RESUMO
Objective Analisar experiências de mulheres trans e travestis com o uso de hormônios para mudança corporal sem prescrição médica.
Métodos: Estudo de corte transversal, quantitativo e qualitativo, utilizando um recorte do TransOdara, que estimou prevalência de Infecções Sexualmente Transmissíveis em mulheres trans e travestis, recrutadas por meio de Respondent-Driven Sampling, entre dezembro de 2019 e julho de 2021, em São Paulo, Campo Grande, Manaus, Porto Alegre e Salvador. Principal desfecho: uso de hormônios sem prescrição médica e fatores associados. Foram realizados análise descritiva e modelos de regressão logísticos univariados mistos e entrevistas semiestruturadas.
Resultados: Das 1.317 participantes recrutadas, 85,9% já haviam usado hormônios. O uso atual de hormônios foi referido por 40,7% (536) delas. Das que souberam informar o local onde os conseguiram, 72,6% (381/525) faziam uso sem prescrição médica. As variáveis associadas ao uso sem prescrição foram: exercer trabalho sexual em tempo integral (OR 4,59; IC95% 1,90–11,06) ou no passado (OR 1,92; IC95% 1,10–3,34); não ter retificado o nome (OR 3,59; IC95% 2,23–5,76); não estar estudando (OR 1,83; IC95% 1,07–3,13); ser mais jovem (OR 2,16; IC95% 1,31–3,56); ter sofrido discriminação em algum momento na vida por ser mulheres trans e travestis (OR 0,40 – IC95% 0,20–0,81).
Conclusão: O uso de hormônios não prescritos é alto entre mulheres trans e travestis, principalmente entre as mais jovens, as que não estudavam, as que não retificaram o nome e as com histórico de trabalho sexual. Está relacionado à urgência para a transição de gênero, com uso exagerado e danos à saúde.
Palavras-chave: Mulher transexual; Hormônios; Políticas em saúde pública; Estudo multicêntrico
ABSTRACT
Objective: To analyze the experiences of transgender women and travestis regarding the use of hormones for body changes without a medical prescription.
Methods: This is a cross-sectional, quantitative and qualitative study, using data from “TransOdara”, which estimated the prevalence of Sexually Transmitted Infections in transgender women and travestis recruited through Respondent-Driven Sampling, between December 2019 and July 2021, in São Paulo, Campo Grande, Manaus, Porto Alegre, and Salvador, Brazil. The main outcome was: use of hormones without medical prescription and associated risk factors. Descriptive analysis, mixed univariate logistic regression models, and semi-structured interviews were carried out.
Results: Of the 1,317 recruited participants, 85.9% had already used hormones. The current use of hormones was reported by 40.7% (536) of them. Of those who were able to inform the place where they obtained them, 72.6% (381/525) used them without a medical prescription. The variables associated with the outcome were: current full-time sex work (OR 4.59; 95%CI 1.90–11.06) or in the past (OR 1.92; 95%CI 1.10–3.34), not having changed their name (OR 3.59; 95%CI 2.23–5.76), not currently studying (OR 1.83; 95%CI 1.07–3.13), being younger (OR 2.16; 95%CI 1.31–3.56), and having suffered discrimination at some point in life for being a transgender women and travestis (OR 0.40; 95%CI 0.20–0.81).
Conclusion: The use of nonprescribed hormones is high among transgender women and travestis, especially among those who are younger, did not study, have not changed their name, and with a history of sex work. This use is related to the urgency for gender transition, with excessive use and damage to health.
Keywords: Transgender women; Hormone; Public policies; Multicenter study
INTRODUÇÃO
População trans é definida como aquela cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo biológico atribuído ao nascimento1. Essa população reivindica a legitimidade de suas diversas identidades “não cisgêneras” para além dos parâmetros binários “masculino e feminino”2-4. Especificamente, no que se refere às mulheres trans e travestis, optou-se, neste estudo, por tratar esses dois subgrupos conjuntamente. Todas se constituem como performances de resistência ao CIStema de gênero5.
Parte das mulheres trans e travestis recorrem a um conjunto de procedimentos de afirmação de gênero, entre eles a hormonização, com a finalidade de obter um corpo que represente o pertencimento a uma identidade de gênero experenciada ou vivida9, que compreendia um conjunto de estratégias assistenciais, focado nas cirurgias de transgenitalização. Este foi regulamentado e ampliado pela Portaria n10, incluindo outros procedimentos médicos e hormonioterapia na atenção especializada, independentemente da cirurgia. Essa conquista se deu pela mobilização e articulação do movimento social, a fim de pressionar o Estado a incorporar essa demanda11. Entretanto, embora regulamentada desde 2013, a hormonização ainda não é acessível de forma universal no SUS12.
Estudos apontam que a população trans enfrenta diversas barreiras que limitam o acesso aos serviços de saúde, como o desrespeito ao nome social e a dificuldade de diálogo com os profissionais, representando importantes aspectos da discriminação vivenciada13,14. Tais barreiras produzem adoecimento, incluindo o uso de hormônios não prescritos, que é uma realidade no país entre a população trans4,11,15,16. Diante desse cenário, considerou-se importante analisar as experiências das mulheres trans e travestis sobre uso de hormônios sem prescrição médica para mudança corporal e investigar fatores de risco associados entre participantes de um estudo multicêntrico, realizado em cinco capitais brasileiras.
MÉTODOS
Desenho
O presente estudo é um recorte do Projeto TransOdara, transversal com abordagem mista (quantitativa e qualitativa), realizado entre dezembro de 2019 e julho de 2021 em São Paulo, Campo Grande, Manaus, Porto Alegre e Salvador. Teve como objetivo estimar a prevalência de oito diferentes Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e compreender os significados atribuídos à infecção por sífilis entre mulheres trans e travestis17.
Foi utilizada a técnica de amostragem Respondent-Driven Sampling (RDS), indicada para recrutar populações de difícil acesso, marginalizadas e esparsas, em termos de sua inserção na geografia das áreas urbanas18, a despeito das limitações inerentes à inferência estatística de amostras não probabilísticas19, dado que os pressupostos da amostragem probabilística clássica são inaplicáveis a estudos com essa população20.
Os critérios de elegibilidade foram: sexo masculino atribuído ao nascer; autoidentificação de gênero feminina, incluindo travesti, mulher, mulher trans, agênero ou outra identificação do gênero feminino; ser residente nas áreas metropolitanas das cidades participantes ter idade igual ou superior a 18 anos e ter recebido um cupom do estudo válido de uma das “sementes” selecionadas previamente. As cadeias de recrutamento foram rastreadas usando um “gerenciador de cupons”. Cada participante recebeu um número exclusivo que identificava o local da pesquisa, o número de identificação individual e a sequência de recrutamento.
A coleta de dados foi realizada por pesquisadores(as) treinados(as), nos locais designados para o desenvolvimento da pesquisa. Das 1.345 potenciais participantes identificadas, foram incluídas 1.317 mulheres trans e travestis que atenderam aos critérios de elegibilidade e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Na sequência, foram aplicados o questionário baseline e os formulários de aceitabilidade para potenciais profilaxias e tratamentos, oferecidos testes laboratoriais para detecção das ISTs de interesse e consultas médicas, com os devidos encaminhamentos, quando indicados para recursos de prevenção e tratamento disponíveis no SUS, no mesmo dia da participação na pesquisa ou por meio de agendamentos posteriores.
As estratégias de recrutamento, critérios de elegibilidade, cálculo da amostra e fluxo da pesquisa foram detalhados no artigo metodológico do TransOdara neste suplemento17.
Uso de hormônio e variáveis selecionadas
Somente registros completos e consistentes foram utilizados em todas as análises. O principal desfecho foi a dicotomização (sim/não) do uso de hormônios relacionados à sua transição sem prescrição médica, considerando apenas quem referiu estar em uso no momento da entrevista.
Considerou-se como “uso com prescrição médica” as que responderam afirmativamente com receita de médico do SUS ou de médico particular e “uso sem prescrição médica” as que indicaram diretamente na farmácia (sem receita), com amigos/colegas de trabalho, com bombadeiras, compra pela internet.
Foram considerados potenciais fatores de risco, associados ao uso de hormônios: faixa etária (corte em 35 anos); cidade de realização da pesquisa; retificação do nome em algum documento (sim, não); raça/cor de pele (branca, preta, parda, outras); estudando atualmente (sim, não); escolaridade (ensino superior completo e pós-graduação completa e incompleta, ensino médio completo e incompleto mais superior incompleto e ensino fundamental completo e incompleto); renda mensal (salário-mínimo em 2020: menos de 1, 1 a 2 e 2 ou mais); ter sofrido discriminação ou violência por ser trans (sim, não); saúde mental autorreferida (muito boa/boa, moderada, ruim/muito ruim) e histórico de trabalho sexual (nunca, apenas no passado; atual, de modo parcial; atual, como fonte principal).
Análise dos dados
Análise quantitativa
A análise descritiva foi realizada, apresentando as frequências absolutas e relativas para as variáveis independentes em relação ao desfecho e de forma geral. A distribuição do uso de hormônios não prescritos foi descrita em relação à cidade de realização do estudo. Modelos de regressão logísticos univariados mistos, com interceptos aleatórios para as cidades, foram criados para cada variável independente21, permitindo ajustes para as prevalências de cada cidade. Os modelos univariados foram utilizados para pré-seleção das variáveis-candidatas utilizadas na construção do modelo múltiplo final, incluindo-se aquelas com p≤0.3. A seleção das variáveis para o modelo múltiplo final considerou todas as variáveis-candidatas no modelo completo, retiradas uma a uma, até obtenção do modelo final com melhor ajuste pelo Akaike Information Criterion (AIC). De acordo com Sperandei et al.22, os pesos RDS não foram utilizados, uma vez que não apresentam vantagens em modelos de regressão e podem adicionar vieses aos resultados.
As análises foram realizadas em linguagem R, versão 4.2.123, utilizando o pacote “lme4”24.
Análise qualitativa
Utilizou-se as narrativas produzidas em entrevistas semiestruturadas, conduzidas paralelamente ao componente quantitativo, para compreender aspectos que caracterizam a relação dessa população com significados, práticas e serviços de saúde que resultam numa maior vulnerabilidade à sífilis e a outras ISTs. O roteiro de entrevista continha questões sobre condições de saúde, transição de gênero, experiências com ISTs, itinerários terapêuticos e relação com serviços e com profissionais de saúde.
A maioria já havia participado da etapa quantitativa, e o contato foi feito durante as atividades realizadas nesse âmbito. A seleção buscou assegurar uma diversificação por categorias de idade, escolaridade, atuação profissional (i.e., profissionais do sexo versus outras ocupações) e diagnóstico atual ou prévio de sífilis. As participantes foram contatadas por telefone e/ou mensagens via aplicativos, a partir dos dados fornecidos no recrutamento ou em outras atividades do projeto. As entrevistas foram gravadas e transcritas, variando entre 18 e 120 minutos.
O tratamento interpretativo-compreensivo das narrativas envolveu leitura integrada com decodificação de informações relativas ao uso de hormônios (com e sem acompanhamento médico), incluindo a perspectiva daquelas que nunca fizeram tal uso. O material foi analisado em articulação com os dados quantitativos na busca de complementaridade (consonâncias ou divergências), de aprofundamento e ampliação na compreensão articulada dos resultados. Alguns excertos são reproduzidos na seção de resultados.
Aspectos éticos
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (CAAE 05585518.7.0000.5479, n° 3.126.815 – 30/01/2019) e pelas demais instituições participantes17.
RESULTADOS
Quantitativos
A maioria (85,9%) das 1.317 participantes do estudo TransOdara relatou já ter feito uso de hormônios relacionados à sua transição em algum momento da vida, sendo a idade média de início 18,5 anos (DP 5,7 anos). O uso atual de hormônios foi referido por 536 (40,7%), dentre as quais 525 (97,9%) informaram o local onde conseguiram esses medicamentos. Constatou-se que 381 (72,6%) faziam uso de hormônios não prescritos, com ampla variação entre as capitais (52,9% em São Paulo e 94,7% em Manaus), conforme apresentado na Tabela 1. A média de idade observada entre aquelas que afirmaram fazer uso de hormônios não prescritos foi de 30,7 anos (DP 9,1).
Distribuição do total de mulheres trans e travestis, segundo uso de hormônios com e sem prescrição médica, participantes do estudo TransOdara em cinco capitais brasileiras (dezembro de 2019 a julho de 2021).
Na Tabela 2 são apresentadas as frequências absolutas e relativas, odds ratio bruto e IC95% do uso de hormônios com e sem prescrição médica, segundo características socioeconômicas e demográficas de mulheres trans e travestis participantes do TransOdara. Considerando apenas as que referiram estar em uso de hormônio sem prescrição médica no momento da entrevista, a maioria (78,3%) tinha entre 18 e 34 anos, 72,6% não tinham retificado o nome, 67,7% se autodefiniram como pretas ou pardas, 76,5% não estavam estudando no momento da entrevista e 72,2% tinham pelo menos iniciado o Ensino Médio. A maioria (74,2%) tinha histórico de trabalho sexual, sendo 32,0% delas apenas no passado e 23,5% no presente, exercendo essa atividade em período integral. Cerca da metade (44,4%) tinha renda per capita de até 1 salário-mínimo.
Frequências absolutas e relativas, odds ratio bruto e IC95% do uso de hormônios com e sem prescrição médica, segundo características socioeconômicas e demográficas de mulheres trans e travestis participantes do estudo TransOdara, em cinco capitais brasileiras (dezembro de 2019 a julho de 2021).
A maior parte das entrevistadas relatou ter sofrido discriminação (86,4%) e ter tido algum episódio de violência alguma vez na vida por ser mulheres trans e travestis (88,9%), enquanto 54,0% referiram ter sofrido violência sexual. A autopercepção da saúde mental foi considerada regular por 38,8% delas e ruim/muito ruim por 12,6%. As variáveis positivamente associadas ao desfecho, na análise bivariada, foram: idade entre 18 e 34 anos; não ter retificado o nome; não estar estudando; ter ou não concluído o Ensino Fundamental ou Médio; e histórico de trabalho sexual, com maior magnitude entre aquelas que exerciam essa atividade em tempo integral. Ter sofrido discriminação na vida foi associada negativamente ao uso de hormônios sem prescrição.
No modelo múltiplo (Figura 1) se mantiveram associados ao desfecho, com maiores riscos estimados em cerca de 5 e de 2 vezes, respectivamente: ter como principal ocupação o trabalho sexual full time (OR 4,59; IC95% 1,90–11,06) ou parcialmente (OR 1,56; IC95% 0,82–2,97), no passado (OR 1,92; IC95% 1,10–3,34); não ter retificado o nome (OR 3,59; IC95% 2,23–5,76); não estar estudando (OR 1,83; IC95% 1,07–3,13); e serem mais jovens (18 a 34 anos), estas com cerca do dobro de risco (OR 2,16; IC95% 1,31–3,56). Por outro lado, ter sofrido discriminação alguma vez na vida por ser travesti/transexual (OR 0,40; IC95% 0,20–0,81) apresentou associação negativa com o desfecho.
Odds ratios ajustados de uso de hormônios sem prescrição médica, segundo características socioeconômicas e demográficas de mulheres trans e travestis, participantes do estudo TransOdara em cinco capitais brasileiras (dezembro de 2019 a julho de 2021).
Qualitativos
Foram realizadas 58 entrevistas em profundidade, com participantes entre 19 e 58 anos. Alguns dos excertos foram selecionados, considerando os seus sentidos e significados e buscando diálogo com os achados quantitativos (Quadro 1).
Excertos selecionados de narrativas das participantes entrevistadas, com referência aos nomes fictícios e cidades (TransOdara, 2019–2021).
Foi expressivo o relato de uso de hormônios como um dos recursos mais utilizados para as mudanças corporais, de modo a possibilitar a afirmação de gênero almejada e a diminuição de sofrimento com disforia de gênero (Excertos 1 e 2 – Quadro 1). Poucas entrevistadas nunca usaram hormônios. Estas dispensaram esse recurso para evitar problemas como aumento do tamanho e peso corporais, comprometimento da ereção e consequentes prejuízos no trabalho sexual.
Algumas participantes (com 37 anos ou mais) situam historicamente o uso de hormônios para transição de gênero como uma prática comunitária desenvolvida em épocas em que a sua oferta e o acompanhamento com profissional médico não estavam disponíveis nos serviços de saúde, sobretudo na rede pública. Segundo as entrevistadas, essa prática, iniciada, em geral, quando muito jovens, é originalmente baseada num saber disseminado entre mulheres trans e travestis por meio das redes de sociabilidade, que se destacam como fundamentais na difusão de informações acerca dos tipos de hormônios, esquemas de uso e modo de administração (Excertos 3 a 5 – Quadro 1).
A disponibilidade de hormônios em serviços de saúde com acompanhamento com profissional médico aparece nas narrativas como um fenômeno recente, apresentando-se como uma possibilidade de usá-los de forma mais segura (Excertos 6 a 8 – Quadro 1).
Apesar da disponibilidade de acompanhamento com profissional médico para hormonização, este nem sempre se efetiva como uma opção. Em algumas narrativas, a opção pelo uso sem acompanhamento e exagerado aparece vinculada a certa urgência em relação à transição de gênero, com consequentes danos à saúde (Excerto 9 – Quadro 1). Além disso, algumas barreiras são referidas como dificultadoras do acesso ao uso assistido de hormônios, convergindo com outras dificuldades que tornam frágil a relação das mulheres trans e travestis com os serviços de saúde (Excertos 10 a 12 – Quadro 1).
Ao mesmo tempo, a escolha pelo uso sem prescrição, mesmo quando a oferta de acompanhamento está disponível, aparece relacionada à falta de vínculo com os serviços de saúde ou ao receio de serem discriminadas nesses espaços. Essa escolha, por sua vez, não implica necessariamente o uso despreocupado ou descuidado (Excerto 13 – Quadro 1).
DISCUSSÃO
Este estudo identificou que é alto o indicativo de uso de hormônios não prescritos para transição corporal de mulheres trans e travestis, principalmente entre as mais jovens, que não estavam estudando, com histórico de trabalho sexual e que não haviam retificado o nome. Ter sofrido discriminação alguma vez na vida por ser travesti/mulheres trans esteve associado negativamente ao desfecho. As mais altas proporções desse comportamento foram observadas em Manaus, Salvador e Campo Grande.
A proporção de uso de hormônios em algum momento da vida, no presente estudo (85,9%), foi inferior à observada em São Francisco – EUA (94,0%)25 e em Salvador – BA (94,8%)4 e superior ao estudo de coorte Transcendendo no Rio de Janeiro – RJ (45,7%)26. Em relação ao uso atual de hormônios, a proporção observada neste estudo (40,7%) foi semelhante à verificada no Canadá (43,0%)27 e inferior às verificadas em São Francisco – EUA (49,1%)25, no Rio de Janeiro (49,1%)26 e em Salvador (69,0%)4.
Quanto à prevalência do uso atual de hormônio sem prescrição médica (72,6%), principal desfecho do presente estudo, de forma comparativa a estudos nacionais, verificou-se que foi inferior à do Divas – Distrito Federal (84,0%)28, semelhante à do Transcendendo – Rio de Janeiro (78,7%)26, à do Pop Trans – Salvador (69,1%)4, à de Muriel – sete municípios do estado de São Paulo (79,4%)16 e; superior à de mulheres trans e travestis do Trans – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (53,6%)15. Considerando os estudos internacionais, a prevalência foi inferior à verificada em Lima – Peru (88,4%)29 e superior à de Boston – EUA (4,2%)30, Ontario – Canadá (26,8%)27 e São Francisco – EUA (49,1%)25.
Diversos fatores podem explicar as diferenças encontradas nas prevalências de automedicação de hormônios. Alguns estudos internacionais focaram na população trans já vinculada a serviços de saúde27,30, enquanto a maioria dos nacionais recrutou mulheres trans por meio de RDS4,16,26,28. Outros possíveis fatores podem ser destacados, tais como: temporalidade do estudo; locais de realização; diferentes legislações sobre a implantação desses serviços e barreiras de acesso, como capacidade dos municípios para ampliar a oferta de serviços; despreparo dos profissionais; estigma vivenciado; falta de insumos no âmbito da saúde pública; baixa condição socioeconômica e crença de que uma quantidade de hormônios maior do que a prescrita provocaria uma mudança corporal mais rápida3,4,25,28. Os sentidos atribuídos ao uso de hormônios são relevantes nos processos de afirmação de gênero, com potencial de diminuição do sofrimento e aumento do bem-estar de mulheres trans e travestis, especialmente no que se refere à autopercepção, à autoestima e às interações sociais31. Esses achados vão ao encontro da afirmação de Nascimento5 de que “os corpos são referências que podem funcionar como âncora para nossas identidades, um ponto firme ao qual nos vinculamos e nos conectamos”. Dessa forma, o processo de afirmação de gênero passa pelo atendimento de diversas subjetividades, sendo o uso de hormônios uma importante ferramenta para a construção do corpo desejado31.
Vários fatores têm sido associados positivamente ao uso de hormônios não prescritos, como: ter feito a cirurgia de redesignação e ter tido experiência de agressão verbal em função de sua identidade e expressão de gênero26; experiências negativas com profissionais de saúde; recursos financeiros limitados; ausência de serviços de saúde relacionados à transição de gênero e ter feito cirurgia com recursos financeiros próprios27; e falta de insumos no âmbito da saúde pública e despreparo dos profissionais sobre a prescrição desses medicamentos para mulheres trans32. Em três estudos nacionais4,25-27,31,32 e em um internacional26, os fatores que apresentaram maior associação ao uso de hormônios não prescritos foram semelhantes: serem mais jovens e mencionarem trabalho sexual.
As narrativas das entrevistadas indicam que o alto índice de uso de hormônios sem prescrição reflete as barreiras de acesso aos serviços, o desejo de uma transição rápida e a escassez de profissionais capacitados. Ainda que limitada a literatura sobre o tema, tais achados são semelhantes aos da revisão sistemática realizada por Kennedy et al.33
Os achados do TransOdara apontam para baixa cobertura de serviços de saúde que atendam às necessidades específicas e falta de preparo dos profissionais de saúde. Do relato das participantes, pode-se deduzir que a relativamente recente implementação dos procedimentos de transição de gênero no SUS é ainda insuficiente. Por outro lado, a automedicação parece estar consolidada na cena cultural das pessoas trans, tendo como característica importante a centralidade das redes de mulheres na disseminação de informações e na própria administração não prescrita de hormônios, como também observado em Lima — Peru29 e em Bogotá — Colômbia34.
A divulgação de informações entre mulheres trans e travestis e o apoio de pares no acesso a serviços aparecem no relato das participantes, indicando a relevância das redes para a ampliação do uso assistido desses medicamentos, a melhora do vínculo com tais serviços e a redução de riscos e complicações decorrentes do uso sem prescrição adequada dos hormônios. Uma recente revisão verificou efeitos adversos do uso de doses exageradas desses medicamentos entre mulheres trans, como problemas de circulação e alterações de humor35. Essas mulheres, que adquirem hormônios sem prescrição, têm pouca informação sobre posologia, eficácia, contraindicações e efeitos adversos29.
Limitações do estudo
A primeira limitação do estudo é inerente ao desenho de natureza transversal, cujo objetivo primário foi a investigação das prevalências das ISTs selecionadas, limitando o aprofundamento de questões como a hormonização. A segunda refere-se ao método utilizado para o recrutamento das participantes (RDS), dado que, apesar de ser amplamente utilizado em estudos com populações que seriam dificilmente recrutadas por outros métodos amostrais, os resultados obtidos precisam ser interpretados com cautela, pois podem ser representativos apenas das redes sociais eventualmente captadas pelo estudo, cujas características, em geral, são desconhecidas. Na ausência de melhores estratégias, o RDS continua a ser um método de eleição para estudos com populações de mulheres trans em vários contextos36.
Outra limitação foi as dificuldades da condução durante a pandemia de COVID-19, resultando em interrupções das cadeias de recrutamento, mudança de local para realização da pesquisa e dificuldades em estabelecer as referências para atendimento imediato às demandas das participantes.
Considerações finais
Não obstante as dificuldades mencionadas, este é um estudo com números robustos, que revelou o alto uso de hormônios sem prescrição em mulheres trans e travestis de cinco capitais representativas das macrorregiões brasileiras. Os achados reforçam resultados de estudos anteriores4,16, que já apontavam esse grave problema de saúde pública. A persistência de barreiras importantes de acesso ao uso de hormônios prescritos está em dessintonia com o papel esperado do Estado para que essa população possa se beneficiar desse direito.
Reduzir a prevalência do uso de hormônios não prescritos é premente, sendo necessárias diversas ações, desde estruturais, para evitar atitudes estigmatizantes e discriminatórias, até a análise minuciosa da implementação daquelas vigentes, para identificar lacunas e falhas a serem corrigidas, especialmente entre as mais jovens, com histórico de trabalho sexual, que não estudam, que ainda não retificaram os seus nomes e que sofrem discriminação por serem trans. O conjunto de fatores associados ao uso de hormônios sem prescrição no TransOdara revela vulnerabilidades de natureza individual, social e estrutural que impactam negativamente a saúde dessa população em várias dimensões.
A fim de melhorar a assistência a essa população, é esperado, em todos os níveis do SUS, o treinamento contínuo de equipes multiprofissionais para que forneçam orientação adequada sobre o uso correto dos hormônios e monitorem o tratamento, visando, inclusive, à redução de eventos adversos35; a implantação e ampliação do número de serviços especializados em todas as regiões brasileiras; a ampla comunicação dos direitos assegurados em lei, especialmente o uso do nome social, proporcionando um atendimento respeitoso e sem discriminação, entre outros.
Para além do escopo desta análise, a compreensão das consequências do uso de hormônios para a saúde de pessoas trans permanece como questão atual e relevante, que merece ser aprofundada em outros estudos.
AGRADECIMENTOS:
Agradecemos a Luca Fasciolo Maschião e Beatriz Nobre Monteiro Paiatto por terem colaborado na concepção inicial da análise do presente estudo.
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Editado por
-
EDITOR CIENTÍFICO
Antonio Fernando Boing 0000-0001-9331-1550
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
30 Set 2023 -
Revisado
19 Fev 2024 -
Aceito
21 Fev 2024