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Didática na educação infantil: mediação para humanização de crianças

Didactics in Childhood Education: mediation for humanization of children

Didáctica en la educación infantil: mediación para la humanización de los niños

Resumo:

O artigo trata de pesquisa realizada com o objetivo de analisar significações produzidas por discentes acerca do ensino na educação infantil com vistas à humanização das crianças. A investigação envolveu 21 discentes do quinto período de um curso de Pedagogia. Os dados foram produzidos em roda de conversa, diário formativo, construção de brinquedos e memoriais formativos durante a disciplina Didática da Educação Infantil. Os resultados evidenciam que os estudos pautados na Psicologia Histórico-Cultural e na Pedagogia Histórico-Crítica colaboram para que as discentes em formação avancem na compreensão do desenvolvimento da criança atrelado à maturação biológica para o desenvolvimento do psiquismo envolvendo a produção de funções psicológicas superiores, mediado pelo brincar como atividade guia do desenvolvimento infantil. Conclui-se que os fundamentos das teorias histórico-culturais medeiam a expansão de significações sobre a atividade pedagógica com vistas à humanização das crianças.

Palavras-chave:
educação infantil; didática; humanização

Abstract:

This study tackles the research conducted with the purpose of analyzing the contexts produced by students regarding teaching in childhood education within a perspective on the humanization of children. The investigation involved 21 students from the fifth period of a pedagogy course. The data derived from a conversation circle, formative diary and production of toys and formative memorials during the course Didactics of Childhood Education. The results demonstrate that studies based on Cultural-Historical Psychology and Historical-Critical Pedagogy aid students in the understanding of child development tied to the biological maturation in order to develop psychism involving the production of higher psychological functions, interceded by playtime as a guiding activity of child development. Thus, it was concluded that the foundations of the historical-cultural theories mediate the expansion of contexts regarding the pedagogical activity with a focus on the humanization of children.

Keywords:
childhood education; didactics; humanization

Resumen:

El artículo aborda una investigación realizada con el objetivo de analizar los significados producidos por los estudiantes sobre la enseñanza en educación infantil con miras a humanizar a los niños. La investigación involucró a 21 estudiantes del quinto semestre de la carrera de Pedagogía. Los datos se produjeron en círculo de conversación, diario de formación, producción de juguetes y memoriales de formación durante la asignatura Didáctica de la Educación Infantil. Los resultados muestran que los estudios basados en la Psicología Histórico-Cultural y la Pedagogía Histórico-Crítica ayudan a los estudiantes en formación a avanzar en la comprensión del desarrollo infantil vinculado a la maduración biológica para el desarrollo del psiquismo, involucrando la producción de funciones psicológicas superiores, mediadas por el juego, como actividad orientadora del desarrollo infantil. Se concluye que los fundamentos de las teorías histórico-culturales median en la ampliación de significados sobre la actividad pedagógica con miras a la humanización de los niños.

Palabras clave:
educación infantil; didáctica; humanización

Introdução

De modo geral, quando se reflete acerca da formação de professores, muito se discute sobre saberes, competências e autonomia e pouca luz se coloca sobre as bases epistemológicas que orientam a construção desses saberes, dessas competências, dessa autonomia. Como bem destaca Mello (2015MELLO, S. A. Contribuições da Teoria Histórico-Cultural para a educação da pequena infância. Cadernos de Educação, Pelotas, n. 50, p. 1-12, 2015., p. 2), quando o assunto é a formação docente, pouco se tem ensinado “sobre os fundamentos que devem orientar as escolhas que profissionais da educação precisam fazer no seu trabalho pedagógico”.

Ao situarmos essa discussão no campo da educação infantil, outras questões somam-se a essa, sobretudo questões em torno do que e do como ensinar às crianças pequenas e, ainda, se de fato os professores devem se preocupar com o ensino nessa etapa da educação básica, tendo em vista a existência de movimentos que defendem a persistência do enfoque antiescolar e antiensino na educação infantil, que, em nome do “respeito à infância”, defendem o “pedagogismo espontaneísta, a reiteração da cotidianidade e a prevalência de conhecimentos do senso comum” (Pasqualini; Martins, 2020PASQUALINI, J. C.; MARTINS, L. M. Currículo por campos de experiência na educação infantil: ainda é possível preservar o ensino desenvolvente? Revista On-line de Política e Gestão Educacional, Araraquara, v. 24, n. 2, p. 425-447, maio/ago. 2020. , p. 444). Nessa perspectiva, a educação infantil deveria dar lugar ao desenvolvimento natural e espontâneo da criança, o que dispensaria o professor de qualquer preocupação com a didática nessa etapa de ensino.

Partindo de uma posição contrária e da nossa vivência como professoras no curso de Pedagogia, apresentamos neste artigo uma alternativa de organização do ensino na educação infantil com vistas a possibilitar a aprendizagem e o desenvolvimento humano das crianças em idade escolar. Essa condição para desenvolver a docência nessa etapa requer que discentes em formação inicial vivenciem processos formativos assentados em bases epistemológicas que, de acordo com Nascimento (2020NASCIMENTO, R. O. Atividade simbólica na perspectiva da abordagem histórico-cultural de Lev S. Vigotski. Aprender: Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação, Vitória da Conquista, v. 14, n. 23, p. 54-71, jan./jun. 2020. , p. 57), orientem a compreensão “de desenvolvimento humano não como fenômeno puramente quantitativo e natural, mas pensá-lo no plano do desenvolvimento cultural e enfocar historicamente as formas superiores de conduta”. Destarte, é oportuno reiterar que não temos a pretensão de sugerir modelos supostamente mais eficazes de ensino e aprendizagem na educação infantil, mas apenas oferecer novas possibilidades de atuação para os docentes em processo de formação inicial.

Com fundamento nesse compromisso, temos nos dedicado ao ensino da disciplina Didática da Educação Infantil, ofertada a discentes do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Piauí. No contexto dessa disciplina, empreendemos esforços no sentido de organizar situações sociais de aprendizagem que levem nossos(as) discentes a compreenderem conceitos básicos e necessários ao desenvolvimento da atividade pedagógica na educação infantil. Um deles é o conceito de humanização numa perspectiva histórico-cultural (Leontiev, 1978LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.; Saviani, 1997SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 6. ed. Campinas: Autores Associados , 1997.; Vigotski, 2000VIGOTSKI, L. S. Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, Campinas, v. 21, n. 71, p. 21-44, jul. 2000.).

De acordo com essa perspectiva teórica, no curso de formação de professores(as), trabalhamos a compreensão de que não nascemos humanos - humanizamo-nos à medida que produzimos nossa própria existência, mediatizando, regulando e controlando esse processo pela nossa atividade. O resultado dessa atividade é o surgimento de funções humanas historicamente formadas, ou seja, funções psíquicas superiores, como imaginação, memória, emoção, pensamento, linguagem, criatividade, atenção dirigida, formação de conceitos, afetos. Nesse sentido, nossos(as) discentes em formação inicial têm a possibilidade de compreender que a humanização da criança se dá conforme ela consegue converter o social (relações sociais vivenciadas na sala de aula) em individual (funções psicológicas superiores).

Nessa direção, propomos apresentar neste artigo discussões acerca da Didática da Educação Infantil como mediação para o processo de humanização da criança. As reflexões partem da seguinte questão a ser respondida: como se constituem as significações sobre por que ensinar, o que e como ensinar, orientadoras da atividade pedagógica dirigida para a humanização de crianças na educação infantil?

Para respondermos essa questão, realizamos pesquisa crítica (Martins, 2006MARTINS, L. M. As aparências enganam: divergências entre o materialismo histórico dialético e as abordagens qualitativas de pesquisa. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 29., 2006, Caxambu. Anais... Rio de Janeiro: ANPEd, 2006. p. 1-17.) envolvendo um grupo de 21 discentes do quinto período do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Piauí, no segundo semestre do ano de 2022, durante a disciplina Didática da Educação Infantil. O objetivo foi analisar as significações produzidas por discentes acerca do ensino na educação infantil com vistas à humanização das crianças.

O artigo está estruturado em três seções, além desta introdução e da conclusão. Na primeira, discutimos de forma mais aprofundada as concepções que subsidiam a educação para a formação humana na infância, tendo como fundamentos a Psicologia Histórico-Cultural e a Pedagogia Histórico-Crítica. Na segunda seção, discorremos sobre a metodologia da pesquisa. Na terceira, apresentamos uma síntese dos principais resultados alcançados na investigação. Finalizamos com considerações que nos ajudam a continuar refletindo sobre o desafio de formar discentes para o exercício da docência por meio de epistemologias que contribuam para a compreensão acerca de como criar as condições para a máxima humanização de nossas crianças na escola.

Ensinar na educação infantil: considerações a partir da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica

Pensar a educação infantil como uma etapa de ensino que tem condições de mediar o processo de humanização da criança de 0 a 5 anos e 11 meses é considerar o brincar como conteúdo e forma da atividade pedagógica. Desse modo, devemos discorrer acerca do que se trata o processo de humanização da criança.

De acordo com Leontiev (1978LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.), não nascemos humanos, e sim nos tornamos humanos, à medida que nos apropriamos daquilo que é necessário para viver em um mundo humano. Portanto, a nossa humanidade tem natureza social e seu desenvolvimento é sócio-histórico. Marques (2021MARQUES, E. S. A. Prática educativa e a reprodução da realidade humano-social. In: ADAD, S. J. H. C.; LIMA, J. D. S.; BRITO, A. E. Práticas educativas: múltiplas experiências em educação. Fortaleza: Eduece, 2021. p. 110-129.) esclarece que o único ser que necessita ser educado para apropriar-se do que o habilita para viver em sociedade é o ser humano. Nenhum outro animal precisa de algo a mais para ser reconhecido dentro da sua espécie. O gênero humano, sim, precisa ser apropriado pelos indivíduos da espécie humana. Na mesma direção, Saviani (1997SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 6. ed. Campinas: Autores Associados , 1997., p. 286) pontua que “a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica”. O autor considera que o trabalho educativo “é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (Saviani, 1997SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 6. ed. Campinas: Autores Associados , 1997., p. 21).

Em síntese, esses autores explicam que as qualidades humanas que nos identificam como humanos não nascem conosco; elas são resultado da nossa relação com a cultura produzida pela humanidade. Usando como exemplo o desenvolvimento da criança, entendemos que pensamento, linguagem, cognição, afetos, criatividade, criticidade, imaginação, memória, hábitos e habilidades, enfim, características tipicamente humanas que a definem e a singularizam e são essenciais para que ela possa se relacionar com o mundo na sua dimensão natural e social, são produzidos historicamente. Portanto, se o processo de humanização da criança é histórico e social, sua educação escolar precisa garantir as máximas condições de aprendizagem e desenvolvimento. E como garantir isso na educação infantil? Como organizar a atividade pedagógica tendo em vista essa intencionalidade? É preciso dar centralidade à brincadeira, porque, na infância, essa é a atividade que guia o desenvolvimento humano da criança (Leontiev, 2010LEONTIEV, A. N. Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar. In: VIGOTSKI, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 11. ed. São Paulo: Ícone, 2010. p. 119-142.; Vigotski, 2021VIGOTSKI, L. S. Psicologia, educação e desenvolvimento: escritos de L. S. Vigotski. Organização e tradução: Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São Paulo: Expressão Popular, 2021.).

Com suporte nessa compreensão, assumimos a defesa de uma didática na educação infantil que dê centralidade à brincadeira, tendo em conta que:

A brincadeira é fonte de desenvolvimento e cria zona de desenvolvimento iminente. A ação intencional, mudança de motivos, objetivos, intenção voluntária, atenção dirigida, memória, tudo isso surge na brincadeira, colocando-a num nível superior de desenvolvimento. (Vigotski, 2021VIGOTSKI, L. S. Psicologia, educação e desenvolvimento: escritos de L. S. Vigotski. Organização e tradução: Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São Paulo: Expressão Popular, 2021., p. 235).

Como enfatiza Vigotski (2021VIGOTSKI, L. S. Psicologia, educação e desenvolvimento: escritos de L. S. Vigotski. Organização e tradução: Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São Paulo: Expressão Popular, 2021.), a atividade de brincar é fonte de desenvolvimento e condição para o processo de humanização da criança. Quando ela brinca, entra em relação com objetos que permitem a apropriação da cultura humana. A necessidade de interagir com o outro, de manusear objetos, de se comunicar, de experimentar ações realizadas pelos adultos, motiva a criança a agir, e nas ações ela aprende a controlar sua conduta na medida em que respeita as regras da brincadeira. Na brincadeira com bonecas em que imita a mãe, a criança fala como se fosse a mãe e emprega a linguagem e as atitudes que esse papel social demanda. Ao imitar o cuidado com o bebê, desenvolve a memória, por meio do balbucio ou já usando seu repertório de palavras. Tudo isso que é possibilitado pela atividade do brincar se constitui em fonte de humanização.

Aqui, reiteramos argumentos de Vigotski (2021VIGOTSKI, L. S. Psicologia, educação e desenvolvimento: escritos de L. S. Vigotski. Organização e tradução: Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São Paulo: Expressão Popular, 2021.), quando ressalta que a criança não brinca o tempo todo, mas é na brincadeira de papéis que ocorrem as principais transformações no seu psiquismo. Quando o objeto ou o brinquedo deixa de determinar sua conduta e ela passa a operar com o significado das coisas, nesse momento, por exemplo, cadeiras podem se transformar em trem com seus vagões e ela brinca de andar de trem. Isso representa um salto no desenvolvimento do psiquismo da criança porque sua conduta não é mais determinada pela relação imediata que estabelece com o meio social, mas pelo conjunto de significações que ela vem produzindo e das quais se apropria.

Vigotski (2021VIGOTSKI, L. S. Psicologia, educação e desenvolvimento: escritos de L. S. Vigotski. Organização e tradução: Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São Paulo: Expressão Popular, 2021.) atribui esse salto sobretudo a duas funções psicológicas superiores que estão sempre presentes nas atividades do brincar: a imaginação e a criação. Por exemplo, a imaginação e a criação estão sendo objetivadas no uso do objeto cadeira, que deixa de ser apenas uma cadeira para se transformar nos vagões de um trem. Como explicita Faria e Hai (2020FARIA, M. O.; HAI, A. A. (Re)significando o brincar na educação infantil a partir da Teoria Histórico-Cultural. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 15, n. 1, p. 95-109, jan./mar. 2020. , p. 102), “a brincadeira revela tanto aspectos do mundo real quanto da situação imaginária, ou seja, das experiências e conhecimentos acumulados”.

Destarte, o processo de humanização da criança é constituído pelas apropriações e objetivações dos conhecimentos historicamente produzidos pelos seres humanos; humanizar-se é produzir o humano em nós, e esse processo é revelado nas características tipicamente humanas que a criança desenvolve, como a linguagem, por exemplo. Por essa razão, entendemos que a atividade pedagógica na educação infantil precisa possibilitar a vivência da brincadeira, tendo em vista que, por meio desta, a criança produz motivos para agir e experimenta o mundo de uma maneira singular e desafiadora.

Pensar o ensino na educação infantil é considerar a necessidade da criança de brincar. É contemplar práticas de cuidado e educação. Ao planejarem espaços e tempos para as crianças brincarem, os professores oferecem a elas condições de se humanizarem, de se desenvolverem. Ao tratarem desse tema, Faria e Hai (2020FARIA, M. O.; HAI, A. A. (Re)significando o brincar na educação infantil a partir da Teoria Histórico-Cultural. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 15, n. 1, p. 95-109, jan./mar. 2020. ) destacam ainda que a brincadeira na educação infantil é promotora da aprendizagem científica e deve ser trabalhada aliada ao cuidado, tendo sempre em vista a aprendizagem e o desenvolvimento da criança.

Essa forma de conceber o ensino na educação infantil passa pela compreensão da criança como ser situado historicamente, um indivíduo concreto, que aprende ao se relacionar com o mundo e por meio de mediações criadas pelo adulto, podendo se desenvolver em suas máximas potencialidades.

A atividade de brincar, conforme a Psicologia Histórico-Cultural e a Pedagogia Histórico-Crítica, relaciona-se ao que Elkonin (2009ELKONIN, D. B. Psicologia do jogo. Tradução de Álvaro Cabral. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009., p. 160) pontua sobre a vinculação do jogo às necessidades da criança e a “originalidade do mundo em que vive a criança, mas, é um mundo objetivo e, para tipificá-lo, é necessário conhecer as condições objetivas com as quais [a criança] se encontra em interação social”. Para o autor, a criança não vive um mundo diferente do adulto, porque no jogo ela atua com objetos e situações da vida real. Nesse processo, objetiva a cultura humana e apropria-se dela, ou seja, a formação humana da criança ocorre pela mediação da sua atividade principal, que, na educação infantil, é o brincar.

A chave para explicar o lugar da atividade de brincar na vida da criança e no ensinar na educação infantil está na função simbólica do jogo. É nessa atividade que a criança utiliza certos objetos com outros significados e os converte em signos seus. E o foco é o uso funcional: nesse momento, uma caixa de papelão se transforma em carro, transportando as pessoas de um local para outro. Desde os jogos de manipulação ao jogo protagonizado, a criança age pela necessidade de conhecer o mundo em que vive.

Lazaretti e Mello (2018LAZARETTI, L. M.; MELLO, M. A. Como ensinar na educação infantil? Reflexões sobre a didática e o desenvolvimento da criança. In: PASQUALINI, J. C.; TEIXEIRA, L. A.; AGUDO, M. M. (Org.). Peda gogia histórico-crítica: legado e perspectivas. Uberlândia: Navegando, 2018. p. 117-133. ), ao tratarem da didática para educação infantil, revelam o desafio que é pensar o ensino para crianças de 0 a 5 anos e 11 meses. Para as autoras, a realidade do não ensino na educação infantil revela práticas que oscilam entre cuidados com higiene, segurança, alimentação ou antecipação da alfabetização com exercícios repetitivos, sendo que, de modo algum, isso é suficiente quando se almeja a aprendizagem e o desenvolvimento da criança em suas máximas possibilidades. As autoras defendem o cuidar e o educar na educação infantil como práticas indissociáveis no processo de humanização das crianças, algo que vai muito além de preparar espaços, escolher materiais e submetê-las a práticas repetitivas e mecanizadas de alfabetização. Cuidar e educar com vistas à humanização requer dos docentes o compromisso com o desenvolvimento infantil em seus aspectos afetivos, sociais, intelectuais e identitários.

Em síntese, nossa compreensão é a de que as atividades pedagógicas na educação infantil, desde a educação dos bebês, envolvendo a hora da alimentação, do sono e da higiene, são momentos formativos para se trabalhar o desenvolvimento da criança em suas máximas possibilidades (Mello, 2012MELLO, S. A. O lugar da cultura na educação da infância: contribuições do enfoque histórico-cultural da psicologia à educação. In: ANGOTTI, M. (Org.). A educação infantil em diálogos. Campinas: Alínea, 2012. p. 47-63.; Martins, 2019MARTINS, M. N. F. Prática pedagógica da educação infantil mediada pelo brincar: de estratégia de ensino à atividade guia do desenvolvimento integral da criança. 2019. 312 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2019.). Entretanto, entendemos que a rotina das crianças da educação infantil vai além dessas ocasiões, pois as professoras podem pensar nas necessidades da criança e planejar momentos de leitura de histórias, de exploração do espaço físico da sala, da escola, de manipulação de objetos, do movimento do corpo, de conversas com as crianças, criando, assim, situações sociais potentes para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores.

Acreditamos que o objetivo da educação infantil é a formação humana da criança pela apropriação e objetivação da cultura humana, dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade e que fazem parte da sua vida. Assim, reitera Martins (2019MARTINS, M. N. F. Prática pedagógica da educação infantil mediada pelo brincar: de estratégia de ensino à atividade guia do desenvolvimento integral da criança. 2019. 312 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2019., p. 25-26) sobre o objetivo da educação infantil: “é criar condições para apropriação e objetivação da cultura humana pela criança, na qual o adulto é quem planeja e realiza ações para intervir no processo de ensino e aprendizagem, visando ao desenvolvimento infantil em suas máximas potencialidades”.

Com essa compreensão, apresentamos, na próxima seção, os caminhos trilhados para produção dessa discussão sobre o ensino na educação infantil e a formação de professores no curso de Pedagogia da Universidade Federal do Piauí, especificamente, no componente curricular Didática da Educação Infantil.

Metodologia da pesquisa

A pesquisa realizada é de natureza crítica (Martins, 2006MARTINS, L. M. As aparências enganam: divergências entre o materialismo histórico dialético e as abordagens qualitativas de pesquisa. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 29., 2006, Caxambu. Anais... Rio de Janeiro: ANPEd, 2006. p. 1-17., p. 11), uma vez que se caracteriza pelo compromisso em não apenas descrever o real, mas, sobretudo, produzir conhecimento que oriente “a intervenção prática transformadora da realidade”. Participaram da investigação 21 discentes matriculados(as) na disciplina Didática da Educação Infantil, do quinto bloco do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Piauí. Como a turma é composta por 19 discentes do sexo feminino e 2 do sexo masculino, sempre que for preciso, usaremos artigos e pronomes femininos para nos referirmos aos participantes. Ressaltamos que estes serão identificados com a palavra “discente” seguida de letra do alfabeto.

No primeiro dia de aula, ao apresentarmos o plano da disciplina, propusemos a realização da pesquisa com a exposição da proposta, dos objetivos e das etapas. Em seguida, pedimos que lessem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, caso estivessem de acordo, assinassem, concordando em participar das etapas de produção das informações. Foram tomados todos os cuidados éticos na realização deste estudo, conforme determinam as Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016 e a Norma Operacional nº 1 de 2013, do Conselho Nacional de Saúde, que tratam de diretrizes regulamentadoras de pesquisas que envolvem seres humanos.

A produção das informações aconteceu no decorrer da disciplina, por meio das seguintes técnicas: diário formativo, roda de conversa, produção de brinquedos e memoriais formativos. Tendo em vista a limitação de páginas, reunimos neste artigo os resultados alcançados na etapa de produção do memorial formativo.

O memorial formativo era a atividade proposta ao final de cada unidade de ensino. Nessa ocasião, a turma era convidada a produzir um texto sobre as aprendizagens e os saberes constituídos em cada unidade de ensino da disciplina. O objetivo do memorial era analisar as significações apropriadas pela turma sobre os conceitos trabalhados durante as aulas. Um dos conceitos escolhidos como base para a produção do memorial foi o de ensino. Pedimos, então, que a turma elaborasse um memorial no qual pudesse esclarecer as significações produzidas sobre “o que ensinar” e “como ensinar” na educação infantil, tendo como intencionalidade a humanização das crianças.

O procedimento adotado para organização, descrição, análise e intepretação dos dados consistiu em núcleos de significação. Esse método parte das significações, aqui compreendidas como a unidade que expressa “a articulação dialética entre sentidos e significados, revelando que indivíduo e sociedade, pensamento e linguagem, afeto e cognição constituem relações que se configuram como unitárias” (Aguiar; Aranha; Soares, 2021AGUIAR, W. M. J.; ARANHA, E. M. G.; SOARES, J. R. Núcleos de significação: análise dialética das significações produzidas em grupo. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 51, e07305, 2021., p. 3). É crucial esclarecer que esse procedimento tem como fundamento os pressupostos teóricos e metodológicos do Materialismo Histórico-Dialético e seus desdobramentos na Psicologia Histórico-Cultural para sua efetivação (Aguiar; Aranha; Soares, 2021AGUIAR, W. M. J.; ARANHA, E. M. G.; SOARES, J. R. Núcleos de significação: análise dialética das significações produzidas em grupo. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 51, e07305, 2021., p. 3) e segue estes movimentos:

  1. Leitura do material de pesquisa (memorial formativo).

  2. Seleção dos pré-indicadores - trechos das falas dos sujeitos selecionados em função do conteúdo e sua articulação com o objeto da investigação.

  3. Constituição dos indicadores - os indicadores são grupos formados de acordo com os conteúdos temáticos dos pré-indicadores identificados na etapa anterior que, por similaridade, contradição ou complementariedade, mantêm relação entre si.

  4. Organização dos núcleos de significação - são sínteses que reúnem pré-indicadores, conteúdos temáticos e indicadores que se articulam dialeticamente.

Por meio desses movimentos, chegamos à constituição de três núcleos de significação: 1) ensinar na educação infantil exige comprometimento com a formação sociocultural da criança; 2) ensinar com base em conteúdos a serem apropriados pela criança; 3) ensinar mediante planejamento e organização, tendo a brincadeira como atividade principal. Na seção seguinte, analisaremos o conteúdo desses núcleos.

Aprendendo a ser docente durante o curso de Pedagogia: significações de discentes sobre por que ensinar, o que ensinar e como ensinar na educação infantil

Com fundamento na premissa teórica de que toda atividade humana é sempre significada (Vigotski, 2009VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2009.), neste artigo, analisamos os sentidos e significados sobre o ensino na educação infantil produzidos por discentes do curso de Pedagogia em processo de formação inicial. Por que fazer esse estudo com base nos sentidos e significados de discentes em formação inicial?

Considerando, assim como Marques e Carvalho (2019MARQUES, E. S. A.; CARVALHO, M. V. C. Vivência e prática educativa: a relação afeto-intelecto mediando modos de ser professor e aluno. Obutchénie: Revista de Didática e Psicologia Pedagógica, Uberlândia, v. 3, n. 2, p. 1-25, maio/ago. 2019., p. 6), que “os significados e os sentidos são alicerces para o desenvolvimento da atividade consciente”, procuramos estudar os sentidos e significados que discentes do curso de Pedagogia estão produzindo sobre o ensinar na educação infantil.

Os sentidos e significados, segundo Vigotski (2009VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2009.) e Leontiev (1978LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.), são conteúdos da consciência que constituem e revelam parte da totalidade da subjetividade humana; são expressões da unidade entre pensamento e palavra. Embora esses conteúdos evidenciem a subjetividade de cada pessoa, sua origem é sempre social.

A consciência, de acordo com Vigotski (2009VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2009.), forma-se e objetiva-se em atividade; por isso, nossa responsabilidade como professoras formadoras em um curso de graduação é redobrada, tendo em vista que a consciência das futuras docentes se constitui por meio das vivências promovidas no percurso da formação inicial, em grande parte, na vivência das disciplinas que compõem o currículo do curso. Com base nessa perspectiva, delineamos para o desenvolvimento da disciplina Didática da Educação Infantil a seguinte questão-problema: como se constituem as significações sobre por que ensinar, o que e como ensinar, orientadoras da atividade pedagógica dirigida para a humanização de crianças na educação infantil?

Essas significações foram construídas e expandidas durante as aulas da disciplina, com suporte em referenciais teóricos assentados na Psicologia Histórico-Cultural e na Pedagogia Histórico-Crítica. As significações aqui investigadas foram constituídas na etapa de produção de dados identificada como “memorial formativo”, que tinha como objetivo analisar as significações apropriadas pela turma sobre “por que ensinar, o que e como ensinar na educação infantil”, tendo como intencionalidade a humanização das crianças, conforme descrito anteriormente.

Como já informado, a análise das significações produzidas pelas discentes levou a três núcleos de significação: 1) ensinar na educação infantil exige comprometimento com a formação sociocultural da criança; 2) ensinar a partir de conteúdos a serem apropriados pela criança; 3) ensinar a partir de planejamento e organização, tendo a brincadeira como atividade principal.

O primeiro núcleo, ensinar na educação infantil, exige comprometimento com a formação sociocultural da criança e reúne significações que revelam a consciência que está sendo produzida pelas discentes sobre “por que ensinar na educação infantil”. Esse núcleo está organizado em função de dois indicadores: 1) é preciso ensinar na educação infantil e 2) o ensino na educação infantil tem natureza e finalidade específicas.

No primeiro indicador, todos os pré-indicadores selecionados trazem significações que evidenciam a valorização do ensino na educação infantil, refletindo a compreensão de que a criança é um ser que precisa da mediação do outro e do social para se desenvolver humanamente. Vejamos alguns pré-indicadores selecionados que demonstram esse conteúdo:

Para que a criança tenha um convívio social e possa desenvolver habilidades fundamentais à formação humana, além de atividades cognitivas e motoras. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente A).

Para promover à criança acesso a conhecimentos, associados a momentos de socialização, onde a criança tenha liberdade e seja respeitada em suas particularidades... isso vai ser imposto através da brincadeira, cuidados e aprendizagens, a criança pode conhecer os aspectos que fazem parte da cultura e da realidade em que está inserida, ou seja, a educação infantil vai contribuir para o desenvolvimento em todos esses aspectos. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente D).

Para desenvolver atividades pedagógicas que favoreçam o desenvolvimento e aprendizagens das crianças. Sobretudo o desenvolvimento global das crianças. Nos aspectos: físico, social, cognitivo, afetivo, intelectual. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente E).

É muito comum nessa disciplina as discentes iniciarem o curso significando a educação infantil como etapa da educação básica em que a atividade pedagógica seja predominantemente organizada por momentos de lazer, satisfação e recreação, dirigidos para atender às necessidades mais imediatas da criança, sem a preocupação com a atividade de ensinar com intencionalidade pedagógica.

A consciência que predomina é a de que nessa etapa sejam valorizadas as atividades que favoreçam o desenvolvimento natural da criança. A maioria absoluta das discentes chega a essa etapa do curso ainda acreditando que a maturação biológica é o elemento primordial no desenvolvimento infantil e que a aprendizagem fica em segundo plano. Há uma tendência de naturalizar processos que são eminentemente sociais e culturais, por exemplo, o processo de humanização da criança.

Quando a discente A expressa que se ensina na educação infantil “para que a criança tenha um convívio social e possa desenvolver habilidades fundamentais à formação humana, além de atividades cognitivas e motoras”, ela demonstra que já está se apropriando de significações diferentes das que tinha quando iniciou a disciplina, passando a produzir uma nova consciência no tocante à criança como ser que precisa estabelecer relações ricas e diversificadas, pautadas na “indissociabilidade entre cuidar e educar, com práticas pedagógicas diferenciadas, cujos eixos norteadores são as interações e a brincadeira, e que valorizam a criança em seu modo de ser, de agir, e de estar no mundo” (Oliveira; Sommerhalder, 2022OLIVEIRA, R. F. B.; SOMMERHALDER, A. A educação infantil diante dos riscos da covid-19: dilemas e desafios educacionais para bebês e crianças pequenas. Revista da Faeeba: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 31, n. 65, p. 59-74, jan./mar. 2022., p. 62), gerando, com isso, condições de formação humana.

Muito embora encontremos algumas discentes reproduzindo o discurso de que a criança “é um ser histórico e cultural”, as significações apreendidas no início da disciplina indicam que não há apropriação desse conceito tendo como aporte os fundamentos filosóficos, psicológicos e pedagógicos de natureza histórico-cultural. Por exemplo, nossa primeira atividade com a turma consiste em uma avaliação diagnóstica acerca dos conceitos: “quem é a criança” e “como ela aprende e se desenvolve”. Apesar de parte da turma responder na avaliação diagnóstica que “a criança é um ser sócio-histórico e cultural”, ao serem indagadas sobre como elas aprendem e se desenvolvem, a significação que predomina é a de que a criança aprende de forma natural e espontânea. Por isso, nossa primeira intervenção se volta para a superação dessa concepção ingênua, apresentando à turma referenciais teóricos que ajudem a compreender a educação como prática social humanizadora. Ensinamos que a educação que favorece a humanização das pessoas se inicia ainda na educação infantil e que é preciso defender uma educação escolar que garanta as condições de construção dessa humanidade.

Diante disso, quando passam a significar que o ensino é necessário “para promover à criança acesso a conhecimentos” (discente D), entendemos que há, por parte das discentes, apropriação do conceito de humanização como um processo histórico, mediado pelas relações sociais e pela apropriação do gênero humano, porque, ao entender que o acesso ao conhecimento é importante para a aprendizagem da criança, na verdade, essa significação indica que a discente já compreende que a humanização na perspectiva histórico-cultural requer a apropriação dos elementos da cultura, ou seja, dos produtos que conferem aos seres humanos a sua humanidade.

Nesse sentido, é extremamente necessário apresentar ferramentas teóricas aos discentes que os ajudem a fugir das armadilhas do projeto de educação neoliberal em curso em nosso País, assentado na ideia de que “o sujeito aprende interagindo com o meio, seu desenvolvimento resulta daquilo que ele vive, experiencia, a partir do seu próprio interesse pessoal e particular”. O que cabe à escola é “respeitar tais interesses e esforçar-se para atendê-los, numa clara afinidade aos preceitos escolanovistas, ao conferirem centralidade à subjetividade dos alunos, em detrimento da objetividade do conhecimento e do trabalho pedagógico” (Pasqualini; Martins, 2020PASQUALINI, J. C.; MARTINS, L. M. Currículo por campos de experiência na educação infantil: ainda é possível preservar o ensino desenvolvente? Revista On-line de Política e Gestão Educacional, Araraquara, v. 24, n. 2, p. 425-447, maio/ago. 2020. , p. 435).

Pela nossa experiência, esse tem sido o primeiro desafio a ser enfrentado nas turmas de Pedagogia em processo de formação inicial tendo como foco a atuação na educação infantil. Sobretudo, porque a literatura mais acessível aos discentes, nas plataformas digitais, nos manuais que pretendem aligeirar a formação, ou, ainda, nos documentos oficiais que regulamentam orientações para o desenvolvimento do trabalho pedagógico na educação infantil, todos estão impregnados da ideologia do aprender a aprender que, longe de promover uma educação escolar capaz de garantir as máximas condições de desenvolvimento da humanidade de todas as pessoas, prega uma educação assistemática e minimalista em relação aos conteúdos que medeiam o desenvolvimento de capacidades humanas (Pasqualini; Martins, 2020PASQUALINI, J. C.; MARTINS, L. M. Currículo por campos de experiência na educação infantil: ainda é possível preservar o ensino desenvolvente? Revista On-line de Política e Gestão Educacional, Araraquara, v. 24, n. 2, p. 425-447, maio/ago. 2020. ).

O segundo indicador desse núcleo trata da concepção de natureza e finalidade do ensino na educação infantil, e, nesse sentido, dois grupos de significações foram apreendidos pelas narrativas presentes nos memoriais. Um grupo pequeno de discentes significa que é preciso ensinar na educação infantil para a aprendizagem do convívio social. Isso aponta que parte da turma ainda significa que a natureza e finalidade da educação infantil é garantir a aprendizagem de convívio social.

Os pré-indicadores a seguir demonstram que algumas discentes conservam uma consciência acerca da educação infantil como locus de socialização da criança, uma vez que concebem que o ensino deve ter como intencionalidade levar a criança a aprender a viver em sociedade e a se relacionar com os outros. Elencamos algumas das significações desse grupo:

É através da educação infantil que evolui o cidadão, o ser com moral e ética. Essa educação é primordial nos anos iniciais da educação infantil. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente B).

Porque é na educação infantil onde a criança está na melhor fase para aprender a se relacionar em sociedade, criando relações de amizade e afeto fora do convívio da família. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente F).

Nesse momento a criança passa a ter um convívio diferente, começa a se envolver com o mundo e de uma maneira social, tendo uma nova forma de aprendizagem. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente I).

Embora a aprendizagem de convívio social seja um conteúdo indispensável ao processo de aprendizagem e desenvolvimento da criança e, portanto, precise realmente ter lugar na organização do trabalho pedagógico, concordamos com a legitimidade dessa significação, mas não podemos ignorar que essa finalidade não é prerrogativa somente da escola, uma vez que, na condição de ser social, a criança aprende a conviver em sociedade o tempo todo, em todos os espaços sociais. Com ou sem escola, toda criança vai aprender a conviver socialmente. Reconhecer a necessidade e importância da socialização na escola é fundamental, mas esta não pode ser considerada nem a única nem a principal finalidade da educação infantil. É preciso garantir o direito de conhecer o mundo e se apropriar dele, pois essa é a condição fundante da humanidade na criança.

Quando as discentes afirmam que a educação infantil tem como finalidade a formação cidadã, moral e ética (discente B), ou aprender a se relacionar em sociedade (discente F), e a ter um convívio diferente, começar a se envolver com o mundo (discente I), dão sinais de que não conseguiram se apropriar na sua totalidade dos fundamentos teóricos que estão sendo trabalhados em sala de aula. As intervenções realizadas ainda não foram suficientes para fazê-las superarem a visão muito difundida de que, na educação infantil, a prioridade são os processos de socialização, deixando de lado o trabalho pedagógico voltado para o cuidar e o educar que se articulam permanentemente em torno da apropriação e objetivação de conceitos e da formação de funções psicológicas necessárias ao desenvolvimento humano nessa fase da vida.

Os dados demonstram que parte das discentes em formação ainda preserva a visão conservadora, idealista e liberal de educação, sociedade e desenvolvimento humano, conforme postulam Pasqualini e Martins (2020PASQUALINI, J. C.; MARTINS, L. M. Currículo por campos de experiência na educação infantil: ainda é possível preservar o ensino desenvolvente? Revista On-line de Política e Gestão Educacional, Araraquara, v. 24, n. 2, p. 425-447, maio/ago. 2020. ). Para essas autoras, na ausência do ato educativo intencional com vistas à humanização das crianças, o que se coloca como tendência é a reprodução do cotidiano alienado, marcado por opressões e preconceitos.

O segundo grupo de significações indica que a maior parte da turma já compreende que a natureza e finalidade do ensino na educação infantil está relacionada à aprendizagem e ao desenvolvimento de capacidades humanas. Observemos alguns exemplos:

Pois é nessa fase que a criança precisa de um apoio para trabalhar seu intelectual, social e cognitivo. E ensinar na educação infantil é essencial para que as crianças consigam desenvolver essas habilidades para que possam exercer em sua vida social e profissional. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente L).

O principal objetivo é melhorar as habilidades intelectuais, cognitivas e sociais de crianças de zero a três anos. Crianças pré-escolares, de 4 a 6 anos, aprendem como interagir, fazer perguntas, se comunicar, resolver problemas e refletir por conta própria no jardim de infância. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente M).

O ensino na educação infantil é necessário para o desenvolvimento da criança. Sendo necessário um ensino de forma integrada e que abranja todas as habilidades da criança. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente N).

Porque, de acordo com Vigotski, a criança se desenvolve nas interações com o ambiente, com o(a) professor(a), com os(as) colegas e com o material pedagógico, mas para isso é necessário que haja a intervenção do profissional da educação, analisando e planejando as atividades adequadas para o desenvolvimento infantil nos aspectos sensório-motor, cognitivo e afetivo-social. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente Q).

As significações selecionadas nesse grupo evidenciam que parte expressiva da turma já compreende que a educação escolar tem natureza e finalidade diferentes dos outros espaços de convívio social. As discentes significam que a atividade desenvolvida pelo educador não se iguala ao que outras pessoas, em diferentes espaços sociais, realizam. Ao longo do curso, nossas intervenções procuram mediar a produção de significações acerca da educação infantil como aquela que deve promover a apropriação de conteúdos fundamentais ao desenvolvimento do pensamento categorial da criança, condição basilar ao desenvolvimento humano. Mello (2010MELLO, S. A. Contribuições de Vigotski para educação infantil. In: MENDONÇA, S. G. L.; MILLER, S. (Org.). Vigotski e a escola atual: fundamentos teóricos e implicações pedagógicas. 2. ed. Araraquara: Junqueira&Marin; Marília: Cultura Acadêmica, 2010. p. 193-201.) corrobora essa ideia quando explica que, na educação infantil, o trabalho realizado pelo educador é sumamente complexo, partindo das regularidades do desenvolvimento psíquico da criança, por isso, exige uma dinâmica no ambiente escolar com condições de favorecer níveis cada vez mais elevados de atividade e consciência.

O segundo núcleo de significação, ensinar a partir de conteúdos a serem apropriados pela criança, dá-nos a dimensão de como nossas discentes estão compreendendo “o que ensinar” na educação infantil. Nesse núcleo, os pré-indicadores estão reunidos em torno do indicador 1: ensinar conteúdos que favoreçam o desenvolvimento de funções psicológicas superiores (FPS), o convívio social, a autonomia e a socialização.

No indicador “ensinar conteúdos que favoreçam o desenvolvimento de funções psicológicas superiores, o convívio social, a autonomia e a socialização”, as significações demonstram que as discentes em formação já possuem uma clara compreensão de que a educação escolar se diferencia das demais atividades sociais por proporcionar aquilo que Vigotski (2018VIGOTSKI, L. S. Sete aulas de L. S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia. Organização e tradução: Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. Rio de Janeiro: E-Papers, 2018. ) denomina como a principal finalidade da escola - o desenvolvimento de qualidades humanas não inatas e que são fundamentais para o desenvolvimento de nossa humanidade, as funções psicológicas superiores. Alguns dos pré-indicadores com conteúdos que sinalizam para essa significação social são:

É poder proporcionar o novo, o desconhecido à criança, assim também proporcionar as descobertas do mundo a sua volta e fazer agirem suas funções superiores nas atividades cotidianas e escolar. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente B).

Atividades que tenham como eixo a brincadeira e a interação, que favoreçam o surgimento das funções superiores pelas crianças. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente D).

Desenvolver habilidades fundamentais na formação humana e despertar sua imaginação e interesse pelo aprendizado e suas habilidades cognitivas e motoras. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente I).

O que se deve ensinar na educação infantil são conteúdos que permitam o desenvolvimento infantil sensório-motor, cognitivo e afetivo-social para que as crianças se apropriem dos conhecimentos construídos ao longo do processo. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente Q).

Desenvolvimento da linguagem, convivência com outras crianças, expressão artística, estimular a criança a ter hábitos saudáveis. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente L).

Esses pré-indicadores apontam que as discentes estão formando a consciência de que há um conteúdo a ser ensinado na educação infantil e cabe ao professor organizar meios para que essa apropriação aconteça. Essa forma de conceber os conteúdos escolares na educação infantil revela que as discentes conseguiram se apropriar da significação de que a criança se humaniza à medida que se apropria do mundo a sua volta e de que esse mundo pode e deve ser apropriado pela criança.

Quando significam que o ensino é importante por proporcionar o novo, o desconhecido à criança (discente B), ou, ainda, por favorecer o surgimento das funções superiores pelas crianças (discente D) e, mais, por despertar sua imaginação e seu interesse pelo aprendizado (discente I), elas estão na verdade se apropriando da máxima de Vigotski (2018VIGOTSKI, L. S. Sete aulas de L. S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia. Organização e tradução: Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. Rio de Janeiro: E-Papers, 2018. ) de que o bom ensino é aquele que gera desenvolvimento, sendo que desenvolvimento significa o surgimento do novo, daquilo que ainda não existe na sua forma mais aprimorada na criança.

Tais significações denotam a compreensão de que cabe à educação escolar promover o surgimento do novo na vida da criança e que esse novo favorece o desenvolvimento de qualidades humanas essenciais à sua vida em sociedade. Em uma análise mais aprofundada e tendo como fundamentos a Psicologia Histórico-Cultural e a Pedagogia Histórico-Crítica, as discentes estão entendendo que é pela apropriação dos conteúdos que a criança trava relações com o mundo, amplia suas possibilidades de comunicação e vivencia experiências que vão enriquecer sua prática social. Em suma, as discentes estão significando que “conteúdos culturais e histórico-sociais [...] podem e devem compor e enriquecer as experiências infantis” (Pasqualini; Martins, 2020PASQUALINI, J. C.; MARTINS, L. M. Currículo por campos de experiência na educação infantil: ainda é possível preservar o ensino desenvolvente? Revista On-line de Política e Gestão Educacional, Araraquara, v. 24, n. 2, p. 425-447, maio/ago. 2020. , p. 440).

Encaminhando-nos para a finalização do processo de análise, passamos ao terceiro núcleo de significação, “ensinar a partir de planejamento e organização, tendo a brincadeira como atividade principal”, no qual as significações foram produzidas em torno da questão de “como ensinar na educação infantil”. Esse núcleo possui dois indicadores: 1) o ensino na educação infantil requer planejamento e organização e 2) o ensino na educação infantil requer o uso de brincadeiras. As significações acerca de como ensinar na educação infantil dizem muito sobre o modo como as discentes estão compreendendo a organização do trabalho pedagógico, conteúdo fundamental na Didática da Educação Infantil.

No primeiro indicador, “o ensino na educação infantil requer planejamento e organização”, os pré-indicadores sintetizam conteúdos temáticos que demonstram que as discentes já compreendem que, na educação infantil, é preciso planejar as formas de apreensão da realidade pelos alunos, portanto, são fundamentais o planejamento e a organização do trabalho pedagógico. Listamos algumas das significações desse grupo:

O professor precisa planejar e organizar estratégias pedagógicas significativas para desenvolver a aprendizagem das crianças. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente A).

O professor, através do interesse da criança, nas atividades da rotina e momentos de aprendizagens, vai elaborando e organizando estratégias pedagógicas que promovam o desenvolvimento de novos conhecimentos, dessa forma, conseguirá interagir e alcançar os resultados. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente C).

Para ensinar na educação infantil é relevante refletir e planejar acerca da singularidade das crianças: a brincadeira; a imaginação. Ou seja, requer planejar atividades pedagógicas que contemplem as especificidades das crianças. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente D).

Cabe ao professor criar vínculo com os alunos, de maneira que facilite a transmissão do conhecimento. É essencial a elaboração de uma rotina adaptável que possua momentos de alimentação, escrita, leitura e momentos livres. A metodologia adequada ajuda muito o desenvolvimento das habilidades dos alunos. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente F).

Pelas significações produzidas, é possível inferir que todas compreendem que o ensino na educação infantil é o que colabora com novas aprendizagens e provoca desenvolvimento na criança, o que denota a compreensão de que “a atividade de ensino, executada conscientemente e com a finalidade de promover a transformação no processo de humanização dos estudantes, determina os seus meios - as ações e operações realizadas na prática pedagógica” (Bernardes, 2009BERNARDES, M. E. M. Ensino e aprendizagem como unidade dialética na atividade pedagógica. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 235-242, jul./dez. 2009., p. 236).

Quando dizem “o professor precisa planejar e organizar estratégias pedagógicas significativas para desenvolver a aprendizagem das crianças” (discente A), ou “vai elaborando e organizando estratégias pedagógicas que promovam o desenvolvimento de novos conhecimentos, dessa forma conseguirá interagir e alcançar os resultados” (discente C), e mesmo “requer planejar atividades pedagógicas que contemplem as especificidades das crianças” (discente D), esclarecem que já estão desenvolvendo a consciência de que, na organização do trabalho pedagógico, é preciso garantir a unidade entre ações de ensino e ações de aprendizagem. Isto é, as discentes em formação já compreendem que o planejamento tem que prever ações realizadas pelo professor e ações previstas para os alunos, posto que essa unidade é o que particulariza a atividade de ensino sustentada nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica. Sobre isso, Moura et al. (2016MOURA, M. O. et al. A atividade orientadora de ensino como unidade entre ensino e aprendizagem. In: MOURA, M. O. (Org.). A atividade pedagógica na Teoria Histórico-Cultural. Campinas: Autores Associados, 2016. p. 93-125., p. 103) esclarecem que “a atividade de ensino do professor deve gerar e promover a atividade do estudante. Ela deve criar nele um motivo especial para sua atividade: estudar e aprender teoricamente sobre a realidade.”

No segundo indicador, “o ensino na educação infantil requer o uso de brincadeiras”, reunimos pré-indicadores que apontam um nível de apropriação acerca do conceito de brincadeira como atividade guia no desenvolvimento da criança na educação infantil. Destacamos algumas significações que demonstram o desenvolvimento dessa consciência entre as discentes:

É importante que na educação infantil ensinemos embasados nas brincadeiras, jogos, bem como no cuidar dessas crianças em seu dia a dia na escola, estimulando-as à aprendizagem. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente E).

É importante ensinar através das brincadeiras, já que a brincadeira faz parte da vida da criança e, assim, favorece a aprendizagem, onde se torna algo prazeroso, pois desperta o interesse dos alunos de querer participar das aulas e, com isso, o professor consegue trabalhar a socialização da criança com o outro, atenção, memória, seu desenvolvimento emocional, intelectual, e a brincadeira é um facilitador para que o professor possa conhecer os seus alunos, suas dificuldades e suas evoluções ao longo do seu aprendizado. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente G).

O ensino na educação infantil deve ser de forma lúdica para que possa fixar a atenção das crianças. O professor pode fazer isso através de brincadeiras, rodas de conversas, questionamentos, contação de histórias e através de músicas. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente K).

Deve ensinar através das brincadeiras, dos jogos, da música, das expressões artísticas, de sua rotina e convivência no ambiente ao qual está inserido, através do lúdico, com afetividade, intervenções e objetivos a serem alcançados. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente M).

Utilizando o lúdico, ou seja, brinquedos, brincadeiras, dinâmicas e jogos que trabalhem os conteúdos desejados, observando os campos de experiência, e desenvolvendo a imaginação, e também desenvolver nas crianças os aspectos moral, social e afetivo, ensinando-as a respeitar regras e ter autocontrole. (Memorial formativo, 16/01/23. Discente R).

Nesse indicador, é possível analisar as significações que as discentes estão construindo acerca da categoria brincar e seu potencial como atividade que guia o desenvolvimento da criança. Durante as aulas, nas orientações, reflexões e discussões promovidas em torno dessa categoria, havia o objetivo de levar as discentes a compreenderem que o brinquedo tem um importante papel no processo de ensino e aprendizagem na educação infantil.

As discentes demonstram ter compreendido que a criança é um ser social que possui inclinações, impulsos, motivos que surgem e se desenvolvem historicamente, ao colocarem a brincadeira no centro do planejamento, da organização e do desenvolvimento do trabalho pedagógico na educação infantil, como sugerido nos pré-indicadores: “é importante que na educação infantil ensinemos embasados nas brincadeiras, jogos, bem como no cuidar dessas crianças em seu dia a dia na escola, estimulando-as à aprendizagem” (discente E); e “o ensino na educação infantil deve ser de forma lúdica para que possa fixar a atenção das crianças. O professor pode fazer isso através de brincadeiras, rodas de conversas, questionamentos, contação de histórias e através de músicas” (discente K).

Compreendem que, na condição de ser sócio-histórico, a criança se constitui à medida que vive uma dada realidade, estabelece relações, produz necessidades e procura meios para atendê-las. Para satisfazer essas necessidades, entra em atividade no/com o mundo, sendo a brincadeira a atividade-guia ou, simplesmente, a predominante, quando a criança se encontra na idade pré-escolar. As discentes já assimilam que o princípio educativo da brincadeira não é a satisfação ou o prazer, mas a relação que essa atividade promove entre a cognição e os afetos da criança no desenvolvimento do seu psiquismo, no atendimento de seus impulsos, suas motivações e suas necessidades afetivas, conforme assevera Vigotski (2021VIGOTSKI, L. S. Psicologia, educação e desenvolvimento: escritos de L. S. Vigotski. Organização e tradução: Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São Paulo: Expressão Popular, 2021.).

A explicação acerca da relação entre cognição e afeto na idade pré-escolar também foi explorada nas aulas da nossa disciplina e dá sinais de ter sido apropriada pelas discentes, quando afirmam que “utilizando o lúdico, ou seja, brinquedos, brincadeiras, dinâmicas e jogos que trabalhem os conteúdos desejados, observando os campos de experiência, e desenvolvendo a imaginação, e também desenvolver nas crianças os aspectos moral, social e afetivo, ensinando-as a respeitar regras e ter autocontrole” (discente R). Nesse pré-indicador, há uma clara compreensão acerca da relação entre afeto e cognição, mediada pela atividade do brincar na infância.

Em síntese, nesse indicador, é possível inferir que a apropriação da categoria brincar pelas discentes tem trazido grande apoio no processo de formação inicial para a docência na educação infantil. A contribuição veio do fato de que as discentes têm conseguido avançar na forma de conceberem o modo como as crianças aprendem e se desenvolvem pela mediação do brincar. As ideias construídas na relação com o cotidiano estão dando lugar ao pensamento categorial, pois passaram a entender que a brincadeira com situação imaginária é algo “essencialmente novo, impossível para a criança até os 3 anos de idade, [...] é um novo tipo de comportamento, cuja essência se encontra no fato de que a atividade, na situação imaginária, liberta a criança de amarras situacionais” (Vigotski, 2021VIGOTSKI, L. S. Psicologia, educação e desenvolvimento: escritos de L. S. Vigotski. Organização e tradução: Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São Paulo: Expressão Popular, 2021., p. 222).

As discentes sinalizam a compreensão da atividade do brincar como aquela que promove saltos qualitativos e impacta o desenvolvimento global da criança, pois, na brincadeira imaginária, a criança opera com objetos como coisas que possuem sentido, opera com os significados das palavras, que substituem os objetos; por isso, ocorre a emancipação das palavras em relação aos objetos, ou seja, a criança passa a significar o mundo, ampliar sua consciência, estabelecer novas relações. Isso é desenvolvimento histórico. Compreender esse conceito no processo de formação inicial no curso de Pedagogia é condição sine qua non para subsidiar o desenvolvimento de uma atividade pedagógica pretensamente humanizadora na educação infantil.

Considerações finais

Este artigo nasceu da problemática desenvolvida na turma de Didática da Educação Infantil do curso de Pedagogia em torno das questões sobre por que ensinar, o que e como ensinar na educação infantil. Fruto de pesquisa realizada com a participação de discentes em formação no curso de Pedagogia, procuramos analisar as significações produzidas por eles e elas acerca do ensino na educação infantil com vistas à humanização das crianças.

Considerando a defesa radical do ensino na educação infantil tendo em vista o processo de humanização das crianças, assumimos com a turma o compromisso de buscar, na Psicologia Histórico-Cultural e na Pedagogia Histórico-Crítica, os fundamentos que subsidiassem o desenvolvimento de atividades pedagógicas com potencial de colaborar com esse processo. Esse compromisso tem exigido de nós, formadoras, o investimento em ações e operações que levem nossos alunos e alunas em formação no curso de Pedagogia a compreenderem que, diferentemente do que pauta a pedagogia das competências, a criança, em seu processo de desenvolvimento humano, não responde apenas ao aparato biológico, mas, sobretudo, à relação que estabelece com o meio sócio-histórico e cultural.

O meio sócio-histórico e cultural é considerado fonte da qual a criança acessa as máximas condições para se tornar humana. Com base nessa compreensão, os(as) discentes passam a significar que quanto mais a relação das crianças com o meio social se complexifica, mais qualidades humanas essa criança conquista no curso do seu desenvolvimento. É o meio social que precisa oferecer às crianças um mundo de oportunidades, de relações, posto que é a riqueza de relações culturais que irá mediar sua humanização.

Esse trabalho desenvolvido com as turmas de Didática da Educação Infantil no curso de Pedagogia da Universidade Federal do Piauí tem resultado em mudanças no modo de compreender a docência na educação infantil, as quais podem ser apreendidas pelas narrativas das discentes quando começam a avançar de uma significação de atividade pedagógica pautada no espontaneísmo, no não diretivismo pedagógico, para uma significação que expressa a compreensão não só da necessidade de ensinar na educação infantil, mas, sobretudo, de ensinar para possibilitar a humanização, entendendo esse processo como resultado da apropriação do mundo humano, historicamente produzido e que chega à escola na forma de conteúdo.

Outra significação que está sendo produzida pelos(as) discentes em formação inicial no curso de Pedagogia é que a maneira mais adequada de levar as crianças a se apropriarem dos conteúdos é por meio da atividade do brincar. Quando se apropriam dessa significação, passam a compreender que o planejamento, a organização e o desenvolvimento da atividade pedagógica não podem dispensar as interações e brincadeiras, pois são esses eixos articuladores da atividade pedagógica na educação infantil que guardam o potencial de mediar o surgimento de funções psicológicas superiores.

Ao término da disciplina Didática da Educação Infantil da graduação em Pedagogia, outras necessidades estão sendo produzidas em nós, formadoras, sendo uma delas a de expandir ações didáticas dessa natureza em outros componentes curriculares, por exemplo, Estágio Supervisionado da Educação Infantil. Que alternativas metodológicas podem mediar o desenvolvimento da memória, da linguagem, da atenção dirigida e da formação de conceitos em crianças na educação infantil? Como uma aula pode se constituir em situação social de desenvolvimento humano de crianças na educação infantil?

Buscar alternativas de respostas às questões dessa natureza subsidia a aprendizagem para docência que tem como horizonte o desenvolvimento da atividade pedagógica voltada para a humanização das crianças na escola.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2023
  • Aceito
    01 Maio 2024
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