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Deslocamento Epistêmico e Estético do Teatro Decolonial

Resumo:

O artigo adota uma abordagem dialógica entre os estudos decoloniais e os estudos históricos e estéticos teatrais. Ele expõe o que a modernidade/colonialidade produz em termos de hegemonia não apenas epistêmica, mas também estética, e constata a incapacidade do teatro pós-moderno de retirar-se da matriz colonial do poder. O estudo de caso da peça Kay pacha, do dramaturgo e militante equatoriano Juan Francisco Moreno Montenegro, permite distinguir as características de uma obra decolonial, operando um deslocamento epistêmico e estético. Por fim, a abordagem empírica destaca o caráter eurocêntrico das ferramentas de análise dramática, inaptas para tratar obras decoloniais.

Palavras-chave:
Decolonial; Estética; Drama; Pós-dramático; Colonialidade

Résumé:

L’article adopte une approche dialogique entre les études décoloniales et les études historiques et esthétiques théâtrales. Il met en exergue ce que la modernité/colonialité produit en termes d’hégémonie non pas seulement épistémique, mais bien esthétique, et constate l’incapacité du théâtre postmoderne à sortir de la matrice coloniale du pouvoir. L’étude de cas de la pièce Kay pacha, du dramaturge et militant équatorien Juan Francisco Moreno Montenegro, permet de discerner les caractéristiques d’une œuvre décoloniale, procédant à un déplacement épistémico-esthétique. L’approche empirique souligne enfin le caractère eurocentré des outils d’analyse dramatique, qui manquent leur objet, quand celui-ci est décolonial.

Mots-clés:
Décolonial; Esthétique; Drame; Postdramatique; Colonialité

Abstract:

The article consists in crossing decolonial studies, history and aesthetics. I highlight how the Modernity/Coloniality dualism not only creates an epistemic hegemony but also an aesthetical domination, and I show the postmodern theater unability to untangle itself from the colonial roots of power. Through the analysis of Kay pacha - written by the equatorian activist and playwriter Juan Francisco Moreno Montenegro - I determine the defining features of a decolonial work. In doing so I carry out an epistemic and aesthetic. The kind of empirical approach stresses the european bias of the tools dramaturgical, which are useless to comprehend a decolonial piece of work.

Keywords:
Decolonial; Aesthetics; Drama; Postdramatic; Coloniliaty

Este artigo apresenta-se como uma proposta dialógica entre os estudos decoloniais, de um lado, e as teorias teatrais, de outro. Trata-se, mais particularmente, de colocar em diálogo o conceito de colonialidade do poder introduzido pela primeira vez neste debate por Aníbal Quijano, e retomado por Walter Mignolo e Enrique Dussel, e a teorização histórico-estética do teatro dramático e pós-dramático, conduzida entre outros por Peter Szondi e Hans-Thies Lehmann.

Esta abordagem dialógica tende a localizar estéticas teatrais em uma área cultural, geográfica e epistêmica, visando expor os corolários estéticos e teatrais da modernidade/colonialidade. A partir disso, trata-se de questionar-se sobre as possibilidades de deslocamentos epistêmicos e estéticos do teatro e sobre os modos de subtração política das estéticas modernas/coloniais, permitindo a emergência de obras decoloniais, ou seja, de obras que coloquem em questão a modernidade em sua versão monológica e monotópica. Por meio do estudo da peça Kay pacha, do militante e dramaturgo equatoriano Juan Francisco Moreno Montenegro, realizaremos uma abordagem empírica de uma estética decolonial.

Assim, o objetivo deste encontro entre estudos decoloniais e histórico-estéticos é quádruplo. Ele visa tornar inteligível a produção de estéticas pela modernidade/colonialidade e, assim, a reprodução pelo teatro da retórica moderna em sua versão eurocêntrica, ou seja, na dissimulação de sua localidade e de sua lógica opressiva, também chamada colonialidade do poder. Este encontro também tende a destacar o caráter eurocêntrico das obras pós-modernas, que, mesmo rompendo com os códigos estéticos da modernidade, permanecem na matriz colonial do poder. Finalmente, este encontro visa, talvez, completar ou ampliar o projeto decolonial, tal como teorizado por Walter Mignolo, para quem a base do decolonial é uma dissociação epistêmica, tanto teórica como prática. Trata-se de descentralizar, desuniversalizar e relocalizar as formas de viver, de pensar e de agir impostas por aqueles que se dão o direito de classificar para atender a seus interesses econômicos, políticos ou religiosos (Mignolo, 2015), descentralização que também atinge as formas artísticas, que são uma maneira particular de viver, de pensar e de agir. Algumas formas artísticas são hegemônicas e, poderíamos crer, impuseram-se de forma unilateral nas cenas teatrais mundiais, quer se trate do drama ou de sua fragmentação (e assim, paradoxalmente, sua modelização) pelo teatro pós-dramático. No entanto, outras formas teatrais existem, formas que não são nem dramáticas nem pós-dramáticas, e que dialogam com as formas hegemônicas. Essas formas apresentam-se como outras maneiras de fazer teatro, de apreender as estéticas, e mostram a localidade das formas dramáticas ou pós-dramáticas canonizadas e modelizadas. O estudo de caso nos permitirá avaliar essas formas teatrais decoloniais, bem como o caráter inadaptado de nossas ferramentas de análise, que são modernas e eurocêntricas e, desse modo, incapazes de tratar tal objeto.

A Colonialidade: a face necessária e oculta da modernidade

Primeiramente, é necessário estabelecer uma definição da modernidade. Na versão eurocêntrica, ela apresenta-se como a possibilidade histórica da emancipação do homem por meio da reflexibilidade e da racionalidade do sujeito. A tomada de consciência da possibilidade de o indivíduo emancipar-se do estado natural, das formas de heteronomia e de sua idiossincrasia, bem como o comprometimento de tornar essa emancipação efetiva no tempo histórico, são denominados progresso. Em sua definição histórico-filosófica eurocêntrica, a modernidade apresenta-se, a partir da Renascença, como uma redescoberta da Antiguidade e de sua forma racional e política. Essa Renascença, cujos limites cronológicos simbólicos são frequentemente identificados à tomada de Constantinopla ou à descoberta da América, caracteriza-se por um humanismo fortalecido pelos avanços científicos que racionalizaram os fenômenos naturais e deram acesso a verdades de ordem universal. Com a filosofia Iluminista, esse universalismo é secularizado e tanto o racionalismo quanto o espírito crítico são apresentados como as formas de emancipação das tutelas políticas tradicionais. Nesse contexto, o contrato político é percebido como o meio de realizar a aspiração natural do homem à liberdade. A modernidade aparece então como sinônimo do progresso, do racionalismo e da democracia, que são meios de levar à emancipação do homem e à liberação da sociedade. Em suma, a modernidade apresenta-se como um horizonte de felicidade.

No entanto, essa definição esconde o fato de que o relato é construído por homens que habitam corporalmente a modernidade, sendo constituídos por ela, e que são legitimados para realizar esse relato (Mignolo, 2015MIGNOLO, Walter. La Désobéissance Épistémique: rhétorique de la modernité, logique de la colonialité et grammaire de la décolonialité. Bruxelles: P.I.E Peter Lang, 2015.). Ou seja, na definição eurocêntrica, a modernidade oculta sua localidade. O relato eurocêntrico da modernidade valoriza sua retórica emancipadora, mas dissimula, ou nega, sua lógica opressiva. Ele não menciona o esclavagismo legitimado por uma lógica de substituibilidade da vida humana, por uma concessão de nível de humanidade. Jamais, em sua definição eurocêntrica, a lógica de substituibilidade da vida humana é formulada como uma lógica indissociável do progresso promovido pela modernidade.

Aníbal Quijano, por sua vez, concebe a modernidade como a instauração de um novo padrão global do poder, possibilitado por um processo histórico duplo. Trata-se, por um lado, da descoberta da América e de sua colonização, legitimada, segundo a visão dos colonizadores, por uma inferioridade dita biológica dos colonizados e, por outro lado, da “[...] articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial” (Quijano, 2000, p. 122)4 1 Nota do tradutor: na versão francesa traduzida do espanhol pela autora do artigo “[...] l’articulation de toutes les formes historiques du contrôle du travail, de ses ressources et de ses produits, autour du capital et du marché mondial”. . Em suma, a modernidade é definida, segundo Aníbal Quijano, como a expansão do capitalismo em escala mundial, tendo sua fonte na descoberta da América e na colonização (Quijano, 1992). Essa nova forma de economia estaria baseada sobre o conceito de diferença colonial (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter. Historias locales / diseños globales: colonialidad, conocimietos subalternos y pensamiento fronterizo. Madrid: Akal, 2003.), compreendida como a classificação hierárquica da população mundial em função das deficiências e dos excessos em relação aos critérios daqueles que se dão o direito de falar universalmente. Trata-se de conceder graus de humanidade à população mundial e estabelecer uma normalização da classificação racial dos seres. No entanto, aqueles que se deram o direito de classificar universalmente são os homens brancos, burgueses, cristãos e heterossexuais que realizaram uma colonização temporal dupla. Eles estabeleceram uma diferença temporal interna ao instituir a Idade Média, um tempo passado para modelar a Renascença como o tempo presente, e criaram uma diferença externa ao inventar os primitivos e os bárbaros, que estão não apenas em outro espaço, mas também em outro tempo, um tempo passado. É justamente essa colonização temporal que legitima a colonização espacial, a expansão do capitalismo sob uma forma internacional e o estabelecimento da Europa como o centro do mundo e da verdade, como área cultural mais avançada, mais civilizada. A retórica emancipadora da modernidade baseia-se na lógica de classificação racial denominada diferença colonial. Essa diferença colonial é produzida e reproduzida por uma matriz colonial do poder, nomeada colonialidade do poder (Quijano, 1992QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad- racionalidad. In: BONILLA, Heraclia (Dir.). Los Conquistadores. Bogota: Tercer Mundo, 1992. P. 437-447.). Essa matriz é o lugar epistêmico no qual o poder colonial se justifica. Assim, a colonialidade do poder deve ser compreendida como a face oculta, mas necessária, da modernidade. Uma precisão seja feita: a colonialidade é uma matriz que legitima e que justifica a colonização, mas não é o seu sinônimo. Assim, os processos de independência prejudicaram a colonização, mas a colonialidade do poder continuou intacta. Os territórios foram descolonizados, mas os imaginários não. É precisamente sobre tal distinção que repousa o projeto decolonial do conjunto modernidade/colonialidade. Em que consiste esse projeto?

O Projeto Decolonial: um deslocamento epistêmico e estético

Inicialmente, a teoria da independência pensa a relação entre o centro e as periferias a partir das esferas econômicas e políticas com o poder colonial. A partir dos anos 1970 surge a ideia de que o conhecimento é um instrumento da colonização (Quijano, 2000QUIJANO, Aníbal. Eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (Dir.). Colonialidad Del Saber Y Eurocentrismo . Buenos Aires: UNESCO-CLASCO , 2000. P. 122-151.) e que a descolonização não deve restringir-se às esferas estatais e econômicas, mas deve estender-se à filosofia e à epistemologia (Dussel, 1975DUSSEL, Enrique. Liberación Latinoamericana y Emmanuel Levinas. Buenos Aires: Editorial Bonum, 1975. ). Para realizar um processo decolonial é necessário descolonizar os colonizadores, ou seja, é necessário desmistificar e destruir o que permite a existência dos colonizadores. No entanto, essas condições de existência materializam-se tanto nas instituições quanto nos imaginários e nas categorias de pensamento (Mignolo, 2015MIGNOLO, Walter. La Désobéissance Épistémique: rhétorique de la modernité, logique de la colonialité et grammaire de la décolonialité. Bruxelles: P.I.E Peter Lang, 2015.). Desmistificar, destruir essas condições, significa descolonizar a epistemologia, guardiã das hierarquias e das classificações modernas/coloniais. Essa desmistificação não deve ser compreendida como uma vontade de retornar a um mundo pré-moderno, ou como a instauração de uma antimodernidade (Dussel, 2000, p. 30). Trata-se, ao contrário, de uma revalorização do que foi depreciado, negado pela modernidade/colonialidade, e da instauração de um diálogo intercultural “entre as tradições filosóficas não ocidentais e a filosofia euro-norte-americana” (Dussel, 2009DUSSEL, Enrique. Pour un dialogue mondial entre traditions philosophiques. In: BOIDIN, Capucine; HURTADO LOPEZ, Fatima (Dir.). Cahier des Amériques Latines. Paris: Institut des hautes études de l’Amérique latine, 2009. P. 111-128., p. 116)5 2 Nota do tradutor: na versão em francês “entre les traditions philosophiques non occidentales et la philosophie européo-nord-américaine”. . Em suma, o projeto decolonial visa destruir a hegemonia epistêmica da modernidade/colonialidade baseada em uma pretensa universalidade. Tal projeto pressupõe não apenas evidenciar a geo e a corpo-política da epistemologia dominante, mas, também, distanciar-se desta. Os conceitos de geo e de corpo-política, introduzidos no debate por Walter Mignolo, destacam o fato de que existimos onde pensamos (Mignolo, 2015). De fato, qualquer pensamento tem sua localidade, pertence a uma área cultural e geográfica determinada. No entanto, um grupo de pessoas composto por homens brancos, burgueses, cristãos e heterossexuais tentou mascarar sua geo e corpo-política e, pretendendo poder pensar por todos, universalizou assim suas classificações e suas hierarquizações. O distanciamento epistêmico sobre o qual se baseia o projeto decolonial, tal como é concebido pelo conjunto modernidade/colonialidade, visa revelar a localidade da epistemologia dominante, refletindo a partir de outra geo e corpo-política.

Se existe uma geo e uma corpo-política do pensamento e do conhecimento, se toda forma de viver, fazer, pensar ou agir é regional, não seria possível considerar que o mesmo ocorre nas formas artísticas? Essa questão geral nos conduz à adoção de uma abordagem essencialista do teatro. Peter Brook dá uma definição bastante ampla do teatro, afirmando que basta delimitar um espaço, fazer uma pessoa atravessá-lo enquanto outra observa para que exista teatro (Brook, 2014BROOK, Peter. L’Espace Vide: écrits sur le théâtre. Paris: Le Seuil, 2014.). Mantendo em mente essa definição, nós afirmaremos que o teatro é uma forma de fazer, pois se trata de uma ação concreta, uma forma de pensar, pois constrói realidades virtuais, possíveis, novas, e pode ser mesmo uma forma de agir, na medida em que teria uma potência de propostas alternativas, utópicas, ainda não representadas, ou mesmo impensadas (Plana, 2014bPLANA, Muriel. Théâtre et Politique: pour un théâtre politique contemporain. Paris: Orizons , 2014b.). Assim, o teatro seria uma forma particular de fazer, pensar e agir e, nesse sentido, ele não substituiria uma geo e uma corpo-política. Se considerarmos que existimos onde pensamos, também existimos onde criamos. Assim, contra um universalismo das formas teatrais, nós afirmamos uma localidade. Artistas, dramaturgos e dramaturgas, diretores e diretoras de teatro criam a partir de um corpo e de uma geografia, a partir de uma cultura e de uma epistemologia. Uma forma artística, uma forma teatral não nasce ex nihilo. Não se trata de colocar em questão, aqui, o fato de que a obra é capaz de ultrapassar a intenção do autor ou da autora, que ela é aberta em sua recepção, que o sentido excede a intenção inicial - pressupostos que baseiam a dramaturgia no sentido alemão do termo - e o fato de que diretores e diretoras de teatro da contemporaneidade ainda encenem peças de Shakespeare ou de Calderón. No entanto, nós afirmamos que formas artísticas em geral, ou teatrais em particular, estão ligadas a uma epistemologia, a um imaginário coletivo, a uma cultura no sentido sociológico do termo. Assim, existiriam formas teatrais modernas. Mas a modernidade, como vimos, definiu-se como centro epistêmico, aspirando a uma universalidade e escondendo sua própria localidade. Ao sustentar que suas formas epistêmicas são as únicas objetiva e universalmente válidas (Lander, 2000LANDER, Edgardo. Ciencias sociales: saberes coloniales y eurocéntrico. In: LANDER, Edgardo (Dir.). Colonialidad Del Saber Y Eurocentrismo . Buenos Aires: UNESCO-CLASCO , 2000. P. 4-23.), a modernidade negou a possibilidade de existência de uma ciência, de uma racionalidade ou de uma filosofia que não sejam modernas (Mignolo, 2015MIGNOLO, Walter. La Désobéissance Épistémique: rhétorique de la modernité, logique de la colonialité et grammaire de la décolonialité. Bruxelles: P.I.E Peter Lang, 2015.). Também é possível considerar que ela fez o mesmo com as formas artísticas e teatrais não modernas. Assim, as estéticas modernas teriam sido impostas de maneira hegemônica. Quais seriam essas estéticas? E se o projeto decolonial consiste em um deslocamento epistêmico, ele não deveria ser compreendido, no teatro, como um deslocamento estético? Quais seriam as modalidades desse deslocamento?

O Corolário Estético Teatral da Modernidade/Colonialidade: o drama

Walter Mignolo distingue três formas acumulativas e não sucessivas da modernidade que, quando relacionadas a uma análise histórica do drama, nos ajudam a pensar os corolários estéticos da modernidade/colonialidade. Que formas são essas? A primeira é ibérica e foi assegurada pela Espanha e por Portugal no século XVI. No momento histórico da Contrarreforma e da expulsão dos mouros das Espanha, essa forma repousa sobre uma teologia do conhecimento que se traduz pela cristianização forçada dos bárbaros no Novo Mundo. A segunda forma da modernidade/colonialidade foi estabelecida pela França e pela Inglaterra no século XVIII, e baseia-se em um egologia do conhecimento que justifica as missões civilizatórias. Enfim, a última forma é policêntrica, mas foi estandardizada pelos Estados Unidos após 1945, organizando-se sobre o ultraliberalismo. Não se trata mais de cristianizar os bárbaros ou de civilizar os primitivos, mas de desenvolver os países atrasados.

Como essa teorização da modernidade/colonialidade pode nos ajudar a pensar as estéticas teatrais? Para responder a essa questão, é preciso lembrar que o drama burguês, ou gênero sério, é teorizado pelo filósofo iluminista Denis Diderot (2005DIDEROT, Denis. Entretiens sur le Fils Naturel de la Poésie Dramatique Paradoxe sur le Comédien. Paris: Garnier Flammarion, 2005.) em Les entretiens sur le fils naturel, a partir da perspectiva francesa, e que ele efetua uma mudança determinante no paradigma teatral. Contra as formas clássicas da tragédia e da comédia, herdadas do teatro grego, Diderot e Mercier abordam a necessidade de uma mistura genérica para estabelecer uma relação analógica entre o teatro e a realidade. Vamos dar a palavra a Mercier em seu Nouvel examen de la tragédie française e à justificativa que ele dá a essa necessidade de mudança do paradigma estético:

O quê! Estamos no meio da Europa, palco vasto e imponente dos acontecimentos mais variados e surpreendentes, e não teríamos uma arte dramática própria! E não poderíamos compor sem a ajuda dos gregos, dos romanos, dos babilônicos, dos trácios, etc. [...] Descobrimos a América e esta descoberta súbita criou mil novas relações; temos a impressão, a pólvora, os correios, as bússolas, etc., e com as ideias novas e férteis que resultam disso, não teríamos uma arte dramática própria! Somos cercados por todas as ciências, por todas as artes, milagres multiplicados da indústria humana, habitamos em uma capital povoada por oitocentos mil almas, onde a desigualdade extraordinária das fortunas, a variedade de estados, de opiniões, de personagens, nos cercam com suas características, invocam o calor de nossos pincéis e nos pedem verdade, e nós abandonaríamos cegamente uma Natureza viva, onde todos os músculos são dilatados e salientes, cheios de vida e de expressão, para desenhar um cadáver grego ou romano vacilante, e imprimir neste olhar apagado, nesta língua congelada, nestes braços endurecidos, o olhar, o idioma e os gestos adequados às nossas praças e palcos! (Mercier apud Lioure, 1963LIOURE, Michel. Le Drame. Paris: Armand Colin, 1963., p. 22)6 3 Nota do tradutor: na versão em francês “Quoi! Nous sommes au milieu de l’Europe, scène vaste et imposante des événements les plus variés et les plus étonnants, et nous n’aurions pas un art dramatique à nous! Et nous ne pourrions composer sans le secours des Grecs, des Romains, des Babyloniens, des Thraces, etc. […] Nous avons découvert l’Amérique et cette découverte subite a créé mille nouveaux rapports; nous avons l’imprimerie, la poudre à canon, les postes, les boussoles, etc., et avec les idées nouvelles et fécondes qui en résultent, nous n’aurions pas un Art dramatique à nous! Nous sommes environnés de toutes les sciences, de tous les arts, miracles multipliés de l’industrie humaine, nous habitons une capitale peuplée de huit cent mille âmes, où la prodigieuse inégalité de fortunes, la variété des états, des opinions, des personnages, nous environnent avec leurs traits caractéristiques, appellent la chaleur de nos pinceaux et nous commandent la vérité, et nous quitterions aveuglément une Nature vivante, où tous les muscles sont enflés et saillant, pleins de vie et d’expression, pour aller dessiner un cadavre grec ou romain tout chancelant, et imprimer à cet œil terne, à cette langue glacée, à ces bras raidis, le regard, l’idiome et les gestes qui sont de convenance sur les places de nos tréteaux!”. .

Por serem homens da (segunda) modernidade, Diderot e Mercier destacam a urgência de uma nova estética, própria de seu tempo, e teorizam o drama burguês. Mesmo que este último, em razão de sua mediocridade artística, tenha uma vida curta, não há dúvida que ele tenha influenciado toda a dramaturgia europeia dos séculos XIX e XX. Aliás, do século XVIII aos dias de hoje, o drama parece ter absorvido todas as formas dramáticas (Naugrette, 2001NAUGRETTE, Florence. Le Théâtre Romantique: histoire, écriture, mise en scène. Paris: Seuil, 2001.), de tal forma que se tornou nos imaginários o sinônimo do próprio teatro. Se Diderot parece ser o primeiro a teorizar essa nova forma dramática diante da urgência de adaptar as estéticas à modernidade habitada por ele, Anne Ubersfeld (1993UBERSFELD, Anne. Le Drame Romantique. Paris: Belin, 1993.) desenha novos contornos aos limites cronológicos do drama, remetendo suas origens à comedia nueva do século de ouro espanhol. Ela não é a única a identificar nas obras de Calderón, Lope de Vega ou Tirso de Molina a gênese do drama. Quando Lessing, e Schlegel depois dele, teorizam o drama romântico alemão, a comedia nueva, essa tragicomédia espanhola, é citada como modelo juntamente ao drama burguês. A primeira é didática e teológica: as linhas de força de sua intriga repousam sobre o princípio da honra, da virgindade pré-matrimonial, garantindo, na Espanha da Contrarreforma, a pureza do sangue católico. A Espanha da Contrarreforma também é a Espanha da cristianização forçada do Novo Mundo, aquela que efetua a primeira modernidade em sua versão teológica. A partir disso, parece possível afirmar que a comedia nueva é o corolário estético da primeira modernidade. Em seguida, a teologia do conhecimento é suplantada por uma egologia do conhecimento no século XVIII. Essa também é a passagem do poder das mãos ibéricas às mãos francesas e inglesas. Nos palcos, a tragicomédia é secularizada, o drama é teorizado e opera-se uma modificação empírica do personagem-tipo ao personagem dotado de uma psicologia e uma identidade própria. A teologia da comedia nueva como motor dramático é suplantada, no drama burguês, pelo indivíduo racional burguês. O drama burguês pode então ser identificado ao corolário estético da segunda modernidade.

Se o drama romântico e o drama naturalista do século XIX parecem ser os herdeiros diretos desse teatro, se o mesmo pode ser dito dos dramas nórdicos de Ibsen ou de Strindberg, ou dos dramas contemporâneos neo-humanistas de Ariane Mnouchkine ou de Wajdi Mouawad, para citar apenas dois, o que dizer do teatro épico do século XX? Opondo-se a Peter Szondi (2006SZONDI, Peter. Théorie du Drame moderne. Bulgarie: Circé, 2006.), Hans-Thies Lehmann compreende o teatro épico não como antinômico ao teatro dramático, mas como seu prolongamento. Ao definir o drama como ação mimética que garante a primazia do texto e representa o mundo como uma totalidade (Lehmann, 2002), o teatro épico não substitui a lógica dramática, mas ele é sua última garantia. Assim, o polimorfismo do drama nos palcos europeus do século XX, do teatro épico ao teatro neo-humanista, passando pelo teatro neonaturalista de um diretor como Thomas Ostermeier, parece reverberar o policentrismo da terceira modernidade. O teatro pós-dramático, cujas premissas Hans-Thies Lehmann identifica no teatro simbolista ou surrealista, não poderia ser compreendido como um teatro que provoca uma crise na modernidade/colonialidade e seus códigos estéticos? Poderia esse teatro ser considerado como decolonial?

O Teatro Pós-dramático seria um Teatro Decolonial?

Hans-Thies Lehmann identifica novas estéticas que ultrapassam o paradigma do drama no teatro, nas cenas contemporâneas a partir dos anos 1970. Ele apresenta, de forma não exaustiva, as características destas estéticas:

Teatro da desconstrução, teatro plurimidiático, teatro restaurador tradicional/convencional, teatro dos gestos e movimentos. [...] descontinuidade, heterogeneidade, não-textualidade, pluralismo, diversidade de códigos, subversão, multilocalização, perversão, o ator como tema e figura principal, deformação, o texto como um valor autoritário e arcaico, a performance como terceiro elemento entre o drama e o teatro, antimimético, a rejeição da interpretação (Lehmann, 2002LEHMANN, Hans-Thies. Le Théâtre Postdramatique. Paris: L’Arche, 2002., p. 32)7 4 Nota do tradutor: tradução de Pedro Süssekind na edição brasileira (Lehmann, 2008, p. 30). .

Em suma, Lehmann insiste sobre a perda da preponderância do texto, a ausência total ou parcial de fábula e de ação coerente e linear, a fusão das artes e a sobrepresença do corpo e do visual. Trata-se, para o autor, de uma ruptura dos códigos dramáticos e, nesse sentido, ele qualifica essas novas estéticas de pós-dramáticas. Considerando que o drama é o corolário estético da modernidade/colonialidade, poderíamos pensar que a superação, e mesmo a explosão de suas características formais, permitiria o deslocamento estético sobre o qual se baseia o projeto decolonial. Mas mesmo que o deslocamento estético esteja presente, não há um deslocamento epistêmico. O próprio Hans-Thies Lehmann constata que “[...] o teatro se encontra concretamente diante da questão das possibilidades para além do drama, não necessariamente para além da modernidade” (Lehmann, 2002, p. 36)8 5 Nota do tradutor: tradução de Pedro Süssekind na edição brasileira (Lehmann, 2008, p. 33). . O deslocamento estético é apenas parcial, pois mesmo que a estrutura dramática seja fragmentada, ela se torna ainda mais presente, confirmando sua modelização.

O adjetivo ‘pós-dramático’ designa um teatro que se vê impelido a operar para além do drama, em um tempo ‘após’ a configuração do paradigma do drama no teatro. Ele não quer dizer negação abstrata, mero desvio do olhar em relação à tradição do drama. ‘Após’ o drama significa que este continua a existir como estrutura - mesmo que enfraquecida, falida - do teatro ‘normal’ (Lehmann, 2002LEHMANN, Hans-Thies. Le Théâtre Postdramatique. Paris: L’Arche, 2002., p. 32)9 6 Nota do tradutor: tradução de Pedro Süssekind na edição brasileira (Lehmann, 2008, p. 33). .

Não apenas a modernidade/colonialidade não é colocada em questão por esse deslocamento estético, mas o próprio termo deslocamento é problemático. Mesmo que haja ruptura com relação ao drama, “[...] os membros ou ramos do organismo dramático, embora como um material morto, ainda estão presentes e constituem o espaço de uma lembrança ‘em irrupção’” (Lehmann, 2002LEHMANN, Hans-Thies. Le Théâtre Postdramatique. Paris: L’Arche, 2002., p. 36)10 7 Nota do tradutor: tradução de Pedro Süssekind na edição brasileira (Lehmann, 2008, p. 34). . Ao romper com o drama, o teatro pós-dramático o reifica como modelo, ou como antimodelo, mas sem descartá-lo.

Contra Hans-Thies Lehmann, Muriel Plana vê o teatro pós-dramático como o corolário estético da pós-modernidade:

A encarnação cênica, nos últimos trinta anos, de certa pós-modernidade e de várias tendências dominantes (ideológicas e estéticas) de uma arte teatral que faz referência a elas de forma consciente ou inconsciente (Plana, 2014aPLANA, Muriel. Théâtre et Politique: modèles et concepts. Paris: Orizons, 2014a., p. 46)11 8 Nota do tradutor: na versão em francês “L’incarnation scénique depuis ces trente dernières années d’une certaine postmodernité et de plusieurs tendances dominantes (idéologiques et esthétiques) d’un art théâtral qui s’y réfère consciemment ou inconsciemment”. .

Assim, o que explica o afastamento do texto em proveito da sobrecorporeidade, a dissolução da fábula e das fronteiras entre o teatro e as outras artes, é a falência das metanarrativas de legitimação do saber sobre as quais se assentava o mundo moderno (Lyotard, 1979LYOTARD, Jean-François, La Condition Postmoderne. Paris: Éditions de Minuit, 1979. ). Dessa forma, Muriel Plana não apenas valida nossa hipótese da concordância do drama com a modernidade/colonialidade, mas ela também define o teatro pós-dramático como pós-moderno. No entanto, a pós-modernidade é uma crítica eurocêntrica da modernidade (Mignolo, 2015MIGNOLO, Walter. La Désobéissance Épistémique: rhétorique de la modernité, logique de la colonialité et grammaire de la décolonialité. Bruxelles: P.I.E Peter Lang, 2015.). Essa crítica efetua-se do interior da modernidade, de dentro do contexto epistêmico que ela busca desconstruir. Em suma, a pós-modernidade não opera nenhum delinking (Mignolo, 2003), ela permanece na matriz colonial do poder. Podemos compreender, então, que o deslocamento estético operado pelo teatro pós-dramático, se é que realmente há um deslocamento, não se projeta como força de proposta decolonial e não provoca um deslocamento epistêmico. Descolonizar as cenas teatrais significa operar um deslocamento duplo, estético e epistêmico. Mas concretamente, que formas esse deslocamento duplo adota? Que exemplos podemos encontrar desse teatro decolonial?

Que tipo de Deslocamentos Epistêmicos e Estéticos para um Teatro Decolonial? Estudo de caso de Kay pacha de Juan Francisco Moreno Montenegro

A fim de determinar a natureza do deslocamento epistêmico e estético do teatro decolonial, tomaremos como base a análise dramatúrgica da peça Kay pacha de Juan Francisco Moreno Montenegro (2014MORENO MONTENEGRO, Juan Francisco. Kay pacha. In: CATANI, Beatriz (Dir.). Dramaturgía de Iberescena: antología. Mexico: Paso de Gato, 2014. P. 199-216.). Em 2010, o ator, performer e autor equatoriano recebeu uma subvenção do fundo Iberescena para criação dramatúrgica. Esse fundo foi criado em 2006, durante o encontro dos quatorze chefes de Estado latino-americanos em Montevidéu, para ajudar no desenvolvimento e na circulação das artes cênicas na América Latina. Após receber essa ajuda, Juan Francisco Moreno Montenegro redige sua peça Kay pacha, em 2011, publicada em 2014 pelas edições Paso de gato. Em 2012, ele dirige e interpreta esse solo. Kay pacha é apresentada cerca de 50 vezes, em festivais de diversas cidades, dentre as quais Bogotá, Pasto, Medellín, Riohacha, Tulcán, Machala e Manta. O fundo Iberescena está na origem desse projeto de escrita, mas a temática da peça inspira-se de depoimentos de estudantes kichwas, coletados por quase um ano pelo autor, durante as oficinas de teatro que ele organizava em um povoado amazônico.

Kay pacha é uma peça em um ato composta por oito cenas, um anexo que apresenta um mito da gênese do povo kichwa da Amazônia, a letra da música Abrete corazón de Rosa Giove e por um glossário que traduz as palavras em kichwa presentes no texto. Na cena inicial, uma presença cênica dança, canta, fuma, narra o mito da gênese do povo kichwa da Amazônia e relata as extorsões cometidas na Amazônia equatoriana. A segunda cena ocorre em um colégio do qual uma adolescente, Margarita, decide fugir sem explicar para onde ou por quê. Um personagem chamado Maqui Puguj fala com ela, mas Margarita parece não vê-lo ou ouvi-lo. A cena seguinte também ocorre em um colégio. Dessa vez, Johnny, um aluno de 24 anos, fala com Jorge, um de seus professores. Ele fala sobre os rituais xamanistas dos quais participa para livrar-se de seus pesadelos. Na quarta cena, Margarita está diante de um personagem que parece ser um soldado a quem ela jura lealdade, mas que é rude com ela. Na cena cinco, Johnny conta para Jorge seu passado de combatente e como fugiu. Na cena seguinte, Margarita e Maqui Puguj conversam, se veem, como se fossem prisioneiros do mesmo mundo dos mortos, completamente cinza. Margarita tenta ser ouvida por Johnny, que sente sua presença, na cena sete. Finalmente, a última cena consiste em um ritual xamanista organizado pelo sábio Carlos e composto de cantos, danças e fumaça de tabaco; Johnny participa desse ritual, que é observado por Margarita.

A escolha dessa peça como estudo de caso tem uma dupla motivação. Primeiramente, Juan Francisco Moreno Montenegro pertence a uma área geográfica e cultural que não se encontra no centro da modernidade/colonialidade. Ora, segundo Enrique Dussel, a radicalização da noção de exterioridade permite destacar o potencial epistêmico de espaços culturais relativamente exteriores à Modernidade (Dussel, 2004DUSSEL, Enrique. Transmodernidad e Interculturalidad: Interpretación desde la Filosofía de la Liberación. In: FORNET BETANCOURT, Raúl (Dir.). Crítica Intercultural de la Filosofía Latinoamericana Actual. Madrid: Editorial Trotta, 2004. P. 65-102.), aptos a desvelar a geo e a corpo-política da epistemologia dominante. Esse ato de desvelar encontra-se no centro do projeto decolonial, assim, é muito significativo que o dramaturgo escolhido para nosso estudo de caso seja equatoriano, escrevendo e interpretando a partir do Equador. A segunda constatação é de ordem estética. A peça parece servir de substituto à lógica do drama que definimos anteriormente. Na cena inicial de Kay pacha, uma presença cênica dança a dança tradicional kichwa. Depois disso, a presença fica imóvel e o ator dirige-se à plateia, apresentando-se como ator e dizendo seu nome. Ele começa a contar a gênese do povo kichwa antes de tornar-se novamente presença, que dança e exprime sua Angústia, diz fragmentos de textos e executa uma pantomima e uma caminhada de kathakali. O resto da peça é composto por quadros sem relação lógica aparente, baseados em uma abordagem de teatro documentário. Os textos e monólogos são fragmentos de depoimentos colocados lado a lado. A ausência de coerência e de linearidade da peça, bem como a sobrepresença do corpo, nos impede de qualificar esse teatro de dramático. O desvelamento da ficcionalidade do teatro por meio da intervenção do ator que se dirige diretamente ao público poderia ser qualificado de épico. Em nossa gramática de análise eurocêntrica, essa prática poderia ser um exemplo típico do distanciamento brechtiano. No entanto, como vimos, pela coerência de sua fábula concebida como uma totalidade, o teatro épico conserva o modelo dramático. Assim, qualificar esse momento como épico parece não ser apropriado. Entre a sobrecorporeidade trazida pela dança kichwa, pela pantomima e pelo kathakali, a ausência de linearidade e de coerência, tanto semântica quanto estética, e o gosto pela narrativa verdadeira, o depoimento, tudo nos leva a considerar essa peça como pós-dramática. Mas não seria o caráter eurocêntrico de nossas categorias de análise que estaria influenciando nossa denominação? A peça Kay pacha parece escapar da lógica do drama, mas ela o reitera como modelo? E ela reproduz a epistemologia dominante? Em suma, estamos diante de uma ilusão de deslocamento estético, ou de um deslocamento epistêmico e estético real em relação ao drama moderno colonial?

Imagem 1
Juan Francisco Moreno Montenegro, Kay pacha

A peça de Juan Francisco Montenegro (Imagem 1) afasta-se dos códigos estéticos da modernidade/colonialidade, mas ela não realiza apenas uma transgressão formal. Ela coloca em crise a modernidade/colonialidade no que esta produz em termos de violência epistêmica, linguística e historiográfica. A peça desvia-se não apenas da estética dominante, mas também da matriz colonial do poder. Como se opera esse desvio? A fábula, mesmo sendo fragmentária, efetua uma revalorização epistêmica da cultura kichwa, um dos povos indígenas que vive na parte andina e amazônica do Equador. Um dos personagens chama-se Maquipuhuj. O nome próprio desse personagem é, em língua kichwa, um substantivo que designa o espírito da floresta, que assopra em suas mãos para ensinar aos homens os métodos de cura. O maquipuhuj é um supay, um dos demônios dotado de poderes mágicos na cosmovisão kichwa. Na fábula, o personagem não é um curandeiro, mas um soldado morto em combate, errando em um mundo paralelo sem conseguir chegar ao mundo dos mortos. A função de curandeiro a qual o nome se refere é assumida por dois outros personagens: a presença cênica do início da peça e Carlos, na última cena. Na primeira cena, a presença cênica entoa um ícaro de Rosa Giove, enquanto espalha fumaça de cigarro sobre seu corpo. Rosa Giove não é um personagem ficcional. Ela é cirurgiã e pesquisadora em medicinas tradicionais, no Peru. Em sua prática da medicina ocidental, ela integra seus conhecimentos da medicina tradicional amazônica. Segundo sua definição do ícaro:

Na floresta do Peru, o ícaro impõe-se como um canto ou uma melodia utilizada durante os rituais [...] o canto xamanista é uma arma curativa, a sabedoria e o veículo da energia pessoal do curandeiro, o símbolo de seu poder. A ação de ‘icarar’ envolve o fato de ‘carregar’ um objeto ou uma poção com o poder do xamã, dando a ele uma propriedade específica a ser transmitida ao receptor, limpeza, proteção, cura, ou então, para influenciar sua vontade. Para isso, é preciso cantar o ícaro diretamente sobre o objeto ou sobre a substância transmissora. O objeto será dado ao interessado, a substância ingerida, caso se trate de um líquido (uma poção), ou a fumaça soprada, no caso de um tabaco ‘icarado’. O ícaro é uma parte fundamental do conhecimento curativo na Amazônia. Ele resume os conhecimentos do xamã [...]. Como os ícaros funcionam? Poderíamos dizer que, como os mantras nas tradições orientais, eles agem sobre os centros energéticos a partir de vibrações sonoras, modulando assim a função orgânica; e que há um conhecimento subconsciente que guia o xamã na escolha do ícaro adequado a cada circunstância (Giove, 1993GIOVE, Rosa. Acerca del icaro, o canto shamanico. Revista Takiwasi, Péru, Imago, Ano I, n. 2, p. 7-27, 1993., p. 7)12 9 Nota do tradutor: na versão francesa traduzida do espanhol pela autora do artigo “Dans la forêt du Pérou, l’ícaro s’impose comme chant ou mélodie qui s’utilise durant les rituels […] le chant chamanique est l’arme curative, la sagesse et le véhicule de l’énergie personnelle du guérisseur, le symbole de son pouvoir. L’action d’‘icarer’ implique de ‘charger’ avec le pouvoir du chaman un objet ou une potion, lui donnant une propriété spécifique pour transmettre au récepteur, nettoyage, protection, curation, ou pour influencer sa volonté. Cela se fait en chantant l’ícaro directement sur l’objet ou la substance transmetteuse. L’objet sera ensuite remis à l’intéressé, la substance ingérée s’il s’agit d’un liquide (potion) ou la fumée soufflée s’il s’agit de tabac ‘icaré’. L’ícaro est une part fondamentale du savoir-faire guérisseur en Amazonie. Il résume les connaissances du chaman […]. Comment fonctionnent les ícaros? Nous pourrions dire que de la même manière que les mantras dans les traditions orientales, ils agissent sur des centres énergétiques, à partir de vibrations sonores, modulant ainsi la fonction organique, et qu’il y a une connaissance subconsciente qui guide le chaman pour choisir l’ícaro adéquat en chaque circonstance”. .

Rosa Giove milita por um sincretismo médico e por uma des-eurocentralização da concepção e das práticas da medicina:

Trabalhar nesta região do Peru sem levar em consideração a riqueza da medicina ancestral é impossível [...]. É preciso mudar a visão transmitida por nossa cultura e aprender a ver a relação do homem com a natureza de outra maneira, aceitando que há uma capacidade médica em cada pessoa, mesmo que não possamos explicar isso racionalmente (Giove, 1993GIOVE, Rosa. Acerca del icaro, o canto shamanico. Revista Takiwasi, Péru, Imago, Ano I, n. 2, p. 7-27, 1993., p. 27)13 10 Nota do tradutor: na versão francesa traduzida do espanhol pela autora do artigo “Travailler dans cette région du Pérou sans prendre en compte la richesse de la Médecine ancestrale est impossible […]. Il est nécessaire de changer la vision que notre culture nous a transmise et d’apprendre à voir d’une autre manière la relation de l’homme à la nature, acceptant que même si nous n’avons pas d’explication rationnelle, il y a une capacité médicale dans chaque personne”. .

Ao cantar um ícaro de Rosa Giove já na primeira cena, soprando a fumaça de um tabaco icarado sobre seu corpo (Imagem 2), a presença cênica visibiliza uma prática depreciada e rejeitada pela medicina moderna e, nesse sentido, efetua uma revalorização epistêmica. Essa cena ritual xamanista entra em ressonância com a cena que fecha a peça. Esta última é realizada pelo sábio Carlos, que ajuda um estudante chamado Johnny a se liberar de um espírito. Esse ritual também se compõe de um canto em língua tradicional e de curas por meio da fumaça de tabaco. Esses rituais de medicina ancestral, abrindo e fechando a peça, produzem um efeito de fechamento (Vinaver, 1998VINAVER, Michel. Ecrits sur Le Théâtre. Paris: L’Arche , 1998.)14 11 Nota do tradutor: em francês “bouclage”. , um movimento circular na lógica de construção da obra. Essa circularidade remete ao movimento das mãos realizado pela presença cênica e pelo curandeiro Carlos durante o ritual, para dispersar a fumaça icarada sobre o corpo a ser tratado. Esse destaque dado pela própria forma da obra a uma prática não moderna da medicina reforça uma dinâmica de revalorização cognitiva e epistêmica da cultura kichwa.

Imagem 2
Juan Francisco Moreno Montenegro, Kay pacha

No plano linguístico, a peça de Juan Francisco Moreno Montenegro está repleta de termos kichwas, tanto nas didascálias quanto nas falas dos personagens. Esses termos são introduzidos na língua castelhana e traduzidos em um glossário anexo ao texto. Essa intrusão linguística faz parte da desconstrução do monolinguismo e é suscetível de descolonizar o pensamento ao produzir novas formas de conhecimento. Se considerarmos que pensamos na língua, pensar entre duas línguas permitiria pensar de forma diferente, deslocar a epistemologia dominante. Historicamente, o império colonial e a língua imperial formavam um par e o pensamento monotópico, que garante a hegemonia epistêmica ocidental, está ligado ao monolinguismo. Quando Las Casas define as diversas formas de barbárie, ele afirma que ela se baseia em uma diferença de ordem religiosa, linguística e alfabética. O bárbaro é aquele que não tem a mesma religião, a mesma língua e o mesmo alfabeto que aquele que se atribui o direito de nomeá-lo assim. Assim, a língua encontra-se no núcleo da classificação racial sobre a qual se apoia a diferença colonial. Em 1492, o ano da vitória final do Reino de Castilla sobre os Mouros e o ano da descoberta da América por Cristóvão Colombo, a rainha Isabel de Espanha pede ao gramático Nebrija qual seria o interesse de estabelecer a gramática de uma língua vernácula. O estudioso responde que a construção de um império se realiza pela expansão das Letras e não somente pelas armas (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter. Historias locales / diseños globales: colonialidad, conocimietos subalternos y pensamiento fronterizo. Madrid: Akal, 2003.). A constituição de um império colonial se efetua pela imposição do monolinguismo. Ao inserir termos kichwas nas didascálias e nas falas, Juan Francisco Moreno Montenegro efetua um bilenguajeo (Mignolo, 2003). O lenguajeo (Maturana; Varela, 1987MATURANA, Umberto; VARELA, Francisco. El Árbol del Conocimiento. Santiago: Editorial Universitaria, 1987.) não é somente uma língua, mas trata-se da maneira específica de viver na língua, uma práxis da língua. O bilenguajeoé um deslocamento fora das línguas hegemônicas e imperiais e uma relocalização na práxis das línguas ameríndias. O bilenguajeo é um meio de liberação da hegemonia epistêmica veiculada pelo monolinguismo e, nesse sentido, pode ser aproximado do pensamento dialógico (Freire, 1993FREIRE, Paulo. Pedagogy of the Oppressed. New York: Continuum, 1993. ), que visa repensar as culturas acadêmicas a partir da multiplicidade de conhecimentos, ignorada pelo monolinguismo e pelo pensamento monotópico. Ao efetuar um deslocamento linguístico, a peça de Juan Francisco Moreno Montenegro retira-se da hegemonia linguística castelhana e da monotopia epistêmica que ela produz.

Finalmente, Kay pacha efetua uma revalorização e uma reapropriação historiográfica. A presença cênica, na cena de abertura da peça, conta um mito da gênese do povo kichwa, intitulado Como nasceram os ñawpa runa? Sobre nossas origens. Essa gênese conta que o Deus Yaya criou os kichwas a partir da terra esculpida e que os demônios tentaram fazer a mesma coisa, mas não possuíam esse poder. Essa gênese contrasta com as primeiras histórias das culturas ameríndias contadas na Europa e narradas por nativos alfabetizados pelos espanhóis. A alfabetização não teve como consequência apenas o aprendizado de uma nova gramática, mas também de uma nova forma de ler, de escrever e de contar, imposta pelos colonizadores. Os relatos dos nativos alfabetizados, para contar e transmitir seu passado, foram modificados. Para os historiadores espanhóis, a alfabetização era algo necessária para a escrita historiográfica. Eles não negavam que os ameríndios tinham seus próprios meios de relatar o passado através de lendas orais ou de representações pictóricas, mas eles não davam nenhum valor historiográfico a esses meios, que eram julgados mais próximos da crença incoerente do que da História. Os espanhóis designaram a si próprios para assumir e dar forma ao relato historiográfico desses povos ameríndios, retirando a legitimidade de qualquer maneira de contar a História que fosse diferente da deles. Ao levar à cena a gênese do povo kichwa, a presença cênica realiza uma apropriação da maneira de contar a si mesmo e de assumir sua própria história, afastando-se das linhas diretivas hegemônicas.

Conclusão

Uma análise dramatúrgica da peça Kay pacha, de Juan Francisco Moreno Montenegro, permite avaliar o deslocamento epistêmico e estético da obra, apoiando o projeto artístico decolonial. A modernidade/colonialidade tem seus corolários estéticos dramáticos: o drama e sua reafirmação pelo teatro pós-dramático. No entanto, há estéticas que servem de substituto à gramática do drama, à retórica da modernidade e à lógica da colonialidade sobre as quais o drama se baseia. Tomar consciência da existência dessas estéticas nos convida a pensar sobre a necessidade de reformular as ferramentas das análises dramáticas e cênicas eurocêntricas, modernas e coloniais. Essa reforma passa pelo reconhecimento da localidade dessas obras, cuja ocultação é suscetível de reproduzir um esquema colonial. Essas ferramentas são inaptas para a análise das estéticas em questão, e colocam em causa a crença de acordo com a qual a modernidade/colonialidade e suas formas estéticas teriam sido impostas de forma unilateral, mas elas também reproduzem uma violência epistêmica e acadêmica. Talvez, seja a confrontação a estéticas decoloniais que torne possível a emergência de novas ferramentas teóricas e de análise que se afastem da matriz colonial do poder.

Références

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  • VINAVER, Michel. Ecrits sur Le Théâtre. Paris: L’Arche , 1998.
  • Este texto inédito, traduzido por André Mubarack, também se encontra publicado em francês neste número do periódico.
  • 1
    Nota do tradutor: na versão francesa traduzida do espanhol pela autora do artigo “[...] l’articulation de toutes les formes historiques du contrôle du travail, de ses ressources et de ses produits, autour du capital et du marché mondial”.
  • 2
    Nota do tradutor: na versão em francês “entre les traditions philosophiques non occidentales et la philosophie européo-nord-américaine”.
  • 3
    Nota do tradutor: na versão em francês “Quoi! Nous sommes au milieu de l’Europe, scène vaste et imposante des événements les plus variés et les plus étonnants, et nous n’aurions pas un art dramatique à nous! Et nous ne pourrions composer sans le secours des Grecs, des Romains, des Babyloniens, des Thraces, etc. […] Nous avons découvert l’Amérique et cette découverte subite a créé mille nouveaux rapports; nous avons l’imprimerie, la poudre à canon, les postes, les boussoles, etc., et avec les idées nouvelles et fécondes qui en résultent, nous n’aurions pas un Art dramatique à nous! Nous sommes environnés de toutes les sciences, de tous les arts, miracles multipliés de l’industrie humaine, nous habitons une capitale peuplée de huit cent mille âmes, où la prodigieuse inégalité de fortunes, la variété des états, des opinions, des personnages, nous environnent avec leurs traits caractéristiques, appellent la chaleur de nos pinceaux et nous commandent la vérité, et nous quitterions aveuglément une Nature vivante, où tous les muscles sont enflés et saillant, pleins de vie et d’expression, pour aller dessiner un cadavre grec ou romain tout chancelant, et imprimer à cet œil terne, à cette langue glacée, à ces bras raidis, le regard, l’idiome et les gestes qui sont de convenance sur les places de nos tréteaux!”.
  • 4
    Nota do tradutor: tradução de Pedro Süssekind na edição brasileira (Lehmann, 2008LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. Trad. de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac & Naify, 2008., p. 30).
  • 5
    Nota do tradutor: tradução de Pedro Süssekind na edição brasileira (Lehmann, 2008LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. Trad. de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac & Naify, 2008., p. 33).
  • 6
    Nota do tradutor: tradução de Pedro Süssekind na edição brasileira (Lehmann, 2008LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. Trad. de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac & Naify, 2008., p. 33).
  • 7
    Nota do tradutor: tradução de Pedro Süssekind na edição brasileira (Lehmann, 2008LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. Trad. de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac & Naify, 2008., p. 34).
  • 8
    Nota do tradutor: na versão em francês “L’incarnation scénique depuis ces trente dernières années d’une certaine postmodernité et de plusieurs tendances dominantes (idéologiques et esthétiques) d’un art théâtral qui s’y réfère consciemment ou inconsciemment”.
  • 9
    Nota do tradutor: na versão francesa traduzida do espanhol pela autora do artigo “Dans la forêt du Pérou, l’ícaro s’impose comme chant ou mélodie qui s’utilise durant les rituels […] le chant chamanique est l’arme curative, la sagesse et le véhicule de l’énergie personnelle du guérisseur, le symbole de son pouvoir. L’action d’‘icarer’ implique de ‘charger’ avec le pouvoir du chaman un objet ou une potion, lui donnant une propriété spécifique pour transmettre au récepteur, nettoyage, protection, curation, ou pour influencer sa volonté. Cela se fait en chantant l’ícaro directement sur l’objet ou la substance transmetteuse. L’objet sera ensuite remis à l’intéressé, la substance ingérée s’il s’agit d’un liquide (potion) ou la fumée soufflée s’il s’agit de tabac ‘icaré’. L’ícaro est une part fondamentale du savoir-faire guérisseur en Amazonie. Il résume les connaissances du chaman […]. Comment fonctionnent les ícaros? Nous pourrions dire que de la même manière que les mantras dans les traditions orientales, ils agissent sur des centres énergétiques, à partir de vibrations sonores, modulant ainsi la fonction organique, et qu’il y a une connaissance subconsciente qui guide le chaman pour choisir l’ícaro adéquat en chaque circonstance”.
  • 10
    Nota do tradutor: na versão francesa traduzida do espanhol pela autora do artigo “Travailler dans cette région du Pérou sans prendre en compte la richesse de la Médecine ancestrale est impossible […]. Il est nécessaire de changer la vision que notre culture nous a transmise et d’apprendre à voir d’une autre manière la relation de l’homme à la nature, acceptant que même si nous n’avons pas d’explication rationnelle, il y a une capacité médicale dans chaque personne”.
  • 11
    Nota do tradutor: em francês “bouclage”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2018
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2017
  • Aceito
    21 Mar 2018
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