Open-access O Chifre do Coronel Corta-Gargantas: uma ação estético-política

La Corne du Colonel Coupe-Gorges: une action esthético-politique

Resumo:

Este artigo analisa uma ação estético-política: uma intervenção feita por ativistas na pintura do retrato de um sanguinário personagem histórico. Considerando a dimensão inexoravelmente estética da política, articularemos a constituição do socius e do ethos, segundo Deleuze e Guattari, com uma singular leitura do conceito de ready made em Duchamp; chegaremos assim à concepção de efeito de arte. Tal base teórica nos permitirá pensar a ação política tema do texto como exemplo de efeito de arte, num contexto de identificação entre patrimônio artístico/cultural e Estado, mas também de resistências estético-políticas numa cidade submetida a violentos processos de gentrificação.

Palavras-chave: Ação Estético-Política; Socius e Ethos; Efeito de Arte; Cidade; Estéticas do Poder e da Resistência

Résumé:

Cet article analyse une action esthético-politique: une intervention pratiquée par des activistes sur la peinture du portrait d'un personnage historique sanguinaire. Compte tenu de la dimension inexorablement esthétique de la politique, nous articulerons la constitution du socius et de l'ethos, selon Deleuze et Guattari, avec une lecture singulière du concept de ready made chez Duchamp, en arrivant ainsi à la conception d'effet d'art. Les esthétiques du pouvoir qui formatent les villes et les résistances esthétiques nous amèneront aux réflexions de Lefebvre sur le droit à la ville. Cette base théorique nous permettra d'envisager l'action politique, thème du texte, comme un exemple d'effet d'art, dans un contexte d'identification entre patrimoine artistique/culturel et État, mais aussi de résistances esthético-politiques, dans une ville soumise à de violents processus de gentrification.

Mots-clés: Action Esthético-Politique; Socius et Ethos; Effet d'Art; Ville; Esthétiques du Pouvoir et de la Résistance

Abstract:

This article considers an aesthetic-political action: namely, an intervention of activists directed at the painted portrait of a bloodthirsty historical figure. Considering the inexorably aesthetic dimension of politics, this work articulates the constitution of socius and ethos according to Deleuze and Guattari with a singular reading of the concept of Duchamp's readymade. Thus, the article arrives at the conception of an effect of art. This theoretical base allows us to consider the specific political action that serves as the theme of the text as an example of the effect of art. This consideration occurs both within the context of an identification between artistic/cultural patrimony and the State, but also in the aesthetic-political resistances of a city submitted to the violent processes of gentrification.

Keywords: Aesthetic-Political Action; Socius and Ethos; The Effect of Art; City; Aesthetics of Power and Resistance

O Evento (uma ação estético-política)

O objetivo deste texto é, a partir de três perspectivas convergentes, a política, a sociologia e a arte, refletir sobre um acontecimento do final de julho de 2013, o qual identificaremos com uma ação estético-política.

Esse lugar de uma relação e, mais do que uma relação, de uma constituição inexoravelmente estética da política e de um efeito inexoravelmente político da arte, tem sido o caminho das diversas pesquisas de cada um dos autores deste texto. Ele é, portanto, o que nos fez convergir aqui. O que caracteriza o nosso método de trabalho vem, assim, de antes do tema específico deste texto. Ele parte de um pressuposto de que a relação entre a produção artística e a produção teórica não pode se pautar por uma espécie de sujeição da arte à teoria. Ao contrário, há para nós também um efeito de arte sob a problematização teórica e a produção de conceitos, isto é, uma experiência artística é capaz de fazer com que os conceitos já não sejam os mesmos, que novos conceitos tenham que ser criados: é decisivo que a arte irrigue a teoria quando esta vai se fechando em si mesma e nos seus clichês. Nossos estudos teóricos, por outro lado, nos enchem de experiências estéticas. Não por acaso todos aqui possuem uma trajetória que passa por produções artísticas, seja no campo do cinema e do vídeo, seja no campo da fotografia, seja no campo da gravura. Além disso, essa conversão entre estética e política nos atravessa numa outra prática, qual seja, a de um ativismo político (e, portanto, estético) que sempre tentamos buscar. Assim, o ato que vamos caracterizar como uma ação estético-política nos atrai como tema de estudo porque, de certa forma, ainda que nos tenha surpreendido e até encantado, faz parte também das expectativas e desejos que alimentamos a partir das leituras dos autores que aqui neste texto farão parte da nossa caixa de ferramentas teóricas. Diríamos que os atos, como o que aqui estudamos, têm já uma vizinhança, e conspiravam de alguma forma, com a maneira como Deleuze e Guattari veem a constituição do socius e do ethos, de maneira inexoravelmente estética, no modo como eles leem o conceito-ação de ready-made em Duchamp, e no modo como o próprio Duchamp rompe totalmente com qualquer noção de autonomia da arte, recusando para si mesmo o lugar de artista ao mesmo tempo que defende a dimensão social e política da arte. Também aqueles que pensam a cidade, lugar que paradigmaticamente se define e se constitui por operações e lutas estético-políticas (expressão que, para nós, é redundante), não poderiam deixar de estar presentes. Por isso passamos pelas famosas reflexões de Henri Lefebvre sobre o direito à cidade, mas também mencionamos autores como Antonio Negri. Se há um método neste texto é a convergência afetiva de seus autores, que se confunde com a convergência teórica e prática - que para nós também é uma convergência afetiva - dos textos que lemos, das experiências artísticas que temos juntos e em separado, do ativismo político que compartilhamos. A propósito, cabe lembrar que somos professores do Rio de Janeiro, estávamos nas manifestações de junho e de outubro de 2013 e, no mínimo, o gás de pimenta, o gás lacrimogêneo, o barulho das bombas, mas também a alegria e a potência das ruas se imprimiu fortemente em nossos corpos. Fizemos, em nossas singularidades, parte daquelas performances, nos passos daquelas danças e no compartilhar e interpotencializar desejos (e medos e frustrações...). Para sermos minimamente honestos com o leitor, não haveria outra forma, como as formalidades acadêmicas nos demandam, de descrever o que foram os métodos e os procedimentos de nossa pesquisa: do encantamento cúmplice com a intervenção na pintura realizada na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro e seus efeitos; o modo como percebemos o quanto aquilo dialogava com as pesquisas que já vínhamos fazendo; as tardes inteiras discutindo o assunto; as trocas de influências teóricas, indicações bibliográficas e reflexões até construirmos este texto. Esse foi o nosso método de trabalho.

Pois bem, o evento ao qual nos referimos se deu no esteio das imensas mobilizações de rua que sacudiram o Brasil em junho de 2013, exatamente enquanto acontecia em todo o Brasil a Copa das Confederações de futebol, evento preparatório para a Copa do Mundo de futebol, que aconteceria um ano depois. Essas manifestações seguiram não tão numerosas, mas intensas, no mês de julho e, em particular no Rio de Janeiro, voltaram a crescer em outubro do mesmo ano por conta de uma greve de professores da rede pública que, para além dos limites corporativos, mobilizou toda a cidade. O acontecimento, que a princípio identificaremos aqui como uma ação estético-política, se deu quando alguns manifestantes entraram na câmara dos vereadores e interviram numa pintura, desenhando chifres na cabeça do Coronel Antonio Moreira César, retratado pelo pintor italiano Gustavo Dell'Ara. A pintura, que fica no hall dessa casa legislativa, não parecia constar como um alvo abertamente objetivado pelos manifestantes, ou seja, a intervenção se deu provavelmente no calor da manifestação. Além disso, os manifestantes não sabiam de quem era o rosto exibido ali, quer dizer, foi logo depois de feita a intervenção, publicizada na grande imprensa com tom de grande desaprovação, suposta prova de vandalismo e desrespeito ao patrimônio cultural, que se revelou ao público que o retrato era do militar mencionado e, sobretudo, quem era esse militar. Soube-se então que o tal Coronel Moreira César era conhecido como Coronel Corta-Gargantas e que, entre alguns fatos sanguinários e criminosos do seu currículo, comandou, em Santa Catarina, a repressão à Revolução Federalista (1893-1895), que acontecia naquele Estado e no Rio Grande do Sul, ordenando todo o tipo de torturas, execuções e vinganças, algumas praticadas por ele com as próprias mãos, o que lhe valeu o apelido de Corta-Gargantas. Pouco mais tarde, ele foi encarregado de comandar a segunda das expedições que teve como missão esmagar a revolta de Canudos, no sertão da Bahia, já que a primeira fora repelida pelos revoltosos. Contudo, daquela vez Moreira Cesar não foi vitorioso e suas tropas foram derrotadas numa nova vitória dos revoltosos, tendo sido ele mesmo ferido por uma bala e morrido por conta desse ferimento algumas horas mais tarde. Tomamos assim conhecimento que a personalidade histórica que, em algum dia, se escolheu exibir nas paredes da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, casa que deveria ser um espaço de representação democrática, era um genocida de Estado.

Já o fato de essa mesma câmara de vereadores ter sido permanentemente alvo dos protestos dos movimentos de 2013 está intimamente ligado a primeira das questões levantadas ainda no início do movimento, qual seja, a da mobilidade urbana. Este problema, antigo no Rio de Janeiro, que é dominado por um cartel de empresas de ônibus, está, por sua vez, numa relação muito próxima a maneira como o espaço urbano, com sua distribuição social e biopolítica, se organiza em nossa cidade. Naquele momento, apesar da diversificação das reivindicações dos movimentos espalhados pelo Brasil, levantou-se de forma decisiva o questionamento da maneira como os grandes eventos levaram o Estado a intervir nas cidades sem qualquer debate com as comunidades e com seus cidadãos. Não apenas no Rio de Janeiro, mas em diversas cidades brasileiras, o que se viu foi uma política de gentrificação que, no limite, chegou a violentos processos de remoções, num contexto em que o espaço urbano era entregue à iniciativa privada e era tratado tão e somente como um espaço de produção de lucro e mais-valia.

Porém, como sabemos, inicialmente o movimento começou por conta de um aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus na cidade de São Paulo, o que levou o Movimento do Passe Livre (MPL) a convocar uma manifestação que foi violentamente reprimida pela Polícia Militar (PM) paulista. A indignação com a repressão e a solidariedade com a pauta do movimento provocou uma nova manifestação muito mais numerosa em São Paulo, bem como em outras cidades do Brasil. Daí em diante muitas novas questões foram somadas à pauta dos transportes (não é só por vinte centavos!) e as manifestações apresentaram um crescimento exponencial impressionante no país inteiro.

No caso do Rio de Janeiro, uma parte do movimento insistiu nessa questão, questionando o cartel que controla o transporte de ônibus da cidade e cobrando a instauração de uma CPI na câmara de vereadores para investigar as relações desse cartel com o poder público. A CPI foi inicialmente rejeitada, o que provocou forte reação: é exatamente nesse momento que ocorre a manifestação à qual nos referimos. Em seguida, sob a pressão das ruas, os vereadores que recusaram a CPI mudam de estratégia e instalam a comissão, mas controlando as suas decisões. Nesse momento inclusive, isto é, já um pouco depois de ter sido feita a intervenção na tela do coronel Moreira César chegou a haver uma ocupação do plenário da câmara, que foi desfeita depois de alguns dias por ordem de uma decisão judicial.

O que queremos sugerir e analisar aqui é que a intervenção estético-política promovida pelos manifestantes tem um efeito de arte maior do que a própria pintura que sofreu a intervenção, embora esse efeito não pudesse acontecer sem que para ele contribuísse o conteúdo da tela e o lugar que ela ocupava. E, é claro, sabemos que, ao concluir este texto, deveremos ter esclarecido com mais precisão, em primeiro lugar, o que vem a ser um efeito de arte e, em segundo lugar, que a expressão estético-política, que usamos para identificar a ação - ou a intervenção - que escolhemos pensar aqui, é, de certa forma, redundante.

Contudo, antes de avançar, cabe contar mais uma pequena história; na verdade a história de um fato que não houve. Tocados que estávamos pela ação dos ativistas na câmara do Rio de Janeiro, pensamos, meio provocativamente e ainda sem certeza da pertinência de nossa ideia, em sugerir para alguns artistas se posicionarem publicamente pela manutenção da tela no hall da câmara tal como ela havia ficado depois da intervenção, ou seja, com os chifres desenhados na testa do coronel de passado pleno de atos covardes e sanguinários. Indagamos assim alguns artistas renomados sobre o que eles achavam daquilo que, pelas nossas próprias dúvidas, não era nem ainda uma proposta. Eles resistiram imediatamente e argumentaram o quanto seria problemático defender a destruição de uma obra de arte, ainda que alguns concordassem com a dimensão artística daquela intervenção face à mediocridade da obra alterada. Guardemos, pois, esses fatos.

Ethos e Socius: uma operação estética

O problema que colocamos no item anterior talvez já tenha oferecido pistas sobre o que pensamos a respeito do campo que, de uma forma mais ou menos genérica, pode ser definido como o da arte contemporânea. De fato, não estamos no campo da autonomia da obra de arte nem do gênio artístico, ainda que, no período que vai de Kant, passando pelo Romantismo Alemão, e chegando até a Teoria Crítica de Adorno, esses conceitos tenham sido definidos e redefinidos de diversas formas. Evidentemente não ignoramos a força criadora e o ineditismo das experiências estéticas que o projeto de autonomia da obra de arte, como uma espécie de delírio criativo, liberou. É o que vemos, por exemplo, quando o objeto artístico foi definido como um ser sensível particular - notadamente a pintura e a escultura nas artes plásticas -, numa espécie de restrição e limitação que levou à exploração dessas formas de expressão artísticas ao limite, nos abrindo uma série de experiências sensíveis e revelando uma série de possibilidades estéticas: "[...] tornando visíveis as forças invisíveis" como bem definiu Paul Klee (Deleuze; Guattari, 1980, p. 422). Na verdade, em certas definições a obra de arte autônoma não era de jeito algum sinônimo de uma arte pura e apolítica, como o próprio Adorno ressaltava; ao contrário, para ele era preciso que a forma de expressão artística guardasse as suas características para, desde o que lhe era próprio, interviesse no mundo no melhor de suas possibilidades (Rancière, 2007). Além disso, o próprio fato de se guardar um campo de produção distinto de uma organização produtiva toda voltada à produção de mercadorias, como fez no início o modernismo, teve a sua importância política, mesmo que por outros caminhos a arte então produzida tenha sido capturada nos esquemas de produção e acumulação de valor do capitalismo e do Estado organizado em função deste.

No entanto, é Marcel Duchamp, que já não queria mais ser chamado de artista, embora estivesse sempre a intervir e tensionar em ambientes de artistas e espaços institucionalizados da arte, quem vai falar de maneira enfática do caráter social da arte que ficara esquecido. Trata-se de uma fala na qual ele se referia especialmente à pintura, se opondo ao que chamava de uma dimensão retiniana, que predominara nesta desde o impressionismo e que, segundo ele, permanecia ainda no cubismo (Cabanne; Duchamp, 2002).

A invenção dos ready-made talvez seja a mais significativa operação estético-política de Duchamp. Trata-se de nos arrancar dos espaços delimitados das instituições artísticas para nos jogar no coração das relações sociais de produção, mesmo que no mais célebre dos ready-made, a Fonte (Fontaine), sejam estas relações que tentam invadir o espaço antes imaculado de uma exposição de arte. Como sabemos, Duchamp escolheu um produto de fabricação industrial, um mictório, mudou a sua posição, assinou-o com um pseudônimo (R Mutt) e o batizou de Fonte, dando-lhe uma nova expressividade e uma nova qualidade no ato mesmo dessa virada, e o enviou, sem se identificar, para o Salão da Sociedade dos Artistas Independentes (sociedade da qual fazia parte), onde foi recusado. O ready-made é, nesse sentido, muito mais um ato, uma ação, do que um objeto. Ele se expressa nessa espécie de intervenção em algo que se apresentava como um dado, isto é, um ser que teria supostamente uma essência e uma função social bem delimitada, provocando em primeiro lugar uma desterritorialização desse objeto, mas também do seu entorno: do conjunto de relações, do ethos e do socius, que lhe era supostamente próprio. É por isso que podemos chamá-lo, de forma meio redundante, de um ato-ready-made. Uma ação que, no caso da Fonte, se caracterizou por uma intervenção, uma desconstrução e uma desterritorialização do próprio espaço da exposição. Foi como se uma estranha força houvesse invadido aquele espaço, tal como a escola de samba Mangueira, que Hélio Oiticica tentou fazer desfilar pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), no ano de 1965, o que foi impedido pela direção da instituição. Nesse caso, no entanto, não estamos falando de algum objeto prosaico, mas de uma espécie de arte menor para as instituições artísticas. Fora da linhagem da história da arte, a escola de samba pareceu a Oiticica especialmente potente para demolir os limites daquela instituição. Guardadas as devidas diferenças, Oiticica é comparável a Duchamp porque percebe muito bem o quanto as delimitações da obra e do objeto artístico deixam uma série de possibilidades estéticas do lado de fora. A escola de samba era o que já resistia, uma vez que produzia um poderoso efeito de arte, aos lugares pré-determinados das relações sociais de produção. O samba era arte de quem não deveria, para o status quo, fazer arte. Mas há ainda um terceiro aspecto: além de redefinir o objeto e o espaço, Duchamp redefiniu aí a própria arte, colocando entre os objetos que respeitariam os pressupostos do que deveria ser considerado arte um objeto prosaico, isto é, aparentemente uma peça banal do mundo dos produtos industriais e da mercadoria. No movimento mesmo no qual o mictório vira, de certa forma, arte (ainda que Duchamp não quisesse mais ser chamado de artista e que estivesse rejeitando o objeto artístico), o espaço institucional onde ele deveria ser apresentado (e foi recusado) começou a ser implodido. É exatamente aí que, para nós, está o ato que chamamos de jogar a arte de volta ao mundo: um ato que foi radicalizado por outras experiências dadaístas e por iniciativas que, algumas décadas depois, retomaram esse tipo de ação.

Duchamp jogara a arte de volta ao mundo onde ela, de fato, nunca tinha deixado de estar. Não apenas porque, mesmo em pleno alto modernismo, e até entre alguns dos movimentos que o antecederam, fizeram parte ou conviveram com ele movimentos em que a separação entre produção industrial e produção artística não era tomada como um pressuposto, como o Arts and Crafts ou a Bauhaus (Rancière, 2010), mas sobretudo porque o mundo sempre fora, ou até mesmo só poderia existir, como efeito de arte. Mas aqui precisamos ter cuidado para não voltarmos ao ponto do qual queríamos sair, isto é, se chegarmos a algum tipo de definição que coloca a arte em algum lugar fundador vamos acabar nos aproximando inadvertidamente de certos pressupostos do romantismo alemão que foram decisivos para algumas definições de autonomia da arte quebradas pelas experiências artísticas que nos interessam. O movimento que nos interessa, portanto, é o de ir em direção ao que, na vida, é inexoravelmente estético sem que isso seja a afirmação de qualquer tipo de transcendência, ou seja, não estamos aqui a colocar a Arte (assim, solenemente, com letra maiúscula) no lugar transcendente, semelhante ao qual o racionalismo ocidental colocara a Razão que se opunha ao corpo e aos sentidos tomados como instâncias epistemologicamente enganosas e moralmente desprezíveis. Não estamos, portanto, a exaltar nenhum tipo humano especial, seja ele Filósofo, seja ele Artista, este último tal qual o suposto gênio artístico do romantismo alemão que teria o dom natural de fazer a mediação entre o finito e o infinito1 (Bornheim, 2005), tomando o lugar que antes fora designado aos filósofos, ainda que, paradoxalmente, tenham sido os filósofos a criar esse personagem conceitual do gênio.

O nosso movimento aqui, portanto, é em direção à imanência. Se arte ou estética são palavras que ainda nos interessam, é porque estamos ao mesmo tempo além e aquém de qualquer autonomia das obras e dos objetos artísticos e de qualquer distinção especial de homens que deveriam ser considerados artistas. A estética está para nós como uma condição na qual nos encontramos lançados, uma vez que nos constituímos a partir de nossos corpos e das relações que ele estabelece com os outros corpos. Porém, mais do que isso, antes dessa centralidade um tanto antropocêntrica que faz com que organizemos um mundo para nós e em torno de nós - nós homens -, há uma espécie de corpo por trás dos nossos corpos, uma matéria que ainda não ganhou forma e que fará parte da própria organização dos corpos, das relações que eles estabelecem entre si, do socius e do ethos que eles criaram para si.

Chama-nos a atenção, pois, o modo como Deleuze e Guattari se apropriam do conceito duchampiano de ready-made. Essa virada que o dadaísta operou sobre o mictório, requalificando-o, é tomada por eles como uma ação decisiva não só para a formação do que chamam de um bloco de sensações, que é como, de uma forma geral, eles definem a arte, mas também para a constituição de um ritornelo, compreendido como um território: o ethos, ao qual já nos referimos. É a matéria que aí é qualificada - ou requalificada - e ganha uma expressividade. Desse modo, o ready-made de Duchamp tomado como um ato é, como ele mesmo definia, algo que diz respeito a toda experiência artística, e não àquelas que acontecem apenas no campo da arte contemporânea. Por exemplo, para que se faça uma pintura, o pintor precisa adquirir seu tubo ou sua lata de tinta. Mas a tinta é, de uma forma geral, uma matéria de uso prosaico: pintamos as nossas casas, os nossos carros, as nossas roupas. O pintor opera, no entanto, uma virada na tinta, requalificando-a e transformando-a em matéria de expressão, para que possa fazer a sua pintura. Sendo assim, a tinta de um pintor é o seu ready-made, ou melhor, ao arrancar as tintas de suas funções prosaicas mais ou menos previsíveis, o pintor faz o seu ato-ready-made.

Para Deleuze e Guattari (1991), o ready-made estabelece um novo campo de forças, instaurando um novo território. Para eles, então, não é a carne2 (Furlan, 2011), como quis uma certa fenomenologia, mas, sim, esta casa - este ethos -, que é decisiva para que se constitua a experiência da sensação. A organização de um território, a partir de uma espécie de coleta das forças que estão no cosmos, sejam amorfas, sejam com formas que serão redefinidas (como fez Duchamp na Fonte) é, para Deleuze e Guattari, a criação de um efeito de arte, ao mesmo tempo em que se está se constituindo esta espécie de mundo: um mundo que criamos para nós. O ethos se forma então numa operação artística que, antes de ser descrita nos homens, é descrita pelos autores entre os próprios animais. A arte estaria assim num animal que faz para si uma marca, um estandarte ou uma bandeira: um signo territorial (Deleuze; Guattari, 1980). Por isso que será levantada a hipótese de que, entre nós, seria a arquitetura a primeira das artes (Deleuze; Guattari, 1991). Mas seria importante que perguntássemos aqui até que ponto podemos identificar o ethos com o socius, como fizemos há pouco. De fato, de alguma forma, o socius é como um território, um mundo que organizamos para nós, ele é, de certo modo, a nossa casa. E, já que todo este debate teórico está relacionado a uma intervenção estético-político que acontece em meio a uma luta política da cidade, a própria cidade pode ser identificada a este ethos, sendo ela também um bloco de sensações e, ainda, insistindo nesta lógica, a cidade é ela mesma um efeito de arte.

Todavia, quando Deleuze e Guattari falam da constituição do socius, este aparece de uma maneira um pouco distinta da que fizemos acima, permanecendo, no entanto, como uma operação eminentemente estética, isto é, uma operação que diz respeito aos corpos. Ambos os autores fazem uma leitura do segundo ensaio da Genealogia da Moral, de Nietzsche3 (Deleuze; Guattari, 1972, p. 225), que, teria descrito, como um etnólogo, o processo de formação do socius da maneira mais aguda que jamais fora feita na história da filosofia.

A operação estética que constitui o socius, para Nietzsche, se articula com a constituição de uma moral que, por sua vez, se articula com a criação de uma memória que vai exercer a função de uma consciência. Trata-se de um processo de marcação, de inscrição sobre os corpos, que funciona como um registro que os condiciona, uma vez que codifica a produção desejante (conceito de Deleuze e Guattari) que caracteriza os corpos. Tal processo era chamado por Nietzsche de internalização dos instintos, usando ora o termo instinct, ora a trieb, esta última palavra usada pouco mais tarde por Freud e traduzida de sua obra predominantemente por pulsão. Para Deleuze e Guattari (1972), essa internalização dos instintos acontece graças à codificação dos fluxos do desejo que, ao marcar os corpos, contém nele uma série de potências e possibilidades produtivas, direcionando-os e potencializando-os para funções sociais bem delimitadas. Esse processo de determinação das funções sociais, que Marx chamava de distribuição é, a partir de Nietzsche, um processo que se dá em virtude da operação de inscrição dos corpos, que nos prende a um sentido, a uma ordem de causalidades, posto que a nossa ação fica condicionada por uma dívida, ou seja, fica presa a uma memória, a uma consciência que se criou da codificação de nossos fluxos desejantes. Assim, ao contrário do que boa parte da etnologia pretendeu para Nietzsche - e isso é decisivo para o pensamento político de Deleuze e Guattari -, o socius não se forma com vistas às trocas sociais, mas a uma dívida. É essa dívida que assumirá formas distintas nos diferentes modos de organização social, que vai determinar o modo como serão as relações e as trocas sociais.

Temos, a princípio, a impressão de estarmos diante de duas estéticas distintas. A primeira, que constitui um território, um ethos, a partir da apropriação de matérias e, portanto, de corpos, que se tornam matérias de expressão, mesmo que estas não sejam necessariamente matérias-primas e que tenham expressividades anteriores transformadas, como nos ready-made. Ou seja, esta primeira foi descrita do ponto de vista de uma repotencialização criativa, de uma criação, de uma inventividade: efeito de arte criado a partir da seleção e reorganização das forças do cosmos (ou caosmos, como dizia Guattari) para criar este território: um ethos que funciona como um bloco de sensações. Já a segunda, apesar de uma descrição que nos apresenta um processo que também é evidentemente estético, parece dar conta de algo que se caracteriza muito mais por incidir sobre o corpo de forma dolorosa, violenta mesmo, para contê-lo e separá-lo do que ele pode (e Nietzsche relaciona inclusive uma série de processos de castigos), do que outra coisa. No entanto, tanto qualificar e dar expressividade a um corpo é potencializá-lo, produzi-lo como produtor, criá-lo, enquanto o afasta de algumas potências, quanto marcar um corpo, codificá-lo, implica também em potencializar a sua força produtiva numa determinada direção. Assim, ethos e socius se constituem numa operação de balanceamento entre produção e improdução: potência e impotência.

A Cidade Produtiva, Política: estética

Tomemos então a cidade ao mesmo tempo como um socius e como um ethos, consideremos que o processo de formação de uma cidade é, nesse sentido, tão estético quanto político, posto que tudo o que dissemos até aqui nos permite considerar que uma operação ética e política é invariavelmente uma operação estética. Ou seja, não trabalhamos de acordo com uma determinada leitura da Escola de Frankfurt, que descreve a estetização da política como algo negativo. Achamos, ao contrário, que, se a política, tomada como a própria organização do socius (e, portanto, a organização da produção) é invariavelmente estética, há um combate estético, como combate político, a ser travado. A falta de atenção de grande parte do ativismo político a esse fato leva este não somente a uma série de derrotas políticas, mas também ao esvaziamento de sua potência de transformação política na medida em que fica preso a uma certa monofonia, ou seja, uma prisão a regimes de signos majoritários, em geral determinados pela lógica da relação significado/significante, isto é, uma crença absoluta da palavra como uma espécie de signo superior: um logocentrismo extremo.

Política e cidade, como sabemos, se confundem. Não é nossa intenção fazer aqui uma genealogia da política logocêntrica que triunfou no Ocidente, ou melhor, da política aparentemente logocêntrica hegemônica, mesmo porque os poderes constituídos sabem muito bem, esotericamente, como usar de diversas semióticas e, assim de diversas estéticas, mas não podemos deixar de lembrar de episódios como aqueles que Jacques Rancière precisou citar para falar da sua partilha do sensível. Estamos nos referindo tanto à famosa expulsão dos artistas, e notadamente dos poetas, da República imaginada por Platão, quanto da lei que vigorou durante muito tempo na polis grega antiga, determinando que ao artesão não era dada a atividade política. Tanto temor para com a figura do artista, tentando deslegitimá-la, nos parece por si só uma clara prova do quanto a atividade deste já era percebida como eminentemente política, ou seja, os gregos sabiam muito bem tanto da dimensão estética da política quanto da dimensão política das artes.

A cidade, portanto, é uma questão decisiva para nós. Nessa impressionante liberação de fluxos produtivos que caracterizam o capitalismo, mas, também, na reversão desses fluxos, típica dessa forma de relação social da produção, isto é, na maneira implacável como o capitalismo captura, esvazia qualitativamente e reduz a produção à forma-mercadoria, a cidade emerge como o grande cenário dessa disputa. É preciso considerar, portanto, que a cidade, como ressalta Antonio Negri, se torna o grande espaço contemporâneo da produção capitalista, substituindo uma produção que era concentrada no chão da fábrica (Negri, 2010, p. 201). Mas é por isso que é a cidade também o grande espaço das principais lutas sociais contemporâneas. Henri Lefebvre já percebera bem tal realidade quando, pelo significativo e potente ensaio O Direito à Cidade (Lefebvre, 2001), coloca a cidade e o urbano como palcos centrais dos embates das diferentes narrativas políticas e estéticas.

A importância de Lefebvre se dá quando este desenvolve um estudo sobre a Comuna de Paris, publicado em 1962, criando por sua vez conflito junto à ortodoxia do Partido Comunista Francês (PCF), justamente por ter sido inspirado, até certo ponto, com as teses do Movimento Situacionista4. De forma tradicional, o PCF entendia que a força de vanguarda para a transformação revolucionária era o proletariado fabril, e não os trabalhadores urbanos, já que estes eram tipos diferentes de formação de classe: fragmentado e dividido, múltiplo em suas aspirações e necessidades, em geral itinerantes, bem mais desorganizados e fluidos.

Pois bem, atualmente a cidade se configura muito além de uma das formas de expressões de produção social. Mesmo podendo ainda se caracterizar como projeções de realidade da sociedade sobre um território geográfico "[...] ao mesmo tempo o local e o meio, o teatro e a arena dessas interações complexas" (Lefebvre, 2001, p. 58), promove transformações da vida cotidiana que modificam a realidade urbana de maneira radical. "A cidade é obra a ser associada mais com a obra de arte do que com o simples produto material" (Lefebvre, 2001, p. 52), isto é, uma mediação entre mediações, entre pessoas e agrupamentos sociais que realizam essa obra em condições históricas, que produzem a cidade por meio das interações conjuncional - conflituosas ou não - das relações sociais.

É com o surgimento das indústrias, diz Lefebvre, que as cidades passam por profundas transformações morfológicas. A instalação das fábricas, em função da busca de mão de obra, capitais e do próprio mercado, junto aos processos de industrialização nas proximidades das cidades foram agentes de implosão do conteúdo político e comercial de outrora, esvaziando aquela potência. Em consequência, por toda a efervescência do cotidiano pelas relações fabris decorre a explosão de periferias e fileiras marginalizadas pelas cidades. Desse duplo processo de implosão-explosão, estabeleceu-se, assim, a generalização das relações baseadas no valor de troca em relação ao valor de uso, tendo, como efeitos, a substituição da obra (produção) pelo produto (mercadoria). Das contradições provocadas pelo processo de industrialização, surge uma nova realidade: a urbana.

O urbanismo, para Lefebvre, se torna prática social; "[...] transborda das técnicas e aplicações parciais (regulamentação e administração do espaço construído), que diz respeito e que interessa ao conjunto da sociedade" (Lefebvre, 2001, p. 39). Na problemática da cidade, o urbanismo é doutrina (ideologia) que "[...] nasceu como superestrutura de uma sociedade em cujas estruturas entrava um certo tipo de cidade" (Lefebvre, 2001, p. 42). É interessante perceber que a forma-cidade que se inscreve a partir da superestrutura do modo de produção capitalista tem seu modelo positivista/liberal extrapolado através de dois aspectos do urbanismo: o mental e o social.

Mentalmente, ela implica uma teoria da racionalidade e da organização e cuja formulação pode ser datada por volta de 1910, quando de uma mutação da sociedade contemporânea (começo de uma crise profunda e de tentativas de resolver essa crise através de métodos de organização primeiro na escala da empresa, depois em escala global). Socialmente, é então a noção de espaço que passa para o primeiro plano, relegando para a penumbra o tempo e o devenir. O urbanismo como ideologia formula todos os problemas da sociedade em questões de espaço e transpõe para termos espaciais tudo que provém da história, da consciência (Lefebvre, 2001, p. 43).

A cidade passa a ter a habilidade, através do urbanismo, de ser concebida como um espaço normalizante, harmonioso; em contraponto, há a capacidade de discernimento na produção de espaços quaisquer, ou quais espaços devem ser harmoniosos e normais. "A cidade e o urbano não podem ser compreendidos sem as instituições oriundas das relações de classe e de propriedade" (Lefebvre, 2001, p. 53). A cidade e o urbano são projeções e práticas das relações entre a sociedade e o Estado; relações mesmas de conflitos e contradições com base na organização social hierarquizada, de continuidades despóticas em heranças das elites, ou por ascensão político-administrativa no interior do estado, ou talvez, mesmo que dificilmente seguindo o mantra da meritocracia. Mas na cidade - ela mesma construção e resultado de heterotopias - e no espaço urbano se operam também descontinuidades e irrupções: na vida cotidiana, no vivenciar/fazer a cidade, que se inscrevem modos de vida que descentralizam, que se irrompem em aspirações, desejos e vontades de reconstrução e reformulação da organização social, se apresentando, com alguma radicalidade, no contexto das ruas, praças, no urbano, de modo a interferir em processos políticos.

[...] delineia espaços sociais limítrofes de possibilidades onde 'algo diferente' é não apenas possível, mas fundamental para a definição de trajetórias revolucionárias. Esse 'algo diferente' não decorre necessariamente de um projeto consciente, mas simplesmente daquilo que as pessoas fazem, sentem, percebem e terminam por articular à medida que procuram significados para sua vida cotidiana (Harvey, 2014, p. 22).

Contudo, com a imersão da cidade do Rio de Janeiro no planejamento orientado para/pelo mercado, seguindo a cartilha neoliberal, com as políticas de revitalização de áreas degradadas, intensificadas com os megaeventos (Copa do Mundo e Olimpíadas), surge o fenômeno da gentrificação, expulsão de moradores, famílias inteiras das localidades das áreas ditas degradadas e seu entorno. A criação do modelo de Polícia Pacificado e suas unidades (UPPs) é um exemplo de controle de corpos e modos de vida que permanecem nas favelas e periferias da cidade e que, por conseguinte, precisam ser vigiados. Não à toa que a ampla maioria das UPPs são alocadas no alto dos morros, como uma torre de vigia de uma prisão, e que, a partir desse modelo de segurança, uma liberdade assistida é imposta à vida e às práticas políticas e estéticas nessas regiões.

Entretanto, a cidade é, por si mesma, arena de disputa; de foco de resistência e revoltas que irrompem e se inscrevem nas superfícies urbanas. Resistências heterogêneas, transversais, múltiplas que, antes de tudo, estabelecem a constituição de si como sujeitos sociais, em relação à organização de trabalho, das divisões sociais e da produção da cidade: os movimentos pelo direito à moradia, desde o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia; os movimentos pela democratização e tarifa zero nos transportes, o Movimento Passe Livre (MPL), os Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas, Movimento Mães de Maio, Movimento Moleque, Fórum Estadual de Juventudes (RJ); artistas: pichadores, performers, videoartistas, nas dimensões do urbano, das ruas; entre outros.

Parece-nos que os movimentos e as lutas pelo Direito à Cidade - essa força de trabalhadores urbanos, no contexto do capitalismo contemporâneo, são lugares de redefinição do poder. Tais redefinições passam, inclusive, por uma transformação que se impõe entre às tradicionais instituições de representação da luta política, mesmo - ou talvez especialmente - entre aquelas que assumem um discurso por reformas ou transformações sociais mais profundas. Aqui nos interessa frisar o quanto esse combate é estético e o quanto intervém numa concepção de cidade que fora concebida por uma burguesia que, cedo ou tarde, precisou pactuar politicamente com o proletariado concebido de maneira clássica. Nas instituições de representação política, eles teriam suas cadeiras, seus deputados engravatados, e frequentariam aqueles magníficos prédios participando e ajudando a fetichizar toda aquela ritualística. A própria noção, tão cara à esquerda, de consciência de classe, deslizou para uma moral do trabalho que sujeita o corpo, que impõe horários, que sujeita biopoliticamente a forma-empresa. No entanto, se o trabalho e a produção em geral se libera do chão da fábrica, se a própria circulação pela cidade já é imediatamente uma questão de produção, isso implica inevitavelmente em outras estéticas políticas, posto que já estamos diante de uma outra organização do socius: uma outra política. Assim, os palácios da representação, no sentido tanto literal quanto metafórico, passam a ser estranhos às novas relações sociais dadas, que podem ser novas, mas não são, por isso, menos relações capitalistas, e trazem consigo novas formas de poder e controle, bem como novas formas de produção de mais valia.

Quando dizemos que essa nova força de trabalho não pode ser definida no interior de uma relação dialética, queremos dizer que a relação que esta tem com o capital não é somente antagonista, ela está além do antagonismo, é alternativa, constitutiva de uma realidade social diferente. O antagonismo se apresenta sobre a forma de um poder constituinte que se revela alternativo às formas de poder existentes. A alternativa é a obra dos sujeitos independentes, isto é, constituem-se no plano da potência, e não somente no poder (Lazzarato; Negri, 2001, p. 36).

Não por acaso o movimento, e o ato específico ao qual nos referimos, precisou intervir nesses palácios e os ocuparam diversas vezes. Não por acaso essas mudanças na organização da produção, que são em si mesmo estéticas e políticas, geraram lutas políticas em novas formas: às estéticas das antigas passeatas de partidos e sindicatos se opõe novas formas de ocupar e performar na rua.

Pensando o Fato

Como e quando, em determinado esquema de ações, com sua coreografia e discursos previstos, se manifestaria de forma extravagante a condição estética que subjaz a condição humana - no que talvez seja uma dimensão pré-humana - sempre será uma surpresa irredutível a qualquer inventário de sentidos. A manifestação política da qual decorreu a invasão da câmara dos vereadores, e que dentre seus mais significativos rastros ficaram os chifres na fronte do contraexemplo de herói, o sanguinário coronel corta-gargantas, pode ser considerada um exemplo de ação coletiva cujas operações obedeceriam a um roteiro a priori conhecido, inclusive no que diz respeito às reações aos sempre previstos golpes de repressão e violência policial. Contudo, dentro da dança, por menos pré-coreografada que seja, haverá uma outra dança desconhecida que enerva a dança visível e se manifestará nem sempre com eloquência, mas, muitas vezes será decisiva no acontecimento estético em andamento. Pensamos que o exemplo da dança, especificamente coletiva, é aqui o mais útil para retomarmos o movimento do enorme contingente de professoras na manifestação, acompanhada por milhares de apoiadores às suas reivindicações e protestos; em especial porque a forma das manifestações, diga-se semelhantes à maioria desse tipo de ação em todo o mundo, é conduzida por determinada movimentação, vibrar em determinada instauração sonora e misturar descontentamento e alegria de forma quase indiscernível. Notamos, no entanto, que sempre há, nesse tipo de ato, o contágio de uma força interior ao corpo coletivo que fulgura em intensidades imprevisíveis à superfície da manifestação. E, de fato, em muitas das ações e acontecimentos que vimos nas manifestações de 2013, esse aspecto transbordava de forma notável. Consistia, na verdade, de uma nova forma de performar no ativismo político, com uma estética distinta, que nos apontava para uma política fora do campo delimitado da política como ela tem sido, ou seja, os repetitivos e moribundos rituais das formas estabelecidas de representação política que não só não conseguiam, como se organizavam para se voltar contra a expressividade social que vinha de fora dos palácios e dos poderes constituídos.

Tal qual uma dança clandestina que aqui e ali subverte a coreografia planejada, o que, para alguns analistas se trataria da manifestação da irracionalidade da multidão, nós preferimos caracterizar como uma libertação da imposição de um padrão disciplinar de comportamento graças à reintrodução do corpo coletivo. Corpo este que é a maior ameaça às operações capitalistas e seus recursos de controle e ordenação das quais as estruturas de representação política são especialmente exemplares. Sem nos estendermos na digressão, convém lembrar que o sucesso do capitalismo depende da agudização do individualismo, portanto, o corpo coletivo que amalgama socius e ethos é o que deve ser evitado e reprimido, em qualquer medida, quando manifesto. Nada é mais ameaçador, evidentemente, que o rompimento com a razão sintonizada no indivíduo e a criação de um outro corpo deflagrado em potências estéticas jamais previsíveis, e absolutamente surdo às admoestações e comandos gerados na frequência do indivíduo. Aspecto notavelmente fascinante das manifestações coletivas de protesto público é a recuperação do corpo fragmentado e a consequente expressão da sua inexorável condição estética basal. O recalcado corpo tribal (Maffesoli, 2006), quando exortado a se manifestar, ergue-se nômade e ingovernável, subvertendo as próprias lógicas do planejamento político geradas e justificadas no plano racional. Julgamos importante pensar sobre o que subjaz a adesão à multidão além dos argumentos plausíveis e evidenciados. Em outros termos, trata-se de refletir sobre a força que atua clandestinamente junto com as motivações políticas no chamamento ao coletivo e na eventual invasão deste ou daquele espaço, ou seja, a força que subjaz à toda transgressão que venha a se dar quando se recupera a participação irredutivelmente física em um corpo incarnado e gigantescamente maior que a ordenação racional individual decorrente de uma ou outra exposição de motivos. O indivíduo, diluído na nervura da multidão insurgente, irá lidar com novas possibilidades de experiência estética e de consequente criação na ordem da poética. As mãos que grafitaram os chifres, antes do indivíduo realizador do gesto, pertencem a um corpo gigante e desfronteirado, cuja plasticidade corpórea é tão ilimitada quanto à sua força criadora.

Observamos, então, que um dos rastros deixados pela multidão invasora é tão expressivo quanto enigmático. Por mais controversa que seja a denominação de obra de arte para a obra em questão, a intervenção que sofreu, em ato desautorizado, em meio à manifestação popular, gera certa reserva e perplexidade. Sobretudo no meio acadêmico dedicado à Arte, cultura e áreas afins.

Neste ponto poder ser interessante mencionar o que aconteceu na cidade de Vitória, Espírito Santo, durante os mesmos movimentos de 2013, a partir da narrativa de um grupo de pesquisas do curso de artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), denominado Plano Conjunto de Espacialidades - PLACE, que, não ficando restrito ao espaço acadêmico, atuou como um coletivo artístico de intervenção (Oliveira; Ribeiro; Lopes; Melo; Riguete, 2013)5. Como tantas outras capitais do Brasil, Vitória foi palco de dezenas de manifestações, muitas delas duramente reprimidas pela polícia, repressão a qual muitas vezes se seguiu a reação e a resistência dos manifestantes. Em um determinado momento, os manifestantes ocuparam a Assembleia Legislativa do Estado e usaram como barricada o quadro Ressurreição de Lázaro, do pintor Levino Fanzeres. Logo em seguida, numa manifestação que chegou até o Palácio Anchieta, conjunto arquitetônico que é sede do governo do Estado, também sob forte repressão policial, os manifestantes reagiram, decapitaram uma escultura, O menino e o Delfim, dos escultores Pedro e Fernando Gianordoli, além de danificarem a escada e algumas janelas do palácio. Já o resultado da repressão entre os manifestantes foi o de feridos com balas de borrachas, cassetetes, bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e gás de pimenta, além de 71 pessoas detidas ou presas.

Como reação a essas manifestações, o Sindicato dos Artistas Plásticos Profissionais do Espírito Santo promoveu o ato abraço contra o vandalismo, tendo o presidente dessa entidade declarado que, o mais machucado durante as manifestações teriam sido as artes plásticas (Oliveira; Ribeiro; Lopes; Melo; Riguete, 2013). Como reação a essa manifestação, alguns membros do grupo de pesquisas supracitado organizou a intervenção Re-ação: abraço, carimbando a palavra patrimônio no corpo - mais especificamente nos braços, como se estes pudessem funcionar como escudos -, de artistas, ativistas e manifestantes em geral. Tal ação fazia claramente alusão à comoção do sindicato dos artistas locais, em coro com a maior corporação de comunicação do estado (TV Gazeta, afiliada da Rede Globo) e os poderes constituídos em geral, com os danos, ou supostos danos, ao patrimônio cultural durante as manifestações.

Evidencia-se o quanto a noção hegemônica de patrimônio cultural e público se mantém tributária aos valores burgueses que refletem a naturalização da imposição de sua estética e gosto, por menos sustentáveis que venham se tornando e a despeito da circulação dos estudos utilizados ao longo deste texto para explicitar como o projeto urbano e sua agenda implicam nas relações dos seus habitantes com seus espaços físicos e simbólicos. Em meio aos valores de sustentação do programa burguês da cidade, naturalizados ao longo do tempo, está a ideia de que valores caros a determinado grupo dominante serão reconhecidos e preservados por toda a população que vive ou sobrevive na cidade. Assim se dá com toda a sorte de exploração predatória dos espaços públicos pelos governos, comumente aliados aos interesses privados. Uma fé postulada aos valores estéticos de uma cidade eternamente renovada ao sabor de eventos de fachada e possibilidades de lucrativos peculatos. Entretanto, as lógicas dos desprezados no processo programado da cidade enguiçam o seu maquinário a cada manifestação das suas imagens e reverberação de suas sonoridades. Estas, a despeito de serem continuamente apagadas, editadas, capturadas ou silenciadas pelo governo da cidade, se reativam em qualquer oportunidade. Pichações na epiderme urbana se somam às performances dos moradores de rua, contaminam as multidões quando em protesto e ferem, aqui e ali, a elegância vigarista da cidade escravizada aos eventos. Num tempo atravessado pelo incomensurável assédio das imagens visuais, os rastros deixados pelas multidões ou por seus indivíduos, seja na exterioridade das ruas ou na interioridade dos prédios públicos, seja na oportunidade anônima dos banheiros, ou na conquista ousada de uma pintura antiga em espaço nobre, como as galerias e salões da câmara dos vereadores, oferecem pistas elucidativas da potência estética que supera todas as normatizações do pretensioso meio comercial e político das artes, assim como impõem redimensionar as obras da arte contemporânea outorgada. Afinal, o coronel assassino resistiu ao tempo pela mesma mecânica ideológica e pelos mesmos regimes de verdade que sustentam a relação infame entre certa concepção de arte e o mercado. Portanto, os chifres deixados na fronte da imagem do militar assassino, mais que demonizar derrisoriamente o personagem quase anonimado pelo tempo, sinaliza, em primeiro lugar, a impossibilidade de estabilização do poder sobre a cidade, mas deixa também evidente que a vitória da multidão em protesto não se mensura pelos ganhos oficialmente conquistados, e sim pelo acontecimento de estar junto na reordenação dos espaços e valores da arte e da cidade, e de uma na outra, mesmo que aparentemente provisório.

Assim, a situação exposta pela ação dos manifestantes sobre a pintura configura um cenário, um estado de coisas que é como quase que caricatamente violento, e aí já temos um exemplo de efeito de arte. No prédio de um parlamento municipal, espaço que deveria ser público, lugar da representação política da cidade, os enunciados de poder que usualmente se produzem da operação semiótica de erguer palácios cheios de arte - afrescos, pinturas, esculturas, grades, vidros -, numa engenhosa administração e captura dos igualmente engenhosos fluxos criativos que assim viram mais valia do Estado, acabam por escancarar a violência sanguinária desse Estado na extremidade periférica do capitalismo. Mesmo que hoje seja difícil tomar como referência, todo o tempo, a velha divisão do capitalismo entre centro e periferia, é exatamente o que há de histórico e de patrimônio nesse prédio que libera o horror de um passado que insiste em nos marcar fisicamente e que, aliás, nos segue assim marcando pela violência cotidiana, seja macro, seja micropolítica, exercidas por dispositivos de Estado e/ou proto e paraestatais. De fato, de forma muitas vezes diferente - mas não sempre - ao que ocorre nos países capitalistas do norte, que garantem a produção de mais valia a partir de uma profusão de fluxos produtivos que chegam a gerar uma verdadeira inflação estética, por aqui, muitas vezes, fomos vítimas das piores violências para que fossem impedidos muitos destes fluxos produtivos/criativos, e assim apenas alguns perdurassem. É verdade que hoje não se pode falar que exista no Brasil um número reduzido de fluxos produtivos, como no período que antecedeu a nossa industrialização, porém, de alguma forma, continua a haver uma notável violência contra uma série de movimentos de produção subjetiva e objetiva que se dão por fora das oligarquias que insistem em não perder o controle político e econômico. Nos países centrais do capitalismo, essa profusão criativa/produtiva se manifestou de forma exemplar nas chamadas belas artes. Paradigma e expressão da intensificação da produção social ao limite, ou seja, da descodificação e da liberação de fluxos do desejo que singularizam o socius capitalista em relação aos que os antecederam, as belas artes foram objeto de uma estocagem ao mesmo tempo material e libidinal: ato seminal do Estado que constituiu dessa forma uma espécie de mais valia semiótica - mais valia de código - de si mesmo. São construídas, assim, essas espécies de orgulhos jactantes da burguesia e de seu povo numa engenhosa construção semiótica dos símbolos identitários do povo do Estado em suas cidades e palácios. E, como sabemos desde Hobbes, o povo se constitui quando os sujeitos abrem mão de suas singularidades em nome de uma instância transcendente: o Estado, a soberania. No entanto, tal condição parece sofrer, num país como o Brasil, e talvez em alguns dos nossos vizinhos, um tipo de exaustão, uma espécie de fracasso que, paradoxal e tragicamente (no mais alegre sentido do termo), pode até nos ser liberador, ou pelo menos revelador de algo.

Não nos resta dúvida que algo de patético já estava incrustado no quadro do coronel antes mesmo de lhe riscarem o chifre. A princípio, poderíamos considerar que, como em qualquer capital ou qualquer cidade de um país ocidental moderno, o prédio da câmara dos vereadores do Rio de Janeiro se ergueu em busca de uma equação usual da modernidade, qual seja, prédio público (ou seria apenas palácio do Estado/poder?) é igual a patrimônio artístico-cultural. No entanto, a tão supostamente valiosa, histórica e culturalmente, pintura, uma vez instalada no coração do palácio, acabou por revelar algo que talvez horrorizasse, mesmo que hipocritamente, até os bons modos - a boa cultura e a boa educação - dos que obraram essa espécie de teologização da arte como parte da sacralização e reificação do poder6 (Benjamin, 1994). Isso porque a personalidade, a figura histórica que se escolheu pintar, retratar e exibir nas paredes da casa legislativa municipal era (é) a de um coronel responsável pessoalmente por comandar o massacre de duas rebeliões populares, passando por cima de qualquer lei, de qualquer princípio de direito democrático mais elementar, ordenando e cometendo com as próprias mãos torturas e execuções cruéis contra os revoltosos. Provavelmente sem saber a história da figura retratada, a ação dos ativistas políticos, ao riscar o chifre na fronte do militar, desconstruiu ao mesmo tempo a operação semiótica que, no Brasil, é semelhante a todas as nações modernas, construindo a já mencionada relação entre poder (e, particularmente, as sedes-símbolos do poder) e patrimônio cultural/arte; mas também o fracasso dessa operação, que já estava no fato mesmo de um genocida de Estado, um assassino sanguinário, ter sido o escolhido para ser exibido no que deveria ser a sede da representação democrática. É nesse sentido que vemos um elemento trágico através do qual, como é típico do trágico, de uma força violenta e destruidora, pode se liberar uma potência de liberdade: de inventividade e recriação social.

O chifre, nesse sentido, foi uma espécie de ready-made produzido pelos manifestantes. Como no mictório de Duchamp, que deveria ser instalado numa exposição, foi recusado, mas mesmo assim acabou por lograr uma intervenção nesse espaço institucional de arte. O risco no retrato do coronel, pintado pelo pintor italiano, revelou como determinado ethos se organizava como um clichê: um esquema sensório-motor fechado, uma amarra de sensações e signos pré-definidos e bem determinados. É o que vemos na monumentalidade do prédio, no vocabulário repetitivo e fechado em si mesmo da retórica política dos mecanismos de representação e no modo como ambos compõem a estrutura estética, incluindo aspectos semióticos, dos rituais das instâncias em que o poder político, como em antigos rituais de magia, faz aparecer as suas decisões - as suas verdades e as suas sentenças - no final do rito.

Não resta a menor dúvida que um palácio de artes, como um prédio do poder, ou um patrimônio cultural como sede do Estado, produzem já, por si só, um efeito de arte. E aqui sabemos muito bem da potência e da liberdade criadora necessárias para a existência de tudo isso. Potência e liberdade que estão nas distintas formas de expressão artísticas ali reunidas, mesmo as mais autonomizadas. De fato, mesmo a pintura modernista muita distinta do retrato de uma personalidade histórica, mesmo esculturas como as de Rodin ou Brancusi, que não foram feitas para estarem nesses palácios, e até mesmo a escultura no campo ampliado e as instalações da arte contemporânea foram, muitas delas, enfeitar essas belas, monumentais, quando não esplendorosas, casas do poder. E é de forma proposital que exageramos nos adjetivos que exaltam todo esse patrimônio, quer dizer, a experiência da inventividade que está em tudo isso foi tantas vezes experimentada por nós: por cada um de nós que, em conjunto, escreve este texto.

São, pois, as reflexões de Michel Foucault que inevitavelmente nos ocorrem, a saber, a perspicácia com a qual ele entreviu que as diversas formas de poder não poderiam resistir muito tempo se não fossem capazes de produzir ou de proporcionar as mais diversas formas de prazer. De fato, o Estado intimida não só pelo horror, mas pelas sublimes sensações que é capaz de proporcionar e que, em especial na relação de produção capitalista, passa por uma gestão, por uma captura, pela mencionada estocagem da produção artística, mas também por um fomento desta; o que pode inclusive gerar perigosas e bem-vindas linhas de fuga. Não por acaso, Deleuze comenta que a pintura religiosa, nas suas mais diversas buscas do corpo de Cristo, chegou a ser mais profana do que a pintura modernista pretendeu ser.

Pois bem, a intervenção artística, a ação estético-política dos ativistas que riscaram o chifre na fronte do Coronel Moreira César, o genocida Coronel Corta-Gargantas, foi a reversão do maravilhamento e do horror intimidatório: efeito de arte no sentido inverso ao proporcionado pelo palácio e pela pintura. Oportuna ação em meio a uma cidade cuja realidade dos grandes eventos faz com que os dispositivos de vigilância e segurança dos mais contemporâneos componham com as cada vez mais constantes ações violentas das autoridades policiais, em especial a Polícia Militar, tão pouco civilizadas que parecem, inclusive, ter figuras como as do Coronel Moreira Cesar como inspiradoras.

A revelação de um genocida num espaço da representação, quer dizer, espaço para onde, teoricamente, deveria convergir a produção política e social da cidade, escancara, graças a uma intervenção artística, não só que os mecanismos contra a democracia nascem do coração mesmo da representação política, mas também que toda essa monumentalidade estética se projeta contra a cidade. É de fato curiosa e temerária a equação que assistimos no Rio de Janeiro: palácios de artes e de ciência se erguem, como o famigerado Museu do Amanhã, na Praça Mauá, não precisando nem mais constituírem sedes do Poder político para exercerem essa função de Estado. E, desse modo se projetam, numa espécie de arquitetura performática, sobre uma das regiões da cidade que foi mais violentamente gentrificada. Poucos anos antes, na mesma Praça Mauá, enquanto alguns artistas bebiam espumante com os mais altos governantes locais e nacionais, do lado de fora centenas de policiais, incluindo alguns batalhões de choque, impediam coletivos artísticos de realizarem suas intervenções: era a inauguração do Museu de Arte do Rio (MAR). Estamos diante da arte que não apenas ornamenta, mas também fundamenta o choque de ordem, parte do biopoder que separa corpos, higieniza, uma estética contra os pobres, os feios, os incultos, mesmo que a mal disfarçada compaixão católica de nossos intelectuais, supostamente esclarecidos, os apontem como vítimas da falta de investimento em educação. E o higienismo não é só uma operação molar, vindo do centro do Estado, mas é o que se dissemina de forma micropolítica em um fascismo de grupos, de milícias, de máfias proto e paraestatais. Não foi exatamente o Estado nem a PM, mas uma milícia local quem, recentemente, prendeu e torturou um grupo de grafiteiros numa região de comércio popular no centro do Rio de Janeiro.

Mas não há bota abaixo, não há vacina obrigatória, que derrote o vírus totalmente. Oiticica sabia muito bem o que estava fazendo quando tentou fazer a escola de samba entrar no MAM, em 1965. De forma semelhante, o compositor Tom Zé comparou, recentemente, as distorções do funk às inovações estéticas da bossa nova, profanando o que se tornou símbolo do bom gosto e da sofisticação da burguesia carioca e brasileira e sofrendo uma espécie de execração pública. Nesse caso, de uma forma ou de outra, foram intervenções em espaços de arte, que lembram Duchamp enviando a Fonte para o salão de artes. Porém, os grafiteiros e pichadores que retornaram na semana seguinte, dezenas deles, como re-ação contra as torturas sofridas pelos seus companheiros, pintando, pichando e grafitando vários prédios do centro da cidade, foram uma espécie de reversão desse higienismo: contralegado do grande evento que virou um outro legado a partir de um choque que nada tem a ver com ordem. Já na câmara de vereadores, o chifre foi removido, o quadro restaurado, o cartel dos transportes continua a controlar a cidade e quase todas as leis de urbanização e construção urbanas planejadas para a Copa do Mundo e as Olimpíadas foram aprovadas. Todavia, se a pintura, então riscada, ganhasse uma pequena placa que a indicasse como arte, talvez tivéssemos, com todas as contradições, também uma espécie de legado do contralegado. Em todo o caso, há um vírus, um zika vírus, que ronda a cidade higienizada, expressão tão material quanto simbólica de uma contraestética: um contraefeito de arte a ameaçar, agora, os corpos apolíneos, disciplinados, saudáveis, dos atletas que são esperados para a olimpíada.

Referências

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  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    Neste texto, especificamente quando se refere ao pensamento do filósofo romântico Friedrich Schlegel, Bornheim (2005, p. 93) escreve: "[...] o artista, o poeta, torna-se uma espécie de sacerdote para os homens, pois é ele quem melhor consegue comunicar o finito com o infinito".
  • 2
    Embora Merleau-Ponty pareça, em relação a Sartre, ter tomado uma posição que busca a imanência, negando o vazio e, consequentemente, a negatividade e colocando a carne nessa espécie de lugar ontológico que inaugura a percepção, ele segue, para Deleuze e Guattari, mantendo uma transcendência a fazer o seu trabalho de toupeira na imanência, quando afirma a diferença entre a carne do mundo e a carne das coisas.
  • 3
    Deleuze e Guattari fazem uma inquietante leitura do livro Genealogia da Moral, de Nietzsche, descrito por eles, no capítulo Bárbaros, Selvagens e Civilizados de Anti-Édipo, como "o grande livro de etnologia moderna" (Deleuze; Guattari, 1972, p. 225).
  • 4
    Grupo de intelectuais e artistas que fundaram a Internacional Situacionista defendendo uma visão revolucionária da arte e uma leitura completamente estética da política. Entre as suas lideranças o grupo contava com o pensador francês Guy Debord. Os Situacionistas tiveram um papel importante nos acontecimentos de maio de 1968, em Paris. De uma forma geral, eles defendiam, no lugar da promoção de formas tradicionais de luta, a criação de situações revolucionárias através de intervenções estético-artísticas, derivas, happenings, e outras estratégias que causassem algum choque (cartazes, pichações e palavras de ordem específicas). Os Situacionistas se caracterizavam também por um debate sobre a cidade capitalista, uma oposição ao urbanismo tal como ele se estruturara no modernismo, resultando daí uma série de ações e intervenções na cidade, das quais a deriva se tornou a mais conhecida.
  • 5
    As informações e uma reflexão mais aprofundada sobre o acontecimento, incluindo a ação/intervenção dos próprios artistas-pesquisadores do grupo de pesquisa estão neste texto. Já o grupo de pesquisa, que aqui foi também um coletivo de intervenção estético-política, se chama Plano Conjunto de Espacialidades - PLACE, linha de pesquisa A arte e o político (CAr/UFES).
  • 6
    Benjamin relaciona aqui o surgimento das teorias que defendem a arte pela arte como uma reação ao surgimento da primeira técnica de reprodução que seria, para ele, verdadeiramente revolucionária, qual seja, a fotografia. A arte teria pressentido aí o surgimento de uma crise, reagindo a essa ameaça com a criação do que seria, para Benjamin, uma teologia da arte, teologia que teria se desdobrado numa teologia negativa, rejeitando toda a função social da arte.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2016
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2016
  • Aceito
    24 Abr 2016
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