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Professor Paulo Freire na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos: “Escola Primária para o Brasil”

Teacher Paulo Freire in the Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos: “Primary School for Brazil”

Profesor Paulo Freire en la Revista Brasileña de Estudios Pedagógicos: “Escuela Primaria para Brasil”

Resumo:

Escola primária para o BrasilFREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Recife, 1960. Disponível em: <Disponível em: https://acervo.paulofreire.org/handle/7891/1041 >. Acesso em: 24 jun. 2024.
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foi o único artigo que Paulo Freire publicou na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), em 1961, fruto da conferência que proferiu no Simpósio Educação para o Brasil, promovido pelo Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE) de Pernambuco. Nessa época, Freire era um professor que, como muitos de nós, tentava sobreviver ministrando aulas, inscrevendo-se em concursos, proferindo conferências, publicando artigos etc. Ainda não tinha fama e notoriedade, não era um autor instituído (Foucault, 2009cFOUCAULT, M. O que é um autor. In: FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009c. p. 265-298. (Coleção Ditos e Escritos, 3).) com ideias consolidadas na Educação. Mesmo assim, conseguiu o feito de ter seu artigo veiculado num periódico em que publicavam os principais expoentes da Educação brasileira: Carneiro Leão, Lourenço Filho, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, entre outros. Dessa forma, nosso objetivo neste texto é saber: o que disse o professor Paulo Freire sobre a escola primária, para que suas ideias circulassem entre os mais destacados pensadores da Educação, que escreviam na RBEP? Para isso, analisamos o discurso enquanto ação, entendendo não com o que pode haver por trás dele nem por meio do que está dito no seu conteúdo, mas como séries regulares e distintas de acontecimentos (Foucault, 2009aFOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009a.; Albuquerque Júnior, 2009ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2009.). Concluímos que Paulo Freire, em 1961, ainda não tinha suas ideias consolidadas na Educação, mas, no seu percurso discursivo, havia autores já instituídos nos quais ele assentou suas ideias, fato que, a nosso ver, facilitou essa publicação.

Palavras-chave:
escola primária; Paulo Freire; história da educação.

Abstract:

Primary School for BrazilFREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Recife, 1960. Disponível em: <Disponível em: https://acervo.paulofreire.org/handle/7891/1041 >. Acesso em: 24 jun. 2024.
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” was the single study published by Paulo Freire in the Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) in 1961, and stemmed from a conference given at the Symposium Educação para o Brasil, promoted by the Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco (CRPE). During this period, Paulo Freire was still a teacher that, like many of us, tried to survive through teaching, applying for Public Service exams, giving lectures, publishing studies etc. He was not yet famous and notorious, nor an established author (Foucault, 2009cFOUCAULT, M. O que é um autor. In: FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009c. p. 265-298. (Coleção Ditos e Escritos, 3).) with cemented ideas for education. Notwithstanding, he managed to publish his study in a journal where the main proponents of Brazilian education were issued, such as: Carneiro Leão, Lourenço Filho, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo etc. Therefore, our focus in this paper is to comprehend: what did the teacher Paulo Freire say about primary school to the point of his ideas begin to circulate among the most prominent intellectuals of education writing for RBEP? In this sense, we analyzed speech as an action, perceiving it not as what may be behind it, nor through what is being said in its content, but “as regular and distinct series of events” (Foucault, 2009aFOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009a.; Albuquerque Júnior, 2009ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2009.). We then conclude that, in 1961, Paulo Freire’s ideas had not yet been cemented in education, however, in his discursive path, there were already established authors on whom he based his views, a fact that, in our opinion, facilitated this publication.

Keywords:
primary school; Paulo Freire; history of education.

Resumen:

Escuela Primaria para BrasilFREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Recife, 1960. Disponível em: <Disponível em: https://acervo.paulofreire.org/handle/7891/1041 >. Acesso em: 24 jun. 2024.
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fue el único artículo que Paulo Freire publicó en la Revista Brasileña de Estudios Pedagógicos (RBEP), en 1961, fruto de la conferencia que brindó en el Simposio Educación para Brasil, promovido por el Centro Regional de Investigación Educacional de Pernambuco. En esa época, Paulo Freire era un profesor que, como muchos de nosotros, intentaba sobrevivir impartiendo clases, inscribiéndose a concursos, profiriendo conferencias, publicando artículos, etc. Aún no tenía fama ni notoriedad, no era un autor consagrado (Foucault, 2009cFOUCAULT, M. O que é um autor. In: FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009c. p. 265-298. (Coleção Ditos e Escritos, 3).) con ideas consolidadas en educación. Aun así, logró que su artículo fuera publicado en un periódico que se publicaban los principales exponentes de la educación brasileña: Carneiro Leão, Lourenço Filho, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, etc. Por tanto, nuestro objetivo en este texto es conocer: ¿Qué dijo el profesor Paulo Freire sobre la escuela primaria, para que sus ideas circulasen entre los más destacados pensadores de la educación, que escribieron en la RBEP? Para ello, analizamos el discurso como una acción, entendiéndolo no con lo que puede haber detrás ni a través de lo que se dice en su contenido, sino como una serie regular y distinta de acontecimientos (Foucault, 2009aFOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009a.; Albuquerque Júnior, 2009ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2009.). Concluimos que Paulo Freire, en 1961, aún no tenía sus ideas consolidadas en educación, pero, en su recorrido discursivo, ya existían autores consagrados en quienes basó sus ideas, hecho que, a nuestro juicio, facilitó esta publicación.

Palabras clave:
Escuela Primaria; Paulo Freire; Historia de la Educación.

Introdução

Quando nos remetemos a Paulo Freire, hoje, pensamos: sua obra seminal, Pedagogia do OprimidoFREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1974., circula entre as principais referências de pesquisa acadêmica da área das Ciências Humanas, sendo o terceiro teórico mais citado do mundo (Montesanti, 2016MONTESANTI, B. Paulo Freire é o terceiro pensador mais citado em trabalhos pelo mundo. São Paulo, 4 jun. 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/06/04/Paulo-Freire-%C3%A9-o-terceiro-pensador-mais-citado-em-trabalhos-pelo-mundo >. Acesso em: 20 jun. 2024.
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). Freire é reconhecido como o educador que possui mais de 30 títulos de Doutor Honoris Causa e que trouxe para a Pedagogia as principais ideias da modernidade (consciência, libertação, sujeito). É aquele que modificou por completo a educação popular e a educação de adultos. Nada mais, nada menos que o Patrono da Educação Brasileira (Brasil, 2012BRASIL. Lei nº 12.612, de 13 de abril de 2012. Declara o educador Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 abr. 2012. Seção 1, p. 1.). Freire, hoje, ultrapassa os limites da pessoa que articulou ou redigiu um texto. É um autor reconhecido, que “pertence” a editoras, atende a institutos e cátedras, nomeia escolas e centros de formação. É o que Foucault (2009cFOUCAULT, M. O que é um autor. In: FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009c. p. 265-298. (Coleção Ditos e Escritos, 3).) chama autor instituído, pois, quando falamos em Paulo Freire, atualmente, somos conduzidos a múltiplos significados, tanto que, em 2005, numa edição comemorativa dos 60 anos da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), seu artigo “Escola primária para o Brasil” (Freire, 1961FREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 35, n. 82, p. 15-33, abr./jun. 1961.) foi reapresentado, na seção intitulada Memória da Educação, ao lado dos artigos dos grandes educadores brasileiros Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Jayme Abreu, Lourenço Filho, Florestan Fernandes, entre outros (Freire, 2005FREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 86, n. 212, p. 95-107, jan./abr. 2005.).

Porém, isso não havia ocorrido em 1961; quando o referido artigo foi publicado pela primeira vez na RBEP, Paulo Freire ainda não era um autor instituído. Na época, ele era um professor que, como muitos de nós, tentava sobreviver ministrando aulas, inscrevendo-se em concursos, elaborando projetos, proferindo palestras, publicando artigos. Prova disso é que, desde 1957, ele atuou no Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE) de Pernambuco como conferencista e debatedor, elaborando projetos e relatórios. Nesse mesmo Centro, em setembro de 1960, proferiu a conferência Escola primária para o Brasil, durante o Simpósio Educação para o Brasil, promovido pelo CRPE (Pernambuco. CRPE, 1963PERNAMBUCO. Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife (CRPE). Resenha Histórica [do CRR]. Cadernos Região e Educação, Recife, v. 3, n. 6, p. 1-58, dez. 1963. Anexo., p. 26).

Em 1961, essa mesma conferência foi publicada em formato de artigo na RBEP, periódico que veiculava os principais expoentes da Educação brasileira da época: Carneiro Leão, Lourenço Filho, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Gustavo Capanema, Jayme Abreu, entre outros. A Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, que pertencia ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), foi organizada em 1944, pelo Ministério da Educação e Saúde, com o intuito de publicar oficialmente estudos e pesquisas pedagógicas realizadas pelo País. Em 1957, ano em que o Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco começou a funcionar, a Revista afirmava, em suas páginas iniciais, que toda a correspondência referente a ela deveria ser endereçada ao Diretor do Inep, Anísio Teixeira, que havia organizado os Centros (Brasileiro e Regionais). Na RBEP, até 1961, no tocante à educação em Pernambuco nesses anos1 1 Se nos remetermos às décadas anteriores, por exemplo, teremos publicações do reformador pernambucano Antônio Carneiro Leão. , os pernambucanos que tinham artigos publicados eram Gilberto Freyre e Newton Sucupira.

Dessa forma, nosso objetivo neste texto é saber: o que disse o professor Paulo Freire sobre a escola primária, para que suas ideias circulassem entre os principais expoentes da Educação brasileira na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos?

Nossa proposta é tentar entender o discurso, não só o que está dito no artigo, mas também nos voltarmos para aqueles anos (1961) e percebê-lo enquanto ação, prestando atenção no que foi regular nesse discurso e nas dimensões institucionais que se repetem, fazendo-nos identificar os enunciados discursivos que estavam presentes e eram regulares naquele momento (Albuquerque Júnior, 2009ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2009.). Nesse contexto, identificamos alguns aportes institucionais regulares no artigo de Paulo Freire: o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, o Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE) e os autores instituídos Anísio Teixeira e Gilberto Freyre.

A “presença” do Iseb está explícita na conferência de Paulo Freire, não apenas pelas citações e referências, mas pela forma em que ele se assenta nessas ideias para interpretar as razões para a sociedade brasileira não entrar no eixo do desenvolvimento (Freire, 1961FREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 35, n. 82, p. 15-33, abr./jun. 1961.). Interpretação que fez mais detalhadamente na sua “tese de concurso”, publicada em livro com o mesmo título: Educação e Atualidade Brasileira (Freire, 2003FREIRE, P. Educação e atualidade brasileira. 3. ed. São Paulo: Cortez ; Instituto Paulo Freire, 2003.).

Voltando ao artigo do professor Paulo Freire, interessa-nos o que está presente, mas não está explícito na conferência/artigo. São os autores já instituídos Anísio Teixeira e Gilberto Freyre.

O autor instituído não deve ser compreendido apenas como a pessoa que articulou ou redigiu um texto; autor significa “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência” (Foucault, 2009bFOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 18. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009b. (Leituras Filosóficas)., p. 26). Desse modo, o nome do autor não é apenas um nome próprio; é um nome próprio, mas que se liga a outras coisas, a outros significados: o que ele produziu, escreveu, descobriu, fez, quando fez, como fez, como ficou reconhecido, seu status, o que seus textos permitem, o que é permitido a seus textos (Foucault, 2009aFOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009a., 2009cFOUCAULT, M. O que é um autor. In: FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009c. p. 265-298. (Coleção Ditos e Escritos, 3).). O autor seria uma “espécie de instituição”.

Mas por que, nessa época, Anísio Teixeira e Gilberto Freyre eram autores instituídos? É importante dizer que essa identificação não é apenas porque Anísio era o Diretor do Inep e criou os Centros Brasileiro e Regionais. Ou porque Gilberto era o Diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco - que organizou a conferência. Mas porque Anísio Teixeira e Gilberto Freyre, nessa época, já nos remetiam, por meio de suas práticas que circulavam, a uma multiplicidade de sentidos, de probabilidades, de significados, fazendo com que, de muitas maneiras, Anísio Teixeira (alinhado ao “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”) e Gilberto Freyre (e suas ideias regionalistas) estivessem presentes nos estudos e nas pesquisas. Não foi à toa que Anísio Teixeira escolheu Gilberto Freyre para dirigir o Centro e esperou por uma resposta positiva, tampouco foi à toa que Gilberto Freyre aceitou (Freyre, 1958bFREYRE, G. Região, pesquisa social e educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 29, n. 69, p. 31-41, jan./mar. 1958b; Viana Filho, 1990VIANA FILHO, L. Anísio Teixeira: a polêmica da educação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.).

Posto isso, para entendermos o que pensava Paulo Freire sobre a escola primária pública brasileira dessa época, recorremos aos textos (o original da conferência e os publicados na RBEP em 1961 e em 2005), à tese Educação e Atualidade Brasileira e de concurso de Paulo Freire (2003)FREIRE, P. Educação e atualidade brasileira. 3. ed. São Paulo: Cortez ; Instituto Paulo Freire, 2003., a alguns documentos do CRPE de Pernambuco, a textos de Gilberto Freyre publicados na RBEP, em 1957FREYRE, G. Palavras às professoras rurais do Nordeste. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 28, n. 68, p. 40-50, out./dez. 1957a., e a outros documentos, todos listados nas referências.

Para efetivar o que propomos responder, dividimos este artigo em algumas partes, além desta introdução: Simpósio Educação para o Brasil, Escola primária para o Brasil, considerações finais e referências.

Simpósio Educação para o Brasil

Em novembro de 1957, começou a funcionar no Recife o Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco, o qual fazia parte de um projeto mais amplo, organizado por Anísio Teixeira, que objetivava tornar sistemática e descentralizada a educação no Brasil. Havia também o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e os Centros Regionais da Bahia, de São Paulo, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul, todos criados com a finalidade de fomentar regionalmente a pesquisa e a ciência na Educação, com vistas a elaborar gradualmente uma política educacional para o País. De certa forma, essa ideia dos Centros, no sentido de tornar sistemática, descentralizada e científica a educação no Brasil, foi reverberada do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” (Azevedo et al., 2010AZEVEDO, F. et al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2010. ), publicado originalmente em 1932.

Anísio Teixeira era um dos principais signatários desse Manifesto, circulando assim com os discursos de autores e signatários como Fernando Azevedo, Afrânio Peixoto, A. de Sampaio, Lourenço Filho e Roquette-Pinto, entre outros. Ele era o gestor, o conferencista, aquele que escrevia e publicava na área educacional. Seus estudos realizados em 1929, na Columbia University, serviram para consolidar seus interesses pelas ideias de John Dewey (a Escola Nova e progressiva), que se tornariam base para seus pensamentos e suas ações.

Quando Anísio foi Secretário-Geral da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), assumiu concomitantemente, em 1952, o cargo de Diretor do Inep, no qual criou o CBPE, vinculado aos cinco Centros Regionais distribuídos pelo País.

Os Centros foram inaugurados em 1955, com exceção do de Pernambuco, que só começou a funcionar em 1957, pois Anísio Teixeira aguardava a resposta positiva de Gilberto Freyre para dirigi-lo (Viana Filho, 1990). Gilberto Freyre era um autor que já tinha uma obra, escrevia, conferenciava, publicava em editoras e jornais. Tinha status e poder, construídos pelo reconhecimento de suas práticas. O nome Gilberto Freyre, nesse período, remetia a uma série de significados, a uma “tradição”, a uma prática.

Nesse momento, Anísio Teixeira e Gilberto Freyre, autores já instituídos, possibilitaram outras práticas quando exerceram a função, respectivamente, de Diretor do Inep e de Diretor do CRPE de Pernambuco.

O CRPE de Pernambuco, assim como os outros Centros, tinha por objetivo “assanhar” professores, intelectuais, políticos e estudiosos das várias regiões do Brasil, colocando-os para estudarem, pesquisarem e debaterem sobre a Educação e assumindo a ideia de que esta seria necessária para construir uma sociedade moderna. A intenção era fomentar as bases científicas da Educação através da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia e da Filosofia (como uma área de conhecimento que transita pela Ciência e vice-versa). Efetivamente, isso ocorria por meio de cursos, seminários, simpósios, palestras e conferências disponibilizados para os professores vinculados ao Centro, às prefeituras e às secretarias estaduais. Um desses simpósios, Educação para o Brasil, ocorreu em 1960 e foi organizado pelo próprio Centro. Foram oito sessões de estudos, apresentadas por conferencistas com temáticas que pretendiam debater sobre a educação para o Brasil.

A educação para o Brasil ainda era tema de muitas discussões no século 20, quando, nas primeiras décadas, um documento que veio publicamente questionar e propor ações sobre a educação para o Brasil foi a proposta do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” (Azevedo et al., 2010AZEVEDO, F. et al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2010. ). Para os signatários desse Manifesto, mesmo depois de 43 anos de República, a educação no Brasil estava desarticulada e fragmentada, sendo necessário constituir um sistema gratuito, público, laico e descentralizado. Enfatizavam que os investimentos na educação seriam necessários e essenciais para o desenvolvimento da sociedade brasileira, partindo da ideia de que a sociedade instruída é capaz de salvar o País, fazendo-o entrar nos eixos do desenvolvimento. De certa maneira, durante os anos posteriores, esses signatários (e o Manifesto) tornam-se referência, publicando livros, realizando conferências e, especialmente, reformas em vários estados. Apesar de importantes, essas ações foram pontuais (Aranha, 2013ARANHA, M. L. A. História da educação e da Pedagogia: geral e Brasil. São Paulo: Moderna, 2013. ). Ainda nos anos 1950/1960, eles se questionavam sobre a educação para o Brasil, tanto que a organização dos próprios Centros (o Brasileiro e os Regionais) veio para tentar tornar sistemática, universal, laica e descentralizada a educação.

Como dissemos, o CRPE atendia a uma política nacional e tinha por objetivo promover o debate e a pesquisa da educação por meio de cursos, seminários, simpósios, palestras, conferências, escola experimental e outros. Contemplando essas ações, em 1960, foi organizado o Simpósio Educação para o Brasil, com sessões nas quais os professores/conferencistas puderam debater com os ouvintes. Luís Delgado conferenciou sobre as “Tarefas do pensamento brasileiro”; Paulo Frederico Maciel falou acerca de “Ideologia e grupos ideológicos do Brasil”; Newton Sucupira apresentou “Um humanismo brasileiro e o seu papel educacional”; Rômulo Almeida discorreu sobre “O estado da questão do desenvolvimento”; Levy Cruz ponderou acerca do tema “Tendências de mudanças no Nordeste e a educação”; Aderbal Jurema proferiu sobre “Uma política educacional para o Brasil”; Itamar Vasconcelos contribuiu com suas “Considerações em torno do ensino médio”; Maria Antônia Mac Dowell falou acerca do “Ensino secundário para o Brasil”; e Paulo Freire discorreu sobre a “Escola primária para o Brasil” (Pernambuco. CRPE, 1963, p. 26).

Apesar de os textos dessas palestras terem sido publicados, em 1960, pelo próprio CRPE, eles não foram encontrados em nossas pesquisas. Porém, além dessa publicação, um dos participantes, o professor Paulo Freire, teve sua conferência publicada na RBEP, em 1961: “Escola primária para o Brasil”.

Escola primária para o Brasil

Paulo Freire atuava no CRPE desde a instalação, quando inscreveu o projeto Vocabulário infantil de crianças de 7 a 12 anos em Pernambuco. Logo depois, entre março de 1958 e junho de 1959, participou do curso Problemas de política e administração escolares no Nordeste brasileiro. Nessa ocasião, apresentou a conferência “Escola e comunidade - considerações a propósito de suas relações” e foi debatedor em outra, “Reflexões humanísticas sobre o ensino oficial no Nordeste, proferida pelo professor Cônego Hélio Souza (Pernambuco. CRPE, 1960). Provavelmente2 2 Digo provavelmente porque, nessa época, estava sendo finalizado o concurso para professor Catedrático da Cátedra Filosofia e História da Educação - na antiga Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - em que Freire estava concorrendo e havia perdido. O concurso foi no mesmo período da conferência, a partir do momento que Freire perdeu a Cátedra, ele não lecionou mais como professor interino. Ver contextualizações e depoimentos em Freire (2003). , quando foi convidado por Gilberto Freyre para proferir a conferência, em 1960, trabalhava na Universidade do Recife como professor interino (atual professor substituto) do curso de Desenho, lecionando a disciplina História e Filosofia da Educação, e já havia começado a atuar no Movimento de Cultura Popular (MCP).

Muito inspirado no isebiano Álvaro Vieira Pinto, como ele mesmo indica, Paulo Freire começa sua conferência fazendo uma importante reflexão sobre a sociedade brasileira: uma sociedade alienada, sem esperança e com as elites distantes da cultura popular - vivendo, portanto, uma época de trânsito que só viria a cessar entrando no eixo do desenvolvimento, por meio do diálogo das elites com o povo, levando-os a conseguir a consciência popular.

Para Freire, é praticamente impossível o Brasil conquistar o desenvolvimento econômico sem que haja a inclusão de um povo consciente. Para tornar o povo consciente, seria necessário investir no nosso sistema educacional, reformando-o. A fim de validar sua estratégia, ele compara a realidade brasileira, uma economia subdesenvolvida, com as realidades da Rússia e dos Estados Unidos, países desenvolvidos que investiram na Educação e, especialmente, na qualificação da mão de obra, formando engenheiros, médicos, professores e técnicos para indústrias. Assim, seria necessária uma revisão no nosso processo educativo.

Ao tratar especificamente do seu tema, a escola primária, Paulo Freire traz alguns dados históricos sobre o problema da educação popular, enfatizando que, desde o Brasil Colônia, as escolas populares são insuficientes. Continuando sua exposição, traz exemplos de alguns locais (Recife, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Bahia), mostrando que, mesmo depois (em meados do século 19), havia uma desproporção significativa entre o número de escolas primárias e o da população que necessitava se escolarizar.

Apesar de Freire não citar os Pioneiros da Escola Nova, sua análise sobre o sistema escolar brasileiro provavelmente ressoou deles. É importante dizer que as ideias defendidas por Freire no artigo estão na sua tese de concurso - ideias defendidas nessa mesma época, mas escritas em 1959, quando se inscreveu para o concurso de Catedrático -, inclusive, ele se refere à sua tese Educação e atualidade brasileira no artigo. Posto isso, é válido dizer que, na sua tese de concurso (Freire, 2003), ao se justificar pela escolha do tema do trabalho, afirma que não chegou “com ares de donos”. E continua:

É aspecto que vem sendo debatido ora direta, ora indiretamente, em algumas de suas dimensões, por sociólogos, educadores, economistas e pensadores brasileiros, em estudos, muitos dos quais, objetivos e lúcidos. (Freire, 2003FREIRE, P. Educação e atualidade brasileira. 3. ed. São Paulo: Cortez ; Instituto Paulo Freire, 2003., p. 9).

Mas a escola primária no Brasil, historicamente, nunca foi priorizada. Desde a Independência, o ensino superior e o secundário (propedêutico) eram as prioridades. Essa realidade, com as escolas de primeiras letras e a escola primária (hoje educação básica dos anos iniciais), também se arrastou pela República (Aranha, 2013ARANHA, M. L. A. História da educação e da Pedagogia: geral e Brasil. São Paulo: Moderna, 2013. ). Não é à toa que, ainda em 1932, os Pioneiros da Escola Nova denunciavam esse descaso em relação à escola primária e, em contrapartida, indicavam, justamente, que a escola primária seria fundamental para uma democracia, inclusive devendo ser rigorosamente articulada com os ensinos secundário e superior (Azevedo et al., 2010AZEVEDO, F. et al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2010. ).

No entender de Anísio Teixeira, a escola primária era o mínimo que o Brasil deveria oferecer de maneira universal para a população. Seria a mais importante escola do sistema de educação - e precisaria ser reconhecida como tal. Não que o ensino médio e o superior não fossem relevantes, mas, para acelerar o progresso, a escola primária deveria ser prioridade (Teixeira, 2007aTEIXEIRA, A. S. Educação não é privilégio. 7. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007a. (Coleção Anísio Teixeira, 6)., p. 117).

A educação primária é um tema tão latente que, no CRPE, boa parte das atividades promovidas foram voltadas para o aperfeiçoamento profissional de professoras primárias, inclusive das que ainda estavam em formação. Foram oferecidos cursos de inglês, de aperfeiçoamento do magistério, para supervisores, sobre livro didático etc. (Pernambuco. CRPE, 1963PERNAMBUCO. Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife (CRPE). Resenha Histórica [do CRR]. Cadernos Região e Educação, Recife, v. 3, n. 6, p. 1-58, dez. 1963. Anexo.). As conferências proferidas trataram sobre a instrução primária em Pernambuco, os problemas administrativos do ensino primário e a situação atual do ensino primário no mesmo estado, e as estatísticas do ensino primário no Nordeste (Pernambuco. CRPE, 1960PERNAMBUCO. Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife (CRPE). Educação e Região: problemas de política e administração escolares no Nordeste brasileiro. Recife: CRPE, 1960., p. 29).

Então, ao abordar o tema “escola primária para o Brasil”, Freire está contemplando algo que era recorrente naqueles anos. O próprio Movimento de Cultura Popular, no que se refere à educação do Recife, foi uma iniciativa da prefeitura que, com os educadores católicos Paulo Freire, Paulo Rosas, Norma Porto, Germano Coelho, entre outros, esforçou-se para organizar uma espécie de sistema escolar primário público municipal - que, na época, era praticamente inexistente no Recife.

Além da necessidade de universalizar a oferta da escola primária, Freire (1961FREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 35, n. 82, p. 15-33, abr./jun. 1961., p. 21) afirma que as poucas escolas existentes possuíam o ensino pautado “na verbosidade, na memorização, na sonoridade da palavra”. E continua: “o doloroso, isto sim, é a inadequacidade total da nossa escola que insiste num verbalismo terrível e na doação de meia dúzia de conhecimentos a que falta de instrumentalidade” (Freire, 1961FREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 35, n. 82, p. 15-33, abr./jun. 1961., p. 23). Ele está reclamando de uma escola na qual o conhecimento a ser valorizado é apenas o do livro. O professor repassa esse conhecimento livresco e o aluno deve repeti-lo, memorizando-o; portanto, não consegue participar com base nas suas experiências e reflexões. Seria uma escola inadequada à realidade brasileira, no sentido de não atender às especificidades locais e regionais. Essa forma de proceder é incapaz de fixar o aluno na escola, pois está desvinculada do meio em que o estudante vive, bem como está fora da sua realidade no mundo do trabalho (Freire, 1961FREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 35, n. 82, p. 15-33, abr./jun. 1961.). Seria uma crítica à escola tradicional, em que o processo ensino-aprendizagem está focado nas escolhas do professor, com vistas a contemplar as premissas da Escola Nova, em que o foco da aprendizagem está no aluno e na realidade em que vive.

A escola/ensino tradicional foi alvo das críticas dos signatários do “Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova”, que desejavam substituí-la por uma escola/ensino que percebesse o aluno como aquele que está ativo no processo pedagógico, respeitando as especificidades de cada um. Seria a Escola Nova, especialmente baseada nos ensinamentos de John Dewey, reconhecido como um dos seus principais teóricos. As próprias ações dos reformadores (a maioria signatários do Manifesto), nos anos que se seguem, visam reformar a educação também nesse sentido. Com relação a isso, o Manifesto dizia:

Nessa nova concepção da escola, que é uma reação contra as tendências exclusivamente passivas, intelectualistas e verbalistas da escola tradicional, a atividade que está na base de todos os seus trabalhos, é a atividade espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das necessidades do próprio indivíduo (Azevedo et al., 2010AZEVEDO, F. et al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2010. , p. 49).

No ensino em que o foco da aprendizagem se volta para o aluno, leva-se em consideração sua experiência e a realidade em que vive. Por isso, também a necessidade de uma escola descentralizada, alinhada à região e às suas singularidades.

Numa entrevista concedida em 1933 ao Jornal A Nação, Anísio Teixeira, ao definir em linhas gerais o ensino, afirmou: “a União deve, a meu ver, fugir de qualquer atuação centralizadora que venha diminuir o vigor das iniciativas e experiências regionais locais” (Teixeira, 2007bTEIXEIRA, A. S. Educação para democracia: introdução à Administração Educacional. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007b. (Coleção Anísio Teixeira, 4)., p. 246). Ou seja: é necessário priorizar uma escola/ensino que preze pela autonomia, pela administração, pelos professores e interesses locais etc.

No tocante à falta de experiências que atendam à realidade de áreas urbanas, Freire aponta que a necessidade de os alunos trabalharem vem provocando o abandono estudantil nas últimas séries nas escolas primárias. Ele recorda que, na época em que dirigiu a Divisão de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria (Sesi) de Pernambuco, presenciou vários casos, entre eles o de um menino “apático e tristonho” diante da aula que estava assistindo. Freire conclui daí a ideia de que precisamos de escolas primárias em que “se estude e se trabalhe”, onde se ensine a escrever, ler e contar, mas em que também se ensine sobre a realidade brasileira. Escolas que façam os alunos entenderem melhor o local em que nasceram, cresceram e de que ainda fazem parte. A escola primária da época, para Freire, estaria alheia às necessidades dos trabalhadores brasileiros, dificultando ainda mais a qualificação da mão de obra. Com suporte em dados estatísticos (relatório do Ministério da Educação, dados do Sesi e boletins da Capes), ele argumenta que esses problemas causam repetência e abandono dos alunos.

Numa de suas notas de rodapé, Freire (1961FREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 35, n. 82, p. 15-33, abr./jun. 1961., p. 24) afirmou que não compreende como até aquele momento, no Nordeste brasileiro, não se tenha refletido, pelo menos até onde ele conheça, sobre as ações de oferecer ao aluno, em vez de livros de leitura, triagens do “romanceiro popular”, leituras autênticas de um Nordeste, de uma região original. Continua Freire (1961FREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 35, n. 82, p. 15-33, abr./jun. 1961., p. 26):

Ao invés de leituras assim, acompanhadas de esclarecimento de uma riqueza imensa, e ao lado de outras da mesma forma autênticas, insiste-se quase sempre em histórias sem gosto e sem organicidade. Meninos e meninas de zona subproletárias e rurais, intensamente sofridas por suas precaríssimas condições econômicas, a ler descrições de passeios a fazendas de tios Mários, de que talvez apenas o nome do “tio” lhes seja peculiar. Quando, na verdade o que lhes devia ser familiar seria a “situação”.

Didaticamente, seria uma forma de ensinar que faria sentido para o aluno. Essas questões relacionadas à autenticidade e à originalidade do Nordeste muito se assemelham às ideias de Gilberto Freyre acerca de um Nordeste autêntico e original. Este, além de ser um autor instituído, nessa época era um diretor atuante no CRPE e estava presente em muitas das conferências do curso, algo que deve ter apimentado vários momentos, acalorando muitos debates. Mesmo quando não estava presente, de fato, nas conferências, Gilberto Freyre era lembrado com agradecimentos, saudações, elogios e referências de suas conferências direcionadas às professoras, como Palavras às professoras rurais do Nordeste e Sugestões para uma nova política no Brasil: a rurbana (Freyre, 1957aFREYRE, G. Palavras às professoras rurais do Nordeste. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 28, n. 68, p. 40-50, out./dez. 1957a.; Pernambuco. CRPE, 1960PERNAMBUCO. Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife (CRPE). Educação e Região: problemas de política e administração escolares no Nordeste brasileiro. Recife: CRPE, 1960.). Essas conferências já haviam sido publicadas pela Secretaria de Educação de Pernambuco e foram publicadas, também, pela Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, em 1957.

Como já dissemos, tudo indica que, até aquele momento, apenas as conferências/textos dos pernambucanos Antônio Carneiro Leão, Gilberto Freyre e Newton Sucupira haviam circulado pela RBEP. Então, de certa forma, Paulo Freire recebe esse prestígio de ter também um texto publicado na Revista em 1961.

Ainda com relação ao artigo de Paulo Freire, outro aspecto importante é a analogia que ele fez com os Centros Transmunicipais de Cultura, idealizados por Gilberto Freyre na conferência Sugestões para uma Nova Política no Brasil: a rurbana (Freyre, 1957FREYRE, G. Palavras às professoras rurais do Nordeste. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 28, n. 68, p. 40-50, out./dez. 1957a.b). Nessa conferência, também publicada na RBEP, Gilberto Freyre sugere a construção de Centros Transmunicipais de Cultura, Assistência e Recreação, os quais uniriam os valores rurais e os urbanos. Para tanto, Freyre (1957bFREYRE, G. Sugestões para uma nova política no Brasil: a rurbana. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 65-82, jan./mar. 1957b.) recomenda que se leve do Recife (e de outros lugares), regularmente, teatro, livros, autores e “músicas boas”, provocando uma “vida nova no interior do Brasil”, a fim de que as pessoas dos municípios interioranos possam ter o contato direto com o “saber e arte do País”, vendo e ouvindo César Lattes, Manuel Bandeira, Anísio Teixeira, Carlos Drummond, Villa Lobos e José Lins do Rego. Já Paulo Freire (1961FREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 35, n. 82, p. 15-33, abr./jun. 1961., p. 26) traz essa sugestão para os contextos pedagógicos, defendendo que o poder público, junto aos outros poderes, poderia criar, nas áreas rurais, agências populares/centros (com escolas primárias ou não) ajustados às condições do meio.

Freire (1961FREIRE, P. Escola primária para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 35, n. 82, p. 15-33, abr./jun. 1961.) também acreditava que o clima cultural vivido nesses anos ajudaria a resolver o problema da educação, especialmente, se os esforços populares e públicos se juntassem aos privados. A educação no MCP, por exemplo, constituiu-se mediante os esforços populares - tanto que conseguiu, em poucos meses, atender a duas mil crianças em escolas populares espalhadas pelas zonas proletárias do Recife. Isso só foi possível porque houve a colaboração de sociedades beneficentes, clubes e sindicatos, entre as diversas associações que serviam de espaço para as escolas populares.

Na conclusão de seu artigo, o professor nos indica alguns aspectos importantes observados diante dos trabalhos experimentais que realizou: despertar as escolas para os acontecimentos de sua comunidade local, bem como para a necessidade de um trabalho conjunto com a comunidade; melhorar os padrões culturais e técnicos do pessoal docente; promover formas de estabelecer a interação entre as escolas e as famílias, estimulando hábitos de participação e autogoverno; possibilitar melhores formas de assistência ao aluno; estimular as famílias a interagirem com as escolas, inclusive criando associações de pais para funcionar na própria escola. Esses aspectos sugeridos podem nos ajudar a constituir uma escola primária para o Brasil de modo integrado à comunidade, promovendo a participação dos pais na vida escolar dos alunos.

Considerações finais

“Escola primária para o Brasil” foi o único artigo que Paulo Freire publicou na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Esse artigo foi originalmente uma conferência que ele proferiu, em 1960, no Simpósio Educação para o Brasil, promovido pelo Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco, dirigido por Gilberto Freyre e organizado por Anísio Teixeira.

As conferências desse simpósio foram publicadas em formato de artigo pelo próprio Centro, mas, em 1961, quando Freire ainda era um desconhecido, seu texto foi publicado também na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos e reapresentado, em 2005, numa edição comemorativa, ao lado dos grandes educadores do século 20, quando “Paulo Freire” nos remetia a inúmeros significados.

Nosso objetivo neste texto foi conhecer o que pensava Paulo Freire sobre a escola primária pública do Brasil, com base no seu artigo original “Escola primária para o Brasil” (Freire, 1961), resultado da conferência que ele proferiu. Tentando apreender o discurso enquanto ato, identificamos que Paulo Freire, ao falar sobre o “problema da educação popular”, afirmava que, na escola feita para o povo, não existem vagas suficientes, as formas de ensinar são pautadas na memorização e inadequadas à realidade e o que se ensina está desarticulado do mercado de trabalho.

Em 1961, Freire não era um autor instituído, mas revelava com seu texto o caminho que suas ideias percorreriam até serem consolidadas, posteriormente. Nesse percurso, ao analisar esse artigo, deparamo-nos com a presença de autores já instituídos nos quais o professor Paulo Freire assentava suas ideias. Anísio Teixeira (e o “Manifesto dos Pioneiros da Educação NovaAZEVEDO, F. et al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2010. ”) e Gilberto Freyre (articulado ou não ao Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco) têm ideias que estão presentes na conferência de Paulo Freire, o que facilitou a aceitação do seu artigo na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, em 1961.

A RBEP, naquela época, tinha como caminhos oficiais para publicação de artigos o envio para Anísio Teixeira, Diretor do Inep. Sem retirar o mérito de Paulo Freire, nas ideias ali debatidas, o fato de ele ter conferenciado num simpósio promovido pelo CRPE pode ter facilitado essa publicação. E mais: ressaltar aspectos de uma escola primária que deveria ser prioridade, que deveria ser organizada para atender à realidade da população, no sentido de estar atenta às características locais e regionais, tal qual pretendiam Anísio Teixeira e Gilberto Freyre, via Centro Regional ou não, pode, sim, ter colaborado para essa aceitação.

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  • 1
    Se nos remetermos às décadas anteriores, por exemplo, teremos publicações do reformador pernambucano Antônio Carneiro Leão.
  • 2
    Digo provavelmente porque, nessa época, estava sendo finalizado o concurso para professor Catedrático da Cátedra Filosofia e História da Educação - na antiga Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - em que Freire estava concorrendo e havia perdido. O concurso foi no mesmo período da conferência, a partir do momento que Freire perdeu a Cátedra, ele não lecionou mais como professor interino. Ver contextualizações e depoimentos em Freire (2003).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2023
  • Aceito
    17 Maio 2024
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