. A dança de salsa não é uma caricatura do gênero vivenciado no mundo exterior à salsa. Ao dançarem, os salseros fazem o gênero, construindo o cortejo heterossexual. Vale ressaltar, por fim, que não existe entre os praticantes de salsa no Rio uma reflexão em torno de performances salseras questionando tal cortejo. . A dama é instada a demonstrar desejo e habilidade em ser conduzida, isto é, fazer determinados movimentos logo após um gesto sutil do cavalheiro. Esses gestos - uma leve pressão na mão, no ombro ou nas costas, uma trava na cintura - são sinais para a execução de movimentos, previamente aprendidos, por parte da dama. Há um roteiro a cumprir, uma vez que a dama deve prever o leque de potenciais movimentos e agir em consequência, assim como o cavalheiro deve saber conduzir, isto é, executar os sinais nos momentos apropriados, valendo-se da leveza. Não é permitido à dama se antecipar, como dizem os bailantes. Ela não pode fazer os movimentos esperados antes do sinal do cavalheiro. As expectativas são, portanto, cuidadosamente planejadas, devendo ser manifestadas no momento adequado. Os cavalheiros são instruídos para, citando os praticantes, proteger ou cuidar da dama, olhando para ela ou procurando manter uma postura face a face com ela.

As aulas são entendidas pelos seus praticantes como a preparação necessária para os bailes e shows, grandes momentos de exibição e brilho. O objetivo central das aulas é desenvolver a condução salsera - consistente em sequências de enlaçamentos e desenlaçamentos envoltos em contínuos rodopios - com vistas a construir a imagem pública a ser projetada, vista e admirada nos bailes. Nas aulas, são persistentes as falas dos professores a respeito de tal imagem. Aliás, diferentemente dos bailes, nas aulas são profusos e esperados os intercursos verbais, presentes nas instruções dos professores e nas perguntas e comentários dos alunos.

É proveitosa aqui a noção performance process, com a qual Richard Schechner propõe abordar o conjunto de regras e expectativas que orientam qualquer performance, inclusive aquelas baseadas na improvisação (Schechner, 2002SCHECHNER, Richard. Performance studies: an introduction. Londres: Routledge, 2002. ). Para Schechner, esse conjunto desdobra-se em variados tempos e espaços e envolve personagens cumprindo determinados papéis (Schechner, 2002SCHECHNER, Richard. Performance studies: an introduction. Londres: Routledge, 2002. ). Examinar regras e expectativas implica considerar a performance como construção permanente, envolvendo os ensaios e os bastidores das apresentações. Assim, a performance como sequência ganha uma dimensão temporal. Os performers são sujeitos ativos aquém e além do palco.

Schechner resgata a perspectiva teatral de Erving Goffman na compreensão de situações sociais. De acordo com Goffman, a existência da interação é possibilitada pelo intercâmbio gestual e verbal que define a manutenção da face, uma determinada imagem de si definida por valores sociais aprovados (Goffman, 1980GOFFMAN, Erving (1955). A elaboração da face: uma análise dos elementos rituais na interação social. In: FIGUEIRA, Sérvulo Augusto (org.). Psicanálise e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980. P. 76-113.). Assim como nas conversas e contatos corriqueiros aos quais Goffman dedicara boa parte de suas análises, na dança a dois de salsa - como nas danças de salão - cada integrante do par tem atribuições e funções específicas e opostas, sendo exortado a demonstrar domínio de sequências de sinais marcadamente não verbais como exigência para preservar o contato iniciado. Nas aulas, a improvisação e a criatividade que modelam a salsa são abordadas objetivando construir uma dança chamada ora salsa cubana, porque associada à ilha caribenha, ora salsa em linha, articulada à cidade de Nova Iorque. Começo pela salsa cubana.

Ao abordar a atual hegemonia das músicas dançantes na América, diz Ángel Quintero Rivera, é preciso considerar seu desenvolvimento enquanto formas históricas surgidas nas margens territoriais, culturais e políticas, epicentros, para o autor, de desafios rítmicos e corporais (Quintero Rivera, 2009QUINTERO RIVERA, Ángel G. Cuerpo y cultura. Las músicas “mulatas” y la subversión del baile. Madrid: Iberoamericana, 2009.)8 8 Vale aqui um breve comentário sobre a noção de margem. Quintero Rivera ressalta o caráter formador e transformador do projeto colonial no Caribe. Uma vez que as danças/músicas dos descendentes de escravos são produzidas nos centros de produção econômica (mas não ideológica, pois, a hegemonia intelectual permanece na Europa ocidental), tais repertórios poderiam ser interpretados como formas que interpelam o modelo colonizador (Quintero Rivera, 2009). As margens seriam, desse modo, locus de criatividade e resistência diante da violência colonial. . Às formas lineares comandadas pelo tronco reto, característica dos bailes da Corte e de formatos cênicos como o balé, contrapõem-se os movimentos arredondados de tantas danças caribenhas, as quais procuram dar protagonismo aos ombros e extremidades, produzindo o que Quintero Rivera chama de descentramiento (Quintero Rivera, 2009QUINTERO RIVERA, Ángel G. Cuerpo y cultura. Las músicas “mulatas” y la subversión del baile. Madrid: Iberoamericana, 2009.). A salsa cubana de R. e M., professores cujas aulas acompanhei, parece desenrolar-se em cima desses elementos, entremeando sensações específicas a serem projetadas.

Uma regra norteadora das aulas de R. e M. é a preservação de uma distância específica entre os corpos, formando um semicírculo com os braços enlaçados e exercendo uma leve pressão nas palmas das mãos que se encontram durante a dança. A leve, porém, constante tensão aplicada nas palmas das mãos tanto de quem avança quanto de quem retrocede, contribuem a preservar a forma circular, possibilitando o jogo de distanciamentos e aproximações que, segundo os professores, caracteriza a salsa cubana. A perda de tensão nas palmas das mãos, braços muito rígidos ou muito flácidos, podem retirar o sentido da dança, desenvolvida em cima da sabrosura, descrita através da palavra e do movimento.

O que os bailantes de salsa cubana precisam aprender para conseguir exibir a sabrosura? Eles aprendem a fundamentar sua dança no que os professores chamam de pa’lante, pa’trás, contração frequente na cotidianidade oral caribenha, de para adelante, para atrás, expressões de direção dos passos dos pés - para a frente, para trás. Posteriormente, é encorajado o movimento de ombros, tronco e braços. Outra evidência da sabrosura está em interjeições como ai!, qué rico, aí na’má, usualmente proferidas nas pausas do canto, reforçando, desse modo, a participação plena dos sentidos da salsa. Qualquer salsero reconhece a exclamação Azúcar!, a qual se tornara selo distintivo da cantora cubana Celia Cruz, assim como identifica o grito Ecuajey!, do popular sonero Ismael Rivera. Por fim, um sorriso, um piscar de olhos e o canto de trechos da música que toca paralela à dança, são também gestos de manifestação da sabrosura.

Não se trata de que os alunos aprendam tais expressões como aprendem outros movimentos, através da imitação, trata-se, antes, de identificar os momentos propícios para exprimir esses gestos. Isso só poderá ser efetivamente alcançado, segundo os professores de salsa cubana, indo a todo e qualquer baile de salsa. É na sucessiva exibição pública da sua dança que os aprendizes de salsa conseguirão captar os instantes necessários à manifestação de variados gestos, com intuito de compor sua performance, dançando enfim com sabrosura.

A aula de salsa cubana pode terminar com a exibição de rueda de casino. Os professores e a turma formam um círculo composto de pares, esses ficando bem próximos uns dos outros. A música começa, e com ela, o pa’lante e pa’trás de damas e cavalheiros. R. anuncia o nome da primeira figura que deve ser executada imediatamente por todos os pares. Após alguns segundos, R. menciona outra figura para os bailantes executarem e assim por diante, até o fim da música. Algumas das figuras pedem a troca de par, com damas e cavalheiros caminhando em direções opostas até achar o próximo par. Outras figuras demandam a interação com a pessoa que está justo ao lado. Outros movimentos ainda consistem em bater uma, duas ou três palmas aos lados ou à frente.

A rueda de casino é uma dança grupal que depende da sincronia entre o par e entre os pares, os quais devem procurar preservar o círculo inicialmente formado, assim como a forma redondeada da dança. Na rueda de casino destaca-se a fala. A elocução dos comandos não segue uma ordem determinada; aquele que convoca a dança anunciará as figuras ao longo da música, evocando algumas ou todas as figuras do repertório previamente aprendido e utilizado também na dança salsera além da rueda de casino. Já as figuras que demandam a interação com outros pares ficam restritas à rueda de casino. A chamada costuma ser realizada pelo professor e se desenrola junto a breves instruções e dicas entre damas e cavalheiros, direcionadas àqueles que não estão conseguindo acompanhar os comandos. Na rueda de casino, que só pode ser desfeita quando a música acabar, a movimentação e a troca de figuras são intensas e sucessivas, de tal maneira que as dicas ou orientações raramente chegam aos destinatários. Como a troca de par é frequente, os pares que iniciam a dança podem não ser os mesmos que a finalizam.

Nesse sentido, para participar de uma rueda de casino, é preciso ter domínio de várias figuras, pois, não há autonomia individual na execução das figuras. Cada bailante deverá ser capaz de seguir os comandos da liderança. Nos bailes, a formação do círculo necessário ao início da rueda de casino é rápida. Ao ouvir o anúncio rueda!, rueda! do professor, aqueles que desejam integrar a dança arranjam apressadamente o bailante com o qual vão iniciar a dança, integrando-se aos poucos ao círculo formado e que torna a se movimentar conforme a música vai se desenrolando. Assim, a dança é uma sequência de falas e encenações das falas. A ação discursiva é necessária à ação coreográfica. Ao invés das interjeições - ai na’má, qué rico - que compõem a dança, as quais não dependem do intercurso verbal e podem ou não ter efeitos sobre o intercurso coreográfico, os comandos da rueda de casino são essenciais para o desdobramento da dança. É preciso compreender os comandos, fazendo associações entre os nomes e as sequências de movimentos desenvolvidas logo mais. A vocalização é imprescindível e deve ser compreendida por todos os participantes, no intuito de produzir reações específicas, provocando uma efervescência coletiva que culminará no último segundo da música com um abraço forte e aplausos entre os participantes da rueda.

Outras são as preocupações cênicas que orientam a dança de salsa em linha. Nesta dança, o par deve preservar a postura face a face formando linhas com os pés e braços, dobrando levemente os joelhos, os quais devem mexer-se para os lados.

Em 2009 comecei a estudar com Eddie Torres, que é meu mentor, ele que inventou a salsa em linha. Toda vez que eu vou lá [Nova Iorque], eu faço aulas com ele, me disse F., salsero reconhecido no Rio pela sua trajetória em salsa em linha e professor da outra turma de salsa que integrei. Torres, nascido em 1950, em Harlem, bairro nova-iorquino de latinos e negros, ganhou renome na introdução de um estilo que passara a ser conhecido como salsa nova-iorquina moderna em academias de dança pelos Estados Unidos (McMains, 2015MCMAINS, Juliet. Spinning mambo into salsa: Caribbean dance in global commerce. New York: Oxford, 2015.). Torres aprendeu a dançar nos bailes dos clubes, onde, segundo ele, “[...] no one knew how to explain at that time how to do a certain pattern by explaining theoretically. They just would say, ‘Come on Eddie, man your right hand does this, your left foot does that’” (McMains, 2015MCMAINS, Juliet. Spinning mambo into salsa: Caribbean dance in global commerce. New York: Oxford, 2015., p. 126)9 9 “[...] nessa época ninguém sabia como explicar, como executar as figuras mediante explicações teóricas. Eles simplesmente diziam, ‘Eddie, tua mão direita faz isso, teu pé esquerdo faz aquilo’” (McMains, 2015, p. 126, tradução minha). . Com ajuda de sua professora de dança ballroom, June Laberta, Torres fixou e dividiu seu saber em sequências rotuladas, estabelecendo, assim, um método de ensino de dança de salsa (McMains, 2015MCMAINS, Juliet. Spinning mambo into salsa: Caribbean dance in global commerce. New York: Oxford, 2015.).

Desse modo, a salsa em linha está associada à criação de um léxico propício para apresentações em palcos com determinadas características. De acordo com Torres: “I always used to tell people, ‘oh, I would love to see a musical on Broadway with mambo dancing and I would love to see the dance get the recognition that jazz and ballet has [sic]. And I would love for it to one day be known respected as a classical art form of dance’” (McMains, 2015MCMAINS, Juliet. Spinning mambo into salsa: Caribbean dance in global commerce. New York: Oxford, 2015., p. 126)10 10 “[...] Eu sempre dizia às pessoas: ‘ah, eu adoraria assistir a um musical de Broadway com dança de mambo e adoraria que essa dança tivesse o reconhecimento que o jazz e o ballet têm. E também adoraria [que a dança de mambo] um dia fosse reconhecida como uma forma clássica de arte” (McMains, 2015, p. 126, tradução minha). .

O comentário de Torres é relevante para refletir em cima dos possíveis deslocamentos na prática de salsa, na sua definição e estrutura. Pois, se essa dança pode ser examinada como forma privilegiada de socialização em contextos festivos diversos, também pode ser considerada pela sua força como performance no palco. Ao almejar transformar a dança de salsa em objeto cênico, Torres busca deslocar a posição dessa dança no mercado da arte. Embora o bailado dos frequentadores dos clubes fosse, para Torres, uma importante fonte de inspiração e conhecimento, o projeto desse dançarino consiste em construir uma performance salsera, de caráter competitivo ou não, que estabeleça novas fronteiras entre o público e os dançarinos. O primeiro assiste, observa e contempla do assento, os segundos apresentam-se como indiscutíveis protagonistas da performance.

A salsa em linha de Torres se inseriu rapidamente no ambiente das academias de dança de salão, cujo horizonte não é exatamente formar dançarinos para atuarem em palcos isolados de eventuais colegas ou para serem observados de baixo ou de cima. Pelo contrário. A dança de salão está pautada pelo desejo de diluição de hierarquias e posições heterogêneas, nivelando seus participantes. Tomo emprestado aqui o sentido que George Simmel atribui à nivelação. Para o autor, a sociabilidade - forma de grupamento dos indivíduos cuja finalidade é o próprio momento da interação - está caracterizada pela nivelação, isto é, os participantes fazem de conta que são todos iguais e que cada um é, também, particularmente considerado (Simmel, 1983SIMMEL, Georg. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.). Com efeito, a salsa dos bailes, shows, clubes e aulas, constitui, para os dançarinos, uma forma de encontro na qual o único que parece importar é a paixão pela exibição mútua de habilidades e códigos próprios da salsa. Origens, ocupações e opiniões variadas dos salseros são momentaneamente deixadas de lado no momento da dança. Tal suspensão é requisito para participar na pista.

As aulas de F. se desenvolvem no jogo de interesses aparentemente irreconciliáveis, a saber, o caráter sociável da salsa dançada nos bailes e shows e a salsa desenvolvida por Eddie Torres. As aulas de F. costumam começar com footwork, como é chamada no ambiente da dança de salão a ênfase em movimentos realizados especialmente com os pés. O objetivo do footwork nas aulas de F. é explorar o leque de movimentos passíveis de serem realizados na dança suelta, que é como os salseros chamam o momento em que o par dança desenlaçado. Na dança suelta corresponde à dama e ao cavalheiro demonstrarem habilidades na improvisação, executando movimentos independentes da condução, embora aprendidos e repetidos à exaustão ao longo das aulas. Essa dança é fundamental e esperada na performance salsera em linha e abarca, portanto, uma parte importante de cada aula. Nas aulas de salsa em linha de F., os movimentos de braços e pés são encorajados, já os da cabeça, ombros e tronco, mal são mencionados.

Nas aulas de F., os intercursos verbais são percebidos como momentos iniciais para a posterior realização da performance salsera, orientada pelo acréscimo, a quantidade e a reiteração e que ocorrerá com os bailantes em silêncio, atentos à música. A relação entre F. e alunos demanda tempo, consolidando-se aos poucos, através da sucessiva participação dos alunos nas aulas, bailes e oficinas, além da ajuda na organização dessas atividades na escola de dança. Alguns alunos tornam-se, desse modo, discípulos de F.

A performance salsera ensinada por ele não depende inteiramente da exposição verbal. Esta se compõe de sutis gestos que só serão aprendidos no momento da execução e, segundo F., de acordo com o desenrolar da música. Nas aulas, o professor frisa que é necessário prestar atenção à música, pois, suas variações rítmicas e melódicas marcarão, nas palavras do professor, a evolução da dança. Rodopios em excesso logo no início da música, braços muito rígidos ou muito frouxos, são sinais, segundo F., de mais execução e menos sabor.

Nas aulas, por vezes a palavra dança era substituída pela palavra sabor para enfatizar os movimentos salseros na dança. Dançar salsa é, segundo os ensinamentos de F., passar através da música, organizando sequências de movimentos junto às ondulações da música, suas pausas e suas variações. A salsa em linha se desenvolve em cima de longos solos instrumentais e da presença marcada do naipe de sopros, características da chamada salsa dura, representada nas primeiras produções de Fania Records e em orquestras nova-iorquinas e porto-riquenhas atuais. Para dançar salsa é preciso então passar pela performance, na sua dimensão formadora e transformadora, no sentido atribuído por Victor Turner (2005)TURNER, Victor. Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experiência (primeira parte). [Tradução Herbert Rodrigues]. Cadernos de Campo, São Paulo, a. 14, v. 13, n. 13, p. 177-185, 30 mar. 2005. Available at: <http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50265>. Accessed on: May 12, 2018.
http://www.revistas.usp.br/cadernosdecam...
.

Encerramento

As reflexões sobre salsa, tanto em formato audiovisual quanto escrito, costumam se desenrolar em cima da estrutura sonora, deixando de lado outros estímulos sensoriais que a salsa convoca. Aqui propus colocar a dança no centro, examinando-a a partir de uma situação específica - a prática de salsa de dois professores de academias de dança de salão no Rio de Janeiro. Para isso, sugeri noções de performance como prisma de análise, propondo possibilidades de encontro entre trabalho antropológico e performance.

O deslocamento de modos informais de aprendizado da salsa para contextos do ensino padronizado das academias, entrecruza-se com o deslocamento da minha posição como etnógrafa, transformada, a partir de um certo momento, em aprendiz de dança. O movimento da beira da pista para o centro desta evoca dois modos de apreender a dança. Entretanto, tais modos não são opostos; eles não traduzem envolvimentos corporais rigidamente separados. Assumo essas maneiras de abordagem e apreensão da dança como nuanças dentro de um leque amplo de interação com os interlocutores de pesquisa.

Para comentar o trânsito entre dois ambientes de aprendizado/investigação, trouxe noções de performance buscando destacar uma dimensão específica de exibição, aquela das aulas em academias de dança de salão. Na sala de aula, a performance salsera condensa as informações apresentadas gradativa e separadamente aula após aula, carregando informações previamente descritas, imitadas e repetidas, as quais ganharão brilho quando os aprendizes souberem colocá-las na sua dança, e isso só será possível de apreender no decorrer da exibição pública. Desse modo, a performance é um modo de conhecimento, transmitido mais pelo impacto pontual, veemente, pungente que pretende causar naqueles que se dispõem a recebê-lo, que por explicações descritivas verbais, progressivas, graduais e contínuas.

Há diferenças nas ações comunicativas necessárias à construção da salsa cubana e da salsa em linha. A primeira se desenrola na busca do descentramiento, nas interjeições, nas falas em castelhano. Em contraste, a salsa em linha, oscilando entre a dança de salão e a dança de palco, se desenvolve em desenhos lineares, alcançados progressivamente a partir de instruções verbais reiteradas, procurando dialogar com a força da salsa dura, produzida em um dos epicentros da população latina.

Também busquei destacar a performance salsera enquanto trabalho individual, orientado pelo jogo de sentidos e cruzamentos sensíveis. As aulas de salsa em academias tratam basicamente do aprendizado de um roteiro de gestos, toques e movimentos individuais. A interação está pautada no diálogo da dança com a música gravada. Um repertório sonoro específico é tocado à exaustão aula atrás de aula, reforçando a busca pela criatividade nos momentos de dança suelta e nos trechos de improvisação sonora - fraseos ou soneos. Entretanto, há pouca articulação com as superposições e encadeamentos sonoros da música ao vivo. A execução de habilidades individuais torna-se protagonista do bailado salsero, que almeja alcançar ora a sabrosura, ora o sabor.

Assim, noções de performance articuladas ao fazer antropológico permitem descortinar aspectos da criação e circulação de significados entre os participantes de eventos tais como aulas, shows e bailes. Na situação etnográfica apresentada aqui, performance não é uma categoria nativa enunciada pelos salseros para nomear e definir sua prática. Em vez disso, performance aparece como uma janela que permite à pesquisadora enxergar efeitos em pelo menos duas direções. Por um lado, a partir das articulações com atos de fala é possível abordar a miríade de estímulos sensíveis da dança. Por outro lado, é no próprio momento dela que emerge a performance como processo e dimensão temporal. Desse modo, o trabalho de campo se configura e é reconfigurado no prisma de noções de performance.

Notas

  • 1
    “The processes set in motion by the creation of the New World plantations have never stopped. But in their earliest overseas phases, they were concentrated within a definable area, of which the relatively tiny Caribbean colonies were a part. It was what these reborn enterprises achieved in mobilizing resources, adapting to stolen labour, producing capitalism's first real commodities, feeding the first proletarians, and changing the outlooks of so many people on both sides of the Atlantic, that embodied a dawning modernity” (Mintz, 1996, p. 296).
  • 2
    É arriscado imaginar como caribenho o Nordeste brasileiro, dado que as influências do Caribe talvez não sejam evidentes em alguns Estados. Do mesmo modo, pode ser difícil pensar como caribenho o litoral peruano, situado no Oceano Pacífico e cujos povos vêm reconfigurando-se à luz de variadas críticas à constituição da nação peruana. Ver, por exemplo, Arizaga (2005)ARIZAGA, Sofía. Carta dirigida al Foro Afroperuano. Lima: Cimarrones, 2005. Available at: <http://www.cimarrones-peru.org/sofia.htm>. Accessed on: Oct. 06, 2020.
    http://www.cimarrones-peru.org/sofia.htm...
    . Entretanto, a proposta de Quijano sobre o alargamento do Caribe pode ser interpretada como um convite para considerarmos os fluxos, impactos e trânsitos por vezes ocultos nos projetos de construção dos Estados-nação modernos. Quijano chama a atenção para os efeitos da história colonial compartilhada além das modernas fronteiras nacionais.
  • 3
    A coletânea de Lise Waxer et al (2002)WAXER, Lise et al. Situating salsa: global markets and local meanings in Latin American popular music. New York: Routledge. 2002. oferece um excelente exemplo de análises em cima da salsa em língua inglesa e desde a perspectiva da atuação da população latina.
  • 4
    Na década de 1980 e especialmente nos 1990 o ambiente da dança de salão brasileira também experimentou importantes transformações, ligadas às tendências do mercado internacional de dança. Segundo Felipe B. Veiga (2011)VEIGA, Felipe Berocan. “O Ambiente Exige Respeito”: etnografia urbana e memória social da Gafieira Estudantina. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. essas mudanças resultaram no fortalecimento de correntes específicas de ensino e proliferação de inúmeras academias de dança pela cidade, mobilizando um mercado de dança, de caráter altamente personalista e organizado em hierarquias de ritmos (Veiga, 2011VEIGA, Felipe Berocan. “O Ambiente Exige Respeito”: etnografia urbana e memória social da Gafieira Estudantina. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. ). No novo mercado de dança, uma dimensão de exibição de ritmos da dança de salão, aquela dos espetáculos destinados a públicos contemplativos e em cenários particulares, também ganhará centralidade.
  • 5
    Vale aqui um breve esclarecimento metodológico em relação à minha posição de etnógrafa/aprendiz de dança. Não creio que dançar, corpo a corpo, junto aos dançarinos implique necessariamente num acesso privilegiado ao mundo da dança, possibilitando apreender saberes de outro modo ininteligíveis ou inapreensíveis. Ao frequentar aulas de dança como aluna não almejei sentir o que os dançarinos sentem quando dançam nem procurei pensar como eles. Embora uma sorte de transferência sensível possa de fato acontecer, ela não garante o aprimoramento ou a profundidade de qualquer análise antropológica, como discutido por Strathern (2014)STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014., Fravet-Saada (2005)FRAVET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. [Tradução de Paula Siqueira]. Cadernos de Campo, São Paulo, a. 14, v. 13, n. 13, p. 155-161, 30 mar. 2005. Available at: <http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50263>. Accessed on: Jan. 29, 2019.
    http://www.revistas.usp.br/cadernosdecam...
    , Goldman (2003)GOLDMAN, Márcio. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos: etnografia, antropologia e política em Ilhéus. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 46, n. 2, p. 445-476, 2003. , entre outros. Ao começar a dançar, minha intenção foi, paradoxalmente, favorecer, estimular e prolongar o contato verbal. Na minha nova posição, os dançarinos passaram a me enxergar de forma horizontal, como colega de dança, se sentindo à vontade para refletir em cima da sua prática.
  • 6
    Our latin thing, produção audiovisual lançada pela Fania Records em 1972, é um excelente exemplo da importância do ambiente familiar e doméstico - que encontra na rua sua extensão - nas narrativas salseras (Our..., 1972OUR latin thing. Direção: Leon Gast. Produção: Jerry Masucci. Intérpretes: Ray Barretto, Willie Colón, Larry Harlow, Johnny Pacheco e outros. New York: Fania Records, 1972. 1 DVD. (102 min.).).
  • 7
    O exame detalhado sobre as questões relacionadas ao gênero na salsa excede o escopo deste artigo. Isso não impede de lembrarmos das conhecidas reflexões de Judith Butler em relação ao gênero como ato performático, sancionado por convenções históricas e aprovado por uma audiência social (Butler, 1998BUTLER, Judith. Actos performativos y constitución del género: un ensayo sobre fenomenología y teoría feminista. Debate Feminista, México D.F., v. 18, outubro, p. 296-314, 1998.). Para a autora, não há uma representação de gênero no sentido de manifestação de algo que estaria oculto ou pertenceria aos domínios da vida privada. Enquanto atuados, os atos de gênero criam o gênero, ou, inversamente, o último não existiria sem os primeiros (Butler, 1998BUTLER, Judith. Actos performativos y constitución del género: un ensayo sobre fenomenología y teoría feminista. Debate Feminista, México D.F., v. 18, outubro, p. 296-314, 1998.). Nesse sentido, quando os salseros dançam, eles não estão imitando papéis de gênero que existiriam fora do momento da dança. A dança de salsa não é uma caricatura do gênero vivenciado no mundo exterior à salsa. Ao dançarem, os salseros fazem o gênero, construindo o cortejo heterossexual. Vale ressaltar, por fim, que não existe entre os praticantes de salsa no Rio uma reflexão em torno de performances salseras questionando tal cortejo.
  • 8
    Vale aqui um breve comentário sobre a noção de margem. Quintero Rivera ressalta o caráter formador e transformador do projeto colonial no Caribe. Uma vez que as danças/músicas dos descendentes de escravos são produzidas nos centros de produção econômica (mas não ideológica, pois, a hegemonia intelectual permanece na Europa ocidental), tais repertórios poderiam ser interpretados como formas que interpelam o modelo colonizador (Quintero Rivera, 2009QUINTERO RIVERA, Ángel G. Cuerpo y cultura. Las músicas “mulatas” y la subversión del baile. Madrid: Iberoamericana, 2009.). As margens seriam, desse modo, locus de criatividade e resistência diante da violência colonial.
  • 9
    “[...] nessa época ninguém sabia como explicar, como executar as figuras mediante explicações teóricas. Eles simplesmente diziam, ‘Eddie, tua mão direita faz isso, teu pé esquerdo faz aquilo’” (McMains, 2015MCMAINS, Juliet. Spinning mambo into salsa: Caribbean dance in global commerce. New York: Oxford, 2015., p. 126, tradução minha).
  • 10
    “[...] Eu sempre dizia às pessoas: ‘ah, eu adoraria assistir a um musical de Broadway com dança de mambo e adoraria que essa dança tivesse o reconhecimento que o jazz e o ballet têm. E também adoraria [que a dança de mambo] um dia fosse reconhecida como uma forma clássica de arte” (McMains, 2015MCMAINS, Juliet. Spinning mambo into salsa: Caribbean dance in global commerce. New York: Oxford, 2015., p. 126, tradução minha).
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

References

  • ARIZAGA, Sofía. Carta dirigida al Foro Afroperuano Lima: Cimarrones, 2005. Available at: <http://www.cimarrones-peru.org/sofia.htm>. Accessed on: Oct. 06, 2020.
    » http://www.cimarrones-peru.org/sofia.htm
  • AUSTIN, John Langshaw. How to do things with words Oxford: Clarendon, 1962.
  • BATESON, Gregory. Pasos hacia una ecología de la mente Buenos Aires: Lohlé-Lumen, 1998.
  • BAUMAN, Richard. Verbal art as performance. In: BAUMAN, Richard (org.). Verbal art as performance Illinois: Waveland Press, 1984. P. 3-58.
  • BERRÍOS-MIRANDA, Marisol. Is salsa a musical genre? In: WAXER, Lise (org.). Situating salsa: global markets and local meanings in Latin American popular music. New York: Routledge, 2002. P. 23-50.
  • BUTLER, Judith. Actos performativos y constitución del género: un ensayo sobre fenomenología y teoría feminista. Debate Feminista, México D.F., v. 18, outubro, p. 296-314, 1998.
  • CAROZZI, María Julia. Más acá del triunfo en París: la revolución didáctica en la difusión del baile del tango en el cambio de milenio. Antropolítica, Niterói, n. 33, p. 25-50, 2012. Available at: <http://www.revistas.uff.br/index.php/antropolitica/article/view/137>. Accessed on: Oct. 31, 2019.
    » http://www.revistas.uff.br/index.php/antropolitica/article/view/137
  • COLÓN MONTIJO, César. ¡Se escucha la olla!. In: COLÓN MONTIJO, César (org.). Cocinando suave: ensayos de salsa en Puerto Rico. Caracas: Fundación Editorial El perro y la rana, 2015. P. 17-28.
  • DÍAZ QUIÑONES, Arcadio. Caribe y exilio en La isla que se repite de Antonio Benítez Rojo. Orbis Tertius, Buenos Aires, v. 12, n. 13, 2007. Available at: <https://www.orbistertius.unlp.edu.ar/article/view/OTv12n13d02>. Accessed on: Mar. 25, 2020.
    » https://www.orbistertius.unlp.edu.ar/article/view/OTv12n13d02
  • EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. A dança. In: CAVALCANTI, Maria Laura (org.). Ritual e performance: 4 estudos clássicos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014. P. 21-38.
  • FRAVET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. [Tradução de Paula Siqueira]. Cadernos de Campo, São Paulo, a. 14, v. 13, n. 13, p. 155-161, 30 mar. 2005. Available at: <http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50263>. Accessed on: Jan. 29, 2019.
    » http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50263
  • GOFFMAN, Erving (1955). A elaboração da face: uma análise dos elementos rituais na interação social. In: FIGUEIRA, Sérvulo Augusto (org.). Psicanálise e Ciências Sociais Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980. P. 76-113.
  • GOLDMAN, Márcio. Alguma antropologia Rio de Janeiro: Dumará, 1999.
  • GOLDMAN, Márcio. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos: etnografia, antropologia e política em Ilhéus. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 46, n. 2, p. 445-476, 2003.
  • GUADALUPE-PÉREZ, Hiram. Salsa underground neoyorquina: más allá de Fania. In: COLÓN MONTIJO, César (org.). Cocinando suave: ensayos de salsa en Puerto Rico. Caracas: Fundación Editorial El perro y la rana, 2015. P. 187-206.
  • MCMAINS, Juliet. Spinning mambo into salsa: Caribbean dance in global commerce. New York: Oxford, 2015.
  • MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito São Paulo: Cosac Naify, 2014.
  • MINTZ, Sidney W. Enduring Substances, Trying Theories: The Caribbean Region as Oikoumene. The Journal of the Royal Anthropological Institute, Londres, v. 2, n. 2, p. 289-311, jun. 1996.
  • MOREL, Hernán. Estilos de baile en el tango salón: una aproximación a través de sus evaluaciones verbales. In: CAROZZI, María Julia (org.). Las palabras y los pasos: etnografías de la danza en la ciudad. Buenos Aires: Gorla, 2011. P. 189-222.
  • OLIVEIRA, Allan de Paula. O ouvido dançante: a música popular entre swings y cangotes. El oído pensante, Buenos Aires, v. 3, n. 2, p. 07-27, 2015. Available at: <http://ppct.caicyt.gov.ar/index.php/oidopensante/article/view/6184/45454575759499>. Accessed on: Mar. 12, 2020.
    » http://ppct.caicyt.gov.ar/index.php/oidopensante/article/view/6184/45454575759499
  • OUR latin thing. Direção: Leon Gast. Produção: Jerry Masucci. Intérpretes: Ray Barretto, Willie Colón, Larry Harlow, Johnny Pacheco e outros. New York: Fania Records, 1972. 1 DVD. (102 min.).
  • PEDROSO LIMA, Antónia; SARRÓ, Ramon. Já dizia Malinowski: sobre as condições da possibilidade da produção etnográfica. In: PEDROSO LIMA, Antónia; SARRÓ, Ramon (org.). Terrenos metropolitanos Ensaios sobre produção etnográfica. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2006. P. 17-34.
  • PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, a. 20, n. 42, jul./dez. p. 377-391, 2014.
  • QUIJANO, Aníbal. Fiesta y poder en el Caribe: Notas a propósito de los análisis de Ángel Quintero. In: QUINTERO RIVERA, Ángel G. Cuerpo y cultura Las músicas “mulatas” y la subversión del baile. Madrid: Iberoamericana, 2009. P. 33-36.
  • QUINTERO RIVERA, Ángel G. Salsa, sabor y control! Sociología de la música “tropical”. México D.F.: Siglo XXI, 1998.
  • QUINTERO RIVERA, Ángel G. Cuerpo y cultura Las músicas “mulatas” y la subversión del baile. Madrid: Iberoamericana, 2009.
  • RONDÓN, César Miguel. El libro de la salsa: crónica de la música del Caribe urbano. Caracas: 2015.
  • SCHECHNER, Richard. Performance studies: an introduction. Londres: Routledge, 2002.
  • SIMMEL, Georg. Sociologia São Paulo: Ática, 1983.
  • STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico e outros ensaios São Paulo: Cosac Naify, 2014.
  • TRANCE and dance in Bali (documentário). [S.l.: s. n.], 1952. 1 vídeo (22 min.). Produção: Margareth Mead e Gregory Bateson. Publicado pelo canal Library of Congress. Available at: <https://www.youtube.com/watch?v=Z8YC0dnj4Jw>. Accessed on: Nov. 1st, 2019.
    » https://www.youtube.com/watch?v=Z8YC0dnj4Jw
  • TURNER, Victor. Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experiência (primeira parte). [Tradução Herbert Rodrigues]. Cadernos de Campo, São Paulo, a. 14, v. 13, n. 13, p. 177-185, 30 mar. 2005. Available at: <http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50265>. Accessed on: May 12, 2018.
    » http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50265
  • VEIGA, Felipe Berocan. “O Ambiente Exige Respeito”: etnografia urbana e memória social da Gafieira Estudantina. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011.
  • WASHBURNE, Christopher. Salsa y drogas en Nueva York: estética, prácticas performativas, gubernamentales y tráfico ilegal de drogas. In: COLÓN MONTIJO, César (org.). Cocinando suave Ensayos de salsa en Puerto Rico, 2015. P. 75-108.
  • WAXER, Lise et al. Situating salsa: global markets and local meanings in Latin American popular music. New York: Routledge. 2002.
  • WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. 2. ed. Madri: Fondo de Cultura Económica, 1964.

Editado por

Editor-responsável: Marcelo de Andrade Pereira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2020
  • Aceito
    18 Out 2020
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Av. Paulo Gama s/n prédio 12201, sala 700-2, Bairro Farroupilha, Código Postal: 90046-900, Telefone: 5133084142 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: rev.presenca@gmail.com